Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
897/21.0T8VCT.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: ACIDENTE FERROVIÁRIO
SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
DEVERES DE PROTECÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A previsão do n.º 1 do art.º 624º do CPC (“Eficácia da decisão penal absolutória”) não é integrada pela absolvição do arguido com fundamento na falta de prova dos factos imputados ao mesmo ou com base no principio in dúbio pro reo.
II – O referido normativo pressupõe que, nos casos em que era imputada ao arguido a prática de um crime por negligência, a sentença penal absolutória contenha, no elenco dos factos provados, factos que demonstrem que o arguido observou os deveres de cuidado que se impunham no caso concreto ou que os factos foram praticados por um terceiro.
III - Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.
IV – O vinculo obrigacional é uma realidade complexa, na medida em que envolve, para além do dever primário de prestar e outras situações, os deveres acessórios de conduta - deveres de informação, protecção e lealdade.
V – Os deveres de protecção, que não se deixam determinar com exactidão ex ante, mas apenas em função das circunstâncias, expressam a atenção, o respeito, a correcção e o cuidado que cada um dos sujeitos do contrato há-de ter para com o(s) outro(s) contraente(s), tendo em vista evitar todas as intromissões danosas na esfera jurídica (pessoa e património) do mesmos, susceptíveis de ocorrer no âmbito ou no contexto da execução do contrato, mas não aquelas cuja ligação com a relação contratual é meramente ocasional exprimindo um simples risco geral da vida e radicam no princípio geral da boa fé.
VI - Caberá ao onerado com o dever de protecção, demonstrar que não lhe é pessoalmente censurável o facto de não ter adoptado o comportamento devido e destinado a evitar o dano, o que sucederá sempre que o dano seja devido a facto do credor, de terceiro ou a caso fortuito ou de força maior.
VII - O n.º 1 do art.º 25º do Decreto-Lei 58/2008, de 26/03 (que estabelece que o operador do transporte ferroviário é responsável pelos danos causados ao passageiro e a bens por este transportados durante a viagem) constitui a específica previsão de um dever de indemnizar por violação de deveres de protecção.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

AA intentou contra EMP01..., EPE, BB e CC, acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que fossem os RR., na medida das suas responsabilidades, condenados a pagar ao A.:

a) a indemnização global líquida de € 31.000,0, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da propositura da acção até efectivo pagamento:
b) a indemnização que por força os factos alegados nos art.ºs 100º a 119º da petição inicial vier a ser fixada em decisão ulterior ou,  a indemnização que vier a ser quantificada em incidente de liquidação;
c) a indemnização relativa aos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da Incapacidade Permanente Geral e para o Trabalho, de que o A. ficou a padecer, a fixar através de exame medico-pericial.

Alegou para tanto e em síntese que no dia 18 de Abril de 2014, cerca das 5h00, adquiriu um bilhete de comboio para a viagem entre ... e o apeadeiro da ..., na freguesia ..., tendo entrado no comboio pelas 5h20; o Réu BB era o maquinista do referido comboio e o Réu CC era o revisor, ambos empregados da EMP01...; o comboio era dotado de portas de funcionamento automático, sendo a sua abertura e fecho exclusivamente levados a efeito pelo revisor, o 3º R., através de comandos existentes no habitáculo onde o mesmo se encontra alojado; quando o comboio se encontra em movimento, as portas devem permanecer fechadas, só podendo ser abertas nas estações e apeadeiros, através do sistema de abertura e fecho automáticos, a realizar pelo revisor.

Mais alegou que o comboio parou no apeadeiro da ...; o A. tentou sair pela porta da composição em que viajava, mas, por deficiente sinalização do 3º R., o 2º R., sem se certificar que todos os passageiros haviam abandonado o comboio em segurança, arrancou na altura em que o A. se encontrava a sair pela porta da carruagem onde viajava; devido ao fecho súbito da porta operado pelo 3º R., o A. ficou com o tornozelo esquerdo preso nas portas da carruagem de onde estava a sair; e tendo o comboio arrancado, arrastou o A. ao longo de 90 m; para se proteger apoiou as mãos na plataforma do cais de embarque e na linha, tendo batido com a cabeça na plataforma; o comboio só parou após ter sido accionada a alavanca de emergência por um passageiro, que na altura circulava no comboio, momento em que a porta se abriu e o A. se soltou; o 2º R. não se apercebeu do sucedido, a não ser depois de ter parado o comboio e se ter dirigido à carruagem onde havia sido accionada a alavanca de emergência; apesar de verificar o acidentado, os 2º e 3º RR. não lhe prestaram qualquer auxílio, abandonando-o no local, sem apoio.

Finalmente alegou que em consequência directa e necessária do sinistro sofreu lesões corporais várias, bem como danos de natureza psicológica, as quais determinaram assistência médica e assistência psicológica e pedopsiquiátrica, tendo ficado com as sequelas que indica, não estando ainda completamente curado.

Os RR., citados, contestaram, invocando a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria.

Mais invocaram que na estação de ... o A., acompanhado de amigos, solicitou ao 3º R. um bilhete com partida naquela estação e destino à estação de ...; tendo em consideração as habituais confusões entre as estações de ... e ..., antes de proceder à emissão dos bilhetes o 3º R. questionou o A. quanto ao seu real destino – ... ou ... -, ao que o A. respondeu ser ....

Invocaram também que uma vez chegado ao apeadeiro de ..., o comboio parou a marcha, o 3º Réu desceu à plataforma por forma a acompanhar um eventual, mas improvável, embarque ou desembarque de passageiros, já que nenhum passageiro dispunha de bilhete nesses termos; já na plataforma, após ter verificado, que não havia nenhum passageiro a embarcar e/ou a desembarcar do comboio e/ou a adotar qualquer comportamento susceptível de revelar essa intenção e que o comboio podia reiniciar a marcha em condições de segurança, posicionou-se na plataforma, de forma que o 2º R. o conseguisse visualizar, como conseguiu, pelos espelhos retrovisores do comboio e transmitiu ao mesmo, através de um sinal de luz verde, o sinal de serviço concluído para reinício da marcha e dirigiu-se ao interior do comboio; o 2º R., após proceder ao fecho das portas, reiniciou a marcha; no momento do reinício da marcha, todas as portas do comboio encontravam-se totalmente fechadas; após ter entrado no comboio e este ter reiniciado a marcha, o 3º Réu dirigiu-se para junto da cabine de condução e aí foi informado pelo 2º Réu que algum passageiro tinha accionado o sinal de alarme e forçado a abertura de uma porta; o acionamento do alarme provocou a imediata paralisação do comboio; a fim de apurar o local onde tinha sido accionado o alarme, o 3º Réu percorreu toda a composição, tendo verificado que o sinal de alarme tinha sido accionado na última porta do comboio, local onde o A. e os seus amigos se encontravam, tendo aí verificado que o manípulo do alarme se encontrava manuseado; verificou ainda que no exterior do comboio, junto à linha, se encontravam o A. e os amigos que o acompanhavam, encontrando-se o A. sentado na brita, local onde caiu após ter saltado para fora do comboio quando este se encontrava em andamento, fora do local próprio, tendo, para isso, accionado o alarme e aberto a porta da carruagem de forma forçada;  o A. queixava-se de dores na perna; o 3º R. questionou-os se tinham sido eles a acionar o alarme e a abrir a porta de forma forçada, ao que responderam afirmativamente, com a justificação de que pretendiam desembarcar no apeadeiro de ...; perante a queixas do A., o 3º R. de imediato e por diversas vezes, questionou-o, assim como aos seus amigos, sobre a necessidade de ser prestado auxílio médico, tendo o A. dito que não era necessário; uma vez que o A. não apresentava lesões aparentes, recusou auxílio médico e estava acompanhado pelos amigos, o 3º R. transmitiu ao 2º R. o sinal de serviço concluído, após o que o comboio retomou a marcha.

Referem depois o modo de funcionamento das portas, alegando, em síntese, que as portas são de funcionamento automático, sendo o seu fecho comandado pelo maquinista através de um interruptor específico existente na mesa de condução do seu habitáculo, o qual, por sua vez, gera um impulso eléctrico de bloqueio automático de todas as portas do comboio; quando é dada a ordem de fecho, já não é possível a qualquer passageiro, mesmo com a unidade parada, efectuar a abertura normal das portas do comboio e, sempre que as portas se encontrem abertas, é sinalizado na mesa de condução do maquinista através dos respectivos indicadores luminosos acesos; a autorização de abertura de portas também é efectuada pelo maquinista através do respectivo interruptor existente na mesa de condução; na hipótese de uma das portas do comboio ser aberta, por ser acionado o dispositivo de emergência, existente em todas as portas do comboio, é possível abrir manualmente a porta, ainda que o comboio se encontre em andamento, sendo essa situação sinalizada ao maquinista, mediante sinal luminoso, na mesa de condução; estando o interruptor de comando das portas na posição de abertura, um sistema de segurança impede a marcha do comboio; o maquinista apenas pode iniciar a marcha após se apagarem os indicadores luminosos que sinalizam a abertura das portas.

Os 2º e 3ª RR. cumpriram de forma integral todas as regras, procedimentos e protocolos definidos para o tráfego ferroviário, sendo o único responsável pelo evento o A., por ter decidido antecipar o seu desembarque, estando o comboio em movimento, forçando a porta.

O acidente deu lugar à instauração de processo crime, em que o A. se constitui assistente, sendo arguido o 3º R. e demandada cível a 1ª Ré (sendo demandante a EMP02... – Unidade de Saúde Local do ..., EPE), tendo sido proferida sentença que absolveu o 3º R. do crime que lhe era imputado e absolveu o 3º R. e a 1ª Ré do pedido de indemnização cível.

Finalmente impugnou os danos invocados pelo A. 

O A. respondeu à excepção.

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de incompetência material e julgou verificados os demais pressupostos processuais, consignou o objecto do litígio e os temas da prova e admitiu as provas.

Instruídos os autos com o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, realizou-se o julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte decisório:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
- Condena-se a primeira Ré a pagar ao Autor uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no montante total de € 15.000,00 (quinze mil euros), a que acrescem juros de mora a contar da presente decisão até efectivo e integral pagamento, absolvendo a Ré de todo o mais peticionado;
- Absolvem-se dos pedidos os Réus BB e CC.
Custas por Autor e 1ª Ré, na proporção do decaimento (art.º 527º, nº 1 e 2 do CPC).”

Interpôs a Ré recurso[1], pedindo a revogação da sentença recorrida, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Os presentes autos fundam-se na responsabilidade civil da Recorrente em consequência de um acidente que vitimou o A. e que alegadamente foi provocado pelo fecho súbito das portas, tendo o A. ficado preso pelo tornozelo esquerdo.
B. Foi alegado pelo Recorrido que, em consequência desse acidente, sofreu danos não patrimoniais, peticionando a condenação da Recorrente no pagamento do valor de 31.000,00 Euros, a título de indemnização por esses danos.
C. Em face da matéria de facto considerada provada, o Tribunal a quo proferiu a decisão ora posta em crise, de acordo com a qual julgou a ação parcialmente procedente.
D. Não pode a Recorrente concordar com a apreciação da prova levada a cabo, discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a decisão prolatada, quanto à matéria de facto e quanto à solução de direito.

DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

II - DO ERRO DE JULGAMENTO:
REAPRECIAÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL:

E. Temos que a sentença proferida padece de manifesto erro de julgamento, desde logo porque não teve em devida linha de conta toda a prova carreada aos presentes autos, nomeadamente a prova documental e testemunhal – a qual, quanto a nós valorou de forma desadequada.
F. O presente recurso sobre a decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção da Recorrente de que o Tribunal “a quo” terá efetuado uma incorreta apreciação da prova, e concretamente na instrução da matéria factual plasmada nas alíneas m), n), o), p), q) e s) do elenco da factualidade considerada provada e nas alíneas e), f), i), j) e k), os quais, pelos motivos que se infra se demonstrará, deveriam ter sido considerados não provados ou provados, respetivamente.
G. O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil consagra o princípio da livre apreciação da prova, investindo o julgador na tarefa de emitir uma decisão sobre a matéria de facto “segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
H. Não obstante, a decisão sobre a matéria de facto não poderá ser flagrantemente desconforme aos elementos probatórios processualmente recolhidos.
I. O artigo 662.º do Código de Processo Civil vem impor ao Tribunal da Relação um verdadeiro dever de alterar a decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto nas situações em que a prova produzida impuser decisão diversa.
J. Situação que, salvo o devido respeito por outra opinião, se encontra plasmada nos presentes autos, nomeadamente no que concerne à apreciação conferida aos factos constantes dos pontos supra referidos e que aqui se pretendem ver alterados.
K. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, estamos em crer que o Meritíssimo Tribunal “a quo” não ajuizou bem a prova produzida pois a mesma não se mostrou minimamente suficiente para alicerçar a convicção aduzida na sentença proferida no sentido da demonstração de que o acidente em discussão tenha ocorrido por causa imputável à Recorrente.
L. Ao invés, resulta, da prova produzida, que o acidente que vitimou o Recorrido apenas se deu porque este não cumpriu com as regras ferroviárias a que estava obrigado.
M. Na verdade, como se demonstrará, a prova produzida demonstra que o Recorrido saiu do comboio após o mesmo ter reiniciado a sua marcha, quando o comboio já se encontrava em movimento, tendo, para o efeito, acionado o sistema de alarme e a abertura manual das portas.
N. Sistemas esses que apenas podem e devem ser acionados em casos de emergência e que o Recorrido ativou simplesmente porque quis antecipar a sua saída numa outra estação e não diligenciou no sentido de se levantar e se dirigir à porta de saída atempadamente.
O. Jamais poderia o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerar que o Recorrido não teve culpa na produção do acidente.
P. Tendo em conta todos os mecanismos de segurança existentes no comboio em apreço, seria impossível, como decorreu da prova produzida, o comboio ter iniciado a sua marcha estando uma porta aberta ou semi-aberta.
Q. Não se consegue conceber que tenha o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerado provado que, no momento em que o Recorrido se encontrava a sair pela porta da carruagem, ocorreu o fecho súbito das portas, tendo o Autor ali ficado preso pelo tornozelo esquerdo.
R. Como, aliás, em dezenas de anos, nunca ocorreu com os membros da tripulação do comboio que o orientam diariamente e que foram perentórios em afirmar a impossibilidade de o comboio andar tendo uma porta aberta.
S. A decisão sob recurso também não poderia ter considerado que o Recorrido foi arrastado pelo comboio cerca de 90 metros, pendurado com o tornozelo esquerdo entalado e preso entre as portas da carruagem e que para se proteger apoiou as suas mãos na plataforma do cais de embarque e na linha, quando nenhuma prova foi produzida nesse sentido.
T. Acresce que é, de todo, contrário à prova produzida a afirmação feita na alínea s) da matéria dada como provada no sentido de que o 2.º e 3.º RR. não prestaram auxílio ao Recorrido, abandonando o local, apesar de terem verificado que este estava acidentado.
U. Resulta claro da prova produzida que o 3.º R. dirigiu-se ao local onde se encontrava o Recorrido e questionou-o se este necessitava de ajuda, tendo o Recorrido negado qualquer ajuda, referindo que não precisava.
V. O Recorrido estava na companhia dos seus amigos que não contrariaram a decisão deste, nem aceitaram a ajuda do 3.º R..
W. Tendo em conta os mecanismos de segurança do comboio, o 2.º R. estava completamente impedido de se ausentar da cabine do comboio, sob pena de não o conseguir voltar a acionar, uma vez que, por segurança, o mecanismo do “homem morto” apenas permite que os maquinistas saiam da cabine após o término da viagem.
X. Atente-se que, sobre a dinâmica do acidente como é exposta na matéria dada como provada não foi produzida prova segura e credível nesse sentido.
Y. Até porque, como referido na motivação da sentença, as testemunhas que depuseram sobre esses factos, foram contraditórias entre si e relataram versões distintas dos factos.
Z. E se, de facto, pode o julgador lançar mão das presunções judiciais, a fim de criar uma convicção probatória positiva de determinados factos (parte de um facto conhecido para afirmar um outro facto), não pode, contudo, e como sucede no caso dos autos, “dar um salto maior do que a perna” para dar como provado que o acidente foi causado porque, no momento em que o Recorrido se encontrava a sair pela porta da carruagem, ocorreu o fecho súbito das portas, tendo o Autor ali ficado preso pelo tornozelo esquerdo.
AA. Os factos constantes das alíneas e) e f) da matéria dada como não provada deveriam ter sido considerados como provados, na medida em que, da prova produzida, resultou, de forma clara, que o 3.º R. adotou todas as diligências recomendadas e estipuladas para o embarque e desembarque de passageiros nas estações ferroviárias. Diligências essas que são, precisamente, as relatadas nas referidas alíneas e) e f).
BB. Note-se, aliás, que, por ter sido considerado que os 2.º e 3.º RR. cumpriram, de forma integral e plena, todas as regras, procedimentos e protolocos definidos e fixados para o tráfego ferroviários, os mesmos foram absolvidos dos pedidos contra si formulados.
CC. Nunca poderia ter sido considerada como não provada a matéria constante da alínea i) dos factos não provados.
DD. Decorreu, sem margem de dúvidas da prova produzida, seja documental, testemunhal e por depoimento de parte, que o Recorrido tirou bilhete para ... e desembarcou, antecipadamente, em ....
EE. Resultou, também, provada a factualidade constante das alíneas j) e k) dos factos não provados.
FF. Da conjugação dos meios probatórios produzidos, impunha-se decisão diversa daquela que veio a ser proferida e que, presentemente, se impugna.
GG. A Recorrente está, pois, em crer que o Meritíssimo Tribunal a quo incorreu em verdadeiro e manifesto erro de julgamento.
HH. No que respeita à referida matéria que a Recorrente pretende ver modificada por considerar ter havido uma incorreta apreciação da prova quanto à mesma (alíneas m), n), o), p), q) e s) do elenco da factualidade considerada provada e as alíneas e), f), i), j) e k) dos factos considerados como não provados), os concretos meios probatórios cujo reexame se solicita a este Venerando Tribunal e que impunham decisão diversa da proferida são os que se passam a elencar:

- Prova Documental:
II. O documento n.º ...2 junto com a contestação apresentada pela Recorrente consiste na sentença proferida no âmbito do processo crime n.º 803/14...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., no qual o Recorrido figurou como assistente, o 3.º R. como arguido e a 1.ª R. como demandada cível e no qual estava em discussão o acidente apreciado nos presentes autos.
JJ. A referida sentença, já transitada em julgado, determinou a absolvição do arguido (aqui 3.º R.), e afirmou, entre o mais, o seguinte:
“(…) não se pode concluir que o arguido não observou, portanto, o cuidado exigido enquanto revisor na circulação ferroviária e necessário para proteger os bens jurídicos em causa”;
“(…) não se tendo apurado desde logo qualquer violação do dever objetivo de cuidado que impendia sobre o arguido, nenhum juízo de censura lhe pode ser assacado, e é de concluir que ao arguido não pode ser imputada a prática do crime por que vem pronunciado”. (negrito e sublinhado nossos)
KK. Foi, ainda, decidido, na referida sentença que “não resultou provado qualquer facto ilícito praticado pelo demandado CC que o faça incorrer, e bem assim à demandada EMP01... EPE, na obrigação de indemnizar”, pelo que foi decidida a absolvição dos demandados (aqui 1.ª e 3.º RR.) quanto aos pedidos contra si formulados. (negrito e sublinhado nossos)
LL. - Depoimentos de Parte dos Réus: i. - DD (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 20/09/2022); ii. - BB (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 20/09/2022); iii. CC (depoimento produzido em Audiência de Julgamento de 20/09/2022).
MM. Escalpelizados os depoimentos, e cujos trechos essenciais encontram-se transcritos supra, dos mesmos ressalta que o comboio estava dotado de todos os mecanismos necessários para evitar qualquer tipo de acidente e não há nada que a Recorrente pudesse fazer para o evitar.
NN. Tanto mais que nada poderia fazer a Recorrente para evitar que o Recorrido acionasse o sistema de alarme e abertura manual da porta e saltasse do comboio com este em andamento.
OO. Assim, tendo por base a prova produzida, o Tribunal “a quo” deveria ter considerados como não provados os factos constantes das alíneas m), n), o), q) e s) da matéria considerada como provada e como provados os factos constantes das alíneas e), f), i), j) e k) da matéria considerada como não provada.
PP. Ao decidir diversamente, o Tribunal “a quo” efetuou uma errada apreciação da prova, incorrendo, pois, em erro de julgamento.
QQ. O que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos.

III - DO DIREITO:

RR. A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implicaria, como consequência directa e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente ação.
SS. Não se logrou demonstrar que o acidente ocorreu por culpa de qualquer dos RR..
TT. Como alegado na sentença sob recurso, “não se provou que o 3º Réu, revisor do comboio que tem a seu cargo a sinalização ao maquinista da conclusão do serviço de embarque e desembarque de passageiros, fê-la de forma deficiente, e que o segundo Réu, maquinista do comboio, tenha reiniciado a marcha, sem previamente se certificar de que todos os passageiros haviam abandonado em segurança as carruagens do comboio.”
UU. Pelo que, em consequência, foi determinado na decisão posta em crise que fica excluída a responsabilidade a título de culpa, ou seja, a responsabilidade extracontratual, enquadrando-se os autos na responsabilidade contratual, na medida em que ocorre no âmbito de um contrato de transporte.
VV. E, sendo responsabilidade contratual, nos termos do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”.
WW. Assim, foi referido na sentença que “A responsabilização da primeira Ré ocorre por via da presunção de culpa, não ilidida, enquanto empresa transportadora, nos termos do disposto no art.º 799º, nº 1 do Cód. Civil. A presunção legal de culpa implica a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no art.º 344º do Cód. Civil, impendendo sobre a parte onerada o encargo de alegação e prova da imputação do acidente a causas estranhas à sua esfera jurídica, nomeadamente, a caso fortuito, de força maior ou de acto do lesado ou de terceiro.”
XX. Mais foi decidido na sentença sob recurso que “a 1ª Ré não logrou provar que o acidente se tenha ficado a dever ao comportamento do Autor, ou que este tenha contribuído para a sua eclosão.”
YY. Ora, salvo o devido respeito, não poderemos concordar com a decisão sob recurso.

DA CULPA DO LESADO
ZZ. Considerou o Tribunal a quo – erroneamente, salvo o devido respeito – que o Recorrido não teve qualquer responsabilidade no acidente em apreço, dando por excluída a chamada “culpa do lesado”, prevista no artigo 570.º do Código Civil.
AAA. De acordo com o n.º 1 e alínea c) do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto Lei n.º 58/2008, de 26 de março, sob a epígrafe “Deveres e obrigações dos Passageiros” é proibido aos passageiros entrar ou sair da carruagem quando esta esteja em movimento, ou depois do sinal sonoro que anuncia o fecho das portas ou sempre que, por aviso sonoro ou equivalente, tal seja determinado.
BBB. Resulta, pois, da prova produzida que o Recorrido tentou sair do comboio quando este já se encontrava em andamento após este ter reiniciado a marcha depois de ter parado na estação de ....
CCC. Do dilucidado resulta que a conduta do Recorrido é ilícita, por violar claramente a proibição constante alínea c) do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 58/2008, quando, saltou do comboio enquanto este se encontrava em andamento.
DDD. E esta conduta é altamente censurável, na medida em que a ferrovia e os veículos ferroviários são fonte de acentuado perigo, especialmente nos casos em que há uma tentativa de entrada ou saída na composição quando esta se encontra já em movimento.
EEE. Nos termos do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso. Este critério de aferição da culpa é também aplicável à culpa do lesado.
FFF. Como elucida Maria de Lurdes Pereira, “uma vez que o comportamento do lesado se reflete, por via do direito à indemnização, na esfera de outrem – o obrigado a indemnizar – não se vê por que não esteja sujeito às exigências que a todos se aplicam” (Direito da Responsabilidade Civil – A obrigação de Indemnizar, AAFDL Editora e Imprensa FDUL, 2001, p. 561).
GGG. Apela-se, pois, aos padrões de um homem médio.
HHH. Neste sentido, elucida a melhor Doutrina que com «a expressão «bom pai de família» quer-se visar o homem de diligência normal, encarado não apenas no âmbito das relações familiares, mas nos vários campos de atuação. A referência a «circunstâncias de cada caso» significa que o próprio padrão a ter em conta varia em função do condicionalismo da hipótese e designadamente do tipo de atividade em causa. Para concluir se houve ou não culpa, se deve conjeturar como o homem padrão teria agido dentro do condicionalismo concreto da hipótese» (GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 302).
III. Assim, não podem restar dúvidas de que o Recorrido, ao pretender sair do comboio em andamento, em contravenção das normas legais e do mais elementar bom senso, agiu com culpa grave e exclusiva.
JJJ. A este propósito, foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 17/04/2007, no âmbito do processo n.º 07A701, e no qual se discutia a queda de uma passageira para a linha de carris ao sair de um comboio em andamento, em consequência do que teve um braço amputado pela passagem da carruagem:
KKK. “A autora não prestou a devida atenção à aproximação da estação onde pretendia sair, não diligenciou pela sua saída em segurança, nem se aproximou com a devida antecedência da porta de saída, antes de ser dado o sinal de partida ao comboio, após o serviço concluído. Qualquer passageiro medianamente cuidadoso e diligente dirige-se para a porta da saída do comboio com a necessária antecedência, certifica-se que o comboio se encontra efetivamente parado e só, então, desce da carruagem. Nunca desce do comboio já depois de ter sido dada ordem para a sua partida e com o comboio já em andamento, como a autora fez, constituindo-se, por isso, única culpada da sua própria desgraça e do seu lamentável dano e doloroso sofrimento”.
LLL. Afirmou, ainda, o referido acórdão que: “Se a autora se lançou para a porta do comboio e iniciou a descida da carruagem em direção ao cais ou à plataforma da estação e saiu dele quando o serviço da paragem já estava concluído, a ordem de partida já tinha sido dada e o comboio já tinha iniciado a sua marcha, e se aquela se desequilibrou com o impulso do andamento do comboio e caiu à linha, só a mesma autora pode ser considerada a única culpada pelo acidente de que foi vítima, em termos de causalidade adequada” (negrito e sublinhado nossos).
MMM. Não restam dúvidas que a atuação culposa do Recorrido concorreu, em exclusivo, para a produção do acidente e consequentes danos que se vieram a verificar.
NNN. Não tivesse o Recorrido saltado do comboio em andamento nunca teria sofrido as lesões que alega. A atitude leviana do Recorrido é a única causadora dos danos sofridos, quando, contra as mais elementares regras de prudência, tentou sair do comboio em andamento.
OOO. Dispõe o artigo 25.º do Decreto Lei n.º 58/2008, de 26 de março que “Fica excluída a responsabilidade do operador quando o passageiro não tenha observado os deveres e obrigações a que está obrigado, designadamente a aquisição do título de transporte e demais deveres relativos à segurança a respeitar relativa ao transporte.”
PPP. Nesse mesmo sentido, estabelece o artigo 26.º do Anexo I ao Regulamento CE 1371/2007, de 23 de outubro que o transportador fica isento de responsabilidade quando o acidente se fique a dever a uma falta do passageiro.
QQQ. Por tudo isto, consideram-se reunidos os pressupostos de verificação da figura da “culpa exclusiva do lesado”, motivo pelo qual deve o Tribunal ad quem excluir o pagamento de qualquer indemnização, pela Recorrente, ao Recorrido, nos termos do artigo 570.º do Código Civil.
RRR. Assim, deve a Sentença recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que absolva integralmente a Recorrente do pedido formulado pelo Recorrido.
SSS. Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos artigos 570.º do Código Civil, 25.º do Decreto Lei n.º 58/2008, de 26 de março e artigo 26.º do Anexo I ao Regulamento CE 1371/2007, de 23 de outubro, entre outros, motivo pelo qual a decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada na íntegra.

O A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)

2. Questões a apreciar
O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida,

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” ( cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida).

As questões que cumpre apreciar são:
- impugnação da decisão de facto – o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e valoração da prova produzida, concretamente, a mesma não permitia dar como provada a factualidade elencada nas alíneas m), n), o), p), q) e s) dos factos provados, a qual deve, assim, ser considerada não provada e impunha desse como provada a factualidade elencada nas alíneas e), f), i), j) e k) dos factos não provados, a qual deve, assim, ser considerada provada?
- erro de direito – deve considerar-se verificada a culpa do lesado e, assim, a Ré deve ser absolvida do pedido?

3. Fundamentação de facto
Decisão de facto do tribunal a quo:
3.1. Factos provados
a) No dia 18 de Abril de 2014, pelas 05h20m, ocorreu um acidente ferroviário à saída do Apeadeiro da ..., freguesia ..., concelho ..., ao Km 78.200 da linha ferroviária do ..., em que foram intervenientes o comboio nº ... e o passageiro AA, aqui Autor.
b) O referido comboio era conduzido pelo maquinista BB, aqui 2º Réu, o qual era empregado da EMP01..., EPE, ora 1ª Ré, fazendo-o como maquinista, por conta, interesse e sob a direcção da sua entidade patronal.
c) Tinha a seu cargo a função de condução do comboio e de se certificar do fecho das portas das composições/carruagens do referido comboio antes do início/reinício da marcha.
d) O 3º Réu CC desempenhava ao serviço da 1ª Ré a profissão de revisor no identificado comboio, em cumprimento das suas ordens e instruções e sob a sua direcção efectiva.
e) Tinha a seu cargo, entre outras, a responsabilidade de fiscalização e revisão de títulos de transporte dos diversos passageiros que se encontrem no interior do comboio, a função pontual de cobrança de bilhetes, e de sinalização ao maquinista de que o serviço de embarque e desembarque de passageiros estava concluído.
f) No dia em apreço, por volta das 05h00, o Autor encontrava-se na estação de ..., e pretendendo regressar a sua casa, sita na freguesia ..., adquiriu um bilhete de comboio com destino à estação de ..., pagando o preço correspondente.
g) Após entrou no comboio, que partiu da estação de ..., pelas 05h11.
h) Todas as composições que compunham o comboio encontravam-se equipadas com portas de funcionamento automático, destinadas ao embarque e desembarque dos passageiros respectivos.
i) De acordo com as instruções impostas pela 1ª Ré, todas as portas de todas as composições devem manter-se permanente fechadas quando os comboios se encontram em movimento.
j) Só podendo ser abertas nas estações e apeadeiros, através do sistema de abertura e fecho automáticos, e só podendo ser fechadas uma vez que se encontre completamente efectuado o embarque e desembarque de passageiros em condições de segurança, após sinalização efectuada pelo revisor do comboio com a respectiva lanterna verde.
k) Cerca das 05h20, após ter percorrido todo o trajecto que mediava desde a estação de ..., o comboio nº ..., parou no apeadeiro da ..., na freguesia ....
l) Porque pretendia sair nesse apeadeiro da ..., o Autor tentou sair pela porta da composição por onde viajava.
m) No momento em que o Autor se encontrava a sair pela porta da carruagem onde viajava, ocorreu o fecho súbito das portas, tendo o Autor ali ficado preso pelo tornozelo esquerdo.
n) O comboio reiniciou a marcha arrastando o Autor ao longo de cerca de 90 m, pendurado com o tornozelo esquerdo entalado e preso entre as portas da carruagem.
o) Para se proteger o Autor apoiou as suas mãos na plataforma do cais de embarque e na linha.
p) O comboio só parou a marcha após ter sido accionada a alavanca de emergência por um passageiro que na altura viajava no referido comboio.
q) Momento esse em que a porta abriu e o Autor se conseguiu soltar.
r) O segundo Réu apenas se apercebeu do sucedido depois de ter parado o comboio.
s) Apesar de terem verificado o Autor acidentado, o 2º e 3º R. não lhe prestaram auxílio, abandonando o local.
t) Como consequência directa e necessária do sinistro, o Autor sofreu, além de dores físicas, escoriações na região palmar de ambas as mãos, dores e edema do tornozelo esquerdo e equimose na face interna do joelho direito.
u) Foi transportado de ambulância para o Hospital ..., de ..., onde lhe foi prestada assistência médica no respectivo serviço de urgência.
w) Foram-lhe efectuados exames radiológicos às regiões do corpo atingidas, prescritos medicamentos vários, nomeadamente analgésicos e anti-inflamatórios.
v) O Autor obteve alta hospitalar no mesmo dia, regressando a casa, sita na Rua ..., na freguesia ..., ....
x) Manteve vigilância do médico de família e assistência de uma psicóloga e pedopsiquiatra.
y) No momento do acidente e nos instantes que o precederam, o Autor sofreu um enorme susto e receou pela própria vida.
z) O Autor sofreu dores em todas do corpo atingidas, com maior intensidade ao nível do tornozelo esquerdo e mãos.
aa) Essas dores atingiram o Autor com maior intensidade ao longo de um período de cerca de 1 mês.
bb) Como consequência directa e necessária do sinistro, o Autor sofreu perturbação de natureza psicológica, tendo passado a ter dificuldade em dormir, ficando acordado a pensar no que aconteceu, traumatizado com o sucedido.
cc) Padeceu de um quadro compatível com “reacção de stress agudo”., apresentando alterações importantes ao nível do sono, com vários despertares nocturnos e pesadelos.
dd) Foi-lhe prescrita a toma de “valdispert”.
ee) Padeceu de cefaleias, acompanhadas de aperto no peito, tremores e sudorese.
ff) Foi-lhe instituída terapêutica psicofarmacológica para controlo da ansiedade e estabilização do ciclo do sono.
gg) Como sequelas das lesões sofridas, o Autor apresenta:
- Dores no tornozelo esquerdo que surgem esporadicamente com esforços e mudanças de tempo;
- Perda de sensibilidade nas palmas das mãos;
- Cicatriz hipercrómica com 0,5 cm x 0,5 cm no membro inferior esquerdo, praticamente imperceptível.
hh) À data do acidente, o Autor tinha 15 anos de idade (cfr. assento de nascimento junto com a p.i.).
ii) Era saudável, nunca tendo sofrido qualquer acidente ou enfermidade.
jj) As lesões sofridas e as sequelas dela resultantes determinaram um período de tempo de 30 dias de doença.
- Da instrução e discussão da causa, resultaram, ainda, provados os seguintes factos:
kk) A data da consolidação médica é fixável em 31/12/2016;
ll) O Autor sofreu um período de défice funcional temporário total de 1 dia;
mm) Sofreu um défice funcional temporário parcial de 988 dias;
nn) Sofreu repercussão temporária na actividade profissional total de 31 dias;
oo) E uma repercussão temporária na actividade profissional parcial de 958 dias;
pp) Padeceu de um quantum doloris de grau 3/7.
qq) O comboio nº ... interveniente no acidente era detido e utilizado, em regime de locação, pela 1ª Ré no exercício da sua actividade de prestação de serviços de transporte ferroviário de passageiros.

3.2. Factos não provados
a) A unidade de comboios nº ... era à data do acidente propriedade da EMP01..., EPE.
b) O Autor comprou o bilhete com destino ao apeadeiro de ..., em ....
c) Antes de proceder à emissão do correspondente bilhete, o 3º Réu questionou o Autor quanto ao seu destino real, perguntando-lhe expressamente se era ... ou ..., e este respondeu ser a estação de ....
d) A abertura e fecho de portas eram exclusivamente levados a efeito pelo revisor do comboio, o ora 3º Réu, através de comandos existentes no habitáculo onde o mesmo se encontrava alojado quando o comboio se encontrava em movimento.
e) Após a paragem do comboio no apeadeiro de ..., o 3º Réu, depois de ter verificado que não havia nenhum passageiro a embarcar e/ou desembarcar do comboio e que o comboio podia reiniciar a sua marcha em condições de segurança, posicionou-se na plataforma de embarque e desembarque de passageiros, de forma que o segundo Réu o conseguisse visualizar integralmente pelos espelhos retrovisores e transmitiu a este, através de um sinal luminosos verde, o sinal de serviço concluído para reinício da marcha.
f) Manuseando, com o braço estendido, uma lanterna de sinais, a qual, elevou e baixou, inúmeras e sucessivas vezes, por forma a referido sinal fosse, como foi, bem visto pelo segundo Réu.
g) O fecho súbito da porta no momento em que o Autor saía do comboio foi operado pelo 3º Réu CC.
h) Por deficiente sinalização efectuada pelo 3º Réu, o 2º Réu arrancou com o comboio, sem previamente se certificar de que todos os passageiros haviam abandonado em segurança as composições/carruagens do comboio nº ....
i) O Autor decidiu antecipar o seu desembarque.
j) Por essa razão, o Autor saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito.
k) Tendo, para isso, accionado o sistema de alarme e aberto a porta da carruagem de forma forçada, já com o comboio em movimento, e após o fecho automático das portas.
l) O Autor ficou a padecer de uma incapacidade parcial permanente para o trabalho.
m) O Autor não se encontra completamente curado, nem clinicamente estabilizado.
n) É previsível que o seu estado clínico vá agravar-se, tanto no aspecto funcional como situacional à medida que o tempo passa.
o) No futuro, vai ver-se na necessidade de submeter-se a uma ou mais intervenções cirúrgicas.
p) Vai ter necessidade de recorrer a consultas médicas das especialidades de ortopedia, cirurgia e psicologia, além de outras.
q) Vai ter necessidade de submeter-se a análises clínicas e exames radiológicos, ressonâncias magnéticas, ecografias e TAC.
r) Vai ter necessidade de se submeter a uma ou mais anestesias gerais.
s) Vai necessitar de comprar e ingerir medicamentos vários, nomeadamente analgésicos e anti-inflamatórios ao longo de toda a sua vida, em consequência das lesões sofridas e sequelas delas resultantes.
t) Vai sofrer os riscos e padecimentos inerentes a essas intervenções cirúrgicas.
u) Vai sofrer um ou mais períodos de internamento hospitalar.
v) Vai sofrer um ou mais períodos de doença com incapacidade absoluta para o trabalho.
w) Vai necessitar de se submeter a múltiplas sessões de fisioterapia ao longo de toda a sua vida.

4. Impugnação da decisão de facto
4.1. Requisitos

Dispõe o art.º 640º do CPC, cuja epígrafe é “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
 (…)”

Não releva dar aqui conta do percurso legislativo, até se chegar à norma em referência – para tal cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 194-199.

Apenas importa considerar que em tal percurso “…foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” – aut. e ob. cit. pág. 194

O mesmo autor, in ob. cit. pág. 196-197, procede a uma síntese da jurisprudência relativa às exigências legais da impugnação da decisão de facto, nomeadamente quanto ao “lugar” (alegações ou conclusões) em que as mesmas devem ser observadas e que são:
a) o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, dizendo em nota (337) que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, conforme dispõe o art.º 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto, cuja modificação é pretendida pelo recorrente, não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões;
b) deve ainda especificar, na motivação, os concretos meios de prova, constantes do processo (documentos ou confissões reduzidas a escrito) ou de registo (depoimentos que não foi possível gravar, mas que foram reduzidos a escrito, como sucede com cartas rogatórias) ou gravação nele realizada (depoimentos orais prestados em audiência que ficaram gravados em áudio ou vídeo), que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objecto de impugnação;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação tenha por base, no todo ou em parte, a prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere pertinentes;
d) o recorrente deixará, expresso, na motivação, a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidas.

Impõe-se acrescentar algumas precisões.

Relativamente ao referido em b), a impugnação da decisão de facto não pode ser uma impugnação genérica, a impor uma reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância; a impugnação da decisão de facto visa, única e exclusivamente “concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente” (Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 194).

Assim, não basta ao recorrente indicar, por um lado, os pontos de facto que considera mal julgados e, por outro, alguns dos depoimentos prestados, sem especificar, para cada um daqueles factos (ou bloco de factos ligados entre si, por se reportarem à mesma realidade), os concretos meios de prova que impunham decisão diversa da recorrida.

Além disso, não basta ao recorrente indicar, por um lado, os pontos de facto que considera mal julgados e, por outro, alguns dos depoimentos prestados, fazendo incidir estes, em bloco e indiscriminadamente, sobre todo o acervo factual que pretende ver alterado, sem indicar as razões pelas quais os meios de prova que convoca, impunham decisão diversa da recorrida, isto é, permitem se considere provado, ou não provado, consoante for o caso, o facto impugnado.
O recorrente tem de fazer uma apreciação crítica dos meios de prova que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida, quanto a cada um dos factos impugnados, tem de explicar porque é os meios de prova que convoca são determinantes para uma alteração da decisão de facto.
Impõe-se ao recorrente o “ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente:  cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 797 e Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 197).
E no sentido do exposto, refere-se no Ac. do STJ de 21/03/2023, processo 296/19.4T8ESP.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
“37. O art. 640.º, na alínea b) do seu n.º 1 e na alínea a) do seu n.º 2, exige que o recorrente relacione cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados com cada um dos meios de prova, com cada uma [das] passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados.
(…)
39. O facto de a Ré, agora Recorrente, ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, sem os relacionar com cada um dos meios de prova, com cada uma passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.
40. Em concreto, e em consequência da inobservância do ónus de fundamentação concludente da impugnação, a interpretação do art. 640.º do Código de Processo Civil em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade determina a rejeição do recurso.”

Relativamente ao referido na alínea c), como consta do sumário do Ac. do STJ de 18/06/2019, proc. 152/18.3T8GRD.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
III - A alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de que a impugnação da matéria de facto com base em prova gravada tanto se pode fazer mediante a indicação dos concretos segmentos da gravação como mediante a transcrição deles.
IV - Todavia, transcrever os depoimentos é reproduzir objetivamente, sem fazer intervir qualquer subjetividade, filtro ou juízo apreciativo, aquilo que as pessoas ouvidas declararam (verbalizaram).
V - Não vale como transcrição uma “resenha” (sic) ou aquilo que “em suma” (sic) terão referido as pessoas de cujos depoimentos o recorrente se quer fazer valer.
VI - Neste caso não se está senão perante a interpretação dada pelo recorrente aos depoimentos em causa, e não, como é devido, perante uma transcrição objetiva do teor desses depoimentos.

Em terceiro lugar, ainda quanto ao referido em c), a alínea a) do n.º 2 do art.º 640º rege para a hipótese de os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados e o recorrente não dar cumprimento ao ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, nem proceda à transcrição dos excertos que considere relevantes.
E, caso se verifique esta hipótese, determina a rejeição do recurso “na respectiva parte”, ou seja - e é isto que se quer relevar -, na parte relativa aos meios probatórios que tenham sido gravados.
Se acaso a parte tiver invocado, além de meios probatórios que tenham sido gravados, outros meios de prova – documentos, perícia - nesta parte, quanto a estes meios de prova, a impugnação não pode ser rejeitada.

Finalmente e como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 201, a análise do cumprimento destes ónus deve ser realizada “à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça”.

O recurso da decisão da matéria de facto não pode ser objecto de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido os Ac.s do STJ de 27-09-2018, processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, de 18/06/2019, processo 152/18.3T8GRD.C1.S1 e de 08/09/2021, processo 5404/11.0TBVFX.L1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt/jst, Abrantes Geraldes, ob cit. pág. 198-199 e Rui Pinto, in Manual do Recurso Civil, I, AAFDL Editora, pág. 304).
A letra do art.º 640º n.º 1 é lapidar em afasta a possibilidade de despacho de aperfeiçoamento ao dispor que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:…”
Ou seja: se a impugnação da matéria de facto não observar os referidos requisitos, nessa parte o recurso deve ser rejeitado.
E tanto assim é, que em sede de impugnação do recurso em matéria de facto não existe norma semelhante à do n.º 3 do art.º 639º, onde se dispõe: “Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
Finalmente, nos termos do art.º 652º n.º 1 alínea a) do CPC, que define a função do relator, dispõe que este apenas pode “convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”

4.2. Em concreto
A impugnação cumpre suficientemente os requisitos do n.º 1 do art.º 640º do CPC, pois a recorrente indica:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Impõe-se aqui consignar que muito embora a recorrente tenha elegido como objecto da impugnação um conjunto de factos provados e um conjunto de factos não provados, os mesmos estão em íntima conexão entre si, pois dizem respeito à mesma realidade, ou seja, à dinâmica do evento, distinguindo-se pelo facto de nos primeiros se encontrar genericamente o que foi alegado pelo A. na petição inicial e nos segundos se encontrar genericamente o que foi alegado pela Ré na contestação.
E, sendo assim, a indicação, também em conjunto, dos meios de prova, adequa-se suficientemente ao disposto nesta alínea.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Impõe-se, assim, proceder à análise da impugnação deduzida.

4.3. Da modificabilidade da decisão de facto
O art.º 662º do CPC, com a epigrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, dispõe:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
(…)”

Está em causa saber como deve a Relação mover-se no domínio da modificabilidade da decisão de facto motivada pela impugnação da decisão de facto.

A apreciação, pela Relação, da decisão de facto impugnada, não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj)

O sentido deste normativo é o de impor à Relação o dever de modificar a decisão de facto, sempre que, havendo impugnação da matéria de facto e no respeito do princípio do dispositivo quanto ao objecto do recurso, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, entendendo-se que:
i) incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do citado  art.º 662º],  à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1 e em sentido semelhante os Ac.s do STJ de 14/09/2021, proc. 60/19.0T8ETZ.E1.S1, de 13/04/2021, proc. 2395/11.1TBFAF.G2.S1 todos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj) assumindo-se o mesmo como tribunal de instância (Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, 6ª edição, pág. 331 e 332);
ii) no processo de formação de uma convicção autónoma, a Relação não está adstrita “aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido” (o Ac. do STJ, de 20.12.2017, proc. 3018/14.2TBVFX.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj), tendo plena aplicação o disposto no art.º 413º do CPC.

De referir ainda que na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, caso a Relação proceda à alteração da mesma e se verifique ser necessário, em função da reapreciação conjunta e global dos factos, alterar algum facto não impugnado, pode a Relação fazê-lo a bem da coerência daquela decisão (cfr. Ac. do STJ de 29/04/2021, proc. 684/17.0T8ABT.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).
           
Importa ainda, neste âmbito, ponderar o princípio da livre apreciação da prova e que também se aplica à Relação na reapreciação da prova.

O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe que “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

A análise crítica das provas a que se refere o n.º 4 citado, significa, em primeiro, uma análise conjugada de toda a prova produzida e em segundo uma análise segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e da experiência, dispondo, a este respeito, o n.º 5 do art.º 607º que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, o que tem em vista a prova por declarações de parte, salvo na parte em que constituam confissão, a prova documental escrita a que falte algum dos requisitos exigidos na lei, a prova pericial, a prova por inspecção e a prova testemunhal, provas relativamente às quais a lei dispõe, expressamente (cfr.  artºs 466º n.º 3 do CPC e art.ºs. 366º, 389º, 391º e 396º do CC, respectivamente), que estão sujeitas à livre apreciação do tribunal.

O n.º 4, ao determinar que o juiz especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, impõe que o juiz explique como se convenceu com as provas que se produziram, que motive a decisão de facto.

Assim, a motivação consiste em exarar o raciocínio do tribunal para uma dada decisão de facto e deve conter, para além da indicação dos concretos elementos probatórios que lograram aceitação por parte do tribunal, as razões ou motivos dessa aceitação.

São estes dois factores - o convencimento e a dificuldade de apurar a verdade - que se misturam e impõem que o juiz explique como se convenceu com as provas que à sua frente se produziram.

Refere Manuel Tomé Soares Gomes, Da Sentença Cível, CEJ, 2014, https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 29:
A motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.”

Por outro e no que tange à formulação dos juízos probatórios, importa não esquecer que a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436).

Ou seja: a prova judicial não tem que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca dos factos a provar; a prova judicial nunca é a realidade naturalística das coisas; o que a prova judicial deve determinar é um grau de probabilidade (do facto) tão elevado que baste para as necessidades da vida.

Como refere Manuel Tomé Soares Gomes, in ob. cit. pág. 25:
“… a valoração da prova, por parte do tribunal, consubstancia[-se] na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio pragmático sobre as ocorrências da vida. “

E mais adiante, pág. 26: “prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso.“

O disposto no art.º 607º também é aplicável à Relação nos termos do disposto no art.º 663º n.º 2 do CPC, mas com as devidas adaptações, porquanto, muito embora na eventual reapreciação da decisão da matéria de facto caiba à Relação formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, tal reapreciação não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. 

Assim refere-se no Ac. desta RG de 04/04/2019, processo 1012/15.5T8VRL-AV.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg (sublinhado nosso), “ a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.“

Por outro lado, uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, o juiz da 1ª instância encontra-se numa posição privilegiada para proceder à sua valoração, já que, através da imediação, tem acesso ao comportamento das partes e das testemunhas, o que lhe permite aferir, de forma cabal, da respectiva espontaneidade e credibilidade.
Tal não sucede com a Relação, que apenas dispõe do registo de som e não também de imagem.

Mas essa é uma consequência das opções assumidas pelo legislador, ou seja, a Relação reaprecia a decisão da matéria de facto com base nos elementos que lhe estão acessíveis.
Não tendo a Relação aquele elemento – imediação – e não havendo elementos probatórios que lhe permitam formar um juízo seguro de que existe erro de valoração da prova, deverá ser dada prevalência à decisão da 1ª Instância.

Assim refere Ana Luísa Geraldes, in «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609 (sublinhado nosso):
«Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».

4.4. Em concreto
A recorrente pretende que a factualidade constante das alíneas m), n), o), p), q) e s) dos factos provados deve ser considerada não provada e a factualidade elencada nas alíneas e), f), i), j) e k) dos factos não provados deve ser considerada não provada.

As citadas alíneas têm o seguinte teor:
- dos factos provados:
m) No momento em que o Autor se encontrava a sair pela porta da carruagem onde viajava, ocorreu o fecho súbito das portas, tendo o Autor ali ficado preso pelo tornozelo esquerdo.
n) O comboio reiniciou a marcha arrastando o Autor ao longo de cerca de 90 m, pendurado com o tornozelo esquerdo entalado e preso entre as portas da carruagem.
o) Para se proteger o Autor apoiou as suas mãos na plataforma do cais de embarque e na linha.
p) O comboio só parou a marcha após ter sido accionada a alavanca de emergência por um passageiro que na altura viajava no referido comboio.
q) Momento esse em que a porta abriu e o Autor se conseguiu soltar.
…..
s) Apesar de terem verificado o Autor acidentado, o 2º e 3º R. não lhe prestaram auxílio, abandonando o local.

- dos factos  não provados
e) Após a paragem do comboio no apeadeiro de ..., o 3º Réu, depois de ter verificado que não havia nenhum passageiro a embarcar e/ou desembarcar do comboio e que o comboio podia reiniciar a sua marcha em condições de segurança, posicionou-se na plataforma de embarque e desembarque de passageiros, de forma que o segundo Réu o conseguisse visualizar integralmente pelos espelhos retrovisores e transmitiu a este, através de um sinal luminosos verde, o sinal de serviço concluído para reinício da marcha.
f) Manuseando, com o braço estendido, uma lanterna de sinais, a qual, elevou e baixou, inúmeras e sucessivas vezes, por forma a referido sinal fosse, como foi, bem visto pelo segundo Réu.
….
i) O Autor decidiu antecipar o seu desembarque.
j) Por essa razão, o Autor saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito.
k) Tendo, para isso, accionado o sistema de alarme e aberto a porta da carruagem de forma forçada, já com o comboio em movimento, e após o fecho automático das portas.

Percorrida a motivação da decisão recorrida, verifica-se que a mesma não é feita por referência a cada um dos factos provados ou não provados ou, pelo menos, por referência a conjuntos de factos, antes se tendo procedido a uma motivação “corrida”, ainda que perceptível. [2]

Assim, é possível afirmar que a mesma considerou provada a factualidade constante das alíneas m), n), o), p), q) e s) dos factos provados com base:
- no depoimento “das testemunhas EE, FF e GG, uma vez que presenciaram os factos, viajando com o Autor no dia do acidente. // Todos confirmaram as circunstâncias de tempo e de espaço em que apanharam o comboio”, afirmando-se mais adiante que “[a]pesar de algumas inconsistências dos depoimentos das testemunhas FF, EE e GG, concretamente no que respeita à autoria do acionamento do sistema de emergência, a verdade é que todos eles foram unânimes quanto às circunstâncias e dinâmica do acidente.”;
- nas declarações de parte do A.;
- no facto de ser a versão que o A. e as testemunhas referidas apresentaram, logo após o acidente, quer à PSP, que tomou conta da ocorrência, quer ao voluntário da Cruz Vermelha, que prestou os primeiros socorros ao A. e que o A. apresentou às equipas médicas e à psicóloga que o acompanhou e no processo crime;

E considerou não provada a factualidade elencada nas alíneas e), f), i), j) e k) dos factos não provados porque:
- logicamente considerou provada uma diferente versão da realidade, com base nos elementos já referidos;
- no documento ..., que constitui o ..., junto com a contestação;
- no depoimento de parte do legal representante da EMP01...;
- no depoimento da testemunha CC, no Auto de participação, apresentou uma versão diferente da que deu no julgamento, afirmando a decisão recorrida: “No auto de participação referiu que depois de ser accionado o sistema de alarme e o comboio ter parado, percorreu a composição, tendo verificado que o mesmo tinha sido accionado na última carruagem do comboio, onde seguiam os jovens que haviam embarcado em .... Fora do comboio, junto à linha encontrou os jovens, um deles sentado na brita, que se queixava com dores numa perna, provavelmente por ter saltado para fora do comboio. Nos presentes autos, referiu que encontrou o Autor sentado na parede junto à linha, e que os companheiros referiram que se magoou quando saltou para a linha. Certo é que no mesmo dia do sinistro não referiu na participação que os jovens lhe tinham dito que o Autor se magoou ao saltar do comboio.
- na consideração de que “os Réus BB e CC, respectivamente, maquinista e revisor do comboio, embora tivessem procurado imputar o acidente aos Autor e seus companheiros, fazendo crer que abriram a porta do comboio em andamento e saltaram para a linha, o certo é que se tratam de argumentos meramente especulativos, na medida em que não presenciaram o acidente, pelo que os seus depoimentos não infirmam ou abalam a credibilidade dos depoimentos das testemunhas supra referidas.”

A recorrente impugna a decisão de facto quanto aos pontos de facto indicados, invocando a sentença proferida no processo crime, por a mesma ter absolvido o aqui R. CC do crime que lhe era imputado e a aqui Ré EMP01... do pedido de indemnização apresentado pela EMP02..., e os depoimentos de parte.

O recorrido contrapõe com o depoimento das testemunhas EE, FF, GG, HH e II

Vejamos

Impõe-se, desde já, verificar se a sentença proferida no processo crime n.º 803/14.... - que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., no qual o Recorrido figurou como assistente, o 3.º R. como arguido e a 1.ª R. como demandada cível e que absolveu o 3º R. da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência, p.e p. pelo art.º 148º, n.º 1 do CP e julgou improcedente o pedido de indemnização cível formulado pela EMP02... – Unidade Local de Daúde do ... EPE contra a aqui 1ª Ré -, tem alguma eficácia probatória.

Em geral, muito embora a sentença (entendida em sentido amplo, abrangendo, portanto, os Acórdãos) constitua um documento autêntico, o âmbito da sua força probatória é o que se aplica a tais documentos – nos termos do disposto no art.º 371º do CC, os factos que referem como praticados pelo juiz, os factos que nelas são atestados com base nas suas percepões  (cfr. Maria José Capelo, A Sentença entre a Autoridade e a Prova, pág. 108-110), não abrangendo as suas premissas (aut. e ob. cit. pág. pág. 120-121) e valendo o dispositivo como caso julgado ou autoridade de caso julgado (aut. e ob.. cit. pág. 116).

Mas no caso há que ter em consideração o disposto nos art.ºs 623º e 624º do CPC.
O primeiro, cuja epígrafe é “Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória” dispõe:
A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.

No caso, a sentença penal foi absolutória, pelo que há que ter em consideração o disposto no n.º 1 do art.º 624º do CPC, cuja epígrafe é “Eficácia da decisão penal absolutória”:
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.

Referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, volume 2º, 3ª edição, pág. 765 que ”a previsão do artigo não é integrada pela absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido, mas pela absolvição pela prova (positiva) de factos que, na acção civil, ele teria de outro modo, o ónus.”

E em sentido semelhante Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 774 escrevem que “[o] preceito não abarca toda e qualquer sentença absolutória, designadamente aquela em que a absolvição emerge do principio in dúbio pro reo, mas apenas aquela em que seja demonstrado, pela positiva, que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados e que servem de sustentação à pretensão de natureza cível deduzida autonomamente.”

Ou seja: o normativo em referência pressupõe que, nos casos em que era imputada ao arguido a prática de um crime por negligência, a sentença penal absolutória contenha, no elenco dos factos provados, factos que demonstrem que o arguido observou os deveres de cuidado que se impunham no caso concreto ou que os factos foram praticados por um terceiro.

E, assim, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in ob. cit. pág. 765:
“Pode, porém, a absolvição basear-se na prova de factos impeditivos do efeito dos factos constitutivos que, de outro modo, levariam à condenação. Passa então a caber ao autor da acção civil o ónus de provar o contrário. Assim, por exemplo, nos casos em que o titular do direito de indemnização não tem de provar a culpa do devedor (por exemplo, art.s 491 CC, 492-1 CC, 493-1 CC (…) a prova, no processo penal, de que o arguido actuou com a diligência devida, ou de que o ato ilícito se deveu a negligência de terceiro, onera o autor com a prova de que assim não foi e a actuação foi culposa. Isso mesmo revela o n.º 2, ao estabelecer que a presunção estabelecida pelo n.º 1 prevalece sobre outras “presunções” de culpa estabelecidas na lei civil. Não se trata, pois, da presunção da inexistência dum facto (como, com menos rigor, se lê no preceito), mas da presunção da ocorrência do seu contrário.”

Destarte, porque verdadeiramente a presunção não é da inexistência dum facto, mas da sua existência, o facto provado, na sentença penal, que permita concluir que o arguido agiu diligentemente, faz recair sobre o autor, na acção cível, o ónus probatório de que assim não aconteceu e de que essa actuação foi culposa (cfr. Ac. do STJ de 11/07/2019, proc. 7318/17.1T8CBR.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

Tal não sucede no caso da sentença penal em referência, pois os factos susceptíveis de integrar a prática do crime que lhe era imputado – de ofensas corporais por negligência – constam no elenco dos factos não provados, afirmando-se na mesma:
 “Ora, no caso que nos ocupamos, apenas se apurou que o arguido seguia como revisor no comboio ..., a dinâmica do acidente e as consequências que daí advieram para o ofendido.
A demais factualidade, nomeadamente a conduta do arguido que teria determinado o fecho precipitado das portas e subsequente acidente resultou não provada.
Assim, não se pode concluir que o arguido não observou, portanto, o cuidado exigido enquanto revisor na circulação ferroviária e “necessário para proteger os bens jurídicos em causa” (…)
(…)
Assim, não se tendo apurado desde logo qualquer violação do dever objectivo de cuidado que impendia sobre o arguido, nenhum juízo de censura lhe pode ser assacado, e é de concluir que ao arguido não pode ser imputada a prática do crime por que vem pronunciado.”

Ou seja: a sentença penal em causa alicerçou-se na falta de prova dos factos imputados ao arguido, 3º R.

Sendo assim, a sentença penal absolutória em referência, não tem qualquer eficácia probatória nos presentes autos e, concretamente, não é possível dar como provados quaisquer dos factos impugnados, nomeadamente os elencados nas alíneas e) e f) dos factos não provados, pois os mesmos não constam dos factos provados naquela sentença.

Quanto à prova produzida, impõe-se começar por referir a prova documental com relevo para os factos em apreço, com a seguinte nota: não cabe considerar, seja sob que forma for, os eventuais depoimentos que tenham sido prestados no processo crime, pois, tal só poderia acontecer se, como expressamente resulta do disposto no art.º 421º, n.º 1 do CPC, alguma das partes tivesse tido a iniciativa de os invocar nos autos, o que não sucedeu.

Importa considerar, em primeiro lugar, o extracto do “Manual de Condução” do comboio, junto com a petição inicial, mas ilegível e junto com a contestação, onde é legível (cfr. fls. 126v e 127 do processo físico) onde consta o seguinte:
“5.4. As portas automáticas são de funcionamento electropneumático.
O fecho das portas é comandado pelo maquinista através do respectivo interruptor existente na mesa de condução. Quando a ordem de fecho é dada, já não é possível ao passageiro, mesmo com a unidade parada, efectuar a abertura normal das portas.
A autorização de abertura das portas é efectuada pelo maquinista através do respectivo interruptor existente na mesa de condução. Quando as portas estão abertas é sinalizado na mesa de condução através dos respectivos indicadores luminosos acesos.
Um sistema de segurança impede o funcionamento da tracção enquanto os interruptores de comando estiverem na posição “0” ou “Abertura”, ficando disponível com os interruptores da posição ”Fecho”.
Caso uma porta não feche na totalidade após a ordem de fecho, ou seja aberta através do respectivo manipulo de emergência, a unidade não corta a tracção, ficando apenas sinalizada no indicador luminoso.”

Em segundo lugar há que ter em consideração a informação da EMP02... – Unidade de Saúde ..., relativa ao episódio de urgência do dia 18/04/2014, pelas 6:42, junta com a petição inicial e junta a 03/12/2021, tendo como sujeito o aqui A. e onde consta:
- (pág.1): “Arrastado pelo comboio; Trauma de pé esquerdo; Luxação perna direita; Trauma Região Lombar; TCE [Traumatismo Crânio Encefálico]; Consciente, orientado; Trauma dos MS [ membros superiores]”; “ arrastado pelo comboio; múltiplas lesões”; “ 15 anos, refere ter sido arrastado por um comboio quando a porta se fechou ao tentar entrar e ainda tinha parte do corpo de fora; apresenta escoriações na região palmar de ambas as mãos; dores difusas sem pontos álgicos específicos; dores e edema no tornozelo esquerdo; equimose na face interna do joelho direito”;
- (pág. 2): “adolescente de 15 anos trazido ao SU após ter sido arrastado pelo comboio (pé esquerdo preso nas portas automáticas); (…) apresenta escoriações na região palmar de ambas as mãos» perda de substância (epiderme). Limpeza com SF [soro fisiológico] e aplicado gase gorda; Edema no tornozelo esquerdo; equimoses múltiplas.”

Quanto à prova gravada há que considerar, essencialmente, os depoimentos de parte dos RR. e o depoimento das testemunhas EE, FF, GG, HH e II e cujo teor, em síntese e no que releva à economia do recurso, é o seguinte.

O legal representante da Ré EMP01..., DD, declarou, em síntese, que tomou conhecimento do evento dos autos por inerência de funções e por ter tido participação nas averiguações que foram feitas, tendo recolhido as participações dos agentes da EMP01... envolvidos – o maquinista e o revisor do comboio - e foi feito um Auto de averiguações para se apurar o que sucedeu, tendo concluído que um grupo de jovens embarcou no comboio em ... e pediu ao revisor bilhete para ..., porque a bilheteira estava encerrada; o comboio parou em ... e o revisor, vendo que não havia clientes para embarcar e como os jovens haviam pedido bilhete para ..., deduziu que viajariam até ... e deu partida ao comboio, que arrancou; o comboio tem um sinal de alarme, que é accionado em caso de emergência; um desses passageiros acionou o sinal de alarme e saíram do comboio em movimento ou a arrancar; o maquinista recebeu a informação de que abriu uma porta e foi accionado o sinal de alarme e parou o comboio; foi nessa altura que o revisor tomou conhecimento que os jovens queriam sair em ... e não em ... e que um deles ao sair magoou-se na plataforma; o sinal de emergência parou o comboio; depois há um outro dispositivo manual que permite abrir as portas; as portas abriram por acção dos passageiros; o comboio tem um dispositivo que permite abrir as portas estando o mesmo em movimento, dispositivo esse que está por cima da porta e que está acessível em caso de emergência; o comboio terá circulado 200 a 300 metros; não sabe quando é que eles saíram porque ninguém viu; era o primeiro comboio do dia; os comboios param em todas as estações ou apeadeiros, haja ou não passageiros para entrar ou sair.
A esclarecimentos do Ilustre mandatário do A. declarou que não foi ele que procedeu às averiguações internas, tendo mandado proceder a essa averiguação, sendo o seu depoimento com base na mesma; apenas foram inquiridos o revisor e o maquinista; é o maquinista que tem a função de abertura e fecho de portas; para isso tem na cabine de condução uns “botões”; e procede dessa forma depois de receber o sinal do revisor, de “serviço de concluído”; o  comboio não arranca se não estiverem as portas todas fechadas; as portas têm uma função de anti-entalamento; se ficar um objecto preso nas portas, estas devem chegar a um determinado ponto e voltar a abrir; mas se for um objecto pequeno, admite que dê o sinal de porta fechada; se houver um objecto preso na porta, ele não consegue iniciar a marcha; foi confrontado com o documento junto com a contestação do “Manual de Condução” e concretamente o extracto acima referido – “Caso uma porta não feche na totalidade após a ordem de fecho, ou seja aberta através do respectivo manípulo de emergência, a unidade não corta a tracção, ficando apenas sinalizada no indicador luminoso.” – e com a possibilidade de ficar preso um sapato, admitindo neste caso que, sendo um objecto maleável, pode dar sinal de porta fechada, concluindo que se ficar um objecto preso na porta, o maquinista não consegue iniciar a marcha; uma das funções do revisor é de, concluído o desembarque e embarque, dar sinal ao maquinista de que pode fechar as portas e reiniciar a marcha; não foi prestada assistência porque, de acordo com informação do revisor, o passageiro disse que estava bem, que não era necessário, estava acompanhado dos amigos; referiu de novo que os dispositivos de paragem do comboio e de abertura das portas.
A esclarecimentos da Ilustre Mandatária dos RR. declarou que o revisor sai do comboio e visualiza se há pessoas a entrar e sair; o acionamento do alarme só se dá depois de as portas fechadas e após o comboio ter iniciado a marcha; o sinal de alarme frena o comboio independentemente de acção do maquinista; só volta a andar depois de “desarmado” o alarme; perguntado se a porta podia dar o sinal de fechada com um pé ou perna lá preso, declarou que “é improvável”; se o pé estiver na parte de baixo, e o micro estiver na parte de cima, admite seja possível; o “micro” é o interruptor que quando a porta fecha e encosta à parte fixa, faz contacto eléctrico e dá sinal que a porta fechou; o revisor só entra no comboio depois as portas estarem fechadas.
E ainda a esclarecimentos do Ilustre mandatário do A. declarou que o sinal de “serviço concluído” é dado fora do comboio; se for de noite, é um sinal luminoso, através de uma lanterna; se for de dia, levanta o braço; a sua porta só fecha depois de tirar a chave.

O Réu BB, maquinista declarou, em síntese, que parou no apeadeiro de ..., não saiu ninguém, o revisor deu o sinal de “serviço concluído” e reiniciou a marcha; percorreu cerca de 100 a 150 m até que foi accionado o sinal de alarme, o que fez com o comboio parasse e posteriormente deu o sinal de abertura de uma porta do lado direito, atento o sentido da marcha; solicitou ao revisor que averiguasse o que se passava, o qual, passado um bocado, o informou que uns rapazes tinham-se esquecido de sair, destrancaram a porta, saíram para a brita e não quiseram assistência; o comboio parou fora do apeadeiro; o acionamento manual de portas é que lhe dá o sinal luminoso na cabine; depois do revisor resolver o alarme no local em que foi accionado e o informar o que se tinha passado e que podia prosseguir prosseguiu a marcha; se o A. tivesse ficado com o pé preso na porta, o comboio não andava; da cabine não viu o que se passou; entre ser accionado o alarme e o revisor lhe dar conhecimento do que passou, demorou cinco minutos; não saiu da cabine porque o comboio tem um sistema de segurança que é o do “homem-morto” que impede que o maquinista saia da cabine, sob pena de o comboio desactivar.
A esclarecimentos do Ilustre mandatário do A. declarou que o chefe do comboio é o revisor e é ele que dá o sinal de fecho de portas; se a porta não estiver completamente fechada, o comboio não tem tracção; o comboio para circular tem de ter as portas fechadas; para que o revisor dê sinal de que a marcha pode prosseguir, o embarque e desembarque tem de estar concluído; à noite, tal é sinalizado com uma luz branca ou verde.
A esclarecimentos da Ilustre mandatária dos RR. declarou que se alguém ficar preso na porta, o comboio não anda; há mais de dez anos que conduz comboios idênticos ao interveniente nos factos; mesmo ficando preso o tornozelo de uma pessoa, o comboio não anda; quando os miúdos saíram, o comboio já estava parado; quando a luz de abertura de portas acendeu, o comboio já estava parado; a saída foi para a “brita” significa que não tem a plataforma de apoio, causa uma queda; quando dá o comando de fecho de portas, o revisor já tem de estar dentro do comboio; na altura dos acontecimentos o sistema de fecho da porta do revisor através de retirada da “chave” não existia.
Finalmente respondeu ainda a questões da Sra. Juiz a quo, tendo declarado que quando o comboio parou, depois de accionado o sinal de alarme, já estava totalmente fora da plataforma.

O Réu CC, revisor da EMP01..., declarou, em síntese,  que o Autor entrou em ..., adquiriu bilhete para a estação de ..., ia acompanhado de mais três colegas e iam na última carruagem, indo todos para ..., com excepção de um que ia para a Senhora das ...;  tiraram o bilhete para ..., mas queriam sair era em ..., pelo menos o A.; e diz isto porque eles puxaram o sinal de alarme e quando chegou junto deles, foi o que ele disse; o comboio parou no apeadeiro de ... e não saiu nenhum passageiro; saiu fora e deu sinal de serviço concluído ao maquinista, através de uma luz branca; ia na carruagem da frente junto ao maquinista; o comboio tinha três carruagens; não havia outros passageiros na carruagem; o comboio reiniciou a marcha e puxaram o sinal de alarme, ou seja, a alavanca de emergência para o comboio se imobilizar em caso de emergência; o comboio parou e dirigiu-se à cauda do comboio e verificou que a porta estava desbloqueada, tendo sido aberta manualmente, o sinal de alarme tinha sido accionado e o AA estava sentado, fora da plataforma, num muro para sustentar a brita; o comboio, desde o apeadeiro até se imobilizar, percorreu 150 m; quando saiu para a plataforma, não viu abertura de porta nenhuma e como tinha a certeza de que iam para a outra estação, deu ordem de serviço concluído ao maquinista com a convicção de que não havia ali ninguém para sair; dirigiu-se à última carruagem pelo interior; disseram-lhe que puxaram o sinal de alarme porque queriam sair naquela estação; o AA queixava-se da perna esquerda e disseram que ao caírem que se aleijaram; mas só se aleijou o AA; perguntou-lhes se era necessário chamar o INEM, tendo o AA dito que não; este queixava-se de dores na perna esquerda; não lhe foi dito que o AA ficou com a perna presa no comboio e que tivesse sido arrastado.
A esclarecimentos do Ilustre mandatário do A. declarou que foram eles que disseram que tinham accionado o alarme, não lhe tendo sido referido que foi um outro  passageiro; não tinha vendido nenhum bilhete para aquela estação e não viu nenhuma porta a abrir e com convicção deu sinal de serviço concluído; desconhece que não fechando as portas completamente, o comboio, ainda assim, possa iniciar a marcha; a única evidência do acionamento da alavanca de emergência, é a paragem do comboio, não havendo qualquer sinal sonoro; o A. não lhe disse que tinha sido arrastado; o maquinista só se apercebeu do sucedido, depois de falar com ele
A esclarecimentos da Ilustre Mandatária da Ré declarou não ter dúvidas que desde que saiu à plataforma e voltou a entrar nenhuma porta abriu; o local em que o A. se encontrava sentado era brita; quando é accionado o alarme o comboio ainda não devia estar totalmente fora da estação; o comboio não consegue andar se tiver alguma porta aberta, por pouco que seja; teve o cuidado de verificar se havia movimento de abertura de portas, não tendo atendido apenas o facto de não haver bilhete para esta estação; dois dos colegas do A. estavam em baixo e dois em cima, na carruagem; o A. tinha as mãos a agarrar a perna; foi confrontado com a versão do A. de que foi arrastado ao longo da plataforma, tendo dito que no fim da mesma há uma grade, o espaço entre ela e o comboio é de 20/30 cm e o A. não conseguiria passar ali; não considerou estranha a versão que lhe foi relatada no momento; o local onde o AA estava caído tem pouca iluminação.

A testemunha HH, declarou, em síntese, que foi agente da PSP em ..., não presenciou os factos, tendo sido chamado ao local; quando chegou ao local, viu uma pessoa caída na lateral da linha e tinham sido os amigos dessa pessoa a ligar para o 112, segundo informação que lhe foi dada na altura; foi-lhe dito que o comboio tinha parado no apeadeiro, a pessoa que estava caída ia a sair e, sem que a testemunha tenha percebido porquê, a pessoa terá ficado com a perna presa no comboio, que iniciou a marcha; os amigos que estavam no comboio começaram a pedir ajuda e um outro passageiro, que seguiu viagem e não foi possível identificar, acionou o travão de emergência; as pessoas ficaram no local e o comboio seguiu viagem; ele teria sido arrastado; ele estava caído uns metros à frente da plataforma; perguntado se eram visíveis as lesões, declarou que a única memória que tem é das mãos, mas ele queixava-se da cabeça e de uma das pernas.
A esclarecimentos da Ilustre mandatária da Ré declarou que a zona onde estavam as pessoas era de pedras.

A testemunha II, voluntário da Cruz Vermelha e que na data do evento colaborava no INEM e ia na ambulância, declarou em síntese que quando chegou ao local, havia vários jovens; o A. estava no chão, na gravilha, com as mãos esfoladas; imobilizaram-no e transportaram-no ao hospital; o esfolamento que a vitima apresentava nas mãos não era compatível com um tropeçar e cair; para ficar esfolado como ficou, tinha de “ser esfregado em algum sítio”;  fizeram a limpeza e puseram gaze; as mãos era o que mais chamava à atenção.
A esclarecimentos da Ilustre mandatária da Ré declarou que entre o apeadeiro e o local onde estava o A., distam cerca de 100 m; se o A. tivesse caído do comboio teria lesões nas mãos, braços, cara; não acredita que, caso tivesse caído, o A. apresentasse aquelas lesões nas mãos.

A testemunha EE declarou que é amigo do A. e presenciou o acidente em referência nos autos, com outros colegas – o FF e o GG; o A. queria ir para ... e a testemunha para ...; o comboio saiu de ... e parou primeiro em ..., onde o A. queria sair; o A. levantou-se antes de comboio parar, estando todos sentados à porta; a abertura da porta era através de uma alavanca, abrindo depois “automaticamente”; não viu o A. a abrir a porta do comboio; o A. abriu a porta, ia a tentar sair e ficou com uma perna presa na porta, ficando esta dentro do comboio e ele fora do comboio; entretanto o comboio arrancou; foi ele quem puxou a alavanca de emergência, foi ele que viu que o A. “estava lá” por causa dos gritos; quando o comboio começou a andar, olhou pela janela e não conseguia ver o A.; entretanto levantou-se e viu o A. a ser arrastado; quando acionou o mecanismo de emergência, o comboio começou a parar; depois as portas abriram automaticamente, não tendo carregado em nenhum portão para as portas abrirem; entre a estação e o local onde parou, o comboio terá andado 100 m; quando parou o comboio já estava completamente fora da estação; quando viram o A.  a ser arrastado, entraram em pânico; quando as portas abriram o A. caiu e foram eles que o levantaram e sentaram; o A. estava combalido; as mãos e um lado da cabeça estavam em carne viva; as calças estavam rasgadas; o tornozelo estava preto; foi o FF que chamou o INEM; quando o comboio pára, apareceu “um senhor”, que acha que terá tido uma “partilha” com eles, não sabendo se terá sido ele quem vendeu ou registou o bilhete; esse “senhor” perguntou se entravam no comboio ou se saíam porque o comboio não podia estar parado; saíram todos; o A. queria sair em ...; a testemunha e o FF em ...; e o GG, nas “...”; o A. comprou bilhete para ...; perguntado se o A. tinha ficado com as mãos no estado que apresentava em consequência de se ter atirado do comboio, negou; o A. bateu com a cabeça na grade de término da plataforma; depois de acionar o mecanismo de emergência, o comboio levou alguns segundos a parar; compareceu o INEM e a PSP; o A. andou durante muito tempo com as mãos cobertas.
A esclarecimentos da Sra. Juiz a quo declarou que perante aquela situação foram pedir ajuda e um senhor que estava em outra carruagem indicou-lhe o mecanismo de emergência.
A esclarecimentos da Ilustre Mandatária da Ré [e centrando-nos apenas nas declarações da testemunha] declarou que o A., para a cabeça não bater no chão, usou as mãos para se proteger; viu o tornozelo do A. dentro do comboio; depois de accionado o mecanismo de emergência, tentaram abrir as portas, mas elas não abriam, tendo aberto depois “naturalmente”; depois de o comboio parar, o A. caiu para a gravilha; o “senhor” do comboio não perguntou se era necessária assistência; disse que o A. bateu com a cabeça na grade, porque o A. lhe disse, não tendo visto; o pé manteve-se “preto”.

Por seu turno, a testemunha FF, declarou, em síntese, que era amigo do A. e que estava com ele no dia do evento; apanharam o comboio em ...; a testemunha queria sair na estação de ..., o A. queria sair no apeadeiro de ..., porque habita naquela zona, que é anterior à estação de ...; o comboio parou no apeadