Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4383/23.6T8GMR-A.G2
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Verifica-se o elemento objectivo do tipo de litigância de má fé, previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 542º, na situação em que a exequente instaura execução para pagamento de duas quantias, com base em sentença, vindo a julgar-se nos embargos de executado que tal pretensão não tinha fundamento porque o título executivo não certifica o direito imediato àquelas, não podendo a parte ignorar tal falta de fundamento por isso resultar da correcta interpretação da sentença e de decisões anteriores à instauração da execução, decisões essas proferidas num incidente de liquidação da referida sentença e numa outra acção executiva intentada com base na mesma sentença.
II - E verifica-se o elemento subjectivo na modalidade de negligência grosseira porque a parte não fez uso dos mais elementares deveres de cuidado e indagação, que no caso concreto passavam pela correcta leitura e interpretação da sentença e pela interpretação da mesma já efectuada nas decisões anteriores.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

AA intentou acção executiva, nos próprios autos, tendo por título executivo sentença condenatória, para pagamento da quantia de € 11.877,83, contra EMP01... – Companhia de Seguros, SA.

Alegou para tanto e em síntese que: por Acórdão desta RG, que confirmou a sentença, foi a executada condenada nos termos que refere; não obstante tal decisão já ter transitado há muito, a executada nunca cumpriu, a não ser por força das posições assumidas pela exequente, nomeadamente no processo de execução nº 1092/22.7T8GMR; a executada foi condenada no pagamento da prótese que indica, adquirida pela exequente, pelo facto de a mesma ter ultrapassado o cronograma definido pela sentença; a última substituição de tal prótese remonta a 03 de março de 2020, o que significa que já foi ultrapassado o cronograma definido nos pontos 59), alínea e) e 60) dos factos provados na sentença referida; a exequente, por diversas vezes, instou a executada para proceder à entrega da referida prótese, o que a mesma nunca fez, nem se presume que o venha a fazer; a exequente, mediante a determinação de um técnico, procedeu à aquisição da mesma, o que teve o custo de € 8.167,41; a executada nunca entregou à exequente outra prótese que indica, referida no ponto 57) da sentença; a executada foi, por diversas vezes, instada a proceder à entrega da referida prótese, o que nunca fez; em face disso e de acordo com o relatório técnico “superveniente”, a exequente procedeu à sua aquisição, o que teve o custo de € 3.710,42.

Após penhora do saldo bancário de uma conta da executada, foi a mesma notificada, tendo deduzido embargos de executado em que, no que à economia do recurso releva, invocou: que a exequente intentou acção executiva contra a embargante sob o n.º 1092/22.7T8GMR em que, à semelhança do que ocorre nos presentes autos, deu como título executivo a sentença condenatória proferida no processo nº 4547/15.6T8GMR; para além de pedir o reembolso do valor despendido com a prótese por si adquirida, após a executada ter liquidado o valor correspondente, pretendia o prosseguimento dos autos com a execução dos “danos futuros”, ao que o tribunal não acedeu, decisão que foi confirmada por Ac. desta RG de 07/06/2023; naquela decisão foi determinado que a exequente só pode exigir as substituições de equipamento à executada quando determinado por técnico e dentro do cronograma definido; tal decisão incidiu sobre os “danos futuros”; mas tal decisão demonstra que também a aquisição e entrega de equipamentos pela executada à exequente se encontra dependente de apresentação de um parecer técnico; a exequente juntou relatório técnico apenas aquando do incidente de liquidação no âmbito do processo nº 4547/15.6T8GMR, correspondente à necessidade de aquisição da prótese cuja factura foi junta no processo 1092/22.7T8GMR, e daí que a executada tenha liquidado o respectivo valor.

Relativamente à execução de que os presentes são apenso, refere que a alínea b) da sentença que constitui título executivo deve ser interpretada no sentido de que também a aquisição e a entrega de equipamentos devem ser justificadas por um parecer técnico e dentro do cronograma definido; a exequente nunca interpelou a executada para fornecer equipamentos mediante a apresentação de qualquer parecer técnico, como era pressuposto; a exequente, por sua própria decisão, antecipou-se em adquirir equipamentos por preços praticados fora da realidade do mercado; a exequente não foi condenada a reembolsar a exequente das despesas em que a mesma entenda incorrer.

Por despacho de 09/10/2023 os embargos foram admitidos liminarmente e ordenada a notificação da exequente para contestar.

Entretanto, nos autos de execução, a 12/10/2023 foi proferido despacho que considerou que a forma de processo era a ordinária por estar em causa execução de decisão judicial em que a obrigação está dependente de condição (art.º 550º, n.º 3 do CPC) e em função disso determinou:

a) a correção da forma de processo, passando a ser ordinária;
b) a anulação de todos os actos praticados após a entrada do requerimento executivo, nomeadamente penhoras e citação.

E, além disso, determinou:
“Neste momento não podemos deixar de assinalar que a exequente, sabendo bem dos termos em que tinha de intentar a execução – pois que se fez munir do parecer técnico referido na sentença proferida no processo nº 1092/22.0T8GMR, não se coibiu de intentar a acção sob a forma de processo sumário o que, conforme acima exposto, causa inegáveis danos à executada, atenta a realização das penhoras.—
Tal pode configurar, no nosso entender, uma actuação de má fé, passível de ser apreciada nos termos do art. 542º do Cód. Proc. Civil.—
Assim, notifique a exequente para, querendo e em 10 dias, esclarecer o que tiver por conveniente.—

A 16/10/2023, e ainda nos autos de execução, a exequente pronunciou-se dizendo que: a execução deveria ter sido intentada como ordinária e não como sumária, o que ocorreu em resultado da execução anterior, que tendo sido apresentada sem o relatório médico, seguiu a forma sumária; em momento algum houve intenção de lesar a executada [certamente por lapso diz-se exequente]; a exequente nenhum benefício retira do facto de o processo seguir a forma sumária ou ordinária; não se afigura que tenha ocorrido algum prejuízo para a executada, que podia evitar as execuções assumindo o que decorre da sentença dada à execução.

A executada também se pronunciou dizendo que a exequente foi notificada da sentença proferida no processo nº 1092/22.7T8GMR, que decidiu que a execução dependia da junção de parecer técnico; a exequente nunca apresentou à executada qualquer pedido de entrega de equipamentos, acompanhado de parecer técnico; a exequente, de forma negligente, executou uma decisão cuja interpretação foi discutida no âmbito do processo no qual foi parte, quanto às condições para a mesma constituir título executivo e, mesmo assim, deduziu a sua pretensão sob a forma sumária, o que não podia ignorar, omitindo o dever de cooperação, devendo o seu comportamento ser integrado no n.º 2 do art.º 542º do CPC; no âmbito do incidente de liquidação do processo nº 4547/15.6T8GMR as partes chegaram a acordo quanto ao valor da indemnização para efeitos de readaptação da moradia, no valor que indica e que pagou; contudo, passado mais de um ano desde tal acordo, a adaptação não foi realizada; em Fevereiro de 2022 a exequente intentou execução no valor de € 8.836,08, que a executada liquidou para  ser levantada a penhora; a exequente requereu o prosseguimento da execução com posterior pedido de conversão da execução no valor que indica, a que o tribunal não acedeu por entender que inexistia ou era insuficiente o título executivo; a executada tem novamente a sua conta penhorada, o que para uma seguradora, que tem de pagar em dia despesas de vária ordem, consubstancia um prejuízo significativo; requer que a exequente seja condenada no pagamento de uma indemnização a favor da executada no montante que vier a ser fixado pelo tribunal.

