Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
52/09.8TBMLG.G1
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
CONTAGEM DOS PRAZOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1- A impugnação da matéria de facto não pode pôr em causa a livre convicção do julgador da 1ª instância, apenas podendo visar manifestos erros de julgamento ou manifestos desvios das regras da experiência comum.
2- O prazo de um ano previsto na alínea a) do artigo 1781º do CC, como fundamento do divórcio, introduzido pela lei 61/2008 de 31/10, aplica-se aos prazos ainda em curso, mas, por força do artigo 297º nº1 do CC, a sua contagem inicia-se desde a entrada em vigor desta lei nova quando, face à lei antiga, faltaria mais tempo para perfazer a totalidade do prazo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO.

J… intentou, em Abril de 2009, a presente acção de divórcio litigioso contra M… alegando, em síntese, que casou com a ré no dia 7 de Agosto de 1994, existindo dois filhos nascidos deste casamento, ainda menores e cujo exercício do poder paternal está judicialmente regulado e tendo a ré abandonado o lar conjugal em 12 de Março de 2008 acompanhada dos filhos do casal, data a partir da qual, ininterruptamente, não existem contactos entre os cônjuges, a não ser para tratar de assuntos relacionados com o poder paternal dos filhos, pelo que se verifica uma ruptura da vida em comum entre ambos e, pelo menos por parte do autor, o firme e irreversível propósito de não restabelecer a vida em comunhão.
Concluiu, pedindo que seja decretado o divórcio, com o fundamento na separação de facto superior a um ano, ao abrigo do artigo 1781º, alínea a) do CC.
Realizada a tentativa de conciliação, não foi possível a reconciliação, nem a conversão para divórcio por mútuo consentimento.
Veio então a ré contestar alegando, em síntese, que nunca abandonou o lar conjugal, pois, acompanhada dos filhos e de comum acordo com o autor, apenas foi passar uns tempos em casa da sua mãe, sendo certo que o autor, embora mantendo uma relação com outra mulher, sempre foi contactando regularmente a ré, alimentando a expectativa de que a ausência do lar não significava ruptura do casamento, nomeadamente dormindo com a ré em casa da mãe desta em Outubro de 2008 e passeando e tomando refeições com a ré e os filhos.
Concluiu, pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido, bem como a condenação do autor em multa e indemnização por litigância de má fé.
Saneados os autos, procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção procedente e decretou o divórcio entre as partes, dissolvendo o seu casamento.
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Inconformada, a ré interpôs recurso e alegou, formulando as seguintes conclusões:
I- As respostas aos quesitos 2) e 3) da Base Instrutória devem ser alteradas nos termos e pelas razões apontadas em 1.2.
II- Na fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o Meritíssimo Juiz a quo refere ter feito assentar tal decisão na apreciação crítica e conjugada da prova testemunhal produzida, designadamente nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor e nas arroladas pela ré.
III- Porém, se isso tivesse acontecido, então, e pelas razões invocadas em 2., que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos, o que se pergunta nos quesitos 2) e 3) da Base Instrutória, só poderia ter tido a resposta de “NÃO PROVADO”.
IV- A procedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, leva à alteração dessa decisão como apontado em 1.2. e, consequentemente, à improcedência da acção.
V- Mas, mesmo que alteradas não venham a ser, nos termos alegados, as respostas aos quesitos 2) e 3) da Base Instrutória, o que só por mera hipótese se coloca, sempre, pelas razões aduzidas em 3), e que, aqui, para os devidos e legais efeitos, se dão como integralmente reproduzidas, esta acção está condenada ao insucesso, impondo-se a sua improcedência.
VI- Mostra-se violado o disposto nos artºs 1781º a) e 1782º, 1, ambos do Cód. Civil.
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O recorrido contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito suspensivo.
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As questões a decidir são:
I) Impugnação da matéria de facto.
II) Se existe fundamento para o divórcio por existência de separação de facto.
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FACTOS.
Os factos considerados provados pela sentença recorrida são os seguintes:
1. Na Conservatória do Registo Civil de Melgaço, consta registado, com o nº…, do ano de 1994, que o autor e a ré casaram entre si às 15 horas do dia 08.07.1994, no Consulado Geral de Portugal em Paris, sem convenção antenupcial (A).
2. Na constância desse casamento nasceram dois filhos: F…, em 21.10.1995 e M…, em 12.01.1997 (B).
3. O exercício do poder paternal dos filhos identificados em 2. foi regulado a 04.11.2008, por acordo homologado judicialmente no âmbito do Proc. nº…, deste Tribunal Judicial de Melgaço, tendo os mesmos ficado à guarda e cuidados da mãe (ora ré), residente em …, concelho de Melgaço (C).
4. O autor não pretende restabelecer a comunhão de vida com a ré (D).
5. Após o casamento, autor e ré estabeleceram o lar conjugal em França, sendo que, em Fevereiro de 2008, a ré regressou a Portugal juntamente com os filhos do casal e foi viver para casa da sua mãe (1).
6. Desde o regresso da ré a Portugal (conforme indicado em 5), não mais existiu qualquer tipo de comunhão de vida entre autor e ré, fazendo ambos vidas completamente autónomas: deixaram de manter qualquer tipo de relacionamento como marido e mulher, não dormindo juntos, não tomando refeições juntos e não passando os tempos livres juntos. Com uma excepção: no mês de Outubro do ano de 2008, numa altura em que a ré já tinha regressado a Portugal (conforme indicado em 5), o autor deslocou-se a Portugal por alturas das Festas da Freguesia de …, tendo então passado uma noite com a ré na casa da mãe desta; no dia seguinte o autor passeou com a ré e com os filhos do casal e, posteriormente, chegou a ir com a ré e com os filhos do casal “tomar café” (Fevereiro de 2009) e “jantar” (Março de 2009) e também chegou a ir “buscar a ré e os filhos do casal à camioneta quando vinham da praia” (2 e 3).
7. O autor mantém um relacionamento com outra mulher, com quem partilha o leito e tem relações sexuais, e com quem toma as refeições (7).
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Impugnação da matéria de facto.
Pretende a ré, ora recorrente, a alteração da resposta aos quesitos 2º e 3º, que corresponde ao conteúdo do nº6 dos factos provados da sentença recorrida, defendendo que aos mesmos deveria ter sido dada a resposta de “Não provado”.
É a seguinte a redacção dos referidos quesitos e da resposta conjunta ora impugnada:
Quesito 2º- Desde então, autor e ré apenas se falaram e encontraram para tratar de assuntos relacionados com os filhos de ambos?
Quesito 3º- Desde o dia 12.03.2008, autor e ré não partilham o mesmo leito, despesas e casa de morada de família, que se situava em França, nem tomam refeições juntos?
Resposta conjunta – Provado que, desde o regresso da ré a Portugal (conforme indicado em 1), não mais existiu qualquer tipo de comunhão de vida entre autor e ré, fazendo ambos vidas completamente autónomas: deixaram de manter qualquer tipo de relacionamento como marido e mulher, não dormindo juntos, não tomando as refeições juntos e não passando os tempos livres juntos. Com uma excepção: no mês de Outubro do ano de 2008, numa altura em que a ré já tinha regressado a Portugal (conforme indicado em 1), o autor deslocou-se a Portugal por alturas das Festas da Freguesia de …, tendo então passado uma noite com a ré na casa da mãe desta; no dia seguinte, o autor passeou com a ré e com os filhos do casal e, posteriormente, chegou a ir com a ré e com os filhos do casal “tomar café” (Fevereiro de 2009) e “jantar” (Março de 2009) e também chegou a “ir buscar a ré e os filhos do casal à camioneta quando vinham da praia” (Julho de 2009).
Desde logo se dirá que a impugnação da matéria de facto não tem como objectivo um segundo e definitivo julgamento, mas sim apenas a correcção de eventuais vícios do julgamento da 1ª instância.
Vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação das provas (artigo 655º do CPC), que não pode ser afastado com a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
O Tribunal de recurso não julga de novo, limitando-se a fiscalizar da razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância e, nessa conformidade, só deverá alterar a matéria fáctica quando detecte flagrantes desvios às regras de experiência comum ou manifestos erros de julgamento.
Já quando o Tribunal de 1ª instância dá preferência a determinados depoimentos em detrimento de outros, fundamentando a sua convicção e não se afastando das regras de experiência comum na fundamentação, será essa convicção a prevalecer, como consequência de se presumir que a imediação e a oralidade proporcionam as condições ideais para uma correcta apreciação da prova.
No presente caso, ouvida a prova testemunhal gravada, verifica-se que todos os depoimentos prestados, sem excepção, confirmaram que, desde que a ré veio morar para casa da mãe em Portugal em Fevereiro ou Março de 2008, os dois cônjuges passaram a ter uma vida completamente autónoma, continuando o autor a viver em França, ficando em casa do seu pai quando vinha a Portugal e coabitando em França com outra mulher (que o acompanhou quando veio a Portugal ao funeral da sua mãe).
Mesmo os depoimentos das testemunhas da ré, nomeadamente das testemunhas P… e MC…, respectivamente mãe e tia da ré, são no sentido de que existe uma real separação entre os cônjuges e não uma mera situação logística entre os mesmos, uma vez que a primeira testemunha declarou que o autor não quer reatar a relação pois, se quisesse, a ré já estaria a viver com ele e a segunda testemunha declarou que é manifesto que não há hipótese de o casal se voltar a juntar.
O depoimento das testemunhas só divergiu quanto ao incidente de Outubro de 2008 e quanto aos encontros ocorridos entre o autor e a ré posteriormente.
