Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4262/07.4TBVCT.G1
Nº Convencional: JTRG000
Relator: PEREIRA DA ROCHA
Descritores: CADUCIDADE
MORTE
INQUILINO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
NRAU
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
1 – Por o litigado contrato de arrendamento de parte de prédio urbano para habitação haver sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Dec. Lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, e por o primitivo arrendatário haver falecido na vigência do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Maio, é aplicável o regime de transmissão por morte do locatário previsto nas normas transitórias do art.º 57.º desta Lei.
2 – O arrendamento não se transmitiu à Ré, por esta apenas haver alegado e provado ter nascido em 3/2/1974, ser filha do primitivo inquilino e ter vivido com ele, no locado, em economia comum, desde o seu nascimento, ininterruptamente, faltando-lhe alegar e provar que era portadora de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%.
3 – Não ocorrendo transmissão do contrato de arrendamento por morte do arrendatário, a morte deste constitui causa legal da caducidade automática desse contrato e da consequente obrigação de restituição do locado ao senhorio após o decurso de seis meses sobre a data da morte do locatário.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

Nestes autos de recurso de apelação, é recorrente [A] e são recorridos [B] e seu cônjuge [C].

O recurso vem interposto da sentença proferida, em 23/10/2008, pelo 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, na acção declarativa sumária n.º 4262/07.4TBVCT, instaurada pelos Recorridos contra a Recorrente, com pedido reconvencional desta contra aqueles, que, julgando a acção parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional, decidiu condenar a Ré a reconhecer que os Autores são os proprietários do prédio descrito no ponto 1 dos factos provados e a entregá-lo livre de pessoas e coisas e, ainda, no pagamento de uma indemnização, pela ocupação do imóvel, de € 70,00 por mês, desde que caducou o contrato de arrendamento (15/5/07) até à entrega efectiva do mesmo (devendo ser efectuada a devida compensação das quantias depositas pela Ré na Caixa Geral de Depósitos, a título de pagamento de rendas), com custas por Autores e Ré, na proporção de 10% e 90%, respectivamente.

Os Autores pediram a declaração da caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do art. 1051º, d) do CC e a condenação da Ré a entregar-lhes o imóvel, livre e devoluto, e na condenação da indemnização de €400,00 mensais pela utilização do imóvel desde que findou o contrato até à data em que lho restituam.

Em reconvenção, a Ré pedira a declaração de que o contrato de arrendamento se lhe transmitiu por morte do locatário e a condenação dos Autores a pagar-lhe a indemnização de € 2.500,00, a título de benfeitorias realizadas pelo locatário e por ela no locado, pedido de indemnização este de que desistiu em audiência de julgamento.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

A Apelante extraiu das suas alegações as subsequentes conclusões:
1. O pai da recorrente faleceu em 15.05.07;
2. O mesmo, como primitivo arrendatário, tinha tomado de arrendamento o R/C desse imóvel em 01.09.87, contrato esse que se prorrogava necessariamente por períodos de um ano.
3. A recorrente nos termos expostos nos autos comunicou aos AA. a morte do seu pai e que lhe sucederia no direito a esse arrendamento.
4. A Ré que nasceu em 03.02.74, tendo por isso mais de trinta anos de idade, sempre viveu nessa casa, desde que nasceu, em economia comum com o seu pai.
5. Desde a morte deste, continuou a lá viver, pagando a renda legal.
6. Nos termos da lei, nomeadamente do disposto no art. 1055° aI. d) do C.C., esse contrato não caducou.
7. Transmitiu-se à Ré por morte do seu pai.
8. O NRAU e o RAU e antes deste o art. 1111° do C.C. e actual 1106° do C.C. estabeleceu a transmissão por morte do arrendamento urbano para a habitação, neste caso do pai para esta filha.
9. A Ré é filha do primitivo arrendatário e sempre viveu com ele, durante mais de trinta anos em economia comum no locado.
10. Tanto aplicando-se as normas antigas do C.C. e actuais supracitadas como o RAU ou o NRAU, este contrato habitacional transmitiu-se por morte de seu pai à Ré, e por isso não caducou.
11. Ao decidir em contrário, salvo o devido respeito a Meritíssima Juíza da Primeira Instância violou as normas do C.C. e do RAU e NRAU, aplicáveis a este caso, por erro de aplicação e interpretação, nomeadamente o art. 1111 ° (antigo) do C.C. e actual 1106° do mesmo Código, bem como o disposto no NRAU Titulo II e Capitulo II, e o RAU, DL. 312-B/90 de 15 de Outubro, DL. 257/95 de 30 de Setembro.
12. Violou também o disposto no art. 57° do NRAU por erro de aplicação e interpretação.
13. Para suceder ao seu pai no direito a este arrendamento bastará à Ré demonstrar a factualidade contida na douta decisão recorrida.
14. Ao decidir em contrário a Meritíssima Juíza da 1.ª Instância violou todas as normas aplicáveis do Regime do Arrendamento Urbano (o RAU) e do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) cujos conteúdos se dão aqui por integralmente reproduzidos.
15. Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso e, por via disso, deve proferir-se decisão que altere a decisão recorrida no sentido de se declarar que o direito ao arrendamento dos autos não caducou por morte do pai da Ré e que se transmitiu a esta em consequência dessa morte, devendo por isso ser declarada inquilina dos recorridos.

Os Apelados contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Atentas as conclusões da Apelante, que fixam e delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir consistem em saber se, face aos factos provados, ocorreu a transmissão para a Ré do contrato de arrendamento, por óbito do locatário, e se, em consequência, deveria ter procedido o atinente pedido reconvencional e improcedido a acção.

II – Fundamentação

A) – A sentença recorrida julgou provados os subsequentes factos, que não vêm impugnados:
1. Os autores são proprietários do prédio urbano, sito na Praça ......., freguesia de Monserrate, em Viana do Castelo, inscrito na respectiva matriz com o art. 528º e descrito na CRP de Viana do Castelo com o nº 130/271086 Monserrate.
2. Os autores, por contrato escrito, deram de arrendamento ao pai da ré, [D], viúvo, em 1 de Setembro de 1987, para habitação, que tomou de arrendamento, o rés-do-chão, com sete divisões e cinco vãos, com área de 67,80 m2, do imóvel identificado no ponto 1, pelo prazo de um ano, com início naquela data e mediante a renda mensal de 5.510$00, actualmente fixada em € 69,15.
3. O local do pagamento, adiantadamente, é o do domicílio do senhorio ou local e a quem este indicar, no primeiro dia útil do mês a que diga respeito.
4. O titular do direito de arrendamento, pai da ré, faleceu no dia 15 de Maio de 2007.
5. Por carta enviada ao autor a 13 de Junho de 2007, a ré comunicou que em virtude do falecimento de seu pai e por viver e residir em economia comum requeria a transmissão daquele arrendamento.
6. Ao que o autor respondeu por carta enviada à ré, e que esta recebeu, conforme documento de fls. 25 que aqui se dá por reproduzido.
7. A ré continua a ocupar com os seus bens o imóvel e a residir no mesmo.
8. No mercado de arrendamento actual, o locado tem um valor de renda de € 70,00 mensais.
9. Desde o seu nascimento, em 3/2/74, até à morte de seu pai, de forma contínua e ininterrupta, que a ré sempre viveu com o falecido arrendatário em economia comum, sendo ainda hoje solteira, continuando a viver no arrendado.
10. A partir da morte de seu pai, a ré continuou a pagar a renda aos autores, através de depósito na Caixa Geral de Depósitos.

B) – Análise e solução das questões

O contrato de arrendamento em litígio foi outorgado em 1 de Setembro de 1987, pelo prazo renovável de um ano, teve por objecto mediato parte de um prédio urbano e destinava-se a habitação do arrendatário.

Como o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90 de 15/10, entrou em vigor em 15 de Novembro de 1990, trata-se de um contrato de arrendamento celebrado antes da vigência do RAU.

A transmissão, por morte do inquilino, do contrato de arrendamento em litígio é regida pelo Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Maio, nomeadamente pelas normas transitórias previstas no Capítulo II do Título II para os contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, em virtude do NRAU ter entrado em vigor em 28 de Junho de 2006, ser aplicável, por força do disposto no seu art.º 59.º, n.º 1, aos contratos de arrendamento subsistentes nesta data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, ter revogado, através do seu art.º 60.º, n.º 1, expressamente, o RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90 de 15/10, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias referidas nos art.ºs 26.º e 28.º do NRAU, e por nestes artigos do NRAU se prever, expressamente, o regime de transmissão, por morte do inquilino, dos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU e na vigência deste.

Assim sendo e como o primitivo inquilino, pai da Apelante, faleceu em 15 de Maio de 2007, por conseguinte na vigência do NRAU, a transmissão do contrato de arrendamento em litígio, por morte do inquilino, rege-se pelas disposições transitórias conjugadas dos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 57.º, n.ºs 1 a 4, do NRAU.

Provou-se que a Ré: nasceu em 3/2/1974; é filha do primitivo inquilino, falecido em 15/05/2007, no estado de viúvo; viveu, desde o seu nascimento, ininterruptamente, com o seu pai, no locado e em economia comum; é solteira; continua a viver no arrendado; por carta de 13/06/2007, comunicou aos AA. haver-se transmitido para ela a posição de inquilino no contrato de arrendamento em litígio, devido a viver em economia comum com o inquilino, seu pai, e devido ao falecimento deste.

Mais se provou que os AA. não aceitaram esta transmissão, o que comunicaram à Ré por carta e que esta recebeu.

Estes comprovados factos, à luz das supracitadas normas transitórias do NRAU, são insuficientes para a transmissão para a Ré da posição de inquilino no contrato de arrendamento em litígio.

Na verdade, atento o disposto no art.º 57.º, n.º 1, alíneas a) a e), do NRAU, para que o contrato de arrendamento em litígio se transmitisse para a Ré, por óbito do primitivo inquilino, seu pai, era necessário que a Ré, além dos comprovados factos de ser filha do falecido primitivo inquilino e da convivência com ele no locado há mais de um ano, alegasse e provasse ainda que era portadora de deficiência com um grau de incapacidade superior a 60%.´

E, não se tendo transmitido o contrato de arrendamento por morte do primitivo inquilino, e não havendo convenção escrita das partes em contrário, por força do disposto na alínea d) do art.º 1051.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 6/2006 de 27/02, o litigado contrato de arrendamento para habitação caducou, em 15/05/2007, data do falecimento do inquilino, por a caducidade constituir causa legal de extinção imediata do contrato de arrendamento e operar ipso jure ou ope legis e, por conseguinte, extinguir o contrato de arrendamento sem necessidade de qualquer declaração das partes ou do tribunal nesse sentido.

Estatui o art.º 1053.º, na redacção da Lei n.º 6/2006 de 27/02, que, em qualquer dos casos de caducidade previstos nas alíneas b) e seguintes do art.º 1051.º, a restituição do prédio, tratando-se de arrendamento, só pode ser exigida passados seis meses sobre a verificação do facto que determina a caducidade.

Como no caso em apreço a caducidade do contrato de arrendamento por falecimento do locatário ocorreu em 15/05/2007 e, portanto, há mais de seis meses, a Ré pode ser condenada na restituição imediata do locado, como vem decidido pela sentença recorrida.

III – Decisão
Pelo exposto decidimos julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantemos a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 4 de Maio de 2010.