A 30/10/2023 a exequente apresentou contestação aos embargos de executado dizendo que, não obstante a penhora do saldo da conta bancária, foi determinada a anulação de todos os actos praticados após a entrada do requerimento executivo, nomeadamente penhoras e citação; a posição da embargante tem como único propósito prejudicar a embargada, continuando a furtar-se ao pagamento do peticionado no requerimento executivo; havia necessidade de trocar a Prótese Transtibial com interface em silicone atendendo ao parecer técnico e ao cronograma temporal e nunca foi entregue à embargada a Prótese Transtibial Aquática; a embargante faz uma interpretação tendenciosa da alínea b) da sentença dada à execução; a embargante litiga com o intuito de não cumprir com as suas obrigações, pelo que litiga de má-fé, devendo ser condenada em multa e indemnização a favor da embargada.

Foi designada data para tentativa de conciliação, a qual teve lugar, tendo sido requerido e deferido um prazo para as partes chegarem a acordo.

Nada tendo sido dito pelas partes, foi proferido saneador-sentença cujo decisório tem o seguinte teor:

Pelo exposto, decide-se:--
- julgar procedentes os embargos de executado e determinar, em consequência, a extinção da execução:---
- julgar improcedente o pedido de condenação da executada/embargante como litigante de má-fé;--
- condenar a exequente como litigante de má-fé, em multa que se fixa em 5 (cinco) UCs e em indemnização, que se fixa em €: 1000 (mil euros).----
Custas a cargo da exequente/embargada - art. 527º do Cód. Proc .Civil – sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.---

A exequente/embargada interpôs recurso da referida decisão.

A 06/02/2025 foi proferido acórdão que decidiu:
- julgar improcedente o recurso quanto à parte do saneador-sentença que julgou os embargos de executado improcedentes;
- julgar procedente o recurso quanto à parte do saneador-sentença que condenou a recorrente como litigante de má-fé e, nessa parte, anular o mesmo a fim de em 1ª instância ser dado cabal cumprimento ao contraditório – ser a parte confrontada com os fundamentos invocados na decisão recorrida – e ser proferida nova decisão.

Devolvidos os autos à 1ª instância, a Sra. Juiz determinou a notificação da “recorrente para, querendo, e em 10 dias se pronunciar quanto à matéria apurada na sentença com vista à eventual condenação como litigante de má-fé.”

A recorrente pronunciou-se dizendo, em síntese e no que releva, que: se se entender que o mandatário não andou bem e que violou regras ou princípios deontológicos que estava obrigado a cumprir, deve, então, ser enviada participação à Ordem dos Advogados para que possa defender-se de forma integral, não tendo a embargada que assumir os erros do seu mandatário; a embargada não litigou de má-fé, tendo-se tratado, apenas, de um erro do seu mandatário.

Terminou requerendo que o tribunal considere que a embargada não litigou de má-fé, antes se tratou de um erro cometido pelo seu mandatário, do qual se penitencia.

O tribunal a quo, depois de consignar um conjunto de factos, proferiu a seguinte decisão:
“(…)
Entendemos que vem a exequente actuando de forma violadora dos princípios da verdade processual e colaboração, abusando da circunstância de beneficiar de apoio judiciário e, com essa capa, vem intentando sucessivos processos, com o mesmo fito: de obter o pagamento do preço de equipamentos, que a executada foi condenada a substituir mediante interpelação para o efeito nos termos e condições enunciadas na sentença.—
Nas duas decisões dos processos que antecederam a presente execução foi a exequente alertada para os limites da sentença proferida na acção declarativa, concretamente quanto ao fornecimento pela executada de equipamentos, sendo que é notório que pretende a exequente ignorar tal sentença e esses sobreditos limites.—
Mais.—
Importa salientar que ainda antes de transitada em julgado a decisão no incidente de liquidação – que advertia a exequente da inexigibilidade de prestações futuras – a exequente veio em execução (processo nº 1092/22) pugnar exactamente pelas mesmas.—
E, tendo nessa execução sido esclarecida sobre os termos em como poderia fundamentar a sua pretensão, veio, poucos dias após o trânsito em julgado da decisão ali proferida, formular na execução de que os presentes autos são apenso, pretensão em derrogação daquela enunciação e, repete-se, uma vez mais em clara violação dos termos da condenação proferida nos autos declarativos.—
A exequente pode não concordar com essa decisão, mas tem, ultrapassada a possibilidade de a impugnar, de a respeitar.—
E tal não vem sucedendo, abusando a exequente do beneficio de apoio judiciário concedido e da disponibilidade das sucessivas decisões judiciais em tentar indicar-lhe o caminho adequado para obter o necessário ressarcimento nos termos da sentença do processo declarativo.—
É certo que a materialização das pretensões depende do Mandatário, mas também estamos em crer que o mesmo não actua contra a vontade da exequente que, de resto, praticou actos conforme a posição assumida, ao adquirir, sem previamente consultar a seguradora, bens que dependiam da aprovação daquela.--
O tribunal não pode compactuar com esta actuação.—
Assim, mais não restará ao Tribunal senão condená-la como litigante de má-fé, em multa e indemnização (uma vez que foi pedida em 25/10/23) – cfr. art. 542º, nº 1, do Cód. Proc. Civil.----
A multa a que se reporta o art. 542º, nº 1, do Cód. Proc. Civil deve fixar-se entre 2 e 100 Ucs (art. 27º, nº 3, do RCP).---
Considerando a natureza dos autos e o estado das diligências, considera-se adequada a multa no valor de 5 (cinco) UCs.----
Quanto à indemnização, julgamos que se mostra adequada, face à qualidade das partes e à natureza dos interesses aqui em questão, a quantia de €: 1000.--
*
Decisão:---
Pelo exposto, decide-se condenar a exequente como litigante de má-fé, em multa que se fixa em 5 (cinco) UCs e em indemnização, que se fixa em €: 1000 (mil euros).----
Custas a cargo da exequente/embargada - art. 527º do Cód. Proc.Civil – sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.---
Registe e notifique.---“

A embargada interpôs recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) O Tribunal “a quo” entende que a recorrente litiga de má fé e que abusa do apoio judiciário, o que não corresponde à verdade;
B) A recorrida na sua oposição não faz nenhum pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé;
C) A decisão relativamente à litigância de má fé, é exclusivamente oficiosa;
D) Nos termos constantes da douta sentença recorrida, a recorrente nunca podia litigar de má fé, mas sim o seu mandatário;
E) O erro na forma de processo não pode ser apontada à recorrente mas sim ao seu mandatário;
F) Entende a Mta. Juiz “a quo” que em vários processos, houve uso indevido do apoio judiciário;
G) Os vários processos são os seguintes: a liquidação; a primeira execução; a execução a que correspondem os presentes embargos;
H) A liquidação não se vê como se poderia prescindir dela; a primeira execução levou ao pagamento integral da quantia exequenda; a segunda execução, produziu mais “ruído” do lado do Tribunal do que da executada;
I) Se se entender que o signatário não andou bem e que violou regras ou princípios deontológicos que estava obrigado a cumprir, deve então ser enviada participação à Ordem dos Advogados, para que o signatário possa defender-se de forma integral;
J) Não se pode aceitar é que seja a recorrente a ter que assumir erros do seu mandatário, uma vez que a isso não está e nem pode ser obrigada;
K) A Douta Sentença recorrida violou entre outras as normas ínsitas nos artigos 10º, 703º, nº 1, alínea a), 542º, nº 1 e 2 do C.P.C..

Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido com efeito devolutivo, o que foi objecto de correção por este tribunal.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

A única questão que cumpre apreciar é a de saber se decisão recorrida que condenou a recorrente como litigante de má-fé deve ser revogada.
           
3. Fundamentação de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
a) Foi dada à execução a sentença proferida nos autos de acção de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, junta por certidão e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;—
b) A execução foi instaurada, em 31/7/2023, sob a forma sumária;--
c) No requerimento executivo alega a exequente, na parte de exposição dos factos, que:--
“1) Por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de fls., que confirmou a douta sentença proferida a fls., já transitado em julgado em 12 de setembro de 2020, foi a executada condenada, para além do mais, no seguinte:
B) “(…) a adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam no ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).”
2) Dos pontos acabados de referir consta o seguinte:
54) A Autora possui como produtos de apoio fornecidos pela Ré: e) Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (resposta ao artigo 87º da petição inicial § 16º do ponto 2) do articulado superveniente).
55) A prótese referida em 54) e) e seus componentes são adequados ao grau de atividade da Autora, mas beneficiaria com um pé que facilitasse a marcha em locais de elevada inclinação (resposta ao § 17º do ponto 2) do articulado superveniente).
56) (…)
57) A Autora necessita de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a sua autonomia na sua higiene e banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia (resposta ao § 19º do ponto 2) do articulado superveniente).
58) Para facilitar as deslocações no exterior da habitação, designadamente, para permitir a realização de visitas à progenitora na casa desta, deslocação à igreja, assim como acompanhar as amigas em caminhadas, e em complemento da segunda solução aludida em 53), a Autora necessita de uma cadeira de rodas elétrica com comando de direção manual, tipo scooter (resposta ao § 20º do ponto 2) do articulado superveniente).
59) Os produtos identificados em 54) têm períodos expetáveis de substituição de, respetivamente:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao artigo 87º da petição inicial, § 21º do ponto 2) do articulado superveniente).
60) O produto identificado em 57) tem período expectável de substituição de 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao § 21º do ponto 2) do articulado superveniente).
3) Não obstante tal decisão ter já há muito transitado em julgado, a verdade é que, até à presente data, a Ré nunca cumpriu, a não ser por força das posições assumidas pela Exequente, nomeadamente, no âmbito do requerimento executivo com a Refª ...78 e que correu termos no Juízo de Execução de Guimarães – Juiz ..., sob o processo n.º 1092/22.7T8GMR;
4) Nos termos do referido requerimento executivo, foi a Executada condenada no pagamento da prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, adquirida previamente pela Exequente pelo facto de o aludido equipamento ter ultrapassado o cronograma definido na Douta Sentença;
5) O certo é que, a última substituição do equipamento acima mencionado remonta a 03 de março de 2020 (Cfr. teor do doc. junto com o n. º1);
6) O que significa que foi já ultrapassado o cronograma definido no ponto 59), alínea e) e 60) dos factos provados e suprarreferidos na Douta Sentença;
7) Atendendo ao supra aludido, a Exequente, por diversas vezes, instou a Executada para proceder à entrega da prótese transtibial, contudo, a Executada nunca o fez, nem se presume que o venha a fazer;
8) Motivo pelo qual, a Exequente mediante determinação de um técnico (Cfr. teor do doc. junto com o n.º 2) procedeu à sua aquisição a expensas próprias (Cfr. teor do doc. junto com o n. º3);
9) Tal equipamento acarretou um custo total de 8.167,41€ (oito mil cento e sessenta e sete euros e quarenta e um cêntimos) para a Exequente, sendo certo que esta apenas suportou o valor parcial de 3.582,02€ (três mil quinhentos e oitenta e dois euros e dois cêntimos) em 29-11-2022 (Cfr. teor do doc. junto com o n. º3);
10) Continuando pendente o pagamento de 4.585,39€ (quatro mil quinhentos e oitenta e cinco euros e trinta e nove cêntimos);
11) O certo é que, tal equipamento deveria ter sido adquirido e entregue pela Executada à Exequente, o que não se verificou;
12) Acrescente-se que a Executada nunca efetuou a entrega à Exequente da prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático,referida no ponto 57) da Douta Sentença;
13) Pelo que, a Exequente até à data de hoje nunca teve a prótese transtibial de banho;
14) Nesta sequência, apesar de a Executada ter sido diversas vezes instada para proceder à entrega da prótese transitibial de banho, a verdade é que nunca o fez;
15) Face ao que e de acordo com o relatório técnico superveniente, a Exequente procedeu à sua aquisição;
16) Tal equipamento acarretou um custo total de 3.710,42€ (três mil setecentos e dez euros e quarenta e dois cêntimos) para a Exequente (Cfr. teor do doc. junto com o n.º4);
17) O certo é que, tal equipamento deveria também ter sido adquirido e entregue pela Executada à Exequente, o que, mais uma vez, não se verificou;
18) Em face do supra exposto, a Exequente vem requerer através da presente execução que a Executada proceda ao pagamento à Exequente do montante total de 11.877,83€ (onze mil oitocentos e setenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) correspondente à compra da prótese transtibilal no valor de 8.167,41€ e 3.710.42€ correspondente à prótese transtibial aquática.”
d) A Exequente/Embargada intentou, em 23/2/2022, ação executiva contra a Executada/Embargante que correu seus termos neste Juízo de Execução – J ... sob o n.º 1092/22.7T8GMR. --
e) No âmbito do referido processo, à semelhança do que ocorre nos presentes autos, a Exequente/Embargada deu como título executivo a sentença condenatória dos autos de ação de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz ..., confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.---
f) Naqueles autos a Exequente/Embargada, para além de pedir o reembolso do valor despendido com a prótese por si adquirida, e após a Executada/Embargante ter liquidado o valor correspondente de 8.015,93€, pretendia o prosseguimento dos autos com a execução pelos “danos futuros”.---
g) Tendo sido proferida decisão, em 16/11/2022 (transitada em 22/6/2023), recusando tal pretensão, na qual se escreveu que “…Vista a sentença dada à execução constata-se que da mesma não resulta sustentada a pretensão que agora a exequente pretende ver satisfeita (de “fornecer todos os produtos de acordo com a sentença que ora se dá à execução e dentro do cronograma definido pela Douta Sentença executada, confirmada pelo Douto Acórdão da Relação de Guimarães.”) Com efeito, a sentença dada à execução condenou a exequente a "... adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” – sublinhado nosso. Quer isto dizer – como evidente é – que a exequente não pode exigir, pura e simplesmente, todos os equipamentos que seriam necessários até ao fim da sua vida, pretensão esta que formula no requerimento de conversão da execução. E não o pode porquanto a executada não foi condenada nesses termos. O que se extrai da sentença, e nomeadamente do segmento condenatório que a exequente transcreve no requerimento executivo, é que a exequente poderá exigir as substituições dos equipamentos: 1) quando determinado por técnicos e 2) dentro do cronograma definido.
Assim, para poder executar a sentença na parte das substituições pretendidas e para além de ter de deixar o tempo seguir o seu curso normal, deverá a exequente fazer-se acompanhar de parecer técnico que o justifique”.—
h) A decisão mencionada em i) foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/6/2023.--
i) A Exequente/Embargada adquiriu uma Protese Transtibial com interface em silicone, o que terá ocorrido em 13/10/2022, que terá custado 8.167,41€ e ainda uma Protese Transtibial Aquática que terá sido adquirida em 29.11.2022 e que terá custado o valor de 3.710,42€.--
j) Aquando da aquisição da Protese Transtibial Aquática já a Exequente/Embargada havia sido notificada da decisão de 1ª Instância que entendeu que a substituição de equipamentos deveria ser acompanhada de um parecer técnico para além do decurso do prazo previsto em cronograma.---
