Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1431/17.2T8VRL.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
IMPRESCRITIBILIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

1- O atual regime jurídico do estabelecimento da filiação procura conformar o princípio da correspondência entre a verdade biológica e a verdade jurídica, na consideração da existência de um direito de cada um à identidade pessoal, abrangido pelo direito à sua própria historicidade pessoal, que tem ínsito o conhecimento dos progenitores biológicos.

2- Fora do casamento, o vínculo de filiação paterna pode, para além do reconhecimento voluntário (por perfilhação), ser estabelecido por decisão judicial, em ação de investigação de paternidade, tendo esta como causa de pedir o facto jurídico da procriação - a relação sexual fecundante, causal do nascimento -, a ele se acedendo por prova direta ou por prova de factos instrumentais que, com segurança, o indiciem ou pelo enquadramento de uma das situações de facto eleitas na lei como dele presuntivas (v. nº1, do artigo 1871º), entre as quais se conta a da posse de estado, prevista na al. a) (“Quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público”). O tratamento como filho implica, por parte do pai, comportamentos que, no plano afetivo e material, revelem o cuidado e a proteção que os pais dispensam aos filhos, no quadro da vivência social, sendo que a exteriorização dessas manifestações de afeto, ajuda moral e material, concludentes de reconhecimento deve ser apreciada no concreto contexto dos costumes vigentes no tempo e espaço.

3- A ação de investigação de paternidade, fundada na posse de estado, está sujeita a prazo de caducidade – cfr. art. 1817º, do CC, um prazo regra de 10 anos (nº1) e a prazo especial de três anos, (al. b), do nº3, que se refere à cessão do tratamento como filho, pelo pai). Consagrando a lei que, em caso de inexistência de paternidade determinada, a ação de investigação da paternidade pode ser proposta, após os dez anos posteriores à maioridade, dentro dos três anos seguintes ao momento em que tenha cessado o tratamento do investigante como filho pelo pretenso pai (cfr. artigo 1817º, nº1 e 3, al. b), ex vi artigo 1873º, ambos do Código Civil), situação esta a que se subsume o caso, sempre pode o direito ser exercido.

4- Todavia, nunca ocorreria a caducidade para o exercício do estabelecimento da paternidade, estatuída pelo nº1, do artigo 1817º, ex vi artigo 1873º, ambos do Código Civil, pois que o direito a investigar e a estabelecer a filiação jurídica é “imprescritível”, sendo um direito de personalidade, personalíssimo (o de conhecer, definir e fazer reconhecer perante todos e para todos os efeitos, as raízes, que, legitimamente, todo o filho tem o direito a ver estabelecidas), nunca podendo o exercício desse direito considerar-se, pelo decurso do tempo, abusivo. Sejam quais forem as razões que levam a exercê-lo, sempre o seu exercício constitui a materialização de um direito de personalidade, que assegura o direito à identidade pessoal, o princípio constitucional da igualdade entre todos os filhos e o interesse público em que essa identidade seja estabelecida, com verdade e transparência.

5- Impõe-se um regime que permita, a todo o tempo (scilicet), instaurar estas ações, padecendo de inconstitucionalidade material as normas a impor prazos de caducidade para o exercício de tal direito, sendo o prazo de 10 anos previsto no n.º 1, do art. 1817.º, do C. Civil, inconstitucional por constituir uma restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas (arts. 18.º, n. º 2 e 3, 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1, da CRP), reclamando o direito fundamental à identidade pessoal (do investigante) uma tutela de absoluta prevalência sobre os interesses do investigado ou dos seus herdeiros, sejam eles relacionados com a salvaguarda da privacidade, da intimidade da vida familiar, da segurança jurídica ou quaisquer outros (patrimoniais ou não), pois que nenhuma operação de concordância prática entre os direitos e interesses constitucionalmente protegidos das partes pode impor, por razões de proporcionalidade, se ignore a verdade biológica.

6- Os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante reclamam intensa tutela, conducente a alcançar a Certeza, a Verdade e a Justiça, que sempre o Homem, os Cidadãos, os Tribunais e o Estado visam alcançar, e a extrair os devidos efeitos jurídicos em matéria de filiação, no momento em que o filho se sinta disposto a ir ao encontro do que sempre lhe devia ter sido proporcionado.

7- A certeza da prova científica dada pelos testes de DNA, de que resulta a prova da relação sexual fecundante e, consequentemente, a prova da verdade biológica, não pode deixar de ditar o sucesso relação jurídica de paternidade, impondo-se, no caso, o estabelecimento da paternidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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I. RELATÓRIO

(…), residente na Rue (…) Luxemburgo e (…) residente em (…) (…) , vieram intentar a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra (…), residente na Rua(..) pedindo que sejam reconhecidos como filhos do falecido (…) .

Alegam, para tanto e resumidamente, que a sua mãe e o falecido (…) mantiveram uma relação de namoro, fruto da qual nasceram os Autores.

A Ré contestou, defendendo-se por exceção, ao invocar a caducidade do direito dos demandantes a propor a presente ação, por à data da propositura da presente ação já terem decorrido mais de dez anos sobre as datas em que os Autores atingiram a maioridade (daí a caducidade do direito que aqui pretendem exercer, nos termos do art.º 1817.º, n.º 1, do Código Civil), e por impugnação, ao negar a matéria de facto vertida na petição inicial.

Os Autores responderam à matéria de exceção, alegando que sempre foram reputados e tratados como filhos por (…) bem como reputados como tal pelo público em geral e que tal tratamento apenas cessou com a morte do progenitor, ocorrida no dia 3 de Setembro de 2015. Concluem, assim, que o prazo especial previsto no n.º 3, do art.º 1871.º, do Código Civil, foi respeitado, motivo pelo qual não caducou o seu direito à instauração da presente ação de investigação da paternidade.
Foi proferido despacho saneador e procedeu-se à fixação dos temas de prova.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
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foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Face ao expendido supra, julgo a presente acção totalmente procedente, por provada e, consequentemente, decido:

- Reconhecer e declarar que os Autores (…) e (…) são filhos de (…), falecido no dia 3 de Setembro de 2015, no estado de solteiro, natural da freguesia de (…), concelho de (…) e com última residência na Rua (…) filho de (…) e (…).
- Determinar a comunicação à competente Conservatória do Registo Civil da procedência da presente acção a fim de ser alterado o registo da nascimento dos Autores, passando a constar o nome do pai e avoenga paterna.
Custas pela Ré.
Registe e notifique.
Transitada que se mostre esta sentença, comunique-a à respectiva Conservatória do Registo Civil”.
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A Ré apresentou recurso de apelação, pugnando por que sentença recorrida seja revogada com todas as legais consequências e declarada a caducidade do direito de ação exercitado pelos Autores pela presente ação, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

1- a) A presente ação fundamentou-­se em duas presunções;
b) a primeira presunção assentou na circunstância de ter existido um relacionamento sexual entre a mãe dos AA. e o pretenso pai durante o período legal de concepção;
c) a segunda presunção: a posse de estado dos AA. face ao pretenso pai;
d) é inquestionável que ficaram provados os laços de filiação biológica entre o pretenso pai e os AA;
e) ao invés, entende a apelante que os AA não beneficiam da invocada posse de estado.

E desde logo porque

f) são os próprios AA. que nos Arts.27º e 28º da douta PI afirmam que o pretenso pai ”nunca participou na educação dos Autores, nunca contribuiu para o seu sustento”;
g) a própria mãe dos AA., no seu depoimento, à pergunta “quando ele veio de Angola foi ter com os filhos. A partir daí começou a ajudar a senhora?”, respondeu: “Não. Não”;
h) questionada se “algum dia o Sr. AN deu alguma coisa aos filhos”, respondeu: “Não senhor. Isso nunca.”;
i) perante a insistência: “Não deu nada?”, respondeu: ”Nunca. Nunca. Nem um tostão.”;

Ou seja:

j) Os AA nunca foram tratados como filhos pelo pretenso pai, porquanto
k) “Tratar alguém como filho é adoptar comportamentos e atitudes que caracterizam as relações entre pais e filhos, como a assistência económica, material e afetiva.”-­ STJ, acórdão de 12/172/2002;
l) Como decorre do depoimento da mãe dos AA. o pretenso pai dos AA, nunca prestou qualquer assistência económica aos AA;
m) o que os próprios AA. -­ reafirma-­se -­ igualmente afirmam na sua douta PI (Arts.27º e 28º);
n) Não resultaram, portanto, provados todos os requisitos exigidos pelo disposto no nº.1, al. a), do artº 1871º, do Código Civil;
o) e assim sendo, não, poderia o tribunal recorrido declarar que os AA. são filhos do falecido (…) com tal fundamento.
Por outro lado e ainda que assim não venha a ser entendido, a verdade é que
p) os AA também não alegaram – nem provaram – que o pretenso pai deixou de os tratar como filhos;
q) tendo-­se limitado a afirmar apenas que os AA, sempre foram tratados como filhos pelo(…). E já ficou demonstrado que não.

Mas, mesmo assim,

r) se o tratamento como filhos sempre existiu, não se alcança facto ou circunstância superveniente que possa legitimar o recurso à presente ação ao abrigo do disposto no nº3 do Artº1817º do Código Civil.

E, consequentemente,

s) impunha-­se, como se impõe, julgar procedente, por provada, a exceção de caducidade do direito de ação por parte dos AA.;
t) decidindo, portanto, como decidiu, o tribunal recorrido violou a lei, designadamente, o disposto no Artº1817º, nº1 e nº3, als. b) e c) do Código Civil.
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1ª - Da procedência da exceção perentória da caducidade do direito de ação;
2ª- Do direito à investigação da paternidade, sua imprescritibilidade e inconstitucionalidade material das normas a impor prazos de caducidade para o exercício do direito de averiguação da verdade biológica da filiação;
3ª - Do direito ao estabelecimento da paternidade.
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II.A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com interesse para a decisão da causa (transcrição):

a) No dia 22 de Fevereiro de (…) nasceu, na freguesia de (..), concelho de (…), o Autor (…), que foi registado como filho de (…), não se encontrando averbada a paternidade;
b) No dia 26 de Fevereiro de (…) nasceu, na freguesia de (…), concelho de (…), o Autor (…), que foi registado como filho de (…), não se encontrando averbada a paternidade;
c) No dia 27 de Março de (…) nasceu, na freguesia de …, concelho de (…), Angola, a Ré (…), filha de (…) e de (…);
d) (…) faleceu no dia 3 de Setembro de 2015;
e) No dia 23 de Setembro de 2015, a Ré outorgou procedimento simplificado de habilitação de herdeiros, na Conservatória do Registo Civil de (…) , com o número (…), por óbito de (…) , no qual declarou, na qualidade de cabeça de casal, que o falecido não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, que é a única herdeira e que não há quem lhe prefira ou quem com ela possa concorrer na sucessão;
f) E instaurou no Serviço de Finanças de (…), o respetivo processo de imposto de selo, onde se indicou como única herdeira do falecido (..) e apresentou a atinente relação de bens, onde constam bens móveis e imóveis;
g) A mãe dos Autores e (…) mantiveram uma relação de namoro que se iniciou aproximadamente no ano de 1956 e terminou algum tempo depois do nascimento do Autor (…), altura em que (…) foi para Angola;
h) Durante esse período de tempo a mãe dos Autores apenas teve relações sexuais com (…), fruto das quais nasceram os Autores;
i) Em finais de 1975 (…) regressou de Angola e foi viver para o (…), (…);
j) Logo que chegou foi visitar os Autores, apresentando-se como pai deles;
k) (…) e os Autores passaram, a partir daí, a conviver como pai e filhos;
l) (…) viajava com frequência, chegou a viver algum tempo em Lisboa, mas sempre que podia visitava e convivia com os Autores, tratando-os sempre como seus filhos;
m) Os Autores chamavam pai a (…) e este referia-se a eles como “os meus rapazes do Luxemburgo”, “o meu …”, “o meu …”, como modo de dizer que eram seu filhos e tratava-os como tal, designadamente fazendo refeições com os Autores e cuidando das casas deles, quando estes estavam no Luxemburgo;
n) Desde que se estabeleceu esta relação de proximidade entre os Autores e (…), aqueles passaram, também, a conviver com a Ré;
o) A Ré e os Autores passaram muito tempo juntos, criando verdadeiros laços fraternos.
p) Os Autores sempre foram tratados como irmãos pela Ré e vice-versa.
q) Os Autores sempre foram tratados como filhos de (…) pela generalidade das pessoas, familiares, amigos e conhecidos;
r) Mesmo após o falecimento de (…), a Ré continuou a tratar os Autores como seus irmãos, tendo, inclusivamente, manifestado a vontade de partilhar com eles os bens deixados por óbito de seu pai;
s) Algum tempo depois e sem qualquer explicação a Ré recusou-se a partilhar os bens da herança aberta por óbito de (…), negando que os Autores sejam seus irmãos.
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Factos considerados não provados pelo tribunal de 1ª instância:

