Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1528/14.0PBRG.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) A agravante constante do nº 2 do artº 152º, do Código Penal espelha a intenção do legislador de estender a tutela penal a pessoas de maior vulnerabilidade perante o perigo de se tornarem vítimas "indirectas" dos maus tratos, inicialmente dirigidos a outras pessoas
II) No quadro situacional típico de violência doméstica, justifica-se a censura acrescida de quem se desinteressa, além de tudo o mais, pelo risco de a sua conduta afectar a saúde, a personalidade e o bem estar de uma criança ou de um adolescente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Por sentença proferida após a realização da audiência de julgamento, o tribunal singular da Instância Local e Comarca de Braga condenou o arguido José F. como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido no artº 152º, nº 1, al. a) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de tempo, subordinada à condição de pagar à ofendida, no prazo de um ano após o trânsito, a indemnização em que vai condenado (€5.310,00).

Na parcial procedência do pedido de indemnização civil, foi o arguido-demandado condenado no pagamento à demandante Alda M. da quantia total de cinco mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento, a título de indemnização por danos não patrimoniais; e a quantia de trezentos e dez euros, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, desde a data da notificação do pedido até integral pagamento.

O arguido interpôs recurso pugnando pela revogação da sentença e consequente absolvição do cometimento do crime de violência doméstica por que vem condenado. Da motivação, o recorrente extraiu as seguintes conclusões (transcrição):

“1º - O presente recurso é interposto da matéria de facto e de direito (artº412º do C.P.P)

2º - Tendo em conta as provas produzidas nos autos, consubstanciada nos documentos escritos, nas declarações prestadas pelo arguido e pela assistente e os depoimentos de todas as testemunhas, transcritos e em anexo sob documento nº1, com indicação na motivação, não poderia ter sido dado como provados os factos elencados nos números 3º; 5º a 22º; 25º a 31º; 34º a 48º da douta sentença;

3º - Sem qualquer fundamento, ou suporte na prova produzida, limitando-se a sentença a reproduzir, palavra por palavra, o constante na acusação pública e o Pedido de Indemnização Civil;

4º - Face à matéria de facto produzida em sede de audiência de julgamento e sua conjugação com a documentada nos autos, aqueles mesmos factos (3º; 5º a 22º; 25º a 31º; 34º a 48º) da acusação pública e do PIC deveriam ter sido considerados como NÃO PROVADOS, já que está demonstrado nos autos a forma diferente da actuação concreta por parte do arguido;

5º - Face à matéria de facto produzida em sede de audiência de julgamento e sua conjugação com a documentada nos autos resulta clara contradição com a douta decisão em crise;

6º - Existe, ainda, contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova a determinar decisão diversa da recorrida, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 410º, nº2 als. b) e c) e 412º, nº3 als. A) e b) do Cód.Proc.Penal que assim foram violadas. São estes os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e cuja prova, pelo seu reexame, impõe decisão diversa da recorrida – artº 412º, nº3 als. A) e b) do CPP -;

7º - Resulta da motivação que o tribunal a quo não deu igual tratamento e valorização às declarações proferidas pelo arguido e pela assistente; não deu igual tratamento e valorização aos depoimentos das testemunhas de acusação e do PIC e as testemunhas de defesa.

8º - Na douta sentença e o do confronto com a prova produzida – declarações e depoimentos – resulta a não observação das regras da imparcialidade;

9º - Da análise da prova produzida perpassa a desvalorização das declarações do arguido e dos depoimento das testemunhas de defesa sem qualquer fundamento válido e objectivo dessa desvalorização;

10º - Não resulta da motivação expressa pela Meretíssima Sra Juiz a quo que na fixação da matéria de facto assente tenha sido feito uso dos critérios de razoabilidade e bom senso e regras da experiência comum, os quais, na plenitude da sua aplicabilidade conduzem-nos a conclusão contrária e distinta da expressa na douta sentença, permitindo a devida contextualização dos factos e o apuro da verdade, com alteração da matéria de facto nos termos preconizados.

11º A convicção do Tribunal a quo formou-se com base em erro manifesto, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum, sendo evidente os princípios contraditórios em que ela alicerçou a decisão, não logrando formar uma convicção de certeza;

12º A douta sentença em crise ainda padece da violação das regras da experiência e acolhe a extrapolação de presunções indevidas.

13º O arguido não praticou o crime previsto e punível pelo Artigo 152º, nº1, al. a) e nº2 do Código Penal.

14º - Conforme o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 08/07/2015, em que é Relator o Senhor Desembargador José Carreto, in www.dgsi.pt, cujo sumário, com a devida vénia, transcrevemos:

O crime de Violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que, no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando retroativamente, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de “regime.”

15º - Na procedência das conclusões anteriores, terá forçosamente o arguido de ser absolvido.

16º - Decidida a condenação do arguido ainda não está preenchido o requisito do nº2 do Art.152º do Código Penal, atenta a não presença do filho do G. e a tenra idade do filho A., este com 2 meses e 14 dias à data da ocorrência do último facto assente na douta sentença.

17º - O valor da indemnização por danos não patrimoniais afere-se através do recurso ao critério da equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e as demais circunstâncias do caso que a justifiquem nos termos do disposto nos artºs 494º e 496º do Código Civil.

18º - O arguido não praticou qualquer facto ilícito de onde possa decorrer a obrigação de indemnização a que foi condenado;

19º - o valor da indemnização pelo dano não patrimonial fixada pela douta sentença mostra-se totalmente desajustado e desconforme com a aplicada em casos idênticos, que tem vindo a ser fixada em valores que variam entre 750,00€ e 1.000,00€;

20º - No uso do juízo de equidade que deve presidir à sua fixação deverá aquele valor indemniza-tório ser reduzido, para valor não superior a 1.000,00€, sempre na esteira da aplicação daquele princípio.

21º - A douta decisão em crise violou os seguintes preceitos jurídicos: Código Penal: artigo 152, nº1, al.a) e nº2 Código de Processo Penal: artº410º.”

A assistente Alda M. apresentou resposta, concluindo que o recurso deve improceder.

O Ministério Público, por intermédio do magistrado na Instância Local de Braga, formulou igualmente resposta, concluindo que o recurso não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, aqui representado pelo procurador-geral adjunto, emitiu fundamentado parecer no sentido da total improcedência do recurso do arguido.

Não houve resposta ao parecer. Recolhidos os vistos e realizada a conferência na primeira data disponível cumpre apreciar e decidir.

2. O objecto do recurso e o poder de cognição deste tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

As questões a apreciar são as seguintes:

a) Vícios decisórios de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova;

b) Enquadramento jurídico-penal;

c) Valor da indemnização cível.

3. Para fundamentação da presente decisão, torna-se necessário transcrever parcialmente a sentença recorrida.

O tribunal judicial de primeira instância julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição) :

“1. O arguido José F. e a assistente Alda M. casaram um com o outro, no dia 15/02/2002, com convenção antenupcial, no regime de separação de bens.

2. O casal tem dois filhos, G. e A., nascidos em 18/03/2006 e 27/05/2014 respectivamente.

3. No mês de Julho de 2014, o arguido e a ofendida separaram-se.

4. Desde que casaram até à data da respectiva separação, o arguido e a ofendida residiram na habitação, sita na Rua N…, concelho de Braga.

5. Desde data não concretamente apurada, mas, logo após terem contraído casamento e enquanto viveram juntos, o arguido sujeitou a ofendida ao seu controlo de movimentos, desde logo controlando as suas saídas e o seu horário e local de trabalho, restringindo os seus contactos com terceiros, pondo em causa a paternidade dos dois filhos de ambos, iniciando discussões sem qualquer razão aparente.

6. Assim, nesse período, desde data não apurada, o arguido impunha à ofendida a obrigação de efectuar uma chamada telefónica para o arguido, a fim de assinalar a sua saída do trabalho, e, caso a mesma não o fizesse, iniciava, à sua chegada a casa, uma discussão.

7. Acresce que, caso por algum motivo, a ofendida trabalhasse para além da sua hora habitual de saída, o arguido telefonava para o seu posto de trabalho, perguntando se a mesma ainda se encontrava a trabalhar, com vista a confirmar a explicação por aquela apresentada.

8. Sempre que a ofendida se ausentava da casa de morada de família e demorava mais do que o habitual, o arguido contactava-a para o seu telemóvel, exigindo, com foros de seriedade, a sua localização e o motivo do seu atraso.

9. Em 2010, o arguido passou a desconfiar que o primeiro filho do casal (G.) não era seu filho, disse à ofendida que a criança não era dele, humilhando-a, tendo realizado o respectivo teste de paternidade, o qual confirmou ser o pai.

10. Em data não concretamente apurada, mas no início do ano de 2010, o arguido, após ter iniciado, sem motivo aparente, uma discussão com a ofendida e na sequência disso, a ofendida saiu de casa, acompanhada do filho G..

11. Contudo, nesse mesmo ano, o casal acabou por se reconciliar, voltando ambos a residir na habitação indicada.

12. Em dia não concretamente apurado, mas durante o verão de 2013, no restaurante “…”, em Braga, a ofendida sugeriu ao arguido procurar um apoio para o casal, a fim de melhorar a relação, o que provocou a fúria do arguido, o qual, de imediato, lhe disse, com foros de seriedade: “dou-te dois estalos”.

13. A referida situação agravou-se, em 19/10/2013, dia em que o arguido teve conhecimento de que a ofendida estava novamente grávida.

14. Com efeito, nesse mesmo dia, o arguido exigiu, em voz alta, que a ofendida abortasse, sob pena de pôr fim ao casamento.

15. Perante a recusa da ofendida, o arguido iniciou, desde essa data e até à efectiva separação do casal, com uma frequência quase diária, discussões com a ofendida, sem qualquer razão aparente, durante as quais lhe dizia, entre o mais e em voz alta: “esse filho não é meu”, “tiveste esse filho para conseguir mais dinheiro”, “tu não prestas”; epitetando-a de: “interesseira”, “falsa”, “mentirosa, sanguessuga”, proibindo-a, ainda, de receber na residência indicada, os seus familiares, provocando-lhe, consequentemente, tristeza, mágoa, e depressão, fazendo-a sentir-se humilhada.

16. No dia 29/12/2013, quando a ofendida, encontrando-se grávida de três meses de gestação (do menor A.), chegou à residência do casal, supra indicada, acompanhada pela sua irmã Sílvia M., o arguido, furioso com a presença da referida familiar, ao passar pela ofendida nas escadas, deu-lhe um encontrão, fazendo com que a mesma batesse com o seu corpo contra a parede, ausentando-se, de seguida, para parte incerta.

17. Contudo, nesse dia, a ofendida contactou, telefonicamente, o arguido, pedindo-lhe para regressar a casa, tendo o mesmo respondido, em voz alta e com foros de seriedade: “a casa é minha”, “volto para casa quando quiser”, “estás proibida de levar para casa quem quer que seja”.