k) No seguimento de notificação para se pronunciar sobre uma eventual condenação como litigante de má fé, veio a exequente alegar, além do mais que “Tal facto ocorreu em resultado da execução anterior, que como foi apresentada sem o relatório médico seguiu a forma sumária.”--
l) A executada teve a conta bancária penhorada durante quase 2 meses, por força da precedência da penhora em relação à citação atenta a forma de processo utilizada pela exequente.—
m) A exequente intentou em 21/4/2020, por apenso à acção declarativa onde se formou a sentença dada à execução, incidente de liquidação, que correu termos sob o nº 4547/15.6T8GMR.1, formulando a final a seguinte pretensão “Termos em que deve a presente liquidação ser julgada procedente por provada, declarando-se que o crédito do requerente ascende à quantia 441.519,87€, correspondente a 9.640,93€ já pagos pela Autora e 407.855,44€, a despender ao longo da sua vida e na aquisição dos serviços e produtos constantes dos pontos 34), 35), 36), 37), 44), 53), 54), 57), 58), 68), tendo em conta para a liquidação dos pontos 54) e 57) o constante dos pontos 60) e 61), todos da fundamentação de facto da referida sentença, nos termos sobreditos, acrescida dos juros à taxa legal contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo da requerida.”
n) No incidente referido em m), após a tramitação legalmente prevista, foi proferida sentença em 27/4/2021, transitada em 28/4/2022, que julgou improcedente a pretensão da exequente que visava o pagamento de equipamentos nos termos agora peticionados e que, no que aqui releva, dispôs na fundamentação de direito que:--
“No que se refere ao custo dos produtos e equipamentos e às respetivas substituições, a Ré foi condenada à sua entrega à Autora, não tendo sido essa obrigação relegada para ulterior liquidação, justamente porque a condenação não consistiu no pagamento de uma indemnização equivalente em dinheiro, mas antes na entrega de coisas àquela.
Percorrendo a douta sentença proferida na ação declarativa, verifica-se que a condenação nesses termos correspondeu a uma opção judicial em face do pedido (principal) que havia sido formulado no articulado superveniente.
Com efeito, segundo o que consta do relatório de fls. 449 e 449/verso (dos autos principais), nesse articulado superveniente, e na parte agora pertinente, a Autora pediu a condenação da Ré:
- A adquirir e entregar-lhe uma cadeira de rodas elétrica com comando de direção manual tipo scooter para facilitar as deslocações exteriores nas proximidades da habitação, nomeadamente a transposição da rampa de acesso à cave, visitar a mãe e acompanhar as amigas nas caminhadas;
- A adquirir e a entregar-lhe barra de apoio para duche e sanita, cadeira de duche, cadeira de rodas manual, canadianas, prótese transtibial com estrutura endosquelética, interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética: interface em silicone e pé aquático e scooter, a substituí-los por novos nos períodos de 10, 5, 10, 1, 2, 2 e 5 anos, respetivamente ou, em alternativa, a pagar o seu custo, nos valores de € 120, € 100, € 500, € 20, € 4.000, € 2.200 e € 3.000, respetivamente, acrescido de IVA à taxa em vigor à data, dos custos com a manutenção e substituição variáveis conforme o modo de utilização e por cada período mencionado para cada equipamento/produto.
Apreciando esses pedidos, na sentença, escreveu-se o seguinte:
“Sabemos que a Ré forneceu à Autora produtos/equipamentos de apoio como barra de apoio para duche e sanita, cadeira de duche, cadeira de rodas manual, canadianas e prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia, tendo também suportado o custo com obras de adaptação realizadas na casa de banho da habitação sita no primeiro andar da moradia e transformação de um espaço de arrumos, localizado ao nível da cave, em cozinha, sala e a casa de banho.
Sucede que, além da circunstância de aqueles produtos sofrerem desgaste, implicarem manutenção, reparação e, ciclicamente, substituição de acordo com os tempos expetáveis patentes nos pontos 59) a 61) da fundamentação de facto, sendo da responsabilidade da Ré assumir tais prestações, atenta a prevalência dada pelo legislador ao princípio da restauração natural, consagrado no artigo 562º do Código Civil, existem ainda equipamentos destinados a ultrapassar alguns óbices que resultam das sequelas do acidente.
Assim, provou-se que a Autora passa o dia no espaço adaptado situado na cave e dorme no ... piso da habitação; o acesso desde a cave até ao nível do rés-do-chão é realizado através de uma rampa íngreme e, por sua vez, desse piso para o primeiro andar existe uma escadaria com uma sequência de 3, 3 e 13 degraus, a maioria com corrimão; o membro amputado e as dificuldades associadas à deslocação com a prótese determinam perda de autonomia para a Autora e riscos para a sua segurança.
Existem duas soluções alternativas para obviar a tais dificuldades: a primeira passa pela colocação de uma plataforma elevatória vertical que estabeleça o acesso direto externo entre a cave e o primeiro andar, ao passo que a segunda consiste na instalação de um assento elevatório na escadaria, solução menos completa, visto que se limita à ligação entre o rés-do-chão e primeiro andar, obrigando à complementaridade com um equipamento que vença a inclinação da rampa, também proposto para deslocações mais longas, designadamente, para permitir que a Autora visite a sua progenitora, acompanhe as amigas nas caminhadas como fazia antes do acidente e, mesmo para ir à igreja, ou seja, uma cadeira de rodas com comando de direção manual, tipo scooter.
(…)
No que diz respeito à scooter, não concordamos com o argumento da Ré: esse tipo de equipamento não se destina a cidadãos paraplégicos mas a todos aqueles que, devido às limitações que decorrem das deficiências de que são portadores, podem ver a sua autonomia reforçada com deslocações fora do âmbito estrito do seu lar, potenciando o convívio, a socialização, por sua iniciativa, sem esperar que venham ao seu encontro.
(…)
Caberá à Ré fornecer esse equipamento, bem como prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a autonomia na higiene/banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia.
No que diz respeito às substituições, as mesmas terão de ser determinadas por técnicos, em função do seu estado, cabendo à Ré levá-las a cabo” (itálico e destacado nossos).
Do que se transcreveu resulta que a obrigação em que a Ré foi condenada correspondeu, portanto, ao pedido principal formulado no articulado superveniente, e traduz-se na entrega dos equipamentos, e não do seu valor.
É claro que as partes que poderão, tendo com conta o que foi fixado quanto ao custo e o período de substituição dos equipamentos, converter essa obrigação de entrega de coisa numa obrigação em dinheiro, mas essa solução (que libertará a Ré da condenação) depende de acordo, tal como o fizeram em relação à adaptação da casa de habitação.
Não o tendo feito até ao presente, sob pena violação do caso julgado, não se pode neste incidente de liquidação transformar a prestação de uma coisa numa prestação em dinheiro.
Tal poderia suceder, e ressalvando o (já abordado) caso de acordo, apenas na hipótese de execução coativa da obrigação, pois que, nos termos do artigo 867º, do CPCiv, quando não seja encontrada a coisa que o exequente devia receber, este pode, no mesmo processo, fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta da entrega, observando-se o disposto nos artigos 358º, 360º e 716º, com as necessárias adaptações.
Essa liquidação ulterior pressuporia, contudo, como se disse, a interpelação executiva da devedora ao cumprimento das obrigações de entrega fixadas na sentença.
Assim, o pedido será julgado improcedente nesta parte, já que as prestações de entrega a cargo da Ré não são suscetíveis de ser liquidadas através do presente incidente, sem prejuízo de a Autora e a Ré, querendo, aproveitando o que ficou provado, de fixarem em dinheiro aquelas obrigações (tendo em conta a esperança média de vida adiante considerada).”--

4. Fundamentação de direito
4.1. Litigância de má-fé - Enquadramento jurídico
Qualquer pessoa que se considere titular de um direito pode solicitar a intervenção judicial para o ver reconhecido ou para alcançar a sua realização coerciva - arts. 20º da Constituição da República Portuguesa e 2° do Cód. Proc. Civil -, assim como qualquer pessoa demandada pode usar os meios processuais existentes para se defender.

A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais.

Mas, como refere Paula Costa e Silva, in Responsabilidade por conduta processual – litigância de má-fé e tipos especiais, Almedina, pág. 45 “o direito de acção, como qualquer outro direito subjectivo, não traduz uma liberdade absoluta: ainda que o direito a agir configure uma permissão normativa genérica, não pode significar uma possibilidade de actuação sem fronteiras de licitude. O direito de acção, como qualquer situação jurídica, está, desde logo, limitado pelos fins da sua atribuição.”

Uma dessas limitações traduz-se nestas exigências: as partes devem agir de boa-fé, como estabelece o art.º 8º, cuja epígrafe é “Dever de boa-fé processual” e devem observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo 7º.

E, muito embora não esteja plasmado directamente na lei um dever de verdade – que não é apenas um dever de não alegar factos falsos, mas também de não omitir factos relevantes para a decisão da causa, já que a desconformidade com a realidade relevante para o processo e, assim, para a justa decisão da causa, ocorre em ambos os casos -, o mesmo resulta do princípio da boa-fé consagrado no art.º 8º, conjugado com o disposto no art.º 542º, n.º 2, alínea b), donde resulta que litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.

Não faria sentido que em decorrência do interesse público na boa administração da justiça, que constitui a finalidade última do processo, se estabelecesse uma sanção para a alteração da verdade dos factos ou para a omissão de factos relevantes, se as partes não estivessem sujeitas a um dever de verdade.

Se a parte procedeu de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação.

Mas se a parte procedeu de má-fé, determina o art.º 542°, n° 1 do Cód. Proc. Civil a sua condenação em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

Como decorre do normativo citado e é entendimento que não oferece qualquer dúvida (vd. a título exemplificativo o Ac. do STJ de 08/02/2022, proc. nº4964/20.0T8GMR.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj), a litigância de má-fé é de conhecimento oficioso.

O único aspecto em que se aplica o princípio do dispositivo é o da condenação numa indemnização à parte contrária, pois a mesma depende de pedido da parte contrária.

E nos termos do n.º 2 do art.º 542º do CPC:
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Decorre da conjugação do n.º 1 com o n.º 2, que a condenação por litigância de má-fé exige a verificação de elementos subjectivos e elementos objectivos.

Quanto aos elementos subjectivos, a norma contempla quer o dolo, quer a negligência grave.
 
Nem sempre foi assim.

O art.º 465º do CPC de 1939 dispunha:
Deve considerar-se litigante de má-fé não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.

A citada norma era interpretada como punindo, apenas, as actuações dolosas e não as actuações com culpa grave (neste sentido Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, pág. 262 e Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 356).

O CPC alterado em 1961 estabelecia a litigância de má-fé no art.º 456º de forma quase idêntica, dispondo:
2. Diz-se litigante de má-fé não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.

Destarte, e quanto a esta norma, mantinha-se válida a interpretação de Alberto dos Reis e de Manuel de Andrade.

Porém, o DL 329-A/95, de 12 de Dezembro veio mudar o paradigma, passando a dispor no corpo do n.º 2:
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:…

Esta norma corresponde hoje ao n.º 2 do art.º 542º.

Assim, e actualmente, o elemento subjectivo tanto abrange o dolo, como a negligência grave.

O CPC não contém qualquer norma definidora de tais conceitos.

Alberto dos Reis, in CPC Anotado, II, pág. 262, distinguia quatro tipos de conduta processual, sendo que, no que releva face à norma actual, apenas os dois últimos interessam:
- lide temerária – a parte embora convencida da sua razão, incorreu em erro grosseiro ou culpa grave, tendo ido para juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas, de facto ou de direito, que comprometiam a sua pretensão – e que podemos hoje fazer corresponder à negligência grave;
- lide dolosa – a parte, apesar de estar ciente de que não tinha razão, litigou e deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada.

Paula Costa e Silva, in Responsabilidade…, pág. 344, refere que o dolo “revela-se numa intencionalidade da parte quer na dedução de pretensão ou oposição infundada, quer na alteração ou omissão de factos, quer na violação do dever de cooperação, quer, por fim, na utilização maliciosa ou abusiva do processo ou dos meios processuais com vista a conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça.
Assim, e consoante os tipos, age dolosamente a parte que sabe que não tem razão quando deduz determinada pretensão ou oposição, a parte que sabe que procede a uma descrição dos factos essenciais não coincidente com a realidade, a parte que viola intencionalmente o dever de cooperação bem como a parte que sabe estar a fazer um uso reprovável, porque disfuncional, dos meios processuais ou do processo.

Quanto à negligência, em termos gerais, consiste na omissão da diligência devida num caso concreto.

Mas, face à norma em apreço, só releva a negligência grave, que é a negligência grosseira, escandalosa, intolerável, em que só cai um homem anormal ou extraordinariamente descuidado – Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, págs. 434-435 (cfr. o conjunto de exemplos jurisprudenciais recenseados por Paula Costa e Silva, in ob. cit., pág. 345).

Quanto à concretização do elemento subjectivo do tipo, dilui-se na concretização dos comportamentos da parte, reveladores de má-fé (Paula Costa e Silva, in ob. cit., pág. 344) ou, como se afirmou no Ac. do TC n.º 388/2004, “a existência de dolo ou negligência grave, como pressuposto da litigância de má fé, é uma conclusão que o Tribunal pode e deve extrair a partir da sua apreciação da conduta processual do litigante, tal como resulta e se concretizou, não sendo exigível uma produção de prova especificamente destinada a comprovar o elemento subjectivo.”

A doutrina distingue ainda má-fé, dolosa ou com culpa grave, substancial - deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida, altera-se a verdade dos factos, omitem-se factos essenciais – e instrumental – omitiu-se, de forma grave, o dever de cooperação ou fez-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável.

Quanto aos elementos objectivos, traduzem-se nas condutas identificadas nas várias alíneas do n.º 2, às quais está subjacente um conjunto de deveres processuais cuja violação constitui o fundamento da condenação por litigância de má-fé e que radicam no dever processual geral, imposto a todas as partes, de agir de boa-fé.

A decisão recorrida não indicou a ou as alíneas do n.º 2 do art.º 542º em que fundou a decisão de condenação da recorrente.

Podemos desde já afirmar que, face à respectiva fundamentação, não está em causa uma alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa, uma violação do dever de cooperação ou um uso manifestamente reprovável dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Face aos respectivos fundamentos, estará em causa a previsão da alínea a) do n.º 2 do art.º 542º do CPC, de acordo com a qual a parte actuará ilicitamente se souber ou dever saber que a sua pretensão ou oposição, quer atendendo aos aspectos de facto, quer aos efeitos que deles são retirados, não é compatível com o que dita o sistema jurídico.

Como refere Paula Costa e Silva in ob. cit., pág. 389-390, na evolução deste tipo, o conhecimento efectivo quanto à falta de fundamento foi substituído pela exigibilidade desse conhecimento; e bastando-se a lei com isso - e, com esta referência, fazendo apelo implícito a uma boa-fé subjectiva porque dependente de um estado de conhecimento efectivo ou exigível do agente -, a sua prova pode ser feita a partir de índices externos, construídos sobre a parte “média”. Mesmo que a parte alegue a sua boa-fé, entendida esta em sentido subjectivo, litigará de má-fé se, não obstante não conhecer a falta de fundamento da pretensão ou da defesa, lhe fosse exigível que conhecesse.

E acrescenta na pág. 390:
“A parte, se lhe for exigível o conhecimento do facto “falta de fundamentação”, ao actuar como actuou, formulando uma pretensão ou apresentando uma defesa com falta de fundamento, terá agido negligentemente, posto que só é logicamente admissível o resultado – a prática de um facto – se ela houver violado deveres de indagação e cuidado. A parte apenas deduziu a pretensão que não tem fundamento (…) porque, ao não indagar se a sua pretensão era fundamentada, no plano do facto e do direito, acaba por praticar uma acção com aquelas características.
(…) somente se a parte viola os deveres de indagação devidos no caso concreto (…), o tipo negligente está preenchido.”

Mas a mesma autora precisa - págs. 391-392 -, que a concretização do grau de exigibilidade quanto ao conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou da defesa é realizada pela graduação da negligência constante do corpo do n.º 2 – tem de ser uma negligência grave, traduzida numa ligeireza particularmente grosseira quanto ao modo como a parte configura a sua pretensão ou defesa, omitindo, nesta sua actuação, os mais elementares deveres de cuidado e de indagação.

Assim, a condenação de uma parte como litigante de má-fé à luz da alínea a) do n.º 2 do art.º 542º, exige, ainda, que se possa concluir, com a necessária certeza e segurança, pela verificação do elemento subjectivo, o que no caso implica uma articulação entre o corpo do n.º 2 e a citada alínea, daí resultando que se tem de verificar uma de duas possibilidades:

- Dolo: a parte sabia que a sua pretensão ou oposição não tinha fundamento, mas, não obstante quis deduzi-la; ou
- Negligência grave: a parte deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar por, antes de agir, não ter usado, de forma grosseira e como lhe era possível, do cuidado e diligência exigíveis em concreto, na indagação do fundamento fáctico e jurídico da pretensão ou oposição.

Finalmente, importa ter em consideração que a litigância de má-fé é um instituto que tem em vista condutas processuais num processo determinado e não condutas das partes exteriores ao mesmo (cfr. Paula Costa e Silva in ob. cit., pág. 343), inclusive em outros processos, excepto se se verificar uma íntima conexão entre o processo em que esteja a ser sindicada determinada conduta à luz do instituto da litigância de má-fé e processos anteriores, atendendo aos sujeitos processuais e ao objecto.

4.2. Em concreto
O acórdão proferido a 06/02/2025, além da condenação da exequente como litigante de má-fé, tinha por objecto a procedência dos embargos de executado, tendo a respeito deles considerado:
A exequente pretende obter o pagamento das seguintes quantias:
i) € 8.167,41 relativos à aquisição de uma prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia.
Invocou para tanto que a executada foi condenada no pagamento da referida prótese; a mesma ultrapassou o cronograma definido pela sentença para a sua substituição (pontos 59), alínea e) e 60) dos factos provados na sentença); a exequente, por diversas vezes, instou a executada para proceder à entrega da referida prótese, o que a mesma nunca fez, nem se presume que o venha a fazer; a exequente, mediante a determinação de um técnico, procedeu à aquisição da mesma.
ii) € 3.710,42 relativos à aquisição de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático, referida no ponto 57) da Douta Sentença.
Invocou para tanto que a executada nunca entregou à exequente a referida prótese, referida no ponto 57) da sentença, apesar de instada, diversas vezes, para o fazer; em face disso e de acordo com o relatório técnico “superveniente”, a exequente procedeu à sua aquisição.

Instaurou, por isso, uma execução para pagamento de quantia certa.

E fê-lo invocando como titulo executivo a sentença proferida nos autos de acção de processo comum nº 4547/15.6T8GMR, do J ... do Juízo Central Cível de Guimarães.

O saneador-sentença recorrido considerou:
Vista a sentença dada à execução constata-se que da mesma não resulta sustentada a pretensão que a exequente pretende ver satisfeita (“que a Executada proceda ao pagamento à Exequente do montante total de 11.877,83€ (onze mil oitocentos e setenta e sete euros e oitenta e três cêntimos) correspondente à compra da prótese transtibilal no valor de 8.167,41€ e 3.710.42€ correspondente à prótese transtibial aquática.”)--
Com efeito, a sentença dada à execução condenou a exequente a "... adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” – sublinhado nosso.—
Quer isto dizer – como evidente é – que a exequente não pode, sem mais, proceder à aquisição dos equipamentos e exigir da exequente o respectivo pagamento.—

Vejamos

A sentença proferida no processo nº 4547/15.6T8GMR foi dada como reproduzida na alínea a) dos factos provados.

Impõe-se, no entanto, ter em consideração o teor do respetivo decisório (no que releva à economia do recurso) e que é o seguinte:
“Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação parcialmente provada e procedente, condena a Ré Companhia de Seguros EMP01..., S. A.:
(…)
B) (…) adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).
(…)”

Na parte em referência a sentença foi confirmada por Acórdão desta RG de 19/06/2019.

Em função do decidido, e mais uma vez tendo em consideração o que releva à economia do recurso, os pontos 54, 57, 58, 59 a 61 da fundamentação de facto daquela sentença têm o seguinte teor:
“54) A Autora possui como produtos de apoio fornecidos pela Ré:
(…)
e) Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (resposta ao artigo 87º da petição inicial § 16º do ponto 2) do articulado superveniente).
(…)
57) A Autora necessita de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a sua autonomia na sua higiene e banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia (resposta ao § 19º do ponto 2) do articulado superveniente).
(…)
59) Os produtos identificados em 54) têm períodos expetáveis de substituição de, respetivamente:
(…)
e) 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (…).
60) O produto identificado em 57) tem período expectável de substituição de 6 meses para o interface, 2 meses para o revestimento cosmético e 2 anos para os restantes componentes (resposta ao § 21º do ponto 2) do articulado superveniente).

Estão em causa duas realidades:
- uma relativa à prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (ponto 54);
- outra relativa à prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático (57).

Quanto à primeira, resulta da factualidade provada na sentença que constitui título executivo (ponto 54) que a Autora possui como produto de apoio fornecido pela Ré uma Prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia.

A sentença – alínea B) do decisório – condenou a ali Ré EMP01..., aqui executada (sublinhado nosso), a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).”

É patente e manifesto que a prestação em que a executada/ embargante/recorrida foi condenada não se traduz imediatamente numa prestação pecuniária, ou seja, a executada/embargante não foi condenada a pagar uma quantia certa à exequente/embargada, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da substituição da prótese identificada no ponto 54) dos factos provados.

Quanto à segunda, está provado que a executada necessita da mesma (ponto 57).

A sentença – ainda a alínea B) do decisório – condenou a ali Ré EMP01..., aqui executada, a adquirir e entregar à exequente o equipamento identificado no ponto 57).

