Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2915/18.0T8VCT-B.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
CESSÃO DE CRÉDITO
TITULARIZAÇÃO DE CRÉDITOS
LEGITIMIDADE
EFICÁCIA DA CESSÃO PARA TITULARIZAÇÃO EM RELAÇÃO AO DEVEDOR
NOTIFICAÇÃO
EFEITOS DA CITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I - A letra e a livrança podem ser validamente transmitidas a terceiros, quer através do endosso, quer mediante cessão ordinária de créditos (artºs. 77.º e 11.º da LULL), sendo esta última a única forma de transmissão caso tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, como é o caso.

II - A legitimidade do cessionário para instaurar a execução com base em livrança que acompanha o crédito que lhe foi cedido (mútuo), dependerá da alegação e junção não só do contrato de cessão de créditos, mas também da alegação e prova de que tal cessão foi notificada ao devedor, porque condição de eficácia dessa cessão.

III - Os pressupostos de validade e regularidade da instância executiva devem, em regra, estar presentes no momento em que a execução é proposta. É com referência a esse momento que se afere a legitimidade do exequente. Por isso, a citação para a execução não pode servir para dotar de eficácia um contrato com base no qual a execução é instaurada, isto é, um contrato de cuja eficácia depende a própria legitimidade do exequente.

IV - Tal pressuposto tem de verificar-se nesse momento, isto é, à semelhança dos casos de sucessão no direito (desvios à regra previstos no art.º 54º do CPC), no próprio requerimento executivo têm de ser alegados os factos constitutivos da cessão de créditos e da sua plena eficácia, juntando-se, além da livrança, o contrato de cessão de créditos e a notificação efectuada ao devedor.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que lhes move X, vieram os executados G. B. e M. M. deduzir embargos, invocando entre o mais e em síntese:

– Nulidade da cessão de créditos por falta de notificação dos devedores.
– Prescrição da livrança, porque está datada de 18/10/2000 e só em 03/09/2018 é que foi instaurada a execução.
– Falta de alegação da relação cartular.
– Ausência da reclamação do crédito no processo de insolvência da subscritora, sociedade Y, Lda.
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A embargada contestou, alegando, entre o mais e em síntese, que a validade e eficácia da cessão de créditos não dependem do conhecimento ou consentimento do devedor, pois é aplicável a este negócio o Decreto-Lei n.º 453/99, de 5 de Novembro, uma vez que a cessionária ora Exequente é uma sociedade de titularização de créditos, pelo que nos termos do n.º 4 do artigo 6.º do referido Decreto-Lei, a cessão de créditos é eficaz em relação ao devedor, mesmo que não lhe seja comunicada, a qual dispõe efectivamente que «Quando a entidade cedente seja o Estado, a segurança social, instituição de crédito, sociedade financeira, empresa de seguros, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundo de pensões, a cessão de créditos para titularização produz efeitos em relação aos respectivos devedores no momento em que se tornar eficaz entre o cedente e o cessionário, não dependendo do conhecimento, aceitação ou notificação desses devedores».
Não ocorre a prescrição porquanto data de vencimento da livrança é de 08/08/2018; não existe qualquer efeito preclusivo da não reclamação de créditos no processo de insolvência, não estando a exequente impedida de exercer o seu direito em acção proposta contra os avalistas da livrança.
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Foi proferido despacho saneador-sentença, em que se conheceu parcialmente do mérito dos embargos, decidindo-se o seguinte:

1.- Nestes termos, a cessão de créditos não enferma de qualquer nulidade, nem falta de eficácia relativamente aos devedores, sendo certo que com a citação destes para a execução a cessão de créditos produziu todos os seus efeitos relativamente a eles tornando-se eficaz. Improcede, assim, a questão invocada.
2.- (… ) a obrigação cartular não prescreveu, considerando a data de vencimento da obrigação, sendo irrelevante a data de emissão do título de crédito, que aliás corresponde à data do contrato de empréstimo cujo cumprimento a livrança se destinou a garantir (18/10/2010), cfr. resulta da respectiva cláusula 13.1. Nestes termos e sem necessidade de maiores considerações, julgo improcedente a excepção invocada.
3.- (…) os embargantes enquanto avalistas, respondem solidariamente perante o exequente, portador da livrança, podendo este demanda-los apenas a eles, mas também conjuntamente com a subscritora da livrança e como esta foi declarada insolvente não perde esse direito, apenas o tem de exercer relativamente à insolvente no processo de insolvência (…). Face ao exposto, e sem necessidade de maiores considerações, improcede a oposição à execução deduzida.

Os embargos prosseguiram para julgamento no tocante às demais questões.
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Inconformados, os embargantes interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:

« - 1- Os recorrentes não se podem conformar com a decisão/despacho saneador que decidiu quanto à invocada nulidade da cessão de créditos, por falta de comunicação aos devedores, que não se verificada a nulidade da mesma, referindo o Tribunal a quo que a comunicação ao devedor da cessão de créditos considera-se efetuada com a citação para a ação instaurada pelo cessionário,
2- Os recorrentes não se podem conformar com a decisão/despacho saneador que decidiu que não se verificava a invocada prescrição da livrança, porque considera que a data de vencimento é datada de 2018/08/08.
3- Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal a quo vem referir que a comunicação ao devedor da cessão de créditos considera-se efetuada a citação para a ação instaurada pelo cessionário.
4- Ora, os aqui embargantes não podem de forma alguma concordar com o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, uma vez que caso fosse suficiente a citação da comunicação ao devedor da cessão de créditos considera-se efetuada a citação para a ação instaurada pelo cessionário, estaria a desvirtuar o vertido no item 703º, n.º 1, alínea d) do CPC., uma vez que a falta de comunicação da cessão de créditos aos executados retira à mesma a natureza de título executivo nos termos do artigo 703º, n.º 1, alínea d) do CPC.
5- Além disso, de acordo com o perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-09-2017, entendem os aqui recorrentes que a notificação da cessão não pode ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva.
6- Assim, de acordo com o disposto nos artigos 577 e seguintes do Código Civil, o credor, pode ceder a um terceiro, parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contudo e atenta a exigência feita pelo legislador, a cessão não pode produzir efeitos em relação aos devedores executados, por força do disposto no n.º1 do artigo 583º do CC, dado que estes não foram notificados da mesma.
7- O titular de qualquer crédito pode ceder a terceiro o seu direito, sem que para o efeito careça do consentimento do devedor ou devedores, todavia a cessão para produzir efeito junto dos devedores, tem de lhes ser comunicada.
8- No caso sub judice, a embargada/exequente não figura no título como credora, pelo que em cumprimento com a norma do artigo 53 e 54º, 1 do CPC, deve alegar os factos constitutivos da sucessão de créditos, alegando e provando ter celebrado com a credora originária um contrato de cessão de créditos por via do qual esta lhe transmitiu o crédito que vem reclamar na presente execução, todavia, dispõe o artigo 583, n.º 1 do CC, que a cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada ou desde que ele a aceite.
9- Em linha com o defendido pelo Acórdão do STJ de 12/06/2003, processo n.º 03B1762, e pelo Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2007 (processo n.º 0753072), entendem os aqui recorrentes, ao contrário do vertido do douto despacho saneador proferido pelo Tribunal a quo, que a notificação não pode ser efectuada através da citação para a acção executiva, entendimento esse partilhado pelo Acórdão do STJ de 12/06/2003 (processo 03B1762).
10- A notificação em causa não pode ser efetuada através da citação para a execução, devendo ao invés, ser alegada e provada no requerimento executivo, pelo que ao decidir em contrário, o Tribunal a quo violou o previsto no artigo 583 n.º 1 do CC. e ainda no artigo 53 e 54, n.º 1 do CPC.
11- Pelo exposto, deve o despacho saneador ser substituído por outro que considere verificada a nulidade da cessão de créditos, com todas as consequências legais.
12- Quanto à improcedência da invocada prescrição da livrança, vem o Tribunal a quo referir o seguinte: “Concretamente e no âmbito do caso em apreço, dispõe o art. 70º da LULL, aplicável às livranças por força do disposto no art. 77 do mesmo diploma que “todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.
13- Refere ainda o Tribunal a quo que: Quando esteja em causa acção contra o avalista é também aplicável o prazo de prescrição de 3 anos, uma vez que o avalista vincula-se da mesma maneira que o aceitante, nos termos do disposto no art. 32º & 1º da LULL. Do mesmo modo e também aplicável esse prazo mais longo também à acção do portador da livrança contra o avalista do subscritor, nos termos do disposto no art. 78 & da LULL. Revertendo o caso dos autos, a livrança dada à execução tem inscrita como data de vencimento 2018/08/08. A execução deu entrada em juízo no dia 03/09/2018.
14- Referindo ainda o Tribunal a quo: Isto tanto basta para concluirmos que a obrigação cartular não prescreveu, considerando a data de vencimento da obrigação, sendo irrelevante a data de emissão do título de crédito, que alias corresponde à data do contrato de empréstimo cujo cumprimento a livrança se destinou a garantir (18/10/2010), cfr resulta da respectiva cláusula 13.1.”~
15- Ora, quanto à prescrição da livrança, entendem os aqui recorrentes que a obrigação causal ao título de crédito em apreço e a cargo da sociedade subscritora se tornou exigível ou vencida na data em que a mesma sociedade foi declarada insolvente.
16- É que em razão das disposições conjugadas do artigo 91º do CIRE e dos artigos 43º e 77º da LULL, teria o Banco que, nessa data, proceder ao preenchimento da livrança e nela apor como data de vencimento a aludida data da insolvência, ou, no limite, até três anos após aquele vencimento.
17- Sob pena de, não o fazendo, não só tornear a prescrição cambiária - impedindo a avalista de se fazer valer com sucesso de tal excepção ao manter até quando lhe aprouver a livrança em branco, ou seja, sem data de vencimento- , como, ainda, sujeitar os obrigados cambiários a uma vinculação perpétua, dependente apenas do livre arbítrio do tomador/Banco quanto ao preenchimento e accionamento do título, agindo, assim, de má-fé e incorrendo em preenchimento abusivo da livrança, à luz do preceituado no artigo 10º da LULL.
18- Por força do artigo 91º do CIRE, a obrigação avalizada venceu-se antecipadamente no dia em que foi declarada a insolvência da subscritora da livrança – 28/06/2012 e é esta a data que deve ser inserida pelo apelado na livrança como a data de vencimento, por tal resultar da Lei e permitir, com êxito, a invocação da prescrição cambiária pelos aqui apelantes.
19- Tal é o entendimento perfilhado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 07-01-2019:
20- Com efeito, entendem os aqui recorrentes que existe má-fé, para efeitos do art 10º LULL, quando o credor/portador tem consciência que a data de vencimento que preenche impede a invocação da prescrição pelo avalista – como é o caso dos autos.
21- O art. 43º da LULL estabelece que a declaração de insolvência confere ao portador da letra o poder de exercer de imediato os seus direitos cambiários contra todos os obrigados cambiários – art 43º e 44º LULL aplicáveis à livrança por força do 77º LULL.
22- Conjugando o art. 91º nº1 do CIRE com os arts. 43º e 44º LULL, a data de declaração de insolvência da subscritora da livrança projeta-se imediatamente no direito cartular, pelo que o vencimento da livrança deve conter a data de 28-06/2012.
23- Não tendo o portador da livrança exercido o seu direito cambiário até 28/06/2015 prescreveu o seu direito nos termos do art. 70º LULL.
24- De facto, sendo “o dador de aval responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada” (art 32º LULL), não pode deixar de se considerar que o avalista está na mesma posição que o avalizado (subscritor da livrança), sendo que o disposto no arts. 70º e 32º LULL se aplica à livrança por força do art 77º LULL, primeiro e último parágrafos.
25- Ao decidir em contrário o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 10º, 43º e 70º da LULL, ao considerar que não ocorreu a prescrição da livrança.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE VªS EXªS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO, REVOGANDO-SE O DECIDO QUANTO À NULIDADE DA CESSÃO DE CRÉDITOS E DA INVOCADA PRESCRIÇÃO DA LIVRANÇA, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.».
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A apelada contra-alegou.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Factualidade com interesse para a apreciação do presente recurso:

1º Pela Livrança exequenda, com o nº …9, preenchida com o valor de €14.455,39, com data de emissão de 2010/10/18 e data de vencimento de 2018/08/08, subscrita pela sociedade Y, Lda., avalizada no verso por ambos os Embargantes no âmbito do contrato de crédito CLS 202022981, estes prometeram pagar tal quantia ao Banco ... (não à ordem).
2º Mediante contrato de cessão de créditos celebrado em 29/06/2017, o Banco ..., S.A. cedeu à X um conjunto de créditos vencidos de que era titular.
3º A mencionada cessão incluiu a transmissão, relativamente a cada um dos créditos, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) “NULIDADE DA CESSÃO DE CRÉDITOS”

Entende a apelante que a falta de comunicação da cessão de créditos aos executados retira à mesma a natureza de título executivo nos termos do artigo 703º, n.º 1, alínea d) do CPC e que tal comunicação em falta não pode ser substituída pela citação operada na própria execução.
No caso em apreço o título executivo é uma livrança subscrita por uma sociedade, entretanto insolvente e avalizada pelos executados.
Tal livrança foi subscrita no âmbito de um contrato de mútuo celebrado entre a subscritora e o Banco ..., não estando neste recurso em apreciação nem a existência ou o montante do crédito cedido nem se o preenchimento da livrança obedeceu ao previsto no contrato.
Em face do título, que tem insertos os dizeres “não à ordem”, o beneficiário da promessa de pagamento, ou seja, o respectivo titular, é o Banco ....
A letra e a livrança podem ser validamente transmitidas a terceiros, quer através do endosso, quer mediante cessão ordinária de créditos (artºs. 77.º e 11.º da LULL), sendo esta última a única forma de transmissão caso tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, como é o caso.
A livrança pode ser accionada pelo seu portador, seja ele o beneficiário directo da ordem de pagamento ou aquele a quem foi transmitida por endosso ou por cessão ordinária de créditos.
No caso a transmissão da livrança e consequente legitimidade da exequente operou-se mediante um contrato de cessão de créditos que celebrou com a mutuante, titular da livrança.
Apesar dos apelantes invocarem a “nulidade da cessão”, não alegam qualquer causa de nulidade do negócio em si e, como veremos, este não é o real “thema decidendum”.

O art.º 577º nº1 do Código Civil (CC) permite que o credor ceda a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.
O regime do contrato (forma) é o previsto para o negócio que lhe serve de base (art.º 578º do CC), no caso um mútuo bancário, pelo que a forma escrita adoptada para a cessão é suficiente (artigo único do DL nº32 765 de 29 de Abril de 1943).
Dos factos alegados não resulta que tal cessão esteja interdita por Lei, por convenção das partes ou pela natureza da prestação. Tão pouco ocorre vício formal.

Nos termos do art.º 582º nº 1 do CC “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”. Daqui decorre a validade da transmissão do título executivo, ou seja da livrança avalizada pelos executados.

A questão colocada pelos apelantes radica assim, não na nulidade da cessão de créditos, mas na eficácia do negócio de cessão em relação a eles, avalistas da livrança, por não lhes ter sido comunicada a cessão.
No que tange à eficácia da cessão em relação ao devedor, o art.º 583º do CC estabelece que “a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”.
No saneador sentença entendeu-se que a citação para a execução produz os efeitos da notificação prevista no referido art.º 583º nº1 do CC.
É contra este entendimento que os recorrentes se insurgem, defendendo que tal notificação deveria anteceder a instauração da execução.
A questão colocada pelos apelantes reconduz-se assim a saber se a citação para a presente execução produz os mesmos efeitos jurídicos que a notificação, a que alude o art.º 583º nº1 do C. Civil, com vista à eficácia da cessão de créditos relativamente ao devedor. Ou, mais concretamente, se essa notificação deveria ter sido efectuada antes da instauração da execução, pois só com tal notificação a cessão se torna eficaz e a cessionária lhes pode exigir o pagamento.

Tal questão é controvertida na nossa jurisprudência.(1)

Como se escreve no acórdão do STJ de 10.3.2016 (703/11.4TBVRS-A.E1.S1) publicado in dgsi.pt, “sobre esta problemática existem no essencial duas correntes jurisprudenciais que divergem, uma no sentido pugnado pelo Acórdão recorrido e outra como no Acórdão fundamento, que exige que o devedor seja previamente notificado (judicial ou extrajudicialmente) não se podendo para esse efeito atribuir à citação da acção o valor da notificação, a que alude o art.º 583º nº1 do C.- Civil”.
Perante este conflito jurisprudencial, no citado acórdão entendeu-se que “A notificação ao devedor, a que alude o art.º 583.º, n.º 1, do CC, de que o seu credor cedeu o crédito a outrem, pode ser feita através da citação para a execução proposta pelo credor cessionário contra os oponentes executados. Com a citação para a execução cessa a inoponibilidade por parte do devedor da transmissão pelo cessionário”.

Seguiu-se de perto o entendimento perfilhado no acórdão de 06-11-2012 (proc. 314/2002.S1.L1), relatado pelo Conselheiro Alves Velho, o qual contudo se reporta a uma acção declarativa de condenação e não a uma execução, o que justifica que neste acórdão se tenha considerado que a questão não se colocava em termos de legitimidade processual, mas substantiva. Com efeito, enquanto no processo declarativo, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, a legitimidade de exequente e executados afere-se em função do título e documentos que o acompanham (art.º 53º do CPC), tendo legitimidade activa quem no título figure como credor, ressalvadas as excepções previstas no art.º 54º do mesmo Código.

No fundamental esta posição assenta no entendimento de que “se o efeito substancial que se pretende obter com tal notificação é o de tornar a cessão eficaz em relação ao devedor, dando-lhe a conhecer a identidade do cessionário e evitando que o cumprimento seja feito perante o primitivo credor, tal desiderato é assegurado com a citação para a acção executiva (ou para a acção declarativa), momento a partir do qual o devedor fica ciente da existência da cessão e inibido de invocar o seu desconhecimento, nos termos do art.º 583º, nº 2, do C. Civil”.

Na doutrina também Assunção Cristas defende este entendimento (anotação conjunta que a mesma autora fez aos já citados Acórdãos do STJ de 9-11-00 e de 3-6-04, em Cadernos de Direito Privado, nº 14).

Já no acórdão do STJ citado pelos apelantes, datado de 12.6.2003 (03B1762), relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa, publicado em dgsi.pt, também no âmbito de uma acção declarativa de condenação, entendeu-se que “os efeitos primários e secundários do acto de citação para a acção não equivalem ou substituem em termos de efeitos jurídicos o acto de notificação ao devedor do contrato de cessão de créditos”.

Também no acórdão da Relação de Coimbra de 19.9.2017 (7825/16.3T8CBR.C1) relatado por Catarina Gonçalves, se decidiu que “tal notificação não poderá ser efectuada mediante a citação a efectuar na acção executiva, devendo o credor/cessionário – no requerimento executivo – alegar (e provar documentalmente, se possível) que a cessão de créditos já foi notificada ao devedor/executado ou que este já a aceitou”.

Em abono desta posição discorre-se nesse aresto que:

«(…) tal como acontece com o credor de uma obrigação condicional, também o cessionário da obrigação deve alegar, no requerimento executivo, que se verificou o facto do qual depende a eficácia da cessão relativamente ao devedor/executado. Trata-se, portanto, de fazer a alegação – e subsequente prova complementar (documentalmente se for possível ou, não o sendo, por outra via após contraditório) – de factos ou circunstâncias que, condicionando o direito do exequente relativamente ao executado, não resultam do título executivo, com vista a demonstrar e fornecer ao tribunal o grau de certeza necessário para admitir a acção executiva e a consequente agressão do património do executado. E, tal como a lei prevê a produção de prova e diligências complementares para tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título, também essa prova se revelará necessária quando o título não fornece elementos bastantes para criar o grau e certeza necessário de que o credor que se apresenta a propor a execução tem o direito de exigir aquela obrigação ao devedor. Daí que, nos casos em que a titularidade do crédito já não tem correspondência com o título – por ter ocorrido sucessão no direito – o exequente tenha que alegar os factos constitutivos da sucessão com vista a demonstrar que é ele o titular do crédito e, estando em causa uma cessão de créditos, deverá também alegar (e provar documentalmente, se tal for possível) que está em condições de exigir o crédito ao executado em virtude de tal cessão lhe ter sido notificada ou ter sido por ele aceite, não podendo, por conseguinte, ser admitida uma execução instaurada por cessionário do crédito sem que seja alegada a prévia notificação/aceitação dessa cessão pelo devedor.»
Cremos nós que a legitimidade do cessionário para instaurar a execução com base na supra referida livrança, dependerá da alegação e junção não só do contrato de cessão de créditos, por via do qual o mesmo lhe foi transmitido, mas também da alegação e prova de que tal cessão foi notificada ao devedor, porque condição de eficácia dessa cessão.
Efectivamente os pressupostos de validade e regularidade da instância executiva devem estar presentes no momento em que a execução é proposta. É com referência a esse momento que se afere a legitimidade do exequente.
A citação para a execução não pode assim servir para dotar de eficácia um contrato com base no qual a execução é instaurada, isto é, um contrato de cuja eficácia depende a própria legitimidade do exequente.
Esse pressuposto tem de verificar-se nesse momento, de tal modo que nos casos de sucessão no direito (desvios à regra previstos no art.º 54º do CPC) se estabelece que “no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.

Ora, no requerimento executivo alega-se o negócio pelo qual o crédito foi cedido ao exequente e concomitantemente a livrança exequenda, juntando-se o escrito que corporiza tal contrato. Mais alega a exequente: “A mencionada cessão incluiu a transmissão, relativamente a cada um dos créditos, de todos os direitos, garantias e direitos acessórios a eles inerentes, a qual foi devidamente comunicada ao(s) Executado(s)”.
Contudo, embora tenha juntado a minuta elaborada com vista a tal notificação (Anexo quatro – minuta de notificação da cessão de créditos), não juntou a exequente qualquer prova dessa notificação e claramente admite na contestação dos embargos que a mesma não foi efectuada.
Em suma, a notificação prevista art.º 583º nº1 do CC como condição da eficácia da cessão para com o devedor (e na cláusula 6.2 do próprio contrato de cessão), nunca chegou a ser efectuada.

Na contestação dos embargos a embargada alegou também que tal notificação não é necessária em face do disposto no nº 4 do art.º 6º do Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de Novembro.
Esta questão não chegou a ser apreciada na decisão em crise, face à solução do pleito.
Este diploma estabelece o regime das cessões de créditos para efeitos de titularização e regula a constituição e o funcionamento dos fundos de titularização de créditos, das sociedades de titularização de créditos e das sociedades gestoras daqueles fundos.
Consideram-se realizadas para efeitos de titularização as cessões de créditos em que a entidade cessionária seja um fundo de titularização de créditos ou uma sociedade gestora de titularização de créditos (art.º 1º nº 2).
No referido art.º 6º º1, sem prejuízo do disposto no nº4, estabelece-se que a eficácia da cessão para titularização em relação aos devedores fica dependente de notificação, cujo conteúdo vem regulado nos nºs 2 e 3.
Por seu turno no nº 4 dispõe que, quando a entidade cedente seja o Estado, a segurança social, instituição de crédito, sociedade financeira, empresa de seguros, fundo de pensões ou sociedade gestora de fundo de pensões, a cessão de créditos para titularização produz efeitos em relação aos respectivos devedores no momento em que se tornar eficaz entre o cedente e o cessionário, não dependendo do conhecimento, aceitação ou notificação desses devedores.

“Tal opção legislativa é justificada pelo cenário macro-jurídico em que se desenvolvem as operações de titularização e que determina a inexequibilidade de um processo de notificações em massa, que seria necessário para levar a cabo cada uma das operações de titularização. Adicionalmente, a norma do art. 5.º, n.º 1, do mesmo diploma, ao prever que, nestes casos, os créditos continuam a ser geridos pelo cedente, mantendo este último todas as relações com cada devedor, justifica a desnecessidade de notificação. Contudo, e como defende Manuel Monteiro (Nota 23 - Monteiro, Manuel, O recente regime português da Titularização de Créditos, in AA. VV.,Titularização de Créditos, Lisboa, Instituto de Direito Bancário, 2000, p. 203-205; Câmara, Paulo, A Operação de Titularização, op. cit., p. 83-86), a eficácia da cessão perante o devedor só poderá ser independente de notificação naqueles casos em que o cedente assume a gestão dos créditos cedidos. Caso contrário, seria despropositado exigir que o devedor cumprisse junto de outra entidade sem que tivesse tido conhecimento da cessão ou até mesmo desconhecesse a identidade do cessionário perante o qual deverá cumprir” (2).

