Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2840/09.6TBGMR.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1 - É inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 1.º conjugado com o 63 n.º 2 e 3, ambos da CRP, a aplicação do artigo 189 n.º 1 al. c) e n.º 2 da O.T.M. sem qualquer limitação, pondo em risco a sobrevivência do devedor de créditos alimentícios devidos a menores.
2 – O limite a ter em consideração é o rendimento social de inserção, como o mínimo dos mínimos de garantia de sobrevivência.
3 - O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores só intervém quando o devedor não tenha meios para cumprir as suas obrigações vencidas, e enquanto esta situação se mantiver, como resulta da leitura dos artigos 1.º da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artigo 2.º e 3.º do DL. 164/99 de 13 de Maio.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães


O Ministério Público, em representação da menor Ana..., nascida em 04/11/1996, em Creixomil, Guimarães, deduziu o presente incidente de incumprimento nos termos do art.º 181.º da Organização Tutelar de Menores (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro) contra José..., pai da menor.

Alega, em síntese, que por decisão homologatória de acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais ficou o requerido obrigado a entregar a quantia mensal de 150,00€ (cento e cinquenta euros) a título de alimentos devidos à menor, nada tendo pago desde o mês de Agosto de 2008.

O requerido foi notificado nos termos do disposto no art.º 181.º, n.º 2 da OTM, nada tendo dito.

Pela Segurança Social foram elaborados relatórios sociais (fls. 51 e ss. e 65 e ss.).
Foram levadas a cabo outras diligências de prova requeridas pelo Ministério Público.

O Ministério Público proferiu parecer a fls. 77, no sentido do deferimento do incidente e do desconto directo da pensão de alimentos no subsídio de desemprego auferido pelo requerido.

A final foi proferida sentença que decidiu da seguinte forma:

Assim, e pelo exposto, julgo o presente incidente de incumprimento totalmente procedente por provado e nos termos do disposto no art.º 189.º, n.os 1, alínea c) e 2 da OTM, determino o desconto directo no subsídio de desemprego auferido por José..., a ter início no próximo mês de Junho de 2010, das seguintes quantias:
a) 153,90€ (cento e cinquenta e três euros e noventa cêntimos), a título de prestações de alimentos vincendas;
b) 84,16€ (oitenta e quatro euros e dezasseis cêntimos), durante 40 (quarenta) meses, para pagamento das quantias vencidas e não pagas relativas a alimentos devidos à menor, num total de 3.366,30€.

Inconformado com o decidido, o requerido interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.

Houve contra-alegações que pugnaram pela procedência parcial do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Damos como provados os factos consignados na decisão recorrida, que passamos a transcrever:
Com relevância para a decisão a tomar, resultam dos autos os seguintes factos:
A) Ana... nasceu em Creixomil, Guimarães, em 04/11/1996 e está registada como sendo filha de José... e de Maria... – certidão de fls. 5;
B) Por acordo homologado por decisão proferida na Conservatória do Registo Civil do Seixal em 22/08/2005 (e já transitada em julgado), foi regulado o exercício das responsabilidades parentais da menor, tendo, além do mais, o progenitor ficado obrigado a pagar a título de alimentos até ao dia 08 de cada mês, a quantia mensal de150,00€ (cento e cinquenta euros), actualizável de acordo com a taxa de inflação publicada pelo INE – certidão de fls. 6 e ss.;
C) O pai da menor não pagou as prestações de alimentos devidas desde Agosto de 2008 (inclusive) até ao presente;
D) A menor reside com a mãe e os avós maternos (de 76 e 73 anos de idade, reformados), num apartamento T3 com adequadas condições de habitabilidade;
E) A mãe da menor está desempregada, não recebendo subsídio de desemprego e tendo requerido o rendimento social de inserção.
F) Os avós maternos da menor recebem um total mensal de 562,78€ de pensão de reforma;
G) O agregado familiar onde a menor está inserida tem despesas mensais na ordem dos 392,00€ (175,00€ de renda, 137,00€ de água, luz, gás e condomínio e 80,00€ de despesas de saúde com a avó materna);
H) A mãe da menor recebe a quantia mensal de 43,68€ de abono de família;
I) O pai da menor não tem quaisquer veículos automóveis ou prédios inscritos em seu nome (fls. 15 e 16);
J) O pai da menor tem estado presente no crescimento da mesma, tendo contactos e nome (fls. 15 e 16);
K) Reside sozinho num apartamento T0, pelo qual paga 100,00€ de renda;
L) Gasta cerca de 60,00€ em água, luz e gás;
M) Está desempregado e aufere subsídio de desemprego no montante mensal de 335,40€ (trezentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos).

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:

1.Se a dedução coactiva da prestação social que o apelante recebe a título de subsídio de desemprego é inconstitucional por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 1.º, conjugado com o artigo 63 n.º 2 e 3 da CRP.
2. Se o apelante deve ficar isento de cumprir a prestação de alimentos, sendo substituído pelo Fundo de Garantia de Alimentos a Menores.

Vamos conhecer das questões enunciadas.

1 – O tribunal recorrido ordenou a dedução ao subsídio de desemprego do requerido de 153,90€ a título de prestação de alimentos vincendos e de 84.16€, a título de prestações vencidas e em dívida, durante 40 meses. E fê-lo porque entendeu que o teor do acórdão do Tribunal Constitucional 306/2005 de 8 de Junho, que julgou inconstitucional a dedução coactiva duma prestação social, que punha em causa a sobrevivência do devedor de alimentos a descendente menor, não era aplicável ao caso em apreço, porque nele estava em causa uma pensão de invalidez.

O requerido insurge-se contra o decidido, porque sendo-lhe retiradas as prestações no montante de 238,06€, do seu subsídio de desemprego no montante de 335,46€, resta-lhe apenas o montante de 97,40€, insuficiente para sobreviver. E suscita a inconstitucionalidade da decisão apoiada no artigo 189 n.º 1 al. c) n.º 2 da O.T.M, por violação do princípio da dignidade humana, incorporado no de Estado de Direito consagrado no artigo 1.º e conjugado com o artigo 63 n.º 2 e 3 da CRP.

A questão fulcral, decidida no acórdão do tribunal constitucional aludido, assenta na ponderação dos interesses do menor, credor de alimentos, e do seu progenitor, devedor dos mesmos, que merecem a mesma dignidade constitucional, porque está em causa a sobrevivência de ambos. O menor, enquanto carente de alimentos indispensáveis para crescer e desenvolver-se e o progenitor a necessitar de um mínimo para sobreviver, enquanto ser humano, integrado na sociedade. E acabou por encontrar no rendimento social de inserção o instrumento jurídico garante da sobrevivência, como limite à dedução da prestação social em causa. Foi considerado como o garante mínimo de sobrevivência, intangível, mesmo que estivessem em causa créditos alimentícios, devidos a menores, em que o devedor tem um dever especial de cumprir. Mas esse dever não pode sobrepor-se ao direito a sobreviver.

A doutrina deste acórdão influenciou a jurisprudência nos tribunais superiores, com destaque para três acórdãos proferidos, um na Relação do Porto (ac. de 16/07/2007), outro na de Lisboa (ac. de 25/09/2008) e o último na Relação de Guimarães (ac. de 11/11/2009), todos publicados no www.dgsi.pt., que defenderam que o rendimento social de inserção é o limite à dedução coactiva de prestações quando estão em causa créditos alimentícios devidos a menores.

Aplicando estes princípios ao caso em apreço, constata-se que as prestações a deduzir do subsídio de desemprego montam a 238,06€, restando apenas 97,40€, para o requerido sobreviver, montante inferior ao rendimento social de inserção, que é de 189,52€, para o ano de 2010, como se constata pela consulta do site do Ministério do Trabalho e Solidariedade Social.

Assim, é uma decisão inconstitucional, enquanto violadora do princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito no princípio do Estado de Direito consignado no artigo 1.º conjugado com o artigo 63 n.º 2 e 3 da CRP. O que implica a aplicação do artigo 189 n.1º al. c) e n.º 2.º da O.T.M. com o limite do rendimento social de inserção, consagrado na Lei 13/2003 de 21 de Maio e regulamentado pelo DL.283/2003 de 8 de Novembro, com actualizações através das respectivas Portarias.

Confrontados com esta limitação, temos apenas a deduzir ao subsídio de desemprego, no montante de 335,46€, até ao limite de 189,52€, correspondente ao valor actual do rendimento social de inserção, o que se traduz numa prestação de 145,94 € (335,46€ - 189,52€ = 145,94€). Prestação insuficiente para cobrir a prestação alimentícia vincenda. Mas é o montante possível nestas circunstâncias.

Daí que seja melhor adjudicar esta prestação a título de abatimento nas prestações vencidas, que à data da decisão impugnada rondavam os 3.366,30€, e depois incidir sobre as prestações, entretanto, vencidas.

2 – O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores só intervém quando o devedor não tenha meios para cumprir as suas obrigações vencidas, e enquanto esta situação se mantiver, como resulta da leitura dos artigos 1.º da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artigo 2.º e 3.º do DL. 164/99 de 13 de Maio. Como o apelante tem rendimento disponível, não se verificam os pressupostos para a sua isenção como o defende nas suas alegações e conclusões de recurso.

Concluindo: 1- É inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 1.º conjugado com o 63 n.º 2 e 3, ambos da CRP, a aplicação do artigo 189 n.º 1 al. c) e n.º 2 da O.T.M. sem qualquer limitação, pondo em risco a sobrevivência do devedor de créditos alimentícios devidos a menores.
2 – O limite a ter em consideração é o rendimento social de inserção, como o mínimo dos mínimos de garantia de sobrevivência.
3 - O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores só intervém quando o devedor não tenha meios para cumprir as suas obrigações vencidas, e enquanto esta situação se mantiver, como resulta da leitura dos artigos 1.º da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artigo 2.º e 3.º do DL. 164/99 de 13 de Maio.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão impugnada e ordenam o desconto directo sobre o subsídio de desemprego auferido pelo apelante da quantia de 145,94€, para abatimento nas prestações vencidas no montante de 3.366,30€, e, posteriormente, sobre as prestações vencidas, entretanto.

Custas pelo apelante na proporção de vencimento.

Guimarães,