Destarte, também aqui é manifesto que a prestação em que a executada/ embargante/recorrida foi condenada não se traduz imediatamente numa prestação pecuniária, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da aquisição da prótese identificada no ponto 57) dos factos provados.

Assim e face ao título executivo/sentença exequenda, não cumprindo a executada com a substituição ou com a aquisição determinadas na alínea b) do decisório, a exequente pode intentar acção executiva tendo em vista a realização coactiva de tais prestações.

Mas, como afirma a decisão recorrida, “a exequente não pode, sem mais, proceder à aquisição dos equipamentos e exigir da exequente o respectivo pagamento.”

Neste sentido já foi afirmado no Ac. desta RG, de 21/02/2019, proc. 145/17.8T8CHV-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg:
IV – Tendo o exequente título para determinada prestação de facto, não pode realizar a prestação por si ou por terceiro, e com [base n]esse mesmo título […] peticionar o pagamento de determinada quantia em dinheiro.

Em face do exposto, estamos perante uma situação em que a prestação cuja realização coactiva se pretende – o pagamento das quantias de € 8.167,41 e de € 3.710,42 - manifestamente não consta do título executivo, não está incorporada no mesmo, ou, dito de outra forma, o título não demonstra, não certifica o direito imediato a uma prestação de uma quantia monetária cuja realização coactiva se pretende, pelo que estamos perante uma situação de inexequibilidade extrínseca determinante, à luz da alínea a) do art.º 729º do CPC, da procedência dos embargos de executado.

E, sendo assim, a decisão recorrida, ao julgar os embargos de executado procedentes e, em consequência, extinta a execução, deve manter-se e, nesta parte a apelação da exequente/recorrente deve ser julgada improcedente.

Concluiu-se assim, e à semelhança do que já havia concluído a 1ª instância, com base na interpretação da sentença proferida no processo nº 4547/15.6T8GMR, apresentada como título executivo, que a prestação cuja realização coactiva se pretendia – o pagamento das quantias de € 8.167,41 e de € 3.710,42 – não constava daquela.

E neste circunstancialismo impõe-se extrair a conclusão que a exequente intentou acção executiva que carecia de fundamento.

Mas, para completar o elemento objectivo do tipo, coloca-se a questão de saber se a exequente conhecia ou lhe era exigível que conhecesse essa falta de fundamento.

Vejamos.
Está provado (alínea m)) que a 21/4/2020, por apenso à acção declarativa onde foi proferida a sentença dada à execução, a aqui recorrente instaurou  incidente de liquidação, que correu termos sob o nº 4547/15.6T8GMR.1, formulando a final a seguinte pretensão: “Termos em que deve a presente liquidação ser julgada procedente por provada, declarando-se que o crédito do requerente ascende à quantia 441.519,87€, correspondente a 9.640,93€ já pagos pela Autora e 407.855,44€, a despender ao longo da sua vida e na aquisição dos serviços e produtos constantes dos pontos 34), 35), 36), 37), 44), 53), 54), 57), 58), 68), tendo em conta para a liquidação dos pontos 54) e 57) o constante dos pontos 60) e 61), todos da fundamentação de facto da referida sentença, nos termos sobreditos, acrescida dos juros à taxa legal contados desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo da requerida.”

E está também provado que no referido incidente a 27/4/2021 foi proferida sentença, transitada a 28/4/2022, que julgou improcedente a pretensão da exequente, constando da fundamentação de direito que (sublinhado nosso):--
“No que se refere ao custo dos produtos e equipamentos e às respetivas substituições, a Ré foi condenada à sua entrega à Autora, não tendo sido essa obrigação relegada para ulterior liquidação, justamente porque a condenação não consistiu no pagamento de uma indemnização equivalente em dinheiro, mas antes na entrega de coisas àquela.
 (…)
Apreciando esses pedidos, na sentença, escreveu-se o seguinte:
“Sabemos que a Ré forneceu à Autora (…) prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia (…).
Sucede que, além da circunstância de aqueles produtos sofrerem desgaste, implicarem manutenção, reparação e, ciclicamente, substituição de acordo com os tempos expetáveis patentes nos pontos 59) a 61) da fundamentação de facto, sendo da responsabilidade da Ré assumir tais prestações, atenta a prevalência dada pelo legislador ao princípio da restauração natural, consagrado no artigo 562º do Código Civil, existem ainda equipamentos destinados a ultrapassar alguns óbices que resultam das sequelas do acidente.
Caberá à Ré fornecer (…) prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático para permitir a autonomia na higiene/banho e em atividades recreativas em piscina ou na praia.
No que diz respeito às substituições, as mesmas terão de ser determinadas por técnicos, em função do seu estado, cabendo à Ré levá-las a cabo” (itálico e destacado nossos).
Do que se transcreveu resulta que a obrigação em que a Ré foi condenada correspondeu, portanto, ao pedido principal formulado no articulado superveniente, e traduz-se na entrega dos equipamentos, e não do seu valor.
É claro que as partes que poderão, tendo com conta o que foi fixado quanto ao custo e o período de substituição dos equipamentos, converter essa obrigação de entrega de coisa numa obrigação em dinheiro, mas essa solução (que libertará a Ré da condenação) depende de acordo, tal como o fizeram em relação à adaptação da casa de habitação.
Não o tendo feito até ao presente, sob pena violação do caso julgado, não se pode neste incidente de liquidação transformar a prestação de uma coisa numa prestação em dinheiro.
Tal poderia suceder, e ressalvando o (já abordado) caso de acordo, apenas na hipótese de execução coativa da obrigação, pois que, nos termos do artigo 867º, do CPCiv, quando não seja encontrada a coisa que o exequente devia receber, este pode, no mesmo processo, fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta da entrega, observando-se o disposto nos artigos 358º, 360º e 716º, com as necessárias adaptações.
Essa liquidação ulterior pressuporia, contudo, como se disse, a interpelação executiva da devedora ao cumprimento das obrigações de entrega fixadas na sentença.
Assim, o pedido será julgado improcedente nesta parte, já que as prestações de entrega a cargo da Ré não são suscetíveis de ser liquidadas através do presente incidente, sem prejuízo de a Autora e a Ré, querendo, aproveitando o que ficou provado, de fixarem em dinheiro aquelas obrigações (tendo em conta a esperança média de vida adiante considerada).”--

Está ainda provado que a 23/02/2022 a exequente intentou a acção executiva n.º 1092/22.7T8GMR, a qual também tinha como título executivo a sentença que constitui o título executivo da execução de que os presentes autos são apenso (cfr. alíneas d) e e)), tendo naquela sido proferida decisão a 16/11/2022, confirmada por acórdão desta RG de 07/06/2023, em que se consignou (cfr. alíneas g) e h)) (sublinhado nosso):
“…a sentença dada à execução condenou a exequente a "... adquirir e entregar-lhe os equipamentos e produtos identificados nos pontos 57) e 58), bem como a proceder às substituições dos mesmos e daqueles que constam do ponto 54), sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61).” – sublinhado nosso. (…). O que se extrai da sentença, e nomeadamente do segmento condenatório que a exequente transcreve no requerimento executivo, é que a exequente poderá exigir as substituições dos equipamentos: 1) quando determinado por técnicos e 2) dentro do cronograma definido.
Assim, para poder executar a sentença na parte das substituições pretendidas e para além de ter de deixar o tempo seguir o seu curso normal, deverá a exequente fazer-se acompanhar de parecer técnico que o justifique”.—

Como se deixou referido no acórdão de 06/02/2025, com a acção executiva de que os presentes são apenso, a exequente pretendia obter o pagamento das seguintes quantias:
i) € 8.167,41 relativos à aquisição de uma prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia.
ii) € 3.710,42 relativos à aquisição de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático, referida no ponto 57) da Douta Sentença.

