Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
188/15.6T8FAF.G1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO
VIOLÊNCIA SOBRE A COISA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
II - Quando o esbulhador, para ter acesso à coisa, procede à mudança/substituição e à alteração das fechaduras que o impediam de àquela livremente aceder, obstando e tornando doravante impossível a continuação da posse pelo requerente/esbulhado, está-se perante um caso de esbulho violento.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2ª Secção CÍVEL do Tribunal da Relação de Guimarães
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1.Relatório.
A… e Ó…, ambos de FAFE, instauraram procedimento cautelar de RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE, contra ,
J… e D…, Pedindo que:
- Seja ordenada a restituição provisória aos requerentes da posse dos prédios identificados nos artºs 1 e 2, do requerimento inicial, ordenando-se aos requeridos que procedam à abertura do portão e portas do pavilhão, e removam todos os ferros que colocaram no terreno, repondo todas as vedações que removeram.
Para o efeito invocam os requerentes tudo o que consta do respectivo requerimento inicial, e , designadamente e em síntese, que :
- São donos e legítimos possuidores de dois prédios urbanos (um pavilhão destinado a indústria e um terreno destinado a construção], os quais são contíguos a prédio urbano que os requeridos adquiriram no dia 2/3/2015 e o qual estava apreendido à ordem de processo de insolvência;
- Sucede que, sem razão para tal, os requeridos procederam à troca das fechaduras do pavilhão dos requerentes e procederam ainda a alteração da fechadura do portão principal, removendo ainda a vedação do terreno dos autores e colocando ferros no seu interior, o que tudo fizeram contra a sua vontade ;
- Do mesmo modo, e contra a sua vontade, os requeridos limparam o terreno removendo os marcos de demarcação, tendo ainda removidos do se interior os bens que se encontravam no interior do pavilhão, impedindo os requerentes de acederem à sua propriedade.
1.2.- Conclusos os autos, e sem antes ter sido produzida qualquer prova, de imediato proferiu a Exmª Juiz titular decisão, indeferindo liminarmente a providência cautelar.
1.3.- Notificados da decisão referida em 1.2., vieram então os requerentes A… e Ó…, porque inconformados, da mesma apelar, atravessando nos autos a competente peça de interposição de recurso e formulando no referido requerimento recursório as seguintes conclusões:
- O requerimento de procedimento cautelar de restituição provisória da posse deve prosseguir, uma vez que a mudança, por estroncamento, da fechadura, a colocação de corrente e cadeado são actos manifestos de esbulho violento;
- Sem prescindir e por mera cautela e dever de patrocínio, a entender-se que não existe esbulho violento, no Requerimento inicial encontram-se alegados todos os factos e requisitos do periculum in mora, sendo patente nos autos, principalmente as alegações dos Requeridos, para ser decretado o procedimento cautelar comum.
- O procedimento cautelar comum deverá, pois, seguir os seus normais e legais termos ;
- A decisão da primeira instância ser anulada pela falta de convite ao aperfeiçoamento do requerimento, derivada do não cumprimento da faculdade dada aos requerentes para a convolação em procedimento cautelar comum ;
- A decisão recorrida violou preceitos legais, designadamente, o disposto nos artºs 1279º, do Cód. Civil, 377º e 362º, do CPC.
Nestes Termos, e nos melhores de Direito, com o sempre mui doto Suprimento de V.Exas, deverá ,
a) A decisão recorrida ser substituída por outra que mande prosseguir os termos do procedimento de restituição provisória de posse .
b) Caso assim não se entenda, o que não se concede, nem concebe,
Subsidiariamente, que se ordene o prosseguimento dos autos como procedimento cautelar comum.
1.4.- Não resulta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações, desde logo em face do disposto no artº 641º,nº7, do CPC.
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Thema decidendum
1.5. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir resumem-se a saber :
I - Se a decisão recorrida deve ser revogada, impondo-se mandar prosseguir os termos do procedimento de restituição provisória de posse , ou ,
II - Se a decisão recorrida deve ser revogada, impondo-se determinar o prosseguimento dos autos como procedimento cautelar comum.