No caso em apreço não foi alegado no requerimento executivo que a exequente (cessionária) seja um “fundo de titularização de créditos” (FTC) ou uma “sociedade gestora de titularização de créditos (SGFTC)”. Admitimos apenas que a sua denominação social (“Securitization”) indicia que é uma “sociedade de titularização de créditos” (“securitization”, é um conceito de direito norte americano, também traduzido como securitização, correspondente ao nosso conceito de titularização) e de acordo com a “introdução” constante do contrato, que é uma sociedade de investimento.
Também não resulta do contrato que a gestão dos créditos cedidos continuaria a ser exercida pelo cedente Banco …. E o contrário evidencia-se com a instauração desta execução pela cessionária.
Não se verificando a situação prevista no art.º 5º nº 1 do citado diploma (gestão do crédito assegurada pelo cedente), entendemos que é inaplicável o invocado nº 6 do art.º 4º (Decreto-Lei nº 453/99, de 5 de Novembro), sendo sempre exigível a notificação do devedor.

Assim, salvo melhor opinião, não tem cabimento invocar o citado diploma e norma, especialmente quando no contrato de cessão junto aos autos e que, juntamente com a livrança, serve de título à presente execução, a cessionária, ora apelada, se obrigou a efectuar tal notificação (definição XIX e cláusula 6.2).
Consequentemente, aquando da instauração da execução não se verificava esse indispensável pressuposto da legitimidade da exequente, porque a cessão era ineficaz em relação aos aqui executados.

De qualquer forma, como se discorre no citado aresto, “ainda que não se qualifique como verdadeira ilegitimidade processual, entendemos que a circunstância de não ter sido alegada a notificação da cessão aos devedores ou a sua aceitação configura a falta de um pressuposto do qual depende a admissibilidade da execução contra os executados, porquanto – reafirma-se – não resulta do título executivo nem do requerimento executivo que tal cessão já tenha operado e produzido efeitos relativamente aos devedores e que, como tal, a exequente esteja em condições de instaurar contra os mesmos uma acção executiva”. Tal argumentação vale, por maioria de razão, para o caso presente em que até foi alegada a notificação, mas está demonstrado que não ocorreu.

Até porque, a obrigação exequenda deve ser exigível e o cessionário só pode exigir a prestação ao devedor após a notificação prevista no art.º 583º do CC.

Do exposto resulta que os embargos deverão proceder por falta de verificação, no momento em que a execução foi proposta, do pressuposto processual de legitimidade da exequente em face do título, em razão da cessão de créditos ser ineficaz em relação aos executados e, por isso, não poder a exequente exigir-lhes a correspondente prestação pecuniária

Procedem assim nesta parte as conclusões da apelante, ficando prejudicada a apreciação da questão da prescrição.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam o saneador sentença, julgando os embargos parcialmente procedentes e extinta a instância executiva.
Custas pela apelada.
Guimarães, 13-6-2019

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte


1- No sentido de que tal notificação pode ser efectuada através da citação para a execução ou para a acção temos, entre outros, os seguintes acórdãos:
- O Acórdão do STJ de 10/03/2016 (proc. nº 314/2002.S1.L1);
- O Acórdão do STJ de 06-11-2012 (proc. nº 703/11.4TBVRS-A.E1.S1);
- Os Acórdãos da Relação de Coimbra de 22/11/2016 (proc. nº 3956/16.8T8CBR.C1) e de 06/07/2016 (proc. nº 467/11.1TBCNT-A.C1)
- Os Acórdãos da Relação de Guimarães de 9.2.2017 (proc. nº 1136/14.6T8VCT-A.G1) e de 26.6.2014 (proc. 2180/13.6TBBRG.G1).
- O Acórdão da Relação de Lisboa de 12.5.2009 (proc. 29488/05.1YYLSB.L1-7
- O acórdão do STJ de 20-10-2003 (proc. nº 04B815)
No sentido de que tal notificação não pode ser efectuada através da citação para a acção declarativa ou para a acção executiva) temos os seguintes:
- Ac. do STJ de 9 de Novembro de 2000 In Col Jur. (STJ) Ano VIII, Tomo III, pag. 121.
- Acórdão do STJ de 12/06/2003 (processo nº 03B1762);
- Acórdão da Relação do Porto de 18/06/2007 (processo nº 0753072)
- Acórdão da Relação de Coimbra de 19.9.2017 (proc. nº 7825/16.3T8CBR.C1)
2- TITULARIZAÇÃO DE CRÉDITOS - O (IN)SUCESSO DA TITULARIZAÇÃO NO MERCADO HIPOTECÁRIO, Margarida Ferraz de Oliveira, UCP
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/22129/1/Tese_vf_23102016_limpa.pdf