Resulta claramente das referidas decisões que:
- relativamente à prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono em retorno de energia (ponto 54), a prestação em que a executada/embargante/recorrida foi condenada era a da sua substituição sempre que determinado por técnicos, previsivelmente dentro do cronograma definido nos pontos 59) a 61), pelo que a prestação em que a aquela foi condenada não se traduzia imediatamente numa prestação pecuniária, ou seja, a executada/embargante não foi condenada a pagar uma quantia certa à exequente/embargada, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da substituição da prótese identificada no ponto 54) dos factos provados.
- relativamente à prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático (57), que a prestação em que a executada/embargante/recorrida foi condenada era a da sua aquisição e entrega à exequente, pelo que a prestação em que a executada/ embargante/recorrida foi condenada não se traduzia imediatamente numa prestação pecuniária, o que em concreto significa que a executada não foi condenada a entregar à exequente o custo da aquisição da prótese identificada no ponto 57) dos factos provados.

Como referido, a primeira decisão é de 27/4/2021, transitada em 28/4/2022; a segunda decisão é de 16/11/2022, tendo sido confirmada por acórdão desta RG de 07/06/2023; a acção executiva de que os presentes são apenso foi instaurada a 31/07/2023, ou seja, é posterior a qualquer uma das referidas decisões.

Tendo em consideração o que resulta, de forma meridianamente clara, da sentença proferida no processo declarativo nº 4547/15.6T8GMR e a interpretação e aplicação que dela foi feita na decisão do incidente de liquidação instaurado pela aqui embargada a 21/4/2020 e na decisão proferida na acção executiva instaurada com base na mesma sentença a 16/11/2022 e confirmada por acórdão desta RG de 07/06/2023, a recorrente não podia ignorar que a instauração da acção executiva de que os presentes são apenso, nos termos em que o fez, não tinha fundamento, como, ainda, resultou da sentença proferida nos presentes embargos, confirmada pelo acórdão de 06/02/2025.

Note-se que não releva aqui a actuação da recorrente naquele incidente e acção executiva e, portanto, não se está a considerar uma conduta extra-processual.

Apenas se está a considerar a interpretação da sentença proferida na acção declarativa n.º 4547/15.6T8GMR que foi efectuada em tais processos.

Além disso, os mesmos têm uma intima ligação com a acção executiva de que os presentes são apenso, já que em todos os processos os sujeitos processuais são os mesmos – as aqui exequente e executada - e em todos está em causa a interpretação e “aplicação” daquela sentença, nomeadamente quanto aos limites em que a mesma vale ou pode valer como título executivo para pagamento de quantia certa.

A decisão recorrida invoca que a exequente “abusando da circunstância de beneficiar de apoio judiciário e, com essa capa, vem intentando sucessivos processos…”

Como já se deixou dito é irrelevante a conduta processual da exequente em outros processos – só releva a conduta processual manifestada na acção executiva de que os presentes são apenso.

Por outro lado, nada permite afirmar que o facto de a exequente beneficiar de apoio judiciário nos presentes autos teve alguma influência na conduta processual qualificada como litigância de má-fé.

Destarte impõe-se considerar verificado o elemento objectivo do tipo previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 542º do CPC.

Quanto ao elemento subjectivo, se não existem elementos para afirmar que a exequente instaurou a execução dolosamente, ou seja, consciente da falta de fundamento da sua pretensão, existem com certeza e segurança elementos para afirmar que o fez com uma ligeireza particularmente grosseira, não tendo feito uso dos mais elementares deveres de cuidado e indagação.

É que caso tivesse feito uso desses deveres, fosse através da correcta leitura e interpretação da sentença proferida na acção de condenação n.º 4547/15.6T8GMR, fosse através da consideração do que já resultava das decisões referidas, a exequente facilmente teria concluído pela inviabilidade de, com base naquela, instaurar uma acção executiva para pagamento da quantia de € 8.167,41 relativos à aquisição de uma prótese transtibial com interface em silicone, estrutura endosquelética em liga leve e pé em carbono com retorno de energia e da quantia de € 3.710,42 relativos à aquisição de uma prótese transtibial de banho com estrutura endosquelética com interface em silicone e pé aquático, já que tal sentença não sustentava minimamente tais pretensões, porque não certifica o direito imediato àquelas, que, por isso, não tinham fundamento.

Conclui-se, assim, que a exequente intentou a acção executiva com negligência grosseira.

Em face de tudo o exposto, estão verificados os elementos objectivo e subjectivo do tipo de litigância de má-fé previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 542º.

A tal conclusão não obsta nenhum dos argumentos invocados pela recorrente

A recorrente invoca que a recorrida não fez nenhum pedido de condenação da recorrente como litigante de má-fé, sendo a decisão oficiosa.

Efectivamente a embargante não invocou a litigância de má-fé da exequente.

Tal questão foi suscitada oficiosamente.

Mas como se deixou referido, à luz do n.º 1 do art.º 542º a litigância de má-fé pode ser suscitada oficiosamente.

A recorrente invoca que a instauração da execução se ficou a dever a um erro do mandatário.

É certo, como refere Paula Costa e Silva, in Litigância de má fé, Coimbra, pág. 575-576 que “(…) a maioria dos actos processuais é praticada, não pela parte representada, mas sim por advogado, representante (…)
(…) tendo o mandatário autonomia técnica, a maioria da actividade processual [é] por ele exclusivamente controlada. É o mandatário quem procede à concreta conformação dos actos que vão sendo praticados ao longo do processo, quer isto dizer, é o mandatário quem decide, regra geral, o como e o que fazer.”

Mas, como decorre do disposto no art.º 44º, n.º 1 do CPC, o mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores.

E o contrato de mandato é definido no art.º 1157º do CC nos seguintes termos: mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.

Do exposto decorre que os actos que o mandatário pratica no processo, são em nome e por conta da parte e, em função disso, são imputáveis à parte e os seus efeitos repercutem-se na sua esfera jurídica.

E tal aplica-se inteiramente à instauração da acção executiva de que os presentes são apenso: tal instauração é imputável à exequente e os seus efeitos repercutem-se na sua esfera jurídica.

A decisão da 1ª instância não ponderou a eventual responsabilidade do mandatário na litigância de má-fé (única que poderia ser ponderada, já que a responsabilidade deontológica apenas pode ser conhecida pela Ordem dos Advogados), pelo que também não cabe aqui fazê-lo, já que seria uma questão nova.

Finalmente, cabe assinalar que a exequente não colocou em crise nem o montante da multa, nem o montante da indemnização, pelo que este tribunal não pode conhecer das mesmas.

Em face de tudo o exposto, a decisão recorrida, ainda que com fundamentação densificada, deve manter-se e a apelação deve ser julgada improcedente.

4.3. Custas
Dispõe o n.º 1 do art.º 527º do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

A exequente/recorrente ficou vencida, pelo que é responsável pela totalidade das custas, sem prejuízo de estar dispensada do seu pagamento em virtude de beneficiar de apoio judiciário.

5. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 1ª Secção desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pela exequente/recorrente, sem prejuízo de estar dispensada do seu pagamento em virtude de beneficiar de apoio judiciário.

Notifique-se
*
Guimarães, 17/12/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Rosália Cunha (em substituição da primeira adjunta resultante da distribuição, nos termos do n.º 2 do art.º 661º do CPC, por se encontrar de baixa médica).
Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício