Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
| Descritores: | UNIDADE DE INFRACÇÕES UNIDADE DE RESOLUÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 07/11/2013 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário: | I – A “resolução criminosa” pressupõe sempre a representação pelo agente dos factos concretos que vão ser praticados. Não se pode reduzir a um mero “projeto de vida”, que abranja de forma indistinta todos os factos criminosos, praticados em momentos indeterminados do futuro, à medida que as oportunidades criminosas forem aparecendo. II – Comete três tentativas de burla e não uma, quem, depois de decidir passar a defraudar uma seguradora, ao longo de mais de dois anos, por três vezes, lhe participa a ocorrência de inexistentes acidentes de viação, com vista a ser ressarcido dos pretensos danos sofridos, sem contudo lograr o seu desiderato. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães Em processo de instrução distribuído ao 1º Juízo Criminal de Braga (Proc. 1239/04.5TABRG) foi proferida decisão instrutória que: 1 – Não pronunciou os arguidos: - João S...; - Pedro P...; - Maria B...; - António S...; - Filipe F...; - João V...; - Pedro M...; - Ana V...; e - Pedro C... a quem o MP havia imputado na acusação a coautoria de um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 217 nº1, 218 nº 2 al. a), 22, 23 nº 2 e 73, todos do Cod. Penal. 2 – Não pronunciou os mesmos arguidos, quanto a dois crimes de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 218 nº 1, 22, 23 e 73 do Cod. Penal, por considerar prescrito o procedimento criminal quanto a eles; 3 – Pronunciou os arguidos - Pedro C... - Filipe F...; e - João V... Como autores de um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 217 nº 1, 218 nº 2 al. a), 22, 23 nº 2 e 73, todos do Cod. Penal. * O magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido e a assistente A... Portugal, Companhia de Seguros, SA interpuseram recurso desta decisão:A questão que suscitada é a de saber se, face aos factos narrados na acusação, autos contêm indícios dos arguidos terem cometido um só crime de burla na forma tentada, ou três crime tentados de burla. Subsidiariamente, a recorrente A... defende que, caso não prevaleça a tese da acusação, deverá considerar-se a prática pelos arguidos de um crime continuado. * Respondendo, os arguidos defenderam a improcedência do recurso.Nesta instância, a sra. procuradora geral adjunta emitiu parecer no sentido dos recursos merecerem provimento. Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * FUNDAMENTAÇÃOO despacho de não pronúncia contém uma decisão «absolutória» para os efeitos do art. 400 nº 1 al. d) do CPP – «Decisão absolutória» é toda a decisão judicial que não atribua responsabilidade criminal ao arguido por facto praticado e indigitado como delituoso, ou que lhe retire a imputação feita. Ou seja, devem considerar-se acórdãos absolutórios todos os que não sejam condenatórios e, por consequência, incluir em tal termo, os «acórdãos de arquivamento». – v. ac- STJ de 20-6-02, CJ stj, ano X, tomo II, pag. 230 e ainda o ac. STJ de 29-11-00, CJ stj tomo III, pag. 224 (e outra jurisprudência nele citada). Por isso, é aqui aplicável a norma do art. 425 nº 5 do CPP: “Os acórdãos absolutórios enunciados no art. 400 nº 1 al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”. É o que se faz neste acórdão, porque a decisão impugnada está fundamentada de forma clara sem merecer quaisquer reparos. Ainda assim acrescentar-se-á o seguinte: * Os factos da acusação relatam três episódios em que houve a tentativa de fazer com que a assistente A... Portugal – Companhia de Seguros SA pagasse indemnizações decorrentes de pretensos acidentes de viação que, na realidade, não ocorreram.A primeira tentativa respeita ao veículo Citroen Saxo, matrícula 29-34-.... Foi concretizada em 17-9-2002, através de uma participação recebida nessa data no balcão de Braga daquela seguradora (ponto nº 8 da acusação). A segunda tentativa respeita ao veículo