18. Em dia não concretamente apurado do mês de Janeiro de 2014, porque a ofendida, após uma consulta de obstetrícia, havia jantado, nesse dia, com a sua irmã e, por esse motivo, apenas regressando a casa pelas 23h00, o arguido fechou o seu quarto à chave, impedindo, deste modo, o acesso ao quarto de banho privativo, ao mesmo tempo que lhe dizia, aos gritos: “tivesses vindo a horas para lavar os dentes”, sendo que, quando, após insistência da ofendida, este lhe abriu a porta, e já no referido quarto de banho, aproximou-se da sua mulher, até chegar a alguns centímetros de distância da mesma, dizendo-lhe, repetidamente e aos gritos: “põe-te daqui para fora”.

19. No dia 18/05/2014, pelas 02h00, quando a ofendida estava grávida de quase 9 (nove) meses, o arguido, porque aquela tinha deslocado um armário do quarto que o arguido ocupava e aí colocado as roupas destinadas ao futuro filho A., entrou no quarto onde a mesma estava, gritando, repetidamente: “a casa é minha, não tens nada que mexer nas minhas coisas, isto é tudo meu”, e, acto contínuo, retirou do referido armário todas as roupas de bebé, atirando-as para o chão.

20. Os gritos do arguido acordaram o filho G., o qual, com medo, perguntou à ofendida o que se estava a passar.

21. No dia 30/05/2014 (corrigindo-se lapso evidente e manifesto da acusação, no que concerne ao ali referenciado ano de 2015) - dia em que a ofendida regressou a casa, após o nascimento do filho A. - quando o arguido chegou a casa, constatando que a ofendida tinha ligado a caldeira para aquecer a casa, iniciou, de imediato, uma discussão, exigindo explicação pelo sucedido, apenas cessando a mesma no momento em que se apercebeu da presença da irmã da ofendida Sílvia D..

22. No dia 12/07/2014, pelas 21h00, o arguido, após ter iniciado, sem qualquer motivo aparente, uma discussão, dirigiu-se à ofendida, a qual tinha ao colo o filho A., dizendo-lhe, em voz alta: “ainda vamos ver se esse filho é meu”, “sempre te portaste mal”, “falsa”, “nunca me respeitaste e não foi só com um homem”, “És uma interesseira, falsa, mentirosa, sanguessuga, tiveste o segundo filho apenas para conseguir dinheiro”, “o A. não é meu filho”, e, no momento em que a ofendida tentou baixar o som da televisão, agarrou-lhe, de imediato e com força, o braço, puxando-a para trás, impedindo-a de atingir esse seu intento, dizendo-lhe: “estou na minha casa e quero ver o futebol sossegado”.

23. No dia 10/08/2014, pelas 17h30, quando o casal já se encontrava separado, a ofendida regressou, juntamente com o filho A. (corrigindo-se pacífico lapso da acusação quanto à referência ao filho G.) à residência indicada, com vista a retirar da mesma os seu bens pessoais, não conseguindo entrar na habitação, uma vez que o arguido havia trocado o código de abertura do portão de acesso à propriedade, bem como as fechaduras de acesso à residência.

24. Após ter tocado à campainha e informado o arguido da finalidade da sua presença, o arguido disse-lhe, pelo intercomunicador, que a mesma nada tinha naquela casa, sendo que, só após insistência da ofendida é que o arguido abriu a porta de acesso principal.

25. A ofendida pediu ao arguido para também lhe abrir a porta da garagem uma vez que tinha o filho A. no carro, a chorar com fome, ao que aquele lhe respondeu: “quero lá saber disso”, acabando, contudo, e após insistência da ofendida, por aceder ao seu pedido.

26. Já no interior da habitação, enquanto a ofendida amamentava o filho A., o arguido dirigiu-se à sua mulher, dizendo-lhe, aos gritos: “a casa é minha, só cá podes vir quando eu quiser e puder”, pelo que receosa que algo de mal lhe pudesse acontecer a si ou ao seu filho A. - tanto mais que o arguido não reconhece o A. como seu filho, tendo, inclusive, intentado uma acção de impugnação de paternidade, que corre seus termos na Instância Central de Braga – 1.ª Secção de Família e Menores – J1, sob o n.º 2403/14.4T8BRG - a ofendida abandonou novamente aquela habitação, com os bens pessoais que dela pode retirar.

27. A maioria dos episódios a que se alude ocorreram no interior da residência comum do casal (com excepção do ocorrido no restaurante “…”), e na presença de, pelo menos, um dos filhos menores.

28. Em consequência directa e necessária dos factos descritos em 29/12/2013 e 12/07/2014, a ofendida sofreu dor física nas zonas atingidas.

29. Em razão do comportamento assumido pelo arguido, para além das agressões físicas que sofreu, a ofendida Alda P. sentiu-se profundamente vexada, humilhada e condicionada na sua actuação, o que a afectou e afecta, ainda, o seu equilíbrio emocional, iniciando uma profunda depressão que lhe exigem acompanhamento médico, que ainda se mantém.

30. Ao actuar de modo descrito, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar, provocar receio e infligir sofrimento psíquico e físico em Alda P., bem como condicionar a sua liberdade de actuação, pese embora não ignorasse que devia à vítima dos seus actos, na qualidade de sua mulher e mãe dos seus filhos, particular respeito e consideração.

31. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

(Do PIC)

32. À data do casamento, o arguido tinha 45 anos e a ofendida 25 anos de idade.

33. O casal fixou residência na casa adquirida pelo demandado antes do casamento.

34. Em Janeiro de 2010, o arguido efectuou um teste de ADN ao filho G., adquirido on-line, cujo resultado confirmou a paternidade do demandado relativamente ao referido menor.