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2.- Motivação de Facto.
A matéria de facto a atender no âmbito da decisão a proferir é, tão só, a que decorre do já referido em sede de relatório e relacionado com a tramitação dos autos , e o alegado pelos apelantes em sede de requerimento inicial.
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3.- Motivação de Direito.
3.1.- Se a decisão recorrida ser substituída por outra que mande prosseguir os termos do procedimento de restituição provisória de posse .
No âmbito da decisão apelada, e partindo do pressuposto de que os requerentes A… e Ó…, instauraram uma providência cautelar de restituição provisória da posse, procedimento este previsto no art. 1279º do Código Civil, por um lado , e , na lei adjectiva, no artº 377º do C.P.C., veio a primeira instância a indeferir liminarmente a providência, e ancorando a decisão em apreço, fundamentalmente , em duas razões essenciais:
A primeira :
- Não resultar do alegado - em termos de factos - pelos ora apelantes em sede de requerimento inicial um dos requisitos imprescindíveis ao deferimento do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, a saber, ter-se verificado um esbulho violento da coisa dos requerentes ;
A segunda :
- Mostrar-se inviável – outrossim em razão de no requerimento inicial não resultar a alegação de pertinente factualidade – o prosseguimento do procedimento como providência não especificada, em razão da não verificação do necessário e subjacente pressuposto relacionado com o justo receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito.
Vejamos, pois, e de imediato, se in casu andou bem a primeira instância no tocante à primeira conclusão a que chegou e relacionada com a não verificação de um dos pressupostos que permitem o deferimento da providência cautelar de restituição provisória de posse.
Ora bem.
Rezando o artº 377 º do C.P.C. que, “No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”, e , logo acrescentando o artigo imediatamente seguinte ( 378º ) que, “ Se o e o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”, inquestionável é que, o deferimento da providência intentada pelos ora apelantes pressupõe a prova, a cargo dos requerentes, de factualidade que indicie e aponte para que : a) aos requerentes assista a qualidade de possuidores decorrente do exercício de poderes de facto sobre uma coisa, por forma correspondente ao direito de propriedade ou qualquer outro direito real de gozo ( cfr. artº 1251º,do CC ) ; b) o requerente tenha sido esbulhado da coisa possuída , e , c), o esbulho tenha sido levado a efeito com violência. (1)
No que ao primeiro requisito concerne, sendo na grande maioria dos casos a qualidade de possuidor do requerente da providência decorrente do facto de ser ele titular de um direito de propriedade ou de um direito real de gozo na vertente de uma forma de propriedade imperfeita [ cfr. v.g. o usufruto, a servidão, o uso e a habitação ] , certo é que a providência mostra-se igualmente ao dispor daqueles que, embora não considerados verdadeiros possuidores, porque titulares de direitos sem natureza real, a lei faculta-lhes todavia o direito de se socorrerem dos meios de defesa da posse.
Na situação referida em segundo lugar, recorda-se, encontram-se designadamente os que são havidos como detentores ou possuidores precários, quer por exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, quer ainda porque simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, quer finalmente por serem representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem ( cfr. as diversas alíneas do artº 1253º, do CC ), sendo de recordar , porque mais conhecidos, e de entre os últimos, os locatários ( cfr. artº 1037º, do CC), os comodatários ( cfr. artº 1133º,nº2, do CC ) e os depositários ( cfr. artº 1188º, nº2 ,do CC ) . (2)
Já no que ao requisito do esbulho diz respeito, e tal como o entende o Prof. Manuel Rodrigues (3), existirá ele “sempre que alguém foi provado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar”.
Finalmente, no que toca ao último requisito, o da violência [ precisamente aquele que considerou a primeira instância não decorrer/resultar do alegado pelos requerentes na respectiva petição ] , e conhecida que é a divergência na doutrina, e na jurisprudência, sobre qual o exacto alcance e sentido do conceito em apreço, designadamente se há-de a violência incidir necessariamente sobre a pessoa do possuidor, ou se basta que seja exercida sobre a coisa (4), é nossa convicção, e na linha de resto do que resulta do nº 2, do artº 255º, do CC [ nos termos do qual , e no âmbito da coacção moral, a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declaratório ] , que o esbulho será com violência sempre que resulte ele de uma acção violenta - física ou moral - dirigida contra a pessoa do possuidor ou contra a coisa que constitui obstáculo ao esbulho.
De resto, como bem nota A. Geraldes (5), a primeira das teses referidas [ a que considera que a violência deve incidir sobre a pessoa] , mais restritiva e exigente, e conferindo maior prevalência a meros juízos lógico-formais, quando aplicada a casos da vida real, acaba em última análise por conduzir a resultados de todo irrazoáveis e inaceitáveis.
Tal é a situação, exemplifica ainda A.Geraldes “ do legítimo arrendatário de um prédio habitacional que depara com a casa ocupada por um terceiro ( máxime, pelo senhorio ) que, à revela dos tribunais, procedeu ao arrombamento da porta e à mudança da fechadura, interditando a sua entrada, ou o proprietário e possuidor de uma exploração agro-pecuária que se vê confrontado com uma ocupação ilegítima do seu prédio através do mesmo processo” , sendo que, em relação a ambas, é caso para questionar – no entender do mesmo e ilustre autor que vimos seguindo – se será razoável “ negar o acesso dos interessados à tutela eficaz possibilitada pela restituição provisória da posse só porque os actos de esbulho ,acompanhados de comportamentos violentes, não visaram directamente a sua pessoa, antes tiveram como alvo imediato os bens possuídos “.
A amparar o entendimento acabado de referir, mais abrangente, encontra-se o ensinamento do conceituado e já citado Prof. Manuel Rodrigues (6), no termos do qual a história do artº 494º do Código de Processo Civil de 1876 , e outrossim o pensamento que dominava os redactores do Código de Seabra, permite concluir que a violência tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas, ou , melhor, “ há-de exercer-se sobre as pessoas que defendam a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras”, podendo ainda consistir no emprego da força física, como em ameaças.
E, já mais recentemente, considera outrossim o Prof. José Lebre de Freitas (7) que “ é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador “.
Em suma, tudo conduz a que, para a “melhor” doutrina, o entendimento correcto será antes o perfilhado pela tese menos rigorista, o qual considera que para existir violência em sede de esbulho não é necessário que seja a mesma exercida sobre as pessoas, por meio de ameaças ou em luta com o esbulhado ou seus representantes, antes basta “(…) que se exerça sobre as cousas, como arrombamento das portas de uma casa, a destruição ou demolição de uma parede, e um aqueduto, etc. “ [ cfr. Guerra da Mota (8) e Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa (9) ] .
Necessário é, todavia, que a violência exista no exacto momento do desapossamento, ou seja, que esteja mesma presente precisamente aquando do esbulho ou na prática dos actos que obstam doravante a que o possuidor continue a exercer a posse , sendo privado da que tinha ( vis expulsiva). (10)
Postas estas breves considerações, e descendo agora ao terreno dos factos , maxime dos alegados pelos apelantes no requerimento inicial e em obediência ao disposto no artº 377º, do CPC , no sentido que ao possuidor incumbe a alegação dos factos que constituem a posse, o esbulho e a violência, temos que in casu ( nos artºs 6º a 13º da petição ) mostra-se dito que, sem razão para tal, os requeridos procederam à troca das fechaduras do pavilhão dos requerentes e procederam ainda à alteração da fechadura do portão principal e que dá acesso a todos os prédios, removendo ainda a vedação do terreno dos autores e colocando ferros no seu interior, o que tudo fizeram contra a sua vontade.
Outrossim alegaram os apelantes que, em razão do referido comportamento dos requeridos, estão os requerentes impedidos de acederem à sua propriedade.