Mercedes Benz, matrícula 20-91-.... Foi concretizada em 28-4-2004, através de uma participação recebida nessa data no balcão de Braga daquela seguradora (ponto nº 22 da acusação); Finalmente, a terceira tentativa respeita ao veículo Mercedes Benz, matrícula 97-44-.... Foi concretizada em 15-10-2004, através de uma participação recebida nessa data no balcão de Braga daquela seguradora (ponto nº 37 da acusação). A acusação considerou que todos os factos eram fruto de uma única resolução criminosa, tendo imputado, em consequência, a todos os arguidos a coautoria de um crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 217 nº1, 218 nº 2 al. a), 22, 23 nº 2 e 73, todos do Cod. Penal. Diferentemente, o despacho recorrido decidiu estarem indiciadas três tentativas de burla autónomas, tendo declarado prescrito o procedimento criminal relativamente às duas primeiras. Não vem questionada a prescrição do procedimento criminal para o caso de se manter o entendimento de que os autos configuram a prática de três crimes tentados. * A versão da acusação de englobar todos os arguidos no âmbito da mesma resolução criminosa, fruto do conluio e da conjugação de esforços de todos, para a prática de todos os factos, esbarra numa dificuldade que se afigura evidente e inultrapassável: há arguidos que, manifestamente, só têm a ver com um dos episódios.É, por exemplo, o caso do arguido António S..., proprietário do Peugeot matrícula ...-05-39, que assinou com o coarguido Pedro C... a declaração amigável recebida na A... em 28-4-2004 (segundo episódio). Para que o António C... pudesse ser incluído numa resolução criminosa que abrangesse todos os factos, era necessário algum indício que indicasse que ele quase dois anos antes (isto é, em 17-9-2002, data da primeira falsa participação), já estava conluiado com os demais, para a prática de todos os factos. Nenhum indício existe nesse sentido. * Concretizando, com um exemplo que todos compreenderão: se alguém toma a resolução de passar o resto da vida a assaltar residências, fazendo disso modo de vida, não se pode concluir, por mais firme que seja a sua resolução, que todos os assaltos que fizer no futuro são a execução do mesmo único crime de furto. Seria um absurdo, que, além de contender com o senso comum, afrontaria a parte final da norma do art. 30 nº 1 do Cod. Penal, nos termos da qual “o número de crimes determina-se (…) pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.É certo que a norma do art. 30 nº 1 do Cod. Penal perfilha um critério teleológico, mais do que naturalístico. Por exemplo, se alguém, para assaltar uma residência, tem de entrar lá três vezes, porque não consegue transportar duma só vez todos os bens, só comete um crime de furto e não três. Só houve uma resolução (a de assaltar a casa). Ou, se, para cometer uma burla, na mesma ocasião, preenche e entrega à vítima vários cheques falsos, também cometerá um só crime de falsificação de documento. Porém a “resolução criminosa” pressupõe sempre a representação pelo agente dos factos concretos que vão ser praticados. Não se pode reduzir a um mero “projeto de vida”, que abranja de forma indistinta todos os factos criminosos, praticados em momentos indeterminados do futuro, à medida que as oportunidades criminosas forem aparecendo. É o caso destes autos, que indiciam que parte dos arguidos terão decidido dedicar-se a defraudar a assistente A... através de falsas participações de acidentes. Porém, tal “projeto” não basta para que se inclua todos os comportamentos debaixo do chapéu da mesma resolução criminosa. Manifestamente, foram decidindo os comportamentos concretos à medida que as oportunidades foram surgindo. Isso resulta, desde logo, da variedade de parceiros que foram arranjando para cada um dos crimes. O caso deste autos é, aliás, exemplar. O que desencadeou o segundo episódio foi o facto do Mercedes Benz, matrícula 20-91-... ter efetivamente sofrido um acidente, mas em 3-10-2003 (facto nº 29), cujos danos foram ressarcidos pela seguradora Generali. Com