35. Não obstante, por se tratar de um resultado não fiável, no dia 23/01/2014, o arguido sujeitou o filho G., então com oito anos de idade, a perícia genética, sem o conhecimento da demandante, confirmando a paternidade daquele menor.

36. Desde o anúncio da segunda gravidez, tendo a demandante recusado interromper a gravidez, até à separação do casal, o demandado causou, com os comportamentos supra descritos, um ambiente de agressividade e humilhação à demandante, nomeadamente na presença do filho menor e de familiares da demandante, causando-lhe fortes sentimentos de tristeza, insegurança, mágoa e humilhação.

37. O que perturbou a sua segurança, tranquilidade e auto-estima.

38. As dores sentidas pela demandante em razão das agressões descritas, estando a gerar um filho, o medo, a humilhação, a tristeza e o desgosto, afectaram o equilíbrio emocional da demandante, provocando-lhe profunda depressão.

39. Como consequência dos maus-tratos psicológicos infligidos pelo demandado apurados nos autos, a demandante teve e tem necessidade de receber acompanhamento psicológico e psiquiátrico.

40. Em Novembro de 2014, em consulta psiquiátrica pela primeira vez, a demandante apresentava episódio depressivo major reativo a situação vivencial, num quadro clínico pautado por tristeza vital, marcada labilidade afectiva, sentimentos de menos-valia, desesperança, apatia e anedonia.

41. A situação vivencial da dúvida da parentalidade dos filhos funciona como um factor precipitante e perpetuador do quadro clínico depressivo.

42. Em Novembro de 2014 foi proposta medicação antidepressiva, o que apenas foi concretizado em Abril, pelo facto de a demandante estar, até então, a amamentar o filho mais novo, A..

43. A demandante é considerada pessoa correcta, discreta e educada.

44. Em consequência da conduta do arguido tornou-se uma pessoa mais introvertida, triste e angustiada.

45. Em consultas de psiquiatria e psicologia na Clínica de S. José Vila Nova de Famalicão, a demandante despendeu a quantia de €310,00.

46. Tais consultas eram efectuadas em Vila Nova de Famalicão, por aí se encontrar a família da demandante, que tomam conta dos seus filhos, enquanto a mesma frequenta as consultas.

47. A demandante mantém a necessidade de ser seguida, por tempo indeterminado, em consultas de psiquiatria e fazer sessões de psicoterapia.

48. O filho mais velho G., encontra-se também a ser seguido por uma psicóloga e uma pedopsiquiatra na sobredita clínica.

Das condições socioeconómicas do arguido (relatório social)

49. José P. é natural de …, …., onde se contextualizou o seu processo de desenvolvimento junto dos pais e de quatro irmãos. O seu processo educativo decorreu em meio económico e cultural modesto, mas apoiado segundo expressa, nomeadamente, por ter sido acolhido e apoiado pela irmã mais velha, professora em …, cidade onde o arguido se habilitou com o 11º ano e realizou o serviço cívico estudantil após Abril de 1974.

50. Não obstante desde jovem ter trabalhado durante dois períodos de férias escolares na apanha do tabaco no Canadá, iniciou-se profissionalmente, a vender livros de porta em porta, situação laboral que manteve cerca de 4 anos. Na procura de melhores condições profissionais e económicas, empregou-se numa empresa de representação da “…” e decorridos dois anos, em 1992 estabeleceu-se em sociedade com um irmão e um amigo, com a empresa …., Ldª, na …, a qual tem actualmente quatro empregados, sendo o arguido o principal gestor e sócio-gerente.

51. Após dois anos de namoro, aos quarenta e cinco anos de idade, casou com a ofendida, vinte anos mais nova, licenciada em …, funcionária…, e na constância do casamento nasceram dois filhos.

52. Após o matrimónio celebrado em Fevereiro de 2002, o qual não obteve a aprovação de toda a sua família, manteve-se a residir em casa própria, por ele adquirida em 1997, com boas condições de habitabilidade e conforto, na morada constante dos autos.

53. Com o decorrer do tempo de conjugalidade, o relacionamento conjugal passou a ser marcado por dificuldades relacionais, coroados de desconfianças por parte do arguido, com episódios de maior tensão, de ciúmes e acusações mútuas, conflitualidade que se agravou nos últimos cinco anos. Neste contexto, o arguido terá manifestado dificuldades de gestão de sentimentos, reagindo de forma exaltada, por vezes imediata, e com frequentes críticas e exigências à mulher, nomeadamente pondo em causa a paternidade dos filhos.

54. O arguido refere uma separação conjugal temporária, de Janeiro a Março de 2010, período em que solicitaram o divórcio, processo que entretanto terá sido arquivado.

55. O casal retomou o matrimónio, regressando a ofendida e os filhos à casa morada de família, tentativa de reconciliação que se veio a revelar infrutífera, devido ao agudizar da dinâmica relacional e que levou o casal à separação definitiva em Julho de 2014.

56. Tendo por referência o período dos factos que desencadearam o presente processo, o arguido residia com Alda P., e com os dois filhos do casal, actualmente com 10 e 1 ano de idade.

57. Socialmente o arguido é referenciado por um percurso regular, sendo descrito como uma pessoa de bom relacionamento interpessoal, com adequadas interacções com os trabalhadores e com os clientes da sua empresa, assim como com os amigos e conhecidos com quem convive, sendo referenciado como trabalhador e empreendedor.

58. A existência do presente processo é vivenciada actualmente por José P., com alguma apreensão, não obstante, revelar uma opinião positiva de si próprio.

59. Atenta a problemática criminal em causa, em abstracto, o arguido é capaz de formular juízos de censura, e revela consciência da ilicitude e dos potenciais danos que causam.

60. Em contexto de entrevista José P. assume um discurso que denota conhecimento sobre a gravidade da situação jurídico-penal, e sobre as razões que estão na origem do presente processo.

61. Apresenta um discurso de externalização da responsabilidade no comportamento de terceiros, não se expressando adequadamente em relação à ofendida.

62. O arguido nega a autoria de qualquer ato de violência, física ou psicológica para com a ofendida, apresentando um discurso de vitimização assente nas desconfianças sobre os comportamentos da cônjuge/ofendida, nomeadamente, sobre a paternidade do filho mais novo.

63. No meio social de residência o arguido é referenciado pela sua postura integrada, não tendo o processo suscitado repercussão na comunidade.

64. José P. revela sentimentos de desconfiança e necessidade de ascendência sobre a ofendida, de idade significativamente inferior, condicionalismos que poderão ter condicionado a sua percepção da realidade, a sua comunicação e dificuldades de negociação no âmbito das relações familiares mais próximas, continuando o arguido a manifestar um pensamento tenaz e com reduzida permeabilidade para a mudança.

65. O arguido embora formule em abstracto um juízo de censura perante a problemática criminal, bem como consciência da gravidade dos potenciais danos nas vítimas, apresenta alguns pensamentos autocentrados, legitimadores de desresponsabilização ao imputar os conflitos em determinadas situações da conjugalidade ao comportamento da ofendida.

66. O arguido não possui antecedentes criminais.”

Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto consta o seguinte: (transcrição):

“O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida, designadamente:

Nos documentos existentes nos autos, a saber:

- Certidão de casamento de fls 6, 126-127;

- Certidões de nascimento (fls 85-86-87);

- Documentos de fls 92-94;

- Certidão judicial de fls 95 a 120 – Procº 2403/14.1T8BRG, da Inst. Central de Braga 1ª Sec. F. Men. J1).

- Documentos de fls 236-257, 263, 264, 337-346 (sentença proferida no âmbito do procº 224/14.3TMBRG da Inst. Central de Braga, 1ª Sec. F. Men.-J2).

- Certificado de registo criminal de fls 312;

- Relatório social de fls 384-386.

- O arguido prestou declarações negando a prática dos factos que lhe são imputados, assumindo um discurso vitimizante e exacerbado, afirmando-se “prisioneiro dentro da sua própria casa”, facto que sucessivamente fez questão de realçar. Admite porém todos os episódios descritos (com excepção do ocorrido no restaurante “…”), dando-lhes contudo uma versão diversa e distinta da acusação, banalizando e desvalorizando a sua relevância, que manifestamente não interiorizou até ao momento. Diz nomeadamente que relativamente às chamadas telefónicas (que não negou existirem), tal era prática do casal, “ela dava de um toque, por iniciativa dela, de vez em quando”. Procura justificar as suas desconfianças de infidelidade conjugal, que reiterou de forma tenaz em audiência, basicamente em dois episódios, sinceramente desconcertantes, firmando a partir daí uma convicção obsessiva e pueril, de que o menor A. não é seu filho (apesar de até ao momento o ser, pelo menos juridicamente, facto que, como tal se deu como provado). Diz que, em 2010, a ofendida lhe pediu para tentar retirar uma nódoa que estava no assento do veículo que esta usava, nódoa essa que, na versão do arguido, era sémen (e não do declarante). Como se não bastasse, diz que, uma vez em … , quando passeava com a ofendida de carro, ao passar por um grupo de pessoas do sexo masculino, uma delas lhe disse, de viva voz, “ela não é só tua”, pretendendo demonstrar, por via destes dois episódios, a infidelidade conjugal da esposa, num relato já de si inconsistente, admitindo porém ter-lhe dito que “tiveste esse filho para conseguires mais dinheiro”. Admite o episódio da cómoda, que procurou compensar com a aquisição no dia seguinte com outro móvel para o efeito (facto que a ofendida confirma, mas não infirma o facto praticado); e admite também o episódio da …, dizendo que disponibilizou um meio alternativo para aquecimento do local, do que contudo não há qualquer prova. Admite que proibiu os familiares da ofendida de irem a sua casa, mas “apenas quando a coisa estava quente”. Admite a realização dos testes de paternidade ao filho G. e está firmemente apostado no resultado da acção de investigação de paternidade pendente na instância competente.

- A assistente Alda M., prestou um depoimento exaustivo, sério e pormenorizado, revelando as marcas notórias do passado conjugal vivido com o arguido. Cientes da importância crucial deste depoimento, não obstante o forte desgaste psicológico que o depoimento traduziu na pessoa da ofendida, entendemos que a mesma relatou, de forma cabal, digna e credível, todos os episódios descritos, não resultando dúvidas, quanto à sua verificação e quanto ao seu enquadramento.

- A testemunha Maria M., médica obstetra, que acompanhou a assistente, durante a gravidez de ambos os filhos, aludiu, de forma isenta e credível, ao quadro em que se desenvolveu tal acompanhamento; à gravidez não planeada e até imprevista do menor A. (apenas detectada às 7 semanas); à condição emocional da paciente durante toda a gravidez e à fragilidade física e emocional da assistente neste período, sendo porém firme, desde o início, na vontade de não querer abortar, apesar do quadro familiar que lhe foi relatado e da rejeição parental, segundo a informação, em contexto clínico recolhida.

- A testemunha Olívia M., irmã da ofendida, tem conhecimento do caracter ciumento e autoritário do arguido, pelos especiais cuidados que a ofendida revelava, no seu comportamento em relação ao mesmo; da não aceitação da segunda gravidez, do estado emocional da ofendida; do acompanhamento que a ofendida vem tendo e do apoio que a família, em especial a declarante, lhe prestou, no período em causa nos autos e actualmente. Aludiu ao dia em que acompanhou a ofendida a casa do arguido, para retirar bens pessoais, corroborando o declarado pela ofendida.

- A testemunha Sílvia D., irmã da assistente, assistiu ao episódio do encontrão nas escadas, na forma por esta sustentada; aludiu às pressões que a ofendida teve, designadamente por familiares do próprio arguido, para por termo à gravidez do A.; ao episódio da caldeira, no dia em que a ofendida regressou do Hospital, com o filho A., acompanhada da declarante e do filho G.; a postura do arguido ao chegar a casa, sem qualquer condescendência pelo estado de puerpério da ofendida e pela presença do recém-nascido em casa; das proibições de a família ir lá a casa.

- A testemunha José P. , tem conhecimento, por relato do próprio arguido, das desconfianças do arguido relativamente à paternidade dos menores, do teste de paternidade efectuado ao filho G., reconhecendo, mais recentemente pela proximidade que manteve com a ofendida, a fragilidade e revolta da ofendida, pelas condutas do arguido em causa nos autos.

- A testemunha Alda D. (sobrinha e afilhada da assistente), aludiu, de forma genuína, ao episódio de 12/07/2014, no qual esteve presente, deslocando-se ainda à residência, no domingo seguinte para a ofendida levar bens seus e dos menores. Tem conhecimento do acompanhamento clínico da ofendida e da afectação psicológica que lhe está subjacente.

- José L., funcionário bancário, aludiu às relações profissionais e até de amizade com a ofendida, prestou-se a depor como testemunha, apesar das veladas acusações de relacionamento amoroso com esta, que fez questão de esclarecer, com frontalidade; aludiu ao conhecimento que tem dos constrangimentos profissionais da ofendida; dos telefonemas suspeitos, do local de trabalho, antes de ir para casa e do estado emocional da ofendida por força desse condicionamento.

- A testemunha Maria R., irmã do arguido, prestou um depoimento interessado e toldado pelas suspeições que o irmão/arguido lhe confidenciou e que tem como certas, revelando forte agastamento em relação à ofendida.

- A testemunha Armindo C., irmão do arguido, num relato feroz, ressabiado e totalmente influenciado pelas desconfianças que o arguido lhe relatou como seguras e nas quais acredita, sem que nunca tivesse presenciado qualquer facto, procurou, em vão, sustentar um estado de vitimização do arguido, alegando que o arguido foi totalmente excluído da segunda gravidez, esquecendo porém de indagar se alguém o pôs à margem ou se o arguido é que se pôs à margem, o que porém resultou evidente do próprio depoimento; chegando ao ponto de referir que a ofendida “assaltou” a residência do arguido; que o arguido mudou a chave para que ela não roubasse o resto das coisas; terminando o seu depoimento com uma referência ostensiva e grosseira, relativamente à postura do arguido, em relação ao menor A., dizendo, de forma particularmente chocante, “É evidente que ninguém quer uma coisa que não encomendou”.

- A testemunha Abílio A., com 40 anos de amizade e convívio social e empresarial com o arguido, aludiu às desconfianças do arguido, que este lhe relatou como seguras, procurou abonar a personalidade do mesmo, não o julgando capaz de maltratar a ofendida.

- António C., amigo do arguido, nunca presenciou qualquer atitude menos cordial do arguido relativamente à ofendida, embora não tenha acompanhado a relação conjugal nos últimos tempos, abonou a personalidade do arguido, justificando possíveis comportamentos obsessivos, com a diferença de idade relativamente à ofendida.

Apreciando o conjunto da prova produzida, entendemos que a assistente relatou de forma pormenorizada, sentida e credível os factos acima dados como provados, infirmando a versão do arguido, na parte em que negou os factos que concretamente lhe vêm imputados. Esta versão foi corroborada, na parte possível, dada a natureza e subtileza dos comportamentos apurados, pelos depoimentos conjugados das testemunhas Maria M., Olívia T., Sílvia S., Alda D. e José F. pessoas que depuseram com rigor e de forma insuspeita.

A convicção assim firmada não resultou abalada pelos depoimentos das restantes testemunhas, que nada presenciaram (tudo o que sabem foi transmitido pelo próprio arguido) e as crenças que revelam ter, fundam-se exclusivamente do relato manipulado do próprio arguido.

Com efeito e relativamente às desconfianças, quanto à infidelidade da ofendida e quanto à paternidade dos filhos, nomeadamente do filho G., as explicações do arguido resultam inconsistentes e pueris, não tendo menor cabimento que a própria ofendida, pela reverência e submissão que revelou ter em relação ao arguido, pedisse, ela própria ao arguido para limpar “a mancha do seu pecado” deixada no veículo, muito menos fazendo qualquer sentido que alguém firme tal convicção no episódio fortuito de .. a não ser que se trate de pessoa obsessiva e desconfiada, como de resto ficou evidenciado em audiência e ficou também evidenciado, pelo resultado já obtido quanto à paternidade do menor G. e ficará, por certo estamos em crer, na acção de investigação de paternidade que corre termos relativamente ao menor A..

Por outro lado, a versão do arguido, quanto à sua própria vitimização, pese embora os depoimentos das testemunhas Maria R. e Armindo P., toldados pela forte relação afectiva que mantêm com o arguido e com a atitude ressabiada em relação á ofendida que demonstraram, nada provam, nem demonstram, a não ser a sua própria manipulação do arguido dos factos de que se diz vítima e não actor.

Quanto aos factos não provados, funda-se o tribunal na ausência de prova ou prova bastante quanto aos mesmos.

Diga-se que, relativamente às despesas com o acompanhamento psicológico do menor G., entendemos que tal não decorre directamente da conduta do arguido apreciada nos autos, mas de todo o contexto de ruptura conjugal e afectiva parental. Relativamente às despesas com viagens, embora ocasionadas em contexto de deslocação aos tratamentos, serviram também para proporcionar o convívio da ofendida com os seus familiares, pelo que se entende não existir um forçoso nexo causal relativamente à conduta do arguido em causa nos autos.”

4. Os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal ) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos bem distintos:

Uma primeira forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.

Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: como consta da previsão da norma legal (desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida), o vício decisório apenas pode ser considerado se resultar do teor da sentença, por si só ou conjugado com as regras normais de experiência comum.

Como é sabido, o erro notório na apreciação da prova consiste no facto de se haver dado como provado algo que, evidentemente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Por outro lado, ocorre contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição irredutível entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal.

Salvo melhor entendimento, o recorrente não indica um único fundamento para a verificação dos vícios decisórios das alíneas b ) e c) do n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. a partir do texto da decisão e restringe a argumentação ao que considera ser a ausência de sustentação por errada apreciação e valoração das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas. Deve ser mantida a distinção perante a impugnação da decisão em matéria de facto : como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Rel. Cons. Pires da Graça, proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O erro notório na apreciação da prova, é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação (…).”

Julgar consiste precisamente em “escolher”, “optar” com imparcialidade e isenção. Sabemos que o tribunal não se encontra adstrito a uma desvalorização absoluta do depoimento das pessoas com intervenção directa nos eventos relevantes e interesse directo numa determinada decisão, sejam elas o arguido e as testemunhas que o recorrente indica como de “defesa”, seja a ofendida ou as restantes testemunhas.

Assim, o convencimento da entidade a quem compete julgar depende – como sempre acontece – de uma conjugação de elementos tão díspares como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova.

A motivação da decisão da matéria de facto da sentença, acima transcrita, enuncia de uma forma suficientemente clara os meios probatórios e o raciocínio lógico que estiveram subjacentes na valorização de toda a prova produzida.

Uma vez que o recorrente se limita a afirmar um entendimento próprio a partir da prova gravada e transcrita e porque inexiste desacerto ostensivo ou antinomia relevante no segmento da decisão destinado à enunciação dos factos provados e à motivação da decisão da matéria de facto provada, improcede a arguição dos vícios decisórios.

5. Num plano distinto, este já de “verdadeiro recurso da decisão em matéria de facto”, a análise não se limita ao texto da sentença e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.

Como persistentemente se sublinha, o recurso vem concebido pela lei como remédio jurídico, que se destina a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham (não apenas que “permitam”) uma decisão diferente. Para isso, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova especificados pelo recorrente e que este considera imporem decisão distinta.

Precisamente porque o recurso não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a uma correcção cirúrgica de erros de procedimento ou de julgamento, a lei adjectiva impõe ao recorrente que impugne a decisão proferida em matéria de facto a obrigação de proceder a uma tríplice especificação:

- a especificação dos «concretos pontos de facto», que se traduz necessariamente na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados;

- a especificação das «concretas provas», que só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

- Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em primeira instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.°, n.°2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.° do C.P.P.).

Tendo havido gravação das provas, as referidas especificações têm de ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.° 4 e 6 do artigo 412.° do C.P.P.).

Tal como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2006, Relator Cons. Simas Santos, processo 06P461, sum. in www.dgsi.pt e no entendimento posteriormente retomado no Acórdão também do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 2008, no processo 08P1884, a omissão das indicações e especificações da prova e dos meios de prova não permite convite ao aperfeiçoamento se a omissão se verifica nas motivações e nas conclusões, conduzindo a manifesta inviabilidade do recurso de impugnação da decisão em matéria de facto: Se o recorrente se dirige à Relação limitando-se a indicar alguma prova, com referencia a suportes técnicos, mas na totalidade desses depoimentos e não qualquer segmento dos mesmos, não indica as provas que impõem uma decisão diversa quanto a questão de facto (…), pois o recurso de facto para a Relação (…) é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. 2 - Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação as especificações ordenadas pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, não há lugar ao convite a correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite a correcção das conclusões da motivação Também no entendimento de Albuquerque, Paulo Pinto de in Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª ed. pag. 1121 e 1222 “A especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento (…). Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8 visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo especifico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (…). .

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre este entendimento, sustentando não ser inconstitucional a norma do artigo 412.°, n.° 3, alínea b), e 4, do C.P.P., interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne a matéria de facto, da especificação nele exigida, tem como efeito o não conhecimento dessa matéria sem que haja prévio convite ao aperfeiçoamento (neste sentido, Acórdãos do T.C. n.° 259/2002, 140/2004, 488/2004, 342/2006, decisões sumárias do T.C. 58/2005, 274/2006 e 88/2008, www.tribunalconstitucional.pt ).

Note-se ainda que será sempre irrelevante a mera apreciação genérica ou a transcrição da globalidade dos depoimentos, sempre que não exista a indicação dos excertos relevantes na perspectiva do recorrente e a concretização dos argumentos que na perspectiva de uma entidade imparcial e independente deveriam ter conduzido a uma decisão diferente em matéria de facto.

Na motivação e nas conclusões do recurso, o arguido omitiu completamente a indicação dos segmentos dos depoimentos e declarações que pretende ver reapreciados e expõe os seus argumentos como se o tribunal da relação fosse proceder a um novo julgamento de toda a prova, invocando um conjunto de comentários e apreciações próprias sobre o que “resultou” dos meios probatórios.

Por incumprimento do ónus de especificação, encontra-se inviabilizada a apreciação do recurso sem sede de impugnação da decisão em matéria de facto.

Ainda assim, sempre se dirá o seguinte:

Segundo a nossa apreciação a partir da audição do registo áudio, a assistente Alda M. prestou declarações na audiência de julgamento de uma forma circunstanciada, serena e sincera, narrando o circunstancialismo e todos os incidentes descritos na matéria de facto provada da sentença recorrida, num encadeamento que se nos afigura lógico e, por isso, verosímil.

No caso concreto em apreço, o tribunal valorou a prova e decidiu, para lá de uma dúvida razoável, optando pela conjugação de determinados elementos em detrimento de outros, numa solução perfeitamente plausível. Não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade ou a infracção de regras de experiencia comum, nem elemento de prova que nos imponha uma decisão diferente.

Uma vez atingidos os limites do âmbito de intervenção deste tribunal fixados nas conclusões da motivação de recurso, nada mais há que apreciar e decidir em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, devendo manter-se na íntegra a sentença neste âmbito.

6. Uma valoração conjunta dos factos provados da vida comum e conjugal, evidencia que o arguido, agindo livre e conscientemente, atingiu de uma forma grave o amor-próprio e a dignidade da sua mulher, humilhando-a e perturbando-a física e psiquicamente, causando-lhe reiteradamente vergonha e constrangimento emocional.

Nas motivações do recurso, o arguido sustenta a inaplicabilidade da agravante constante do n.º 2 do artigo 152.º atenta a não presença do filho do G. e a tenra idade do filho A., este com 2 meses e 14 dias à data da ocorrência do último facto assente na douta sentença.

Dispõe a norma em apreço que comete o crime de violência doméstica qualificado por aquele n.º 2 «quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge» «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal» e «se o agente praticar o facto (…) na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima».

Como se escreveu em acórdão subscrito pelo mesmo relator, “a agravação espelha a intenção do legislador de estender a tutela penal a pessoas de maior vulnerabilidade perante o perigo de se tornaram vítimas “indirectas” dos maus tratos, inicialmente dirigidos a outras pessoas, quer em primeiro pelo risco de sofrerem fisicamente de agressão, quer por terem se escutar as palavras

No quadro situacional típico de violência doméstica, justifica-se a censura acrescida de quem se desinteressa, além de tudo o mais, pelo risco de a sua conduta afectar a saúde, a personalidade e o bem-estar de uma criança ou de um adolescente.” (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03-03-2014, proc. 1396/12.7GBBCL.G1, acessível in www.dgsi.pt)

Segundo a matéria de facto provada nestes autos, no dia 18 de Maio de 2014, pelas 2h, os gritos do arguido para com a sua mulher, acordara o filho G. que, com medo perguntou à mãe o que se estava passar, pelo que não se compreende a alegação de que o comportamento do arguido recorrente não era susceptível de afectar indirectamente a criança.

Em circunstâncias normais, uma criança com oito anos de idade percebe a emoção do pai pelo tom da voz, vive a perturbação que a rodeia, muito concretamente quando atinge a mãe. É assim inquestionável que o G. se apercebeu e sofreu, ainda que necessariamente em termos indefinidos, pela violência verbal e física do comportamento do pai, de que a mãe foi vítima.

Sem necessidade de outros considerandos, concluímos que a conduta do arguido preenche a circunstância agravante decorrente de os factos terem sido praticados pelo arguido na presença de menor, justificando-se a punição agravada em consequência do acrescido desvalor da conduta.

Em conclusão, os factos provados revelam que o arguido cometeu, em autoria material, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º nº 1, alínea a) e nº 2, do Código Penal.

7. Em consequência da conduta do arguido-demandado, a demandante sofreu danos de natureza não patrimonial que pela sua gravidade merecem a tutela do direito e justificam a atribuição de indemnização, nos termos do artigo 483º n.º 1 do Código Civil.

Na ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza compensatória, pela atribuição de um montante pecuniário tendente a proporcionar à vítima prazeres ou satisfações que atenuem o dano sofrido, mas também reflecte uma ideia de reprovação ou de punição da conduta do agente, ainda que no plano do direito civil.

Na fixação do quantum dessa indemnização por danos não patrimoniais devem ser observados critérios de equidade, ponderando o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesado e do demandado, os padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência e nas flutuações do valor da moeda (cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, 2ª ed.,Vol. I, Almedina, 1973, 488)

Em todo o caso, a indemnização deve ser adequada e proporcional à gravidade objectiva dos factos, tomando em conta todas as regras de bom senso e da justa medida das realidades da vida. Como tem sido assinalado de forma constante na jurisprudência, a indemnização por danos não patrimoniais, se nunca poderá constituir um enriquecimento sem causa, também não pode ser meramente simbólica ou miserabilista, devendo fixar-se em montante que tendencialmente viabilize o fim a que se destina.

Sopesando em conjunto a natureza e a gravidade dos danos sofridos pela vítima, a capacidade económica do demandado e da demandante e os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações semelhantes, consideramos justo e equitativo o valor da indemnização de cinco mil euros fixado na sentença recorrida pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima, que assim se deve manter.

Termos em que o recurso da demandante não merece provimento.

11. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso e em manter a sentença recorrida

Condena-se o arguido nas custas do recurso, com cinco UC de taxa de justiça (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal e artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

Guimarães, 4 de Abril de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.