- A relação entre a mãe dos Autores e (…) iniciou-se no ano de 1959;
- (…) regressou de Angola em 1974 e mostrou arrependimento pelo comportamento que até aí tinha tido para com os Autores;
- A Ré reuniu várias vezes com os Autores para partilhar os bens deixados por óbito de (…).
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1ª - Da caducidade do direito de acção

Com a presente ação pretendem os Autores ser reconhecidos como filhos de (…), falecido no dia 3 de Setembro de (…), fundando a sua pretensão, para além, do facto biológico da fecundação, em duas presunções: a que deriva da circunstância do pretenso pai ter mantido relacionamento sexual com a mãe durante o período de conceção de cada um deles e a que resulta da posse de estado, ou seja, do tratamento dos Autores como filhos por parte do pretenso pai e de ser reputado como tal pelo público em geral.

Apreciando o Direito que os Autores vêm exercer, bem refere o Tribunal a quonestas acções, a causa de pedir, fundamento da pretensão de filiação, são os laços biológicos, a procriação (é este o fundamento real, empírico ou factual que é preciso alegar e provar, temporalmente localizado no período legal de concepção, ou seja, nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do pretenso filho - cf. José da Costa Pimenta, Filiação, pág. 157).

Não se podendo fazer a prova directa da procriação, fecundação, a causa de pedir traduzir-se-á praticamente na alegação e prova de dois factos: relações de sexo do pretenso pai com a mãe do investigante durante o período legal de concepção; causalidade dessas relações relativamente ao nascimento do investigante, ou seja, relações de sexo causais da gravidez e posterior nascimento do investigante (cf. obra citada).

Acresce, porém, que nos termos do art.º 1871.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Código Civil (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 21/98 de 12/05), a paternidade presume-se quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público ou quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção.
Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tiram de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.
Ora, como resulta das alíneas g) e h) dos factos provados, ficou demonstrado que a mãe dos Autores e (…) mantiveram uma relação de namoro que se iniciou aproximadamente no ano de 1956 e terminou algum tempo depois do nascimento do Autor (…), ocorrido no dia ......1964, altura em que (…) foi para Angola.
Durante esse período de tempo a mãe dos Autores apenas teve relações sexuais com (…), fruto das quais nasceram os Autores.
Quer isto dizer que os demandantes lograram fazer prova directa da procriação, através do exame pericial a que alude o art.º 1801.º do Código Civil.

Lograram ainda demonstrar o facto que integra a presunção prevista na alínea e) do n.º 1 do citado art.º 1871.º do Código Civil (a ocorrência de relacionamento sexual entre (…) e a mãe dos Autores no período legal da concepção, ou seja, nos primeiros 120 dias dos trezentos que antecederam o nascimento de cada um deles).

Aliás, foram mais longe porquanto ficou provada a exclusividade do relacionamento sexual entre a mãe dos Autores e (…) durante tal período de tempo.

Invocam ainda os Autores a posse de estado, ou seja, factos integradores da presunção a que alude a alínea a) do n.º 1 do art.º 1871.º do Código Civil.

Tal como é unanimemente considerado pela jurisprudência, para que exista posse de estado, torna-se imprescindível a existência cumulativa de três requisitos: que se mostre que uma pessoa é reputada como filho pelo pretenso pai; que goze do tratamento como filho e que como tal seja reputado pelo público (o denominado nomen, tractatus e fama).

Tem sido entendido pacificamente, entre a doutrina e a jurisprudência, que a indicada posse de estado “...traduz-se na adopção de uma actuação que, no contexto social em que ambos estão inseridos, é própria das relações que é habitual existiram entre pai e filho, abrangendo e revelando-se um leque de manifestações que podem ir do carinho e amparo moral e social à assistência material, passando pelas mais variadas atitudes de natureza económica, de protecção e de afectividade. Finalmente, a reputação pelo público, significa que o círculo de pessoas que conhecem pai e filho consideram aquele pai deste…” – cf. Acórdão do S.T.J. de 14/12/2006, In Proc. n.º 06A2489, www.dgsi.pt.

Com relevo nesta matéria provaram-se os seguintes factos:

Em finais de 1975 (…) regressou de Angola e foi viver para (…), (…).
Logo que chegou foi visitar os Autores, apresentando-se como pai deles.
(…) e os Autores passaram, a partir daí, a conviver como pai e filhos.
(…) viajava com frequência, chegou a viver algum tempo em Lisboa, mas sempre que podia visitava e convivia com os Autores, tratando-os sempre como seus filhos.
Os Autores chamavam pai a (…) e este referia-se a eles como “os meus rapazes do Luxemburgo”, “o meu …”, “o meu …”, como modo de dizer que eram seus filhos e tratava-os como tal, designadamente fazendo refeições com os Autores e cuidando das casas deles, quando estes estavam no Luxemburgo.
Desde que se estabeleceu esta relação de proximidade entre os Autores e (…), aqueles passaram também a conviver com a Ré.
A Ré e os Autores passaram muito tempo juntos, criando verdadeiros laços fraternos.
Os Autores sempre foram tratados como irmãos pela Ré e vice-versa.
Os Autores sempre foram tratados como filhos de (…) pela generalidade das pessoas, familiares, amigos e conhecidos.
Mesmo após o falecimento de (…), a Ré continuou a tratar os Autores como seus irmãos, tendo, inclusivamente, manifestado a vontade de partilhar com eles os bens deixados por óbito de seu pai.
Desta factualidade resulta para nós claramente demostrada a posse de estado, ou seja, que os Autores foram reputados e tratados como filhos por (…) e reputados como tal no meio social em que se inseriam”.
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E, na verdade, julgou o Tribunal de 1ª instância improcedente a exceção perentória da caducidade do direito dos Autores, apesar de a ação ter sido proposta quando os Autores tinham já mais de 50 anos de idade.
Vejamos a lei, a doutrina e a jurisprudência sobre a questão para ficarmos habilitados a decidir o objeto do presente recurso, que se centra na questão da caducidade do direito dos Autores.

Estatui o artigo 1873º, do Código Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, que é aplicável à ação de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 1817º a 1819º e 1821º.

E consagra o artigo 1817º:

“1 - A ação de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.
2 - Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815º (Não é admissível o reconhecimento de maternidade em contrário da que conste do registo do nascimento), a ação pode ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório.
3 - A ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos:
a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante;
b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe;
c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
4 - No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da ação.”

Em face do elemento literal da lei ordinária, não existem dúvidas de que estamos perante prazos de caducidade, de conhecimento oficioso, por ser matéria excluída da disponibilidade das partes, nos termos do disposto no artigo 333º, nº1, do Código Civil (1).

Na verdade, o artigo 298º, do Código Civil, distingue as figuras da prescrição, da caducidade e do não uso. Aliás, são tão semelhantes estas figuras da prescrição e da caducidade que a lei (artigo 298º, n.º 2, do CC) sentiu a necessidade de mandar aplicar as regras da caducidade a menos que a lei ou acordo que fixam certo prazo para o exercício de um direito se refiram expressamente à prescrição. Ambas supõem a vontade da lei ou das partes em que o direito se exerça dentro de certo prazo, tendo em vista a rápida definição dos direitos e a correspondente segurança jurídica.

A ténue distinção foi traçada por VAZ SERRA na RLJ 105, página 27: na caducidade, a lei quer, por considerações meramente objectivas, que o direito seja exercido dentro de certo prazo, prescindindo da negligência do titular e, por isso, de eventuais causas suspensivas e interruptivas (artigo 328º e 331º do Código Civil) que excluam tal negligência, enquanto que na prescrição o que a lei se propõe é, além de proteger a segurança jurídica, sancionar a negligência do titular, pelo que o prazo prescricional pode suspender-se e interromper-se nos termos próprios da prescrição.

Na caducidade está em causa um verdadeiro prazo perentório de exercício de direito. Na prescrição, em rigor, não se fixam prazos de exercício do direito, mas apenas prazos a partir dos quais o devedor se pode opor ao exercício do direito, por não mais ser razoável, embora seja possível, exercê-los. Já a caducidade é o instituto pelo qual os direitos que, por força da lei ou convenção, se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante esse prazo.

Acresce que a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal, e em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes (cfr. artigo 333º, n.º 1 do Código Civil), ou seja quando estejam em causa relações jurídicas atinentes a direitos indisponíveis, como ocorre precisamente no caso dos autos. Para além do reconhecimento de direito disponível (artigo 331º, n.º 2, do Código Civil) só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional (se permitido), do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo (artigo 331º, n.º 1, do Código Civil).

Tal é, normalmente, a propositura da ação. E a ação considera-se proposta na data da entrega da petição na secretaria, sem prejuízo do previsto no artigo 144º do Código de Processo Civil, não interessando a data da distribuição, nem a da citação.

Nas ações que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o Autor teve conhecimento de certo facto – in casu nas ações de investigação da paternidade com base na filiação biológica -, cabe ao réu a prova de o prazo já ter decorrido (art. 343º, nº2, do Código Civil). O prazo de propositura da ação não é, nestas hipóteses, havido como facto constitutivo do direito do Autor estabelecer a sua filiação, antes traduz um facto extintivo do seu direito de investigar e estabelecer a filiação jurídica (2).

Assim, o ato impeditivo da caducidade de uma ação é a sua propositura, sem mais, consumando-se esta com o recebimento da petição inicial na secretaria, que no caso dos autos ocorreu em 1 de Setembro de 2017 (v. fls 34).

Destarte, dúvidas não restam que o referido prazo de 10 anos há muito que havia decorrido, face à idade dos Autores, que tinham, já, mais de 50 anos de idade quando instauraram a ação.

Sucede que a lei prevê, nos casos de inexistência de paternidade determinada (como é o caso), que a ação de investigação da paternidade possa ser proposta (já após os dez anos posteriores à maioridade) dentro dos três anos seguintes ao momento em que cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai (cf. artigo 1817º, nº3, al. b), do Código Civil, ex vi artigo 1873º, do mesmo diploma legal).

Ora, invocando a Ré que, à data da propositura da presente ação, já haviam decorrido mais de dez anos sobre as datas em que os Autores atingiram a maioridade, daí a caducidade do direito que aqui pretendem exercer, nos termos do art.º 1817.º, n.º 1, do Código Civil, responderam os Autores a esta exceção alegando que sempre foram reputados e tratados como filhos por (…), bem como reputados como tal pelo público em geral e que tal tratamento apenas cessou com a morte do progenitor, ocorrida no dia 3 de Setembro de 2015. Concluem, assim, que o prazo especial previsto no n.º 3 do art.º 1871.º do Código Civil foi respeitado, motivo pelo qual não caducou o seu direito à instauração da presente ação de investigação da paternidade.

E bem decidiu o Tribunal a quo improceder a exceção de caducidade invocada pela Ré pois:

“Os Autores (…) e (…) nasceram, respectivamente, nos dias 22 de Fevereiro de … e 26 de Fevereiro de ….
A presente acção foi proposta no dia 1 de Setembro de 2017 – cf. fls. 34 dos autos.
É certo que nesta data há muito havia decorrido o prazo de dez anos contado após a maioridade dos investigantes, aqui Autores, previsto no citado art.º 1817.º, n.º 1, do Código Civil.
Contudo, no n.º 3 desta norma legal estipula-se um prazo especial para a propositura da acção de investigação de paternidade.

A acção de investigação de paternidade pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos factos aí elencados, nomeadamente quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai - cf. alínea b).

No caso em análise, como já tínhamos referido supra, os Autores provaram que foram reputados e tratados como filhos por AN e reputados como tal no meio social em que se inseriam. (…)
Ora, (…) faleceu no dia 3 de Setembro de …. e só após o óbito deste cessa a posse de estado, justificando-se a partir desta data a investigação da paternidade.
À data da propositura desta acção (1 de Setembro de 2017) ainda não tinha decorrido o prazo de três anos a que se alude supra”.

Na verdade, o tratamento como filho, inerente à filiação sócio-afetiva, implica por parte do pai comportamento que, no plano afetivo e material, revele que existe um cuidado e proteção igual aos que os pais dispensam aos filhos, no quadro da vivência social e idiossincrática, sendo que a exteriorização dessas manifestações concludentes de reconhecimento deve ser olhada e apreciada no horizonte temporal dos costumes imperantes e prevalecentes na contingência do tempo. É de considerar relevante, no sentido do tratamento e reconhecimento, que exista uma atuação reveladora de um mínimo afeto e ajuda moral e material ao longo do tempo, sendo de ponderar se existe proximidade territorial ou não, e se as circunstâncias pessoais do investigante exigem a mesma intensidade de afeto e ajuda material (3).

E, efetivamente, resultou provado que quando (…) regressou de Angola, em finais de 1975, foi viver para o (…), … e logo que chegou foi visitar os Autores, apresentando-se como pai deles, passando, a partir daí, a conviver como pai e filhos. (…) viajava com frequência, chegou a viver algum tempo em Lisboa, mas sempre que podia visitava e convivia com os Autores, tratando-os sempre como seus filhos. Os Autores chamavam pai a (…) e este referia-se a eles como “os meus rapazes do Luxemburgo”, “o meu …”, “o meu …l”, como modo de dizer que eram seus filhos e tratava-os como tal, designadamente fazendo refeições com os Autores e cuidando das casas deles, quando estes estavam no Luxemburgo. Desde que se estabeleceu esta relação de proximidade entre os Autores e (…), aqueles passaram, também, a conviver com a Ré, passando muito tempo juntos e criaram laços fraternos, tratando-se como irmãos. Os Autores sempre foram tratados como filhos de (…) pela generalidade das pessoas, familiares, amigos e conhecidos. Mesmo após o falecimento de (…), a Ré continuou a tratar os Autores como seus irmãos, tendo, inclusivamente, manifestado a vontade de partilhar com eles os bens deixados por óbito de seu pai.

A ação de investigação de paternidade, fundada na posse de estado, está sujeita a prazo de caducidade – art. 1817º, do CC, um prazo regra de 10 anos (nº1) - e dois prazos especiais de três anos, os constantes do nº2 e da al. b) do nº3 que aqui está em causa e que se refere à cessação do tratamento como filho, pelo pai (4).

No caso dos autos, demonstrou-se, pois, que os Autores sempre foram reconhecidos e tratados como filhos pelo falecido, que estabeleceu o convívio deles, também, com a outra filha, fazendo o mesmo refeições com os Autores e cuidando das casas deles, irrelevante sendo, para o efeito, que não tivesse contribuído para a satisfação das suas necessidades económicas, sendo certo que a ação foi proposta dentro dos três anos seguintes ao momento em que cessou o tratamento como filho pelo pretenso pai (cfr. artigo 1817º, nº3, al. b), do Código Civil, ex vi artigo 1873º, do mesmo diploma legal), com o óbito do mesmo.

Ora, tal factualidade sempre legitima a propositura da presente ação, o prazo especial previsto no n.º 3 do art.º 1871.º do Código Civil foi respeitado, impondo-se, desde logo, por aí, a improcedência da exceção perentória de caducidade invocada.
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2ª- Do direito à investigação da paternidade, sua “imprescritibilidade” e inconstitucionalidade material das normas a impor prazos de caducidade para o exercício do direito de averiguação da verdade biológica da filiação

Cumpre, de todo o modo, referir, que mesmo que se considere não ter sido suficientemente alegado e demonstrado que os Autores sempre foram tratados como filhos pelo falecido e que mesmo que a ação não tivesse sido proposta dentro dos três anos seguintes ao momento da cessação do tratamento como filhos pelo pretenso pai (cfr. artigo 1817º, nº3, al. b), do Código Civil, ex vi artigo 1873º, do mesmo diploma legal), ocorrido com o óbito do mesmo, nunca poderia ser considerada procedente exceção de caducidade do direito dos Autores à investigação e ao estabelecimento da sua paternidade (e de absolver a Ré do pedido).

Analisemos a razão pela qual o afastamento do prazo caducidade do direito de ação, consagrado na lei ordinária, não pode deixar de se impor.

A questão da “imprescritibilidade” das ações tendo em vista o estabelecimento da filiação, tem vindo a ser muito discutida e, de forma muito relevante, ocorrerem, também, “alterações significativas em sede de possibilidade de demonstração do vínculo de filiação, devido ao progresso científico na matéria. Na verdade, uma das razões para o estabelecimento de prazos curtos na versão originária do Código prendia-se com o risco de envelhecimento da prova. Outros elementos são úteis para a discussão, como decorre da jurisprudência do Tribunal constitucional sobre a matéria, designadamente a afirmação de um direito ao conhecimento das suas origens, decorrente do direito à identidade pessoal, mas também a questão da segurança quanto às relações de filiação e de parentesco daquelas decorrentes, a intenção de fomentar o estabelecimento da filiação o mais cedo possível, de forma a que os progenitores garantam o apoio e sustento dos filhos na idade em que tal se revela mais premente” (5).

A matéria dos prazos em sede de estabelecimento de filiação foi objeto das alterações ao Código Civil levadas a efeito pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, e o legislador nacional optou “num momento histórico em que a questão da eventual imprescritibilidade destas ações conheceu um amplo debate, pela manutenção de um sistema de prazos, pese embora alargando os mesmos de uma forma significativa, na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional que condenou, a partir de determinado momento, os prazos curtos para a propositura destas ações” (6), como aconteceu, designadamente, nos Acórdãos aí referidos, que se pronunciaram quanto à exiguidade dos prazos, sendo que a “atual redação do preceito foi também já objeto da atenção do TC, designadamente através de recursos nos quais foi posta em causa a opção legislativa que se traduz na opção por um sistema de caducidade, ou seja, em que, mais do que questionar os concretos prazos estabelecidos, se questionou a própria existência de prazos para a propositura destas ações. O Tribunal Constitucional, até recentemente, não se pronunciou pela inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos pela atual redação (assim, v. designadamente, os Acs. nº 401/2011 – Cura Mariano e 106/12 – Maria Lúcia Amaral) (7). Também as Relações e o STJ consideraram, em diversos Acórdãos (8) (9), não enfermar de inconstitucionalidade material, pese embora estar em causa um direito de personalidade, pessoalíssimo, embora não um direito absoluto, por considerarem um prazo razoável e proporcional, que não coarta o exercício do direito do investigante, no confronto com o princípio da confiança e de tutela dos interesses merecedores de proteção do investigado. Em causa está “a salvaguarda de interesses gerais ou valores de organização social em torno da instituição familiar e, sobretudo a tutela da reserva da intimidade da vida privada do investigado. Os referidos valores e interesses exigem que as relações de parentesco sejam dotadas de estabilidade, impondo-se aos interessados o ónus de agirem rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes” (10).

Contudo, em jurisprudência mais recente, em nosso entender tomando uma posição que já há muito se impunha unânime (por assegurar aquilo a que, a todos e cada um, deve ser oferecido, sem necessidade de ser, por ele, procurado - a identidade jurídica conforme à verdade biológica -), vem sendo afirmado o direito a que seja investigada e reconhecida a paternidade, sem limitações de prazos e sem restrições de qualquer espécie, que nunca seriam justas e proporcionais para com quem em nada contribuiu para a situação, antes dela foi vítima, desde a nascença (com as consequentes implicações de caráter patrimonial e não patrimonial e que não podem deixar de importar violação do princípio da igualdade entre filhos).
Tal ocorreu em diversas decisões da 1ª instância, em votos de vencido (11) e em acórdãos quer das Relações quer do Supremo (12).
Bem elucida Remédio Marques, no “Supremo Tribunal de Justiça (e nas Relações) é veiculada, porventura maioritariamente, a solução no sentido da “imprescritibilidade” do direito de estabelecer a filiação jurídica, máxime, investigar a paternidade, afirmando-se, consequentemente, a inconstitucionalidade da fixação legislativa de qualquer prazo (13).
Após a prolação do acórdão do T. C. nº 23/2006 detecta-se uma esmagadora tendência no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no sentido do entendimento de que o ordenamento jurídico português deixou de prever prazos de caducidade para estabelecer a filiação jurídica com base na prova directa da filiação biológica (14) - desligada, portanto, da alegação e prova de factos base das diversas presunções de paternidade que aproveitam aos filhos nascidos fora do casamento. A partir de 2009-2010 surpreende-se a adesão significativa no STJ, embora ainda minoritária, da tese segundo a qual não ofende a Constituição o estabelecimento de prazos razoáveis de caducidade, a contar da maioridade ou emancipação do investigante – por não se tratar de uma restrição (do núcleo essencial) de direitos fundamentais (máxime do direito à identidade pessoal), mas de condicionamentos ao respectivo exercício (15)” (16).
A marcante, relevante e decisiva viragem ocorreu, em recente Acórdão do Tribunal Constitucional relatado por Maria Clara Sottomayor, num caso de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que declarou, inconstitucional a existência de um prazo de caducidade, para alguém poder conhecer a sua verdade biológica, considerando que tal prazo constitui uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, nele falando Manuel da Costa Andrade em prevalência absoluta dos direitos de quem quer conhecer a sua paternidade sobre os interesses do investigado.
Já assim o havia feito no Acórdão 488/2018 de 4 Out. 2018, Processo 471/2017, onde se decidiu ser “inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”.

Pese embora escreva Pedro Machete na sua declaração de voto “Em suma, não se questiona a possibilidade - aliás permanente - de «"um novo olhar" sobre a constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, em face» do eventual «crescente valor dos bens jurídicos pessoalíssimos sacrificados pela caducidade» e do eventual menor reconhecimento, seja «na ordem constitucional», seja «na consciência coletiva», da «necessidade de compressão» dos mesmos, assim como da eventual «preocupação crescente com a verdade e a transparência nas relações familiares e nas relações entre o Estado e os cidadãos» (cfr. o n.º 7, in fine, da presente decisão; v. também a posição favorável relativamente aos Autores citados nos n.ºs 9 e 18). Entende-se, isso sim, que num Estado de direito democrático a avaliação de todas essas mudanças operadas na consciência coletiva quanto à valoração de certos bens em face de outros e, bem assim, relativamente à preocupação com a verdade e a transparência, e a decisão sobre as consequências normativas a retirar de tais mudanças cabem exclusivamente ao legislador democraticamente eleito, e não ao julgador incumbido apenas de fazer respeitar os valores fundamentais pré-definidos na Constituição para a sociedade destinatária de tais escolhas político-jurídicas”, com a seguinte DECLARAÇÃO DE VOTO refere Manuel da Costa Andrade “Votei o Acórdão por considerar que os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante reclamam uma tutela cada vez mais intensa, ao ponto de exigirem hoje uma absoluta prevalência sobre os interesses do investigado, designadamente os que aqui se colocam em causa, no plano da salvaguarda da privacidade e intimidade da vida familiar e da segurança jurídica. Nestes termos, considero justificado o afastamento de uma jurisprudência constitucional sedimentada que, de forma cuidadosa, tentava ainda uma operação de concordância prática de todos aqueles direitos e interesses constitucionalmente protegidos” (sublinhado nosso).

Sendo premente a necessidade de "um novo olhar" sobre a constitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, por efetivamente os valores sentidos por toda a sociedade pintarem o quadro com as cores da verdade e da transparência nas relações familiares e nas relações entre o Estado e os cidadãos, não pode deixar-se para amanhã o que reclama a tutela adequadamente reconhecida e efetivamente bem aplicada no Douto Acórdão (17), sempre se impondo o imediato afastar de uma norma injusta, que se não compagina com a consciência coletiva, nem com os valores da ordem jurídica.

Com efeito, no referido Acórdão, reafirmado em um outro no mês passado, foi apreciada a questão de saber se é constitucionalmente admissível a fixação, pelo legislador, de qualquer prazo de caducidade e bem se expõe e decide que “A fixação de um prazo para interposição da ação de reconhecimento judicial da paternidade faz com que o esgotamento desse prazo seja um facto extintivo do direito de propor a ação. O prazo de caducidade restringe os direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família do investigante, bem como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade deste. Esta restrição não constitui um meio adequado, necessário e proporcional de respeitar os direitos do investigado, violando, por isso, a proibição de intervenção excessiva nos direitos fundamentais dos autores da ação.

A natureza pessoalíssima dos direitos dos filhos, que decorrem da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social mais definidora da sua humanidade e personalidade, faz com que, na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos dos filhos sejam, na hierarquia axiológica da Constituição em que a dignidade da pessoa humana ocupa o topo (artigo 1.º da CRP), de superior valia em relação aos direitos do investigado.

A privacidade do investigado (o direito de não ver exposta a sua esfera sexual e íntima) e da sua família, bem como a segurança jurídica patrimonial dos herdeiros daquele, não podem sobrepor-se aos direitos pessoalíssimos e inalienáveis do investigante, em termos de provocar a sua extinção pelo decurso do tempo. Por outro lado, não pode sequer afirmar-se que existe um direito do pretenso pai a não se vincular juridicamente a uma paternidade biologicamente comprovável, num contexto jurídico em que o progenitor tem, pelo contrário, o dever jurídico (e não apenas moral ou de consciência) de perfilhar (cf. Guilherme de Oliveira, «Caducidade das ações de investigação ou caducidade do dever de perfilhar, a pretexto do Acórdão n.º 401/2011 do Tribunal Constitucional», Lex Familiae, 2012, n.ºs 17 e 18, p. 113). O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de não ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas, pode ser usado como critério de interpretação e de ponderação nos conflitos entre direitos (cf. Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa», in Afonso Vaz et al. (Coord.), Jornada nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa - Impacto e Evolução, Universidade Católica Editora - Porto, 2017, pp. 104 e ss., p. 108. Em consequência, o conflito de direitos em causa no presente processo deve ser analisado e as normas constitucionais interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), não podendo deixar de se entender, num Estado de Direito, cujo centro é a pessoa humana, que os direitos de natureza pessoal têm preponderância sobre os direitos patrimoniais, havendo entre ambas as categorias de direitos e de interesses uma diferença qualitativa que deve ser decisiva no juízo de ponderação de interesses, como também se assinalou no Acórdão n.º 23/2006, onde se afirmou «(...) que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor».

O direito de intentar a ação de investigação da paternidade é um direito de personalidade fundamental, e os direitos de personalidade beneficiam de regimes jurídicos especiais que decorrem de normas materialmente constitucionais, que, apesar da sua colocação sistemática em diplomas de direito ordinário, consagram direitos fundamentais extraconstitucionais, não formalmente tipificados no texto da Constituição, mas admitidos pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da CRP.

Estas dimensões dos direitos fundamentais contribuem, assim, para salientar a primazia dos direitos de personalidade sobre os direitos patrimoniais, enriquecendo e densificando o conteúdo aberto das normas constitucionais invocadas como parâmetro da apreciação da constitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, atribuindo aos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade um maior peso quando em confronto com outros bens jurídicos como a segurança jurídica patrimonial dos outros herdeiros do investigado ou a paz familiar, o sossego e a privacidade deste e da sua família. A proteção da vida privada do pretenso pai não pode ser obtida à custa do direito do filho a investigar e a fazer reconhecer a filiação, tanto mais que a exposição da privacidade daquele no processo resulta do seu contributo para a procriação e da sua conduta anterior omissiva: se não tinha razões para duvidar da paternidade, devia tê-la assumido; se tinha dúvidas legítimas, devia ter colaborado na averiguação da verdade biológica. Quanto aos casos em que a ação é instaurada depois do falecimento do pretenso pai, não tendo este, em vida, conhecimento ou "suspeita" do nascimento, deve entender-se que não gozam, ainda assim, as posições jurídicas subjetivas deste, de merecimento de tutela suficientemente forte para contrabalançar os direitos do investigante, tanto mais que a estes direitos fundamentais correspondem também interesses de ordem pública. Como afirma Joaquim de Sousa Ribeiro («A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade». 2018, ob. cit., p. 216): «(...) não vemos como é que a medida do tempo possa ser aqui medida da tutela e fator único de uma alteração qualitativa no sentido da proteção conferida pelo ordenamento, deslocando-a da esfera do filho para a esfera do suposto pai»”.

Bem conclui o Tribunal Constitucional no referido Acórdão pela inconstitucionalidade da existência de um prazo de caducidade para propor uma ação de investigação da paternidade (e da maternidade), à luz das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da sua personalidade, ao conhecimento da paternidade/maternidade, bem como ao estabelecimento das correspondentes relações de filiação (artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.ºs 1 e 4, ambos da Constituição).

E bem considera que a “limitação temporal do direito a interpor uma ação de investigação da paternidade, consagrada no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, não pode ser considerada constitucionalmente admissível, quer no plano da sua justificação, quer no plano dos seus efeitos, por violação do artigo 18.º, n.º 2, da CRP. É que, por comparação com a tutela que recebem no ordenamento jurídico os credores de direitos patrimoniais (para cujo exercício judicial a lei fixa um prazo geral de prescrição de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil), a ponderação de valores expressa na solução legal consagrada no artigo 1817.º, n.º 1 constitui apreciação "manifestamente incorreta", na expressão do Acórdão n.º 23/2006, dos interesses ou valores em presença, em particular, quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime produz para o investigante e para o investigado: o investigante, com a perda, aos vinte e oito anos de idade (ou qualquer outro limite temporal), do direito a saber quem é o pai, sofre prejuízos não patrimoniais, que afetam o cerne da sua personalidade, liberdade, estado pessoal e identidade, claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente resultantes, para o investigado e sua família, da ação de investigação e dos seus efeitos. Os direitos pessoais do investigado não ganham com o decurso do tempo uma força tão acrescida que justifique a sua prevalência sobre os direitos do filho e que o pretenso pai ganhe o direito à não sujeição ao reconhecimento da paternidade, assim se subtraindo ao vínculo familiar correspondente. Inversamente, os direitos do filho não perdem, com a passagem do tempo, intensidade valorativa nem diminui o seu grau de merecimento de tutela.

A norma que estipula um prazo de caducidade constitui, assim, uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Destas normas constitucionais, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre que as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos” (18).

O que de modo esclarecido e com exaustiva análise doutrinal e jurisprudencial, nacional e comunitária, bem foi decidido nos referidos Doutos Acórdãos relatados pela Senhora Conselheira Maria Clara Sottomayor traduzem os valores de adequação, proporcionalidade e justiça ínsitos no espírito do sistema e aqueles que a sociedade atual espera que o aplicador da lei procure e aplique.

Assim, e porque a norma que estipula um prazo de caducidade constitui, na verdade, uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação, por violação das disposições conjugadas dos artigos 36.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, da CRP, e do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, impõe-se o entendimento de que as ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, pelo que ainda que o caso se subsumisse na caducidade sempre seria constitucionalmente ilegítima limitação temporal para o exercício do direito dos Autores, qualquer que ela fosse.

Os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao estabelecimento da paternidade do investigante reclamam uma intensa tutela, sendo absolutamente prevalecentes sobre os interesses (de eventual ocultação e não poucas vezes interesseiros e egoístas) do investigado ou de seus herdeiros. Interesses relativos à segurança jurídica não justificam o fechar de olhos à verdade biológica, pelo que se impõe o afastar dos prazos de caducidade de modo a permitir alcançar a Certeza, a Verdade e a Justiça, que sempre o Homem, os Cidadãos, os Tribunais e o Estado visam alcançar, e extrair os consequentes efeitos jurídicos em matéria de filiação, no momento em que o filho se sinta disposto a ir ao encontro do que sempre lhe devia ter sido proporcionado.
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3ª - Do direito ao estabelecimento da paternidade

Pretendem os Autores o estabelecimento da sua paternidade, que atribuem ao falecido (…), estando provada, como até a Apelante reconhece nas conclusões da apelação, a paternidade biológica.

O regime do estabelecimento da maternidade e da paternidade assenta no respeito pela ““verdade” biológica da filiação. A lei quer que os pais “jurídicos” sejam os pais “naturais”. A mãe será aquela de cujo ventre o filho nasceu; o pai será aquele cujo espermatozoide fecundou o óvulo. (…) a lei faculta aos interessados e promove, mesmo, directamente, a pesquisa da paternidade e da maternidade com vasta abertura, eliminando os pressupostos da sua pesquisa (art. 1871º do CC) (19).

Em matéria de paternidade, a reforma de 1977, do Código Civil, procurou conformar o regime jurídico do estabelecimento da filiação com o princípio da correspondência entre a verdade biológica e a verdade jurídica, na consideração da existência de um direito de cada um à identidade pessoal, abrangido pelo direito à sua própria historicidade pessoal, a qual comporta, sob pena de não ter conteúdo útil, o direito ao conhecimento dos progenitores biológicos (20).

“Depois, tenta fazer coincidir a paternidade e a maternidade “biológicas” com as “jurídicas”; a reforma do Código Civil de 1977, nesta ordem de ideias, admitiu, nas acções de filiação, os meios de prova científica (art. 1801º (21)); consagrou, quanto à maternidade, o sistema da filiação, independentemente de qualquer reconhecimento da mãe; admitiu diversos casos de cessação da presunção de que o pai seria o marido da mãe (arts 1828º, 1829º, 1832º, nº2 e 1834º, nº1 do CC)” (22).
“O estabelecimento da paternidade efectua-se através da presunção de paternidade, da perfilhação e do reconhecimento judicial da paternidade.
Estas três vias têm dois denominadores comuns: o de satisfazerem o direito de cada ser humano a conhecer o seu pai; e o de fazerem coincidir a paternidade jurídica com a paternidade biológica” (23).
Fora do casamento, como é o caso, a paternidade pode ser estabelecida pelo reconhecimento voluntário ou por decisão judicial, em ação de investigação de paternidade - cfr. artigos 1796º, n.º 2 e 1847º (consagrando este preceito que “o reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio efectua-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação”), tendo os Autores, para a lograr obter, necessitado de propor a presente ação.
A investigação de paternidade, regulada pelos artigos 1869º e seguintes e que visa estabelecer o vínculo de filiação paterna, tem como causa de pedir o facto jurídico da procriação - a relação sexual fecundante, causal do nascimento -, a ele se acedendo por prova direta ou por prova de factos instrumentais que com segurança o indiciem ou pelo enquadramento de uma das situações de facto eleitas na lei como dele presuntivas.

A este propósito, estabelece desde logo o nº1, do artigo 1871º, que se presume a paternidade:

“a)- Quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público;
b)- Quando exista carta ou outro escrito no qual o pretenso pai declare inequivocamente a sua paternidade;
c)- Quando, durante o período legal da conceção, tenha existido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges ou concubinato duradouro entre a mãe e o pretenso pai;
d)- Quando o pretenso pai tenha seduzido a mãe, no período legal da conceção, se esta era virgem e menor no momento em que foi seduzida, ou se o consentimento dela foi obtido por meio de promessa de casamento, abuso de confiança ou abuso de autoridade;
e)- Quando se prove que o pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de conceção”.

Na verdade, o facto biológico da filiação ou da sua exclusão pode resultar provado por métodos cientificamente comprovados (artigo 1801º), sendo que, efetivamente, o exame hematológico, enquanto meio pericial que é, constituiu um meio de prova por excelência da verificação do vínculo biológico ou da falta dele, meio pericial que deve ser apreciado livremente pelo tribunal (artigo 389º do Código Civil), embora tal prova por científica, mereça muito especial relevância, sobretudo quando comparada com a falibilidade da prova testemunhal e do depoimento de parte em ações desta natureza, provas essas que são, naturalmente, mais falíveis.

A expressa consagração da referida norma (artigo 1801º), “bem como a sua posição sistemática, remetem para o valor, em sede de estabelecimento da filiação, do respeito e interesse do regime estabelecido pela verdade biológica, e da pretendida correspondência entre a filiação jurídica e a verdade biológica, em relação com o já referido direito ao conhecimento da identidade dos progenitores e de um direito a fazer inscrever no registo a filiação biológica verdadeira (…) atualmente, os exames genéticos disponíveis permitem afirmar com uma segurança quase total a existência de uma relação de filiação entre duas pessoas, traduzida na expressão “paternidade praticamente provada”, em que a probabilidade se exprime em valores da ordem de 99,999% ou 99,996% (v. entre muitos outros, acs do STJ de 9-7-02 (Duarte Soares) e de 15-6-04 (Ponce de Leão)” (24).
A elevada fiabilidade dos testes científicos hoje disponíveis no que concerne à prova das relações de filiação ganhou foros de quase exclusividade, pois que se atinge a quase certeza, pode mesmo dispensar qualquer outro tipo de prova.
Em matéria de paternidade, impõe-se o respeito puro e simples pela verdade biológica, existindo um interesse público no alcance da mesma (25).
Afigura-se-nos evidente que o meio de prova mais indicado para se averiguar da ocorrência ou não da paternidade biológica é o exame pericial (genético).

Como se refere no Acórdão do STJ de 25-03-2010, a sorte da relação jurídica de paternidade joga-se na certeza da prova científica. Os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal.
Por outro lado, “o momento da conceção do filho é fixado, para efeitos legais, dentro dos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o seu nascimento …”. (artigo 1798º do Código Civil).

No caso dos autos, temos por demonstrado que a mãe dos Autores e (…) tiveram relações sexuais de cópula completa, incluindo nos primeiros 120 dias dos 300 dias antecedentes ao nascimento de cada um dos Autores, tendo sido dessas relações sexuais que aquela engravidou e veio a dar à luz os Autores.

Bem considerou, assim, o Tribunal a quo ter resultado provado que a gestação dos Autores resultou do relacionamento sexual mantido entre (…) e a mãe dos mesmos.

Assim, face à factualidade provada - que os Autores sempre foram tratados como filhos pelo falecido, tendo a ação sido proposta dentro dos três anos seguintes ao momento em que cessou o tratamento como filho pelo pretenso pai (cfr. artigo 1817º, nº3, al. b), do Código Civil, ex vi artigo 1873º, do mesmo diploma legal), com o óbito do mesmo -, outra solução não se impunha que não fosse julgar a exceção da caducidade do direito de ação improcedente, caducidade essa que sempre seria de afastar, por imprescritibilidade do direito ao estabelecimento da paternidade, sendo a norma do nº1, do artigo 1817º materialmente inconstitucional e, atenta a prova da paternidade do Réu, a ação procedente, por provada, impondo-se, por conseguinte, confirmar a sentença recorrida.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Guimarães, 9 de maio de 2019
(Assinado digitalmente)

Eugénia Cunha
José Flores
Sandra Melo


1. cfr. Acórdão da Relação do Porto de 3-12-2012, proc. 3460/11.0TBVFR.P1, in: www.dgsi.pt
2. J. P. Remédio Marques, O prazo de caducidade do nº 1 do artigo 1817º, do Código Civil e a cindibilidade do estado civil, Imprensa da Universidade de Coimbra, págs 165 e seg, in URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38884
3. Ac. do STJ de 18/2/2015, Proc. 4293/10, Sumários, Fev. 2015, p. 29, citado in Abílio Neto, pág 1470.
4. v. Ac. anteriormente referido
5. Ana Prata (Coord), idem, pág. 737
6. Ibidem, pag. 738
7. Ibidem, pag. 738
8. V., entre muitos, Ac. da Rel. Guimarães de 18/10/2018, Proc. 503/18.0T8VNF.G1(José Amaral) “O prazo de caducidade da acção … não é inconstitucional. Ele harmoniza, equilibrada e justamente, os direitos fundamentais consagrados no artº 26º, nº 1 (à identidade pessoal), e no artº 36º, nº 1 (a constituir família), da CRP, com outros relativos à segurança jurídica também de interesse público e nesta tutelados” Ac. da Rel. Porto de 10/5/2018, Proc. 6554/15.0T8MAI.P1 (Madeira Pinto) “…Entendemos que o prazo fixado para o efeito pela Lei nº 14/2009, de 01.04, é um prazo razoável para o exercício do direito a ver reconhecido o direito à filiação biológica, enquanto vertente do direito à identidade e do direito a constituir família, constitucionalmente consagrados nos artº 26º, nº 1 e 36º, nº 1, da CRP de 1976, não havendo in casu lugar à aplicação de qualquer das previsões das alíneas do nº 3 do artº 1817.º, nº 1, do Código Civil, na redacção dada pelo artº 1º da Lei nº 14/2009, de 01.04, pelas razões expressas no douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/2011, de 22.09.2011, in DR, 2ª Série, de 03.11.2011. V - Mesmo que assim não fosse, ou seja a situação in casu não importasse caducidade do direito de acção do autor, cremos que se deve fazer intervir a figura do abuso do direito – art. 334º do Código Civil – para paralisar a pretensão exercida”.
9. Cfr. ainda, entre muitos, os seguintes Acs. do STJ: de 9/4/2013, Proc. 187/09, Sumários, 2013, pág 227; de 15/10/2013, Proc. 1906/11, Sumários, 2013, p. 639; de 3/4/2014, Proc. 5779/11, Sumários, 2014, p. 242; de 9/7/2014, Proc. 155/12, Sumários, 2014, p. 421; de 13/1/2015, Proc. 165/13, Sumários, Jan/2015, pág 22; de 18/2/2015, Proc. 4293/10, Sumários, Fev./2015, p. 29, de 12/3/2015, Proc. 1261/12, Sumários, Março/2015, p. 34; e de 28/5/2015, Proc. 2615/11, Sumários, Maio/2015, p. 64, onde se refere: “I. Transitada em julgado a decisão que negou o juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma do nº1, do art. 1817º, do CC, na sua actual redação (em conexão com a norma do art. 1873º, respeitante ao prazo geral de caducidade da acção de investigação da paternidade) e prosseguindo a acção exclusivamente para apreciação da caducidade em função do decurso ou não do prazo adicional de 3 anos previsto no art. 1817º, nº3, al. c) (…), está precludida a possibilidade de ser retomada a questão da inconstitucionalidade daquele normativo, ainda que com a invocação de outro fundamento jurídico. II. A tutela jurisdicional do direito à identidade pessoal não é incompatível com o estabelecimento de prazos para a propositura da ação de investigação da paternidade, designadamente com a previsão do prazo adicional de 3 anos previsto no art. 1817º, nº3, al. c), do CC, contado a partir do conhecimento, pelo investigante, de factos ou de circunstâncias justificativas da investigação da sua paternidade.(…)”, todos citados in Abílio Neto, pág 1468 e seg e p. 1471, e ainda de 8/2/2018, processo 5434/12.5TBLRA.C1.S1.S1 (Tomé Gomes) “Apesar das ainda persistentes divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a constitucionalidade das normas legais prescritores de prazos de caducidade para as ações de investigação da paternidade e de impugnação da paternidade presumida, adota-se a orientação maioritária ultimamente seguida pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em sintonia com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, no sentido de que a fixação legal de prazos de caducidade para a propositura de tais ações, desde que razoáveis, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à identidade e integridade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, quer do dito filho, quer do suposto progenitor, na base da verdade biológica da procriação paterna, garantidos nos termos dos artigos 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 3, e 36.º, n.º 1, da Constituição da República”; de 5/6/2018, proc. 65/14.8T8FAF.G1.S1 (Helder Roque) “I - A invocação de circunstancialismo superveniente justificativo do alongamento do prazo de propositura da ação de investigação da paternidade, a que alude a previsão do art. 1817.º, n.º 3, b), do CC, a não acontecer no articulado inicial, deve ter lugar, em razão da arguição pelo réu investigado da exceção da caducidade, na contestação, na resposta à exceção da caducidade, cumprindo o autor investigante o ónus da alegação, ainda que a título subsidiário, relativamente à tese da imprescritibilidade da ação, dos factos constitutivos da contra-exceção da caducidade, demonstrando que, apenas, após o decurso do prazo de dez anos sobre a respetiva maioridade, teve conhecimento de factos ou circunstâncias essenciais e decisivas idóneas a desencadear a propositura da acção, isto é, dos factos, subjetivamente, supervenientes, invocados. II - A Reforma de 1977 eliminou o sistema dos pressupostos de admissibilidade da ação de investigação de paternidade que converteu em presunções legais, “tantum iuris”, da relação biológica de paternidade do investigado, não na modalidade de presunção típica, para cuja ilisão é necessária a produção de prova em contrário, mas de presunção atípica, com a especificidade de que para a sua ilisão basta a contraprova tendente a criar no espírito do julgador “dúvidas sérias” sobre a paternidade, colocando, assim, a fasquia da força probatória das presunções formuladas no n.º 1, do art. 1871.º, do CC, um pouco acima da altura própria das meras presunções de facto. III - A tutela da segurança jurídica está colocada num patamar superior ao do direito do filho conhecer as suas origens ou, dito de outro modo, este direito fica condicionado pelo decurso do prazo do seu exercício, situado num quadro ajustado, razoável e proporcional. IV - O argumento do envelhecimento ou perecimento das provas, utilizado em favor da manutenção do prazo de caducidade, no que respeita à investigação da paternidade, não se afigura convincente no sentido da limitação do direito de investigar para garantir o êxito da prova, pois que se esta se vai tornando mais difícil com o decorrer do tempo, é o próprio investigante retardatário quem mais suporta as desvantagens do incumprimento mais retardado desse ónus. V - A consagração do primado da verdade biológica, consubstanciado na possibilidade do recurso a exames de sangue e outros métodos científicos, mormente, através de perfis de ADN, tendo em vista a determinação da filiação, como meios de prova predominantes, que não têm qualquer validade temporal, mantendo a verdade inalterável, por mais anos que passem, e podendo até ser obtidos depois da morte do suposto pai, está a coberto do receio do risco do “envelhecimento” das provas. VI - Sendo a limitação voluntária dos direitos de personalidade, quando legal, sempre revogável, a simples inércia ou passividade, durante certo período temporal, em instaurar uma ação de investigação de paternidade, não deve, por maioria de razão, inutilizar a legitimidade para o fazer quando, de acordo com o critério subjetivo atual do próprio e o princípio da auto-responsabilidade das partes, tal corresponde a uma faculdade, eminentemente, pessoal na investigação da identidade do seu progenitor, como elemento da sua identidade pessoal. VII - A valia do fundamento “caça-fortunas” atenua-se no confronto com o instituto da ação de petição da herança, de natureza imprescritível, revelando a tolerância do direito civil perante uma reivindicação tardia de bens, sem outros prazos que não sejam os que estão previstos para a usucapião. VIII - O direito fundamental à identidade pessoal, na perspetiva do conhecimento das origens genéticas, que inclui o estabelecimento ou reconhecimento dos laços de filiação, não é um direito absoluto, já que pode ser condicionado, atendendo a outros direitos e interesses, legalmente, admissíveis, como acontece com a previsão de prazos de caducidade para a propositura de ações de investigação de maternidade ou paternidade. IX - Apesar de o sistema jurídico nacional ser de génese, essencialmente, biologista, não aderiu, integralmente, ao princípio da verdade biológica, em detrimento de outros valores ou princípios, constitucional ou ordinariamente, protegidos, pois ainda hoje são admitidos prazos de caducidade, mantendo importância os princípios da segurança e certeza jurídica, respeitantes ao comércio jurídico em geral, que exigem a estabilização das relações de filiação já estabelecidas, porventura, não correspondentes à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo, razão pela qual as ações de investigação não estão previstas na lei como imprescritíveis, impondo-se aos interessados o ónus de agirem, rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes. X - A exigência de um prazo limite para a instauração de uma ação de reconhecimento judicial da paternidade, desde que não se torne impeditivo do seu uso, ou represente um ónus exagerado, em termos probatórios, para as partes, não é, só por si, violador dos direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo e razoável equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspeto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima, em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima, ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas. Xl - As limitações temporais ao exercício do direito potestativo de investigação da paternidade, previstas no art. 1817.º, n.os 1, 2 e 3, do CC, são compatíveis com os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, bem como com os princípios da CEDH, satisfazendo as exigências que decorrem do direito ao estabelecimento do vínculo da filiação, por um lado, que se integra, no âmbito dos «direitos, liberdades e garantias pessoais), face ao disposto pelos arts. 26.º e 36.º, e do direito à segurança e estabilização das relações jurídicas, por outro, incluído no quadro dos «princípios fundamentais», atento o preceituado pelo art. 2.º, ambos da CRP. XII - O juízo de constitucionalidade sobre os prazos de caducidade das ações de filiação professado pelo TC não revela uma tutela “absolutizada” e universal do entendimento do princípio da identidade pessoal, circunscrevendo-se à situação especial do estabelecimento da paternidade, sem repercussão noutras áreas em que estejam presentes interesses a valorar que não se oponham ao conhecimento da paternidade biológica. XIII - A preponderância assumida, em veste constitucional, respaldada nas exigências provenientes da jurisprudência do TEDH, pelos valores da segurança e estabilidade das relações jurídicas, no confronto ponderado e proporcional com os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, decorrentes do direito ao estabelecimento do vínculo da filiação, determina que se adote a construção da constitucionalidade do prazo de caducidade do direito de ação de investigação da paternidade”; de 3/10/2017 , proc. 737/13.4TBMDL.G1.S1 (Pinto de Almeida) “1.Tem sido reconhecida a conformidade constitucional do regime previsto no art. 1817º do CC (na redacção introduzida pela Lei 14/2009, de 1/4) respeitante aos prazos de caducidade da acção de investigação de paternidade; quer da sujeição dessa acção a prazos de caducidade, quer dos prazos concretamente fixados na lei para esse efeito. 2. No nº 3 prevê-se um prazo especial de três anos para a propositura da acção, depois de já ter expirado o prazo regra de 10 anos fixado no nº 1; tem por objecto situações que, pela sua particularidade, justificam objectivamente a investigação com vista ao estabelecimento da paternidade. 3. Esse prazo de três anos não funciona propriamente como contra excepção da caducidade, face ao decurso do prazo regra previsto no nº 1; não diz respeito, nem estende ou prorroga este prazo, sendo autónomo dele, constituindo antes um prazo especial que depende de certos pressupostos próprios. 4. Nesse caso, ao autor incumbe demonstrar a existência do facto ou circunstância que justifica a investigação; ao réu, por seu turno, compete provar que o autor teve conhecimento desse facto ou circunstância há mais de três anos, antes da propositura da acção”, estes acessíveis in dgsi.net.
10. J. P. Remédio Marques, Idem, pág 167
11. V. Declaração de voto de Helena Melo, constante do referido Ac. Rel.. Guimarães de 18/10/2018, Proc. 503/18.0T8VNF.G1 -Votei vencida o acórdão que antecede pelas razões que melhor desenvolvo no Ac. proferido no processo 4785/16.4T8GMR.G1, de 16.11.2017, por mim relatado, acessível em dsgi.pt e que ,em síntese, são as seguintes: Não tendo o legislador limitado temporalmente a impugnação da maternidade (artº 1807º do CC) e a impugnação de perfilhação (artº 1859º nº 2 do CC), não se entende a limitação do direito à investigação da maternidade/paternidade e à impugnação da paternidade presumida. Como se salienta no acórdão do STJ de 16.09.2014, o prazo para interpor a ação é inferior ao prazo geral de 20 anos, previsto no artº 309º do CC, sendo mais fácil reclamar um direito patrimonial que um direito de personalidade. Demonstrativo do reconhecimento cada vez maior do direito ao conhecimento das origens na construção e desenvolvimento da personalidade humana, proporcionando ao indivíduo o acesso a relevantes factores no complexo processo de identificação e afirmação individual, é a possibilidade consagrada no actual Regime Jurídico do Processo de Adopção que vem permitir ao adotado o direito de aceder ao conhecimento das suas origens, nos termos e com os limites definidos no diploma que regula o processo de adoção (artº 6º do RJPA, aprovado pela Lei 143/2015, de 8 de Setembro). Tendo presente os meios científicos hoje ao nosso alcance que permitem o estabelecimento da paternidade/maternidade com um elevadíssimo grau de certeza (de 99,99%), e pelas demais razões supra expostas, o prazo previsto para a impugnação e investigação da paternidade é inconstitucional por constituir uma restrição injustificada do direito ao conhecimento das origens genéticas (artºs 18.º, n.ºs 2 e 3, 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, da CRP). Consequentemente, não obstante os doutos argumentos expandidos no acórdão que se subscreve, que refere de modo pormenorizado, com recurso a jurisprudência pertinente, a controvérsia existente, não vislumbramos razões para alterar a posição”. v. ainda declarações de voto do referido Ac. da Rel. Porto de 10/5/2018, processo 6554/15.0T8MAI.P1 de Carlos Portela, acompanhada por José Manuel Araújo de Barros “Voto a favor da decisão proferida no acórdão, tendo por base o segmento da mesma na qual se funda a revogação da sentença recorrida e a absolvição do Réu na figura do abuso de direito. Já quanto à procedência da excepção peremptória da caducidade do direito à acção por parte do Autor, mantenho a posição que venho assumindo em vários acórdãos, nomeadamente no acórdão desta Relação datado de 9 de Outubro de 2014 e proferido no processo nº956/10.5TBSTS-D.P1, cujos fundamentos aqui dou por reproduzidos.
12. Cfr: Acs. do STJ: de 27/5/2014, Proc. 165/13, Sumários, 2014, pág. 332, onde se decidiu “O art. 1817º, nº1, do CC, na redação emergente da Lei nº 14/2009, de ¼, ao estabelecer o prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade (ou emancipação) do investigante para a propositura da ação de investigação de paternidade (cf. art. 1873º, do CC) é inconstitucional, por violação dos arts 18º, nº2 e 3, 26º, nº1 e 36º, nº1, da CRP”; - de 5/5/2015, Proc. 932/13, Sumários, Maio/2015, p. 13., onde se escreve: “I. Pese embora o TC já tenha decidido, desde o Ac. nº 401/11, de 22-09-2011, e em vários arestos que lhe seguiram, julgar não inconstitucional a norma do art. 1817º, nº1, do CC, na redação da Lei nº 14/2009, de ¼, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade , por força do art. 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, faz jurisprudência claramente maioritária no STJ o entendimento inverso, isto é, que aquele novo prazo é igualmente inconstitucional, fundamentado na inserção do estabelecimento da paternidade no acervo de direitos pessoalíssimos, como seja, o direito à identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, considerando tal prazo curto e desproporcionado face aos interesses em jogo. II. Não obstante se perfilhe o entendimento desta jurisprudência maioritária, face à orientação jurisprudêncial definida no citado Ac. nº 401/11, afigura-se quixotesco e inútil reafirmar tal posição – que não será acolhida em recurso de constitucionalidade – pelo que, verificando-se ultrapassado o prazo de dez anos à data da instauração da ação, é de julgar verificada a excepção perentória da caducidade do direito, com a consequente absolvição os Réus do pedido”, citados in Abílio Neto, pág 1470 e seg e de 31/1/2017, proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1 “I. A ação de investigação de paternidade tem como escopo a atribuição jurídica da paternidade do filho ao progenitor biológico deste, pelo que o facto de onde emerge tal direito é a procriação biológica/geração, constituindo tal facto jurídico procriador (relação sexual fecundante) a respetiva causa petendi. II. Tal facto jurídico pode lograr prova, quer diretamente, enquanto prova da procriação / filiação biológica (via biológica), quer indiretamente, através do uso de alguma das presunções legais (da relação biológica) de paternidade previstas no nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, desde que não ilididas, nos termos do nº 2 do mesmo normativo (via presuntiva), podendo tais vias ser invocadas cumulativamente (como sucede no caso dos autos). III. Na presente ação de investigação de paternidade, enquanto ação fundada na presunção de paternidade estabelecida na alínea a) do nº 1 do no artigo 1871º do Código Civil, à A. cabe provar os factos-base de tal presunção, em concreto, a posse de estado, a qual é integrada, conjunta e cumulativamente, por três elementos: (i) a reputação como filho pelo pretenso pai (nomen); (ii) o tratamento como filho pelo pretenso pai (tractatus); e (iii) a reputação como filho do pretenso pai pelo público (fama).IV. A norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código Civil)”, in dgsi.net.
13. Ac. do STJ de 6/9/2011 (Gabriel Catarino), proc. 1167/10.5TBPTL.S1 (…) ainda os Acórdãos do STJ, de 27/1/2011 (Bettencourt Faria, de 15/11/2011 (Martins de Sousa) e de 24/05/2012 (Granja da Fonseca), todos em www.dgsi.pt
14. Acórdãos do STJ, de 14/12/2006 (Ferreira Girão), proc. nº 06B4154, idem de 31/1/2007 (Borges Soeiro), proc. nº 06A4303, ibidem, de 23/10/2007 (Mário Cruz), proc. nº 07A2736, ibidem , de 17/4/2008, ibidem , de 3/7/2008 (Pires da Rosa), proc. nº 07B3451 – todos consultáveis em www.dgsi.pt
15. Acs de 29/11/2012 (Tavares de Paiva), proc. nº 367/10.2TBCBC-A.G1.S1(…), de 19/06/2014 (Pires da Rosa), proc. nº 146/08.7TBSAT.C1.S1 (…) de 15/5/2014 (Maria dos Prazeres Beleza), proc. nº 3444/11.9TBTVD.L1.S1 (…) de 18/02/2015 (Fonseca Ramos), proc. nº 4293/10.7TBSTS.P1.S1
16. J.P. Remédio Marques, Idem, pág 168
17. Cfr. referido Ac. TC 488/2018 de 4 Out. 2018, Processo 471/2017 (Maria Clara Sottomayor), in dgsi.net, onde se analisa“o Acórdão n.º 401/2011 assenta num juízo de ponderação que deve ser revisto pelo Tribunal Constitucional, pois sobrevaloriza excessivamente as razões de segurança jurídica, atribuindo-lhes um peso que elas constitucionalmente não têm. No juízo de ponderação a efetuar acerca da proporcionalidade da restrição dos direitos fundamentais sacrificados pela norma questionada, deve ter-se em conta a natureza pessoalíssima dos direitos restringidos pelo prazo de caducidade, bem como interesses de ordem pública que exigem, para evitar a possibilidade de relações de consanguinidade e para permitir a observância do sistema de impedimentos matrimoniais, o estabelecimento das relações de filiação de todos os cidadãos. Isto mesmo reconheceu o Acórdão n.º 401/2011: «Mas, já num plano geral, não é possível ignorar que a constituição e a determinação integral do vínculo de filiação, abrangendo ambos os progenitores, corresponde a um interesse de ordem pública, a um relevante princípio de organização jurídico-social. O dar eficácia jurídica ao vínculo genético da filiação, propiciando a localização perfeita do sujeito na zona mais nuclear do sistema das relações de parentesco, não se repercute apenas na relação pai-filho, tendo projecções externas a essa relação (v.g. em tema de impedimentos matrimoniais). É do interesse da ordem jurídica que o estado pessoal de alguém não esteja amputado desse dado essencial. Daí, além do mais, a consagração da averiguação oficiosa de paternidade (artigos 1864.º e seguintes). E importa que esse objectivo seja alcançado o mais rápido possível, numa fase ainda precoce da vida do filho, evitando-se um prolongamento injustificado de uma situação de indefinição na constituição jurídica da relação de filiação. É do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade e jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos». À luz destes princípios, e procedendo a novas ponderações valorativas, vão ser reanalisados os argumentos do Acórdão n.º 401/2011: o argumento caça fortunas; o argumento da segurança jurídica, na dupla vertente objetiva e subjetiva; os argumentos da vida privada do pretenso pai e da proteção da paz familiar. 15. Os efeitos sucessórios da filiação e o argumento caça-fortunas. Acerca do argumento, propugnado pela tese da caducidade, segundo a qual interposição tardia da ação de investigação da paternidade resulta de um objetivo egoístico e patrimonial do investigante, que apenas procura obter os efeitos sucessórios decorrentes da qualidade de herdeiro legitimário, deve notar-se que a lei não exige comunidade de afetos com o de cujus para que se produzam os efeitos sucessórios. Na verdade, verifica-se ser comum, nas famílias fundadas no casamento, que alguns filhos, que nunca se interessaram pelos seus pais nem os auxiliaram na velhice, venham exigir, após a morte, a sua legítima, tendo os requisitos de indignidade sucessória pressupostos muito apertados que não abrangem estas situações. Por maioria de razão, num contexto em que não foi o filho que se afastou do pretenso pai, mas, pelo contrário, este que recusou assumir o estatuto jurídico de pai, não pode o Tribunal Constitucional, no juízo de ponderação entre valores em conflito, censurar uma eventual busca - impossível de sindicar e que não pode presumir-se - dos efeitos sucessórios da filiação, os únicos de que afinal os filhos poderão beneficiar, dado que durante a sua infância e juventude o seu progenitor não assumiu, em regra, qualquer responsabilidade familiar nem patrimonial. Os alimentos e os efeitos sucessórios são os principais esteios das relações familiares, sobretudo, das relações de filiação. Ora, um filho, que, durante a menoridade, se viu privado, em relação ao investigado, seu pretenso pai, do apoio financeiro e afetivo que os pais costumam proporcionar, resta-lhe apenas a obtenção do seu direito à herança, o qual, mesmo que exercido tardiamente, não se pode considerar abusivo, num contexto legal em que os restantes herdeiros o podem exercer a todo o tempo, nos termos do artigo 2075.º do Código Civil. Por outro lado, a presunção de que o estabelecimento da filiação tem a sua dimensão mais importante durante a menoridade, esquece que existem entre pais e filhos, em todas as fases da vida, deveres mútuos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º do Código Civil) e que esta solidariedade familiar se repercute em deveres de alimentos recíprocos entre pais e filhos adultos, segundo os artigos 1874.º, n.º 2 e 2009.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil (para além dos alimentos devidos a filho maior enquanto este não completar a sua formação profissional, nos termos do artigo 1880.º do Código Civil) e nos efeitos sucessórios da filiação, que constitui, ainda, uma forma de os pais auxiliarem os filhos no plano económico. A propósito dos efeitos sucessórios da filiação e dos juízos de valor feitos em relação aos investigantes que interpõem a ação fora do prazo de caducidade geral, afirma, certeiramente, o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, no voto de vencido aposto ao acórdão 401/2011 (vide também, do mesmo autor, «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», ob. cit., 2018, p. 233-234), o seguinte: «É uma evidência que há toda a vantagem em que o reconhecimento da paternidade se verifique na fase mais precoce possível da vida do filho, para assim este poder beneficiar, em pleno e em todas as dimensões, do desempenho da responsabilidade parental. Mas retirar daí um argumento a favor da perda da possibilidade de saber quem é o pai, decorrido certo prazo após a maioridade, não só é excessivo, como se nos afigura insustentável, à luz dos valores consagrados na Constituição de 1976. Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afectos - coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar - implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar susceptível de ser juridicamente reconhecida. Faz parte do estatuto de filho a titularidade de direitos patrimoniais, o direito a alimentos e o direito a herdar, na qualidade de herdeiro legitimário. Pela natureza das coisas, a aquisição desse estatuto, por parte dos filhos nascidos fora de matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição, através do reconhecimento judicial, não deve ser indevidamente obstaculizada, a pretexto de que o que move o interessado são pretensões de ordem patrimonial - pretensões inteiramente legítimas, no caso de ele ser filho. A peremptória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) não actua só depois de constituída a relação, projecta-se também na fase anterior, vedando que sejam postos entraves injustificados a dar tradução jurídica (com os direitos, todos os direitos, inerentes) ao vínculo biológico de filiação. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente. Para além de todas as considerações de carácter sociológico, quanto às mudanças operadas na estrutura e repartição dos bens de fortuna, que tornam menos convincente o argumento, é, pois, descabido e constitucionalmente claudicante fazer decorrer de eventuais motivações patrimoniais uma razão bastante para precludir a aquisição do estado pessoal que é condição de satisfação desse interesse.(...) A efectiva vivência familiar, com a constituição de laços pessoais, não é, de acordo com o regime sucessório, condição de titularidade e de exercício dos direitos dos herdeiros legitimários. Tanto assim que os filhos gerados em matrimónio, e salvas as situações extremas justificativas de deserdação, não deixam de herdar, mesmo que não tenham chegado a estabelecer, ou tenham perdido, qualquer ligação pessoal com o progenitor, ou mesmo que essa ligação tenha um cunho litigioso. Não se compreende, neste contexto, que a procura, pelo pretenso filho, de um efeito legal, que decorre apenas, sem mais, do vínculo jurídico de filiação, seja considerado uma causa indigna da constituição desse vínculo, unicamente porque já não é possível dar realidade prática aos efeitos pessoais que dele também promanam - o que frequentemente só aconteceu, diga-se de passagem, porque o pai se furtou (ou, pelo menos, não diligenciou) a assumir, no passado, a responsabilidade decorrente do acto de procriação. Tal significaria uma disparidade de tratamento do nascido fora do casamento, sobrecarregando desvantajosamente a situação em que, por força dessa condição de nascimento, ele está já está naturalmente colocado». Por outro lado, os efeitos sucessórios perderam a eficácia económica que tinham nas sociedades pré-industriais, em que o bem imóvel era o tipo mais significativo de riqueza, sendo predominante, hoje, a riqueza que se constitui graças ao rendimento do trabalho e que, por falta de controlo adequado, se transmite à margem do Direito das Sucessões (cf. Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, AAFDL, Lisboa, 2011, pp. 42-43).16. A segurança jurídica do investigado e dos seus herdeiros. São invocadas, por último, contra os direitos fundamentais do filho investigante, razões de certeza e de segurança jurídica, que, merecendo tutela constitucional, demandariam um fim ao prolongamento da indefinição quanto ao estabelecimento do vínculo de filiação. A segurança jurídica pode ser analisada como uma segurança subjetiva, reportada à situação de incerteza ou de indefinição em que se força o investigado a viver, ilimitadamente sujeito à instauração da ação de investigação, ou como uma segurança patrimonial, que abrange a tutela da herança dos herdeiros do investigado. Sobre a questão desta dupla dimensão da segurança jurídica já se pronunciou o Acórdão n.º 23/2006, em relação ao prazo de caducidade de dois anos após a maioridade, com considerações igualmente aplicáveis ao caso sub judice: «Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde logo, deixar de observar-se que, se o que está em questão é realmente a incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar teste genético de paternidade. Não deve sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia de "segurança jurídica", que releva sobretudo no âmbito patrimonial. Note se que a ordem jurídica não mostra uma preocupação absoluta com a segurança patrimonial dos herdeiros reconhecidos do progenitor, podendo qualquer herdeiro preterido intentar acção de "petição da herança", a todo o tempo, com sacrifício de quem tiver recebido os bens (artigo 2075.º do Código Civil). E, de qualquer modo, pode duvidar-se de que o pretenso progenitor mereça uma protecção da segurança da sua vida patrimonial que justifique a regra de exclusão do direito do investigante, logo a partir dos vinte anos e sem consideração de outras circunstâncias, a saber que é o seu pai. É que não pode conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial de outros filhos, ou do pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da personalidade, a saber quem é o pai ou a mãe biológicos. Na verdade, afigura-se que a pretensão de satisfazer, através do sacrifício do direito do filho a saber quem é o pai, um puro interesse na tranquilidade - em "ser deixado em paz" - ou na eliminação rápida de dúvidas - em resolver o assunto - não é digna de tutela, se se tratar realmente do progenitor. Este tem uma responsabilidade para com o filho que não deve pretender extinguir pelo decurso do tempo, logo que aquele completa 20 anos, pela simples invocação de razões de segurança, confiança ou comodidade». Estes argumentos, embora reportados ao prazo de dois anos após a maioridade, são transponíveis para analisar a questão da legitimidade constitucional da fixação de um prazo de caducidade pelo legislador ordinário. É que o aumento da duração do prazo de dois para dez anos não é de molde a que deixe de importar a hierarquia constitucional entre os direitos de natureza pessoalíssima do investigante, que devem receber a primazia no juízo de ponderação, e os direitos patrimoniais do investigado e dos seus herdeiros, de natureza secundária, nem implica qualquer atenuação do peso que tem a responsabilidade do pretenso pai em relação ao seu filho biológico, que nunca perfilhou, sobre a eventual incerteza ou indefinição do estatuto pessoal e patrimonial daquele. A este propósito, afirma o Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro, no seu voto de vencido, que, «em face do dever de assumir a condição jurídica de pai, se existir o correspondente vínculo de sangue - o que, justamente, a ação permitirá certificar -, a eventual confiança do progenitor em que o seu estado pessoal já não sofrerá alterações advenientes de um ato "enterrado" num passado longínquo não merece tutela». Em relação à segurança patrimonial afirma, no mesmo sentido do Acórdão n.º 23/2006, que, «De todo o modo, a tutela de um interesse de segurança na estabilidade patrimonial não pode sobrepor-se à tutela do interesse no preenchimento completo dos dados de identificação pessoal, levando ao sacrifício total e definitivo de um bem eminentemente constitutivo da personalidade de um sujeito nascido fora do casamento». A estas considerações acresce que o princípio da segurança jurídica não aparece autonomamente enunciado na Constituição, sendo antes inferido do princípio do Estado de direito democrático, por referência ao Estado legislador e produtor de normas (artigo 2.º da CRP). Como se afirma no voto de vencido acima citado, a propósito do princípio da segurança jurídica (e é reiterado no texto publicado na RLJ: «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», 2018, p. 229): «Dado este étimo fundante, a aplicação dessa ideia regulativa, algo abstracta e indeterminada, pressupõe, no plano constitucional, a possibilidade de estabelecimento de uma qualquer conexão de sentido entre exigências de segurança jurídica e os parâmetros valorativos contidos no princípio do Estado de direito democrático. E tudo aconselha a aplicação cauta dessa ideia, sobretudo quando, como no caso, ela não é invocada como princípio objectivo, mas como fundamento de tutela de uma posição subjectivada, e fora do seu "habitat" natural, que é o das relações patrimoniais. Até ao presente acórdão, o Tribunal Constitucional tem seguido, com rigor, esta linha orientativa. Não é por acaso que a esmagadora maioria das decisões, nesta matéria, têm a ver com questões de estabilidade ou determinabilidade normativas. É a continuidade da ordem jurídica, ou a sua formulação em termos seguramente perceptíveis pelos destinatários, que está em causa. Ou então, como nos acórdãos referentes à garantia da hipoteca, afectada pelos regimes de privilégios creditórios ou do direito de retenção, é a teleologia funcional de um instituto jurídico - a hipoteca - que resulta obstaculizada por outras soluções normativamente estabelecidas. Em qualquer destas hipóteses, o que temos é uma situação juridicamente tutelada posta em cheque por prescrições jurídicas, nomeadamente as introduzidas por alterações legislativas. Há afectação da segurança jurídica (justificada ou não, essa é outra questão) por parte do Estado-legislador, o Estado produtor de normas. O elo de ligação com os valores próprios do Estado de direito democrático está à vista. É de um cariz completamente diferente a situação dos autos. O que aqui se nos depara é uma situação de facto (a permanência no tempo de uma situação de facto), a que, por uma única razão de segurança jurídica, é conferida força bastante para eliminar a possibilidade de exercício de uma faculdade que se reconhece pertencer ao núcleo essencial de um direito situado no cerne da tutela constitucional da personalidade - o direito à identidade pessoal. Sendo que o acórdão assume como válida a ideia, já constante do meu projecto, de que o direito pessoal sacrificado surge reforçado pela correspondência com um interesse de ordem pública. Por mais esforço que empreguemos, não é fácil descortinar a conexão da tutela conferida a essa situação de facto com exigências do princípio do Estado de direito democrático, em que o princípio da segurança jurídica se aloja». A segurança jurídica está, assim, ligada à tutela de interesses patrimoniais, que, quando em conflito com direitos fundamentais pessoais ou de personalidade, devem ceder, por força da primazia da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos de personalidade. Os direitos familiares pessoais como o direito ao estabelecimento da filiação assumem não só uma natureza jusfundamental, como têm sido «despatrimonializados», no sentido em que o direito da filiação, relacionado tradicionalmente com a transmissão do património das famílias dentro do casamento e com a defesa da integridade desse património, está hoje ligado, por excelência, ao estatuto pessoal e à identificação da pessoa com o seu «eu». Retirando peso à segurança jurídica do investigado e dos seus herdeiros, afirma Guilherme de Oliveira (Estabelecimento da Filiação, ob. cit., 2017, p. 153): «Receio que se tenha dado um valor imerecido à garantia de "segurança jurídica", nesta matéria. Creio que esta garantia tem sentido principalmente no âmbito patrimonial de onde emergiu, afinal, todo o direito civil. De facto, compreende-se a necessidade de definir até que momento é possível formular uma pretensão com implicações económicas para os indivíduos ou para as empresas - até que momento há o risco de se ter de restituir um bem adquirido, uma soma pecuniária recebida, até que momento se pode ser onerado com o dever de indemnizar um lesado ou um grupo de consumidores. Os eventuais onerados precisam, de um ponto de vista da sua organização patrimonial, de saber a partir de que momento é que podem confiar na propriedade do bem adquirido, na disponibilidade de uma soma em dinheiro, ou a partir de que momento é que já não precisam de estar financeiramente prevenidos para proceder a um pagamento, ou orçamentar uma despesa de indemnização. Tanto a vida patrimonial dos indivíduos como a vida comercial das empresas precisam desta segurança. Mas será que o suposto progenitor merece também esta segurança - a segurança de não ser incomodado a partir de uma certa idade do filho? A segurança de não ser declarado pai, em qualquer momento, merece os mesmos cuidados por parte do sistema jurídico? De duas uma: se o suposto progenitor julga que é o progenitor, está nas suas mãos acabar com a insegurança - perfilhando - e se tem dúvidas pode mesmo promover a realização de testes científicos que as dissipem; se, pelo contrário, não tem a consciência de poder ser declarado como progenitor, não sente a própria insegurança. E se for um dia surpreendido pelas consequências de um "acidente" passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre o dever de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar dele». A segurança jurídica do investigado e da sua família foi um argumento hipervalorizado pelo Acórdão n.º 401/2011, e que não tem, face à hierarquia de valores fixada na Constituição, peso suficiente para prevalecer sobre os direitos fundamentais, pessoalíssimos, do investigado, nem sobre os interesses de ordem pública relacionados com o estabelecimento da filiação. 17. O pretenso ónus de diligência e o carácter pessoal da decisão de intentar a acção. A jurisprudência do Tribunal Constitucional também já entendeu que a decisão de interpor ação de investigação e a escolha do momento para o fazer é uma «faculdade eminentemente pessoal, em que apenas pode imperar o critério do próprio filho, e não qualquer "interpretação externa" do seu interesse ou utilidade deste na investigação da paternidade» (Acórdão n.º 23/2006, reiterando a orientação do Acórdão n.º 486/2004). Como assinala o Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro no seu voto de vencido «A isso há a acrescentar que este critério pode ser mutável, em correspondência com a variação no tempo dos quadros relacionais e situacionais que podem influenciar uma tomada de decisão, tal como são subjetivamente sentidos e interpretados pelo pretenso filho». A imposição ao investigado de um ónus de diligência, por cujo incumprimento deve ser sancionado ou assumir as consequências, dentro de uma lógica de auto-responsabilidade, contende com a liberdade do investigante na formulação de um juízo de caráter pessoalíssimo e que pode sofrer mutações ao longo da vida, decorrentes dos contextos de vida que o filho atravessa, da evolução da sua sensibilidade e opinião, bem como do facto de ter ele próprio constituído família e de ter de ponderar, na sua decisão, os interesses dos seus descendentes. Como afirma o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, no seu voto de vencido (e também no artigo publicado na RLJ: «A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade», 2018, pp. 222-223), a pessoa humana é um «ser em devir», «estando a possibilidade de autoconformação, a todo o momento, da sua esfera de vida e da personalidade própria absolutamente coberta pelo direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). Este direito importa a faculdade de formação e de expressão da vontade daquilo que se é ou se quer ser, no presente, sem constrições limitativas decorrentes da vivência passada. Nesta matéria, tratando-se de bens atinentes ao núcleo da personalidade, uma atitude pretérita não deve prevalecer sobre a vontade atual, por respeito àquele direito fundamental. Nem mesmo quando há uma vinculação negocialmente assumida a uma forma de conduta que contenda agora (no momento do cumprimento) com a auto-apresentação do obrigado. É isso mesmo que justifica que a limitação voluntária dos direitos de personalidade, quando legal, seja sempre revogável (artigo 81.º, n.º 2, do Código Civil). Por maioria de razão, a simples inércia ou passividade, durante certo período temporal, em tomar a iniciativa de investigação de paternidade não deve ser destrutiva da legitimidade para o fazer quando, no critério atual do próprio, tal corresponde ao seu interesse na constituição plena da sua identidade pessoal. Tanto mais que o querer exercer, apenas numa fase mais tardia da vida, um direito de investigação que anteriormente foi negligenciado não é suscetível de censura por uma valoração externa, segundo padrões de conduta normalizada, tão complexa e singularizada é a teia de determinantes da decisão e forte a carga emocional que, muitas vezes, a caracteriza. Sem esquecer, no mesmo sentido, que a afirmação desse interesse, numa fase etária mais avançada, pode ser legitimamente influenciada pela consideração (só então possível) do interesse de outros (e, eventualmente, por pressão destes), igualmente afetados pelo desconhecimento da ascendência do investigante (os seus descendentes, muito em particular)». 18. Os argumentos do direito à privacidade e à paz familiar. O Estado de Direito democrático, em prol da defesa da responsabilidade dos pais pelos filhos que fazem vir ao mundo e da igualdade entre todos os cidadãos, acabou com o privilégio concedido aos homens de não reconhecerem os filhos nascidos fora do casamento, tendo estes, após a Reforma de 1977, o dever jurídico de perfilhar, e os filhos o correspondente direito a serem perfilhados (Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, Coimbra, 2017, p. 107), prosseguindo o Estado com a averiguação oficiosa da paternidade na hipótese de a criança não ser perfilhada dentro de dois anos após o seu nascimento. O direito do filho a conhecer e a ver reconhecidos juridicamente aspetos tão determinantes na formação da individualidade deve afastar qualquer pretensão do progenitor no sentido da não assunção do papel de pai, a qual, ainda que apresente conexão com uma eventual tutela da sua própria individualidade, não pode ser colocada no mesmo plano (cf. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das origens Genéticas, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 208). Note-se que, não existe «um direito a não ser juridicamente reconhecido como pai», mas apenas um interesse ligado à segurança jurídica do investigado e à proteção da paz e intimidade da sua família, os quais, quando em conflito com o direito fundamental do filho a conhecer as suas origens e a ver estabelecida a sua filiação, não têm força jusfundamental para prevalecer sobre os direitos, pessoalíssimos, do filho. Deve considerar-se, assim, à luz dos direitos fundamentais à identidade e à historicidade pessoal, que «o âmbito de proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar não tutela o eventual interesse do progenitor, que participou num relacionamento biológico e afetivo de consequências reprodutivas, em não assumir a responsabilidade jurídica desse ato» (cf. Rafael Vale e Reis, O Direito ao Conhecimento das Origens...ob. cit., pp. 207-208). É que, na cultura social e jurídica atual, o Estado responsabiliza, pelo bem-estar da criança nascida, em primeiro lugar, os progenitores biológicos, e tem um interesse de ordem pública, como já foi afirmado, em que estes vínculos biológicos adquiram a devida relevância jurídica no domínio do direito da filiação e do estado da pessoa, mesmo para além da maioridade dos filhos”.
18. Acórdão 488/2018 de 4 Out. 2018, Processo 471/2017 (Relatora Maria Clara Sottomayor), in dgsi.net
19. Diogo Leite de Campos e Mónica Martinez de Campos, Lições de Direito da Família, 4ª Edição Revista e Actualizada, 2018, Almedina, pág 370
20. Ibidem, pág. 370
21. “Vinca-se, assim, uma clara opção de preferência por um estabelecimento da filiação tributário da verdade biológica, cientificamente comprovada, que faça coincidir o estatuto jurídico do filho com a realidade do correspondente vínculo de derivação biológico. A esta opção preside o intuito de ultrapassar, na medida do possível, as habituais vias alternativas à (desejada) prova directa, cientificamente estabelecida, do referido vínculo, a saber: as vias decorrentes da prova indirecta, cientificamente estabelecida, do referido vínculo, a saber: as vias decorrentes da prova indirecta consubstanciada no recurso às presunções legais de paternidade, previstas nas cinco alíneas do nº1 do artigo 1871º do CC (Ac. TRC, 23-06-2009, proc. 1000/06.2TBCNT.C1, in www.dgsi.pt. Nota-se um movimento científico e social em direção ao conhecimento das origens, com desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, que têm acentuado a importância dos vínculos biológicos (…). O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos , mesmo para os casos de reprodução assistida …”
22. Ibidem, pág 370-371
23. Ibidem, pág 395
24. Ana Prata (Coord), Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág 722
25. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume II, tomo I, 2006, pg. 68, 88, 133, 140 e 190.