o comportamento em causa, o arguido Pedro Castro visou que também a assistente A... pagasse uma indemnização pelos mesmos danos. Para que prevalecesse a versão a acusação, era necessário que se indiciasse que o arguido Pedro Castro em 17-9-2002 (aquando da primeira participação) já tinha combinado com os demais arguidos (todos eles) que 3-10-2003 o Mercedes Benz, matrícula 20-91-..., iria ter um acidente para, depois, conseguirem uma indemnização “em duplicado”. É uma hipótese sem sentido. O crime de burla é um «crime instantâneo», em que a consumação se traduz na realização de um ato. Não faz parte dos chamados «crimes de execução continuada», em que a execução do mesmo desígnio criminoso decorre durante um determinado período de tempo, como é o caso do tráfico de drogas, que anda normalmente associado a uma atividade que se prolonga necessariamente no tempo, pelo que a prática repetida dos atos que o integram, cometidos em obediência à mesma resolução criminosa, constitui uma conduta unificada e, como tal, integrante de um único crime - cfr. ac. S.T.J. de 27-6-90 in BMJ 398/315. * Finalmente, a assistente A... defende, subsidiariamente, que se deve considerar que os três episódios são subsumíveis à figura do crime continuado.Vejamos: Nos termos do art. 30 nº 2 do Cod. Penal “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários crimes que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”. Há, desde logo, um primeiro, mas decisivo, óbice a esta construção: havendo arguidos que só intervieram num episódio, não se vê como, em relação a eles, se pode pretender ter havido uma “realização plúrima”. Acresce que os requisitos indicados nesta norma são cumulativos. Não basta o agente ter praticado um crime e, depois, ter “continuado” a praticar outros de idêntica natureza, executados de forma essencialmente homogénea. É necessário que haja uma “disposição exterior das coisas para o facto. (…) Ou seja, “a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” – Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, tomo II, pag. 209. Este professor dá um exemplo impressivo nos crimes contra o património (pag. 210). Alguém descobre uma porta falsa que dá acesso a uma casa e assalta-a. Mais tarde, movido pelo êxito do primeiro furto e sabendo que a porta falsa lhe facilitará novo sucesso, decide apropriar-se de outros bens lá depositados. A existência da porta falsa é a “solicitação exterior” ao arguido que, “de fora”, facilitou a repetição da atividade criminosa. Aquele mestre acentua que a tipificação de situações enquadráveis na previsão do «crime continuado» não prescinde da exigência de ser sempre necessário fazer o juízo de que, no caso concreto, houve uma “diminuição considerável do grau de culpa do agente” (pag. 211). Este exemplo nada tem a ver com o caso de alguém que, durante um período mais ou menos longo de tempo, decide defraudar seguradoras. Mesmo que realize as burlas «de forma essencialmente homogénea», falta o requisito do “quadro de uma mesma solicitação exterior”. A não ser que se entendesse (o que seria um absurdo) que a simples existência de seguradoras facilita a prática de burlas. No caso destes autos, não existiu, sequer, uma primeira burla coroada de êxito que levou à prática das duas tentativas seguintes, como no exemplo similar do Prof. Eduardo Correia. Também a execução não foi homogénea, quer considerando a diversidade dos intervenientes em cada episódio, quer os pormenores concretos de cada um (como se referiu no segundo episódio os agentes aproveitaram o facto do veículo ter efetivamente sofrido um acidente). Finalmente, não há unidade temporal (entre o primeiro e o último episódio mediou mais de dois anos). A simples reiteração de comportamentos não é suficiente para diminuir a culpa. Antes, pode agravá-la, por revelar uma personalidade votada à prática de crimes. DECISÃO Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento aos recursos, confirmando a decisão recorrida. O recorrente A... pagará 3 UCs de tA... de justiça. |