Assim, as três testemunhas arroladas pela ré (a mãe e as tias da ré) depuseram no sentido de que em Outubro de 2008, por ocasião das festas da freguesia, o autor dormiu com a ré, em casa da mãe desta e que, posteriormente, os dois foram vistos a tomar café e a jantar com os dois filhos do casal.
Por seu lado, as testemunhas arroladas pelo réu, MG e AG depuseram no sentido de que, nas referidas festa de Outubro de 2008, o autor dormiu sempre em casa do seu pai, a testemunha MG, e sempre na companhia da testemunha AG, seu amigo residente em França e que na altura era hóspede na mesma casa; já a testemunha RF, prima do autor, nada sabia sobre o eventual convívio entre o autor e a ré em Outubro de 2008.
Perante esta divergência, o tribunal recorrido optou por dar como provada a versão das testemunhas arroladas pela ré, por as ter considerado mais convincentes, nada havendo a apontar quanto a este critério, resultante do princípio da livre apreciação da prova.
Deste modo afigura-se correcta a resposta explicativa conjunta dada aos quesitos 2º e 3º, que reflecte, por um lado, a situação das partes no que diz respeito à sua convivência do dia a dia e, por outro lado, os contactos registados pelas testemunhas.
Não se detecta qualquer erro de julgamento, pelo que deverá manter-se a resposta impugnada, improcedendo a impugnação da matéria de facto.
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II) Fundamento legal para o divórcio por separação de facto.
Sendo o autor e a ré casados um com o outro, pretende o autor, com a presente acção, que seja decretado o divórcio, com o fundamento no artigo 1781º alínea a) do CC, ou seja, separação de facto durante um determinado período.
A sentença recorrida entendeu que os factos provados integram tal fundamento legal e decretou o divórcio.
Contudo, a ré, ora recorrente, invoca que não se verifica a separação de facto, porque têm ocorrido contactos entre os cônjuges, não sendo ininterrupto o período de separação e não tendo, por isso, decorrido o respectivo prazo.
Ora, antes de se apreciar se os contactos registados entre as partes são ou não susceptíveis de interromper o prazo legal fixado para que a separação de facto seja fundamento para divórcio (adiantando-se desde já que se concorda com a sentença recorrida na parte em que considera que estes contactos não são suficientes para interromper tal prazo), haverá que saber qual o prazo aplicável, já que o mesmo foi recentemente alterado pela Lei 61/2008 de 31/10.
Na redacção anterior à Lei 61/2008, o prazo previsto na alínea a) do artigo 1781º era de três anos consecutivos, sendo actualmente de um ano consecutivo, mediante a redacção introduzida pela referida lei 61/2008.
De acordo com o artigo 10º desta lei, a mesma entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação, ou seja, no dia 30 de Novembro de 2008, aplicando-se já às situações pendentes, como é o caso dos autos.
Efectivamente, ficou provado que o casal se separou em Fevereiro de 2008, quando a ré veio viver para Portugal, para casa da sua mãe.
Segundo a lei antiga, anterior à Lei 61/2008, para ser fundamento de divórcio, a separação de facto teria de ter três anos e durar até Fevereiro de 2011.
Face à lei nova, a separação de facto apenas tem de durar um ano.
Estabelece o artigo 297º nº1 do CC que “a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar”.
No caso dos autos, sendo aplicável o prazo mais curto, de um ano, introduzido pela lei nova, o mesmo, por força do artigo 297º nº1, não começa a contar desde o início da separação, em Fevereiro de 2008, mas sim desde a entrada em vigor da lei nova, que é de Novembro de 2008, uma vez que, segundo a lei antiga, faltava mais tempo para o prazo se completar, por ainda só terem decorrido oito meses desde Fevereiro e ainda haver que decorrer mais dois anos e quatro meses para perfazer três anos.
Tendo a acção sido intentada em Abril de 2009, ainda não havia decorrido o prazo de um ano iniciado em Novembro de 2008, com a entrada em vigor da lei nova.
E, para a procedência do fundamento do divórcio, é necessário que, à data da propositura da acção, o prazo previsto no artigo 1781º a) já tenha decorrido totalmente.
Tal conclusão decorre da natureza do prazo, que constitui o fundamento do direito postestativo a obter o divórcio e que, portanto, tem de estar verificado à data da propositura da acção (cfr. ac. RP 14/06/2010, em www.dgsi.pt).
Conclui-se, pois, que, à data da propositura da acção, em Abril de 2009, ainda não havia decorrido o prazo de um ano exigido pelo artigo 1781º a), pelo que este fundamento do divórcio não estava verificado e a acção tinha de improceder necessariamente.
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DECISÃO.
Pelo exposto, embora por diferente fundamento, decide-se julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, julgando-se improcedente a acção.
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Custas da acção e do recurso pelo autor.
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2010-11-11