Ora, a referida factualidade, ainda que sintética, permite e obriga ainda assim, e caso venha indiciariamente a provar-se in totum , a concluir ( pelo menos implicitamente e em razão das regras da experiência , da normalidade e do senso comum – id quod plerumque accidit ) que os requeridos , para terem logrado apoderar-se das coisas ou para terem tido acesso à posse da/s propriedade/s dos requerentes, tiveram necessariamente que vencer vários obstáculos ( v.g. as anteriores fechaduras que existiam, sendo que umas foram trocadas, e , outra, foi alterada ) que à data existiam e que os impedia de acederem livremente aos referidos prédios.
De igual modo, também não se descortina existir razão pertinente - bem pelo contrário - para afastar o requisito da violência quando, ainda em razão das máximas da experiência e do senso comum, não se vê como alterar e mudar fechaduras sem que a fechadura alterada e as mudadas ( as anteriores e dos requerentes ) tenham sido objecto de alguma violência/força, mínima que seja, pois que certamente estariam – anteriormente - a desempenhar a sua função, logo a “fechar”, tendo assim e necessariamente sido forçadas, arrombadas ou violentadas .
Por fim, ao alegar-se que, em consequência das mudanças das fechaduras e da alteração de uma outra, estão os requerentes impedidos de acederem à sua propriedade, forçoso é concluir que a impossibilidade de os requerentes contactarem com a coisa possuída é consequência dos meios usados pelos requeridos, esbulhadores, justificando-se portanto a pretensão dos primeiros de lograrem a restituição da posse.
No essencial, temos assim que , ainda que sintético , permite ainda assim o alegado, a provar-se, concluir que de alguma forma foram os requeridos agentes de actos de violência que incidiram sobre coisas (as fechaduras ) que constituíam o obstáculo ao esbulho, e , bem assim, de actos ( a colocação de diferentes/novas fechaduras ) que impedem os requerentes ( os esbulhados ) de contactarem e de acederem às coisas possuídas.
Destarte, em razão de tudo o acabado de expor, e sem necessidade de mais considerações, inevitável é concluir-se que , e segundo as várias soluções plausíveis a questão de direito, forçoso não é ( bem pelo contrário ) concluir-se que se mostra alegado pelos requerentes e ora apelantes pertinente e suficiente factualidade que, desde que indiciariamente provada, permite por si só conduzir ao decretamento da providência de restituição provisória de posse.
E, assim sendo, inevitável é, assim, a procedência da apelação, ou seja, a revogação da decisão apelada.
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4.- Sumário ( Cfr. nº 7, do Artº 663º, do CPC )
I - A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
II - Quando o esbulhador, para ter acesso à coisa, procede à mudança/substituição e à alteração das fechaduras que o impediam de àquela livremente aceder, obstando e tornando doravante impossível a continuação da posse pelo requerente/esbulhado, está-se perante um caso de esbulho violento;
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5. - Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes na 2 dª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães , em ,
5.1.- Concedendo provimento ao recurso de apelação apresentado por A… e Ó…, revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento do procedimento cautelar com vista à produção da prova oferecida/indicada pelos requerentes .
Sem custas.
Notifique.
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(1) Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, In Temas da Reforma de Processo Civil, vol IV, Almedina, 31 e segs..
(2) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC anotado, Vol. III, 1972, págs. 7/9.
(3) In A Posse, edição de 1981, pág. 363.
(4) Vide v.g. Abrantes Geraldes, ibidem, págs.47 e segs..
(5) Ibidem, págs. 49 e segs..
(6) Ibidem, págs.365 e segs..
(7) In CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed. ,pág. 78.
(8) In Manuel da Acção Possessória, Vol. I, Porto 1980, pág. 36, e ainda o Prof. Menezes Cordeiro, in A Posse : Perspectivas e Dogmática Actuais, 3ª ed., pág. 142.
(9) Proc. nº 00117461, sendo Relator Azadinho Loureiro, e in www.dgsi.pt, no sentido de que “ Há esbulho violento sempre que existe a necessidade de vencer um obstáculo como seja o que resulta da substituição de fechaduras de uma garagem “.
(10) Cfr. L.P. Moitinho de Almeida, in Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis,3ª Edição Actualizada, pág. 112.
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Guimarães, 7/05/2015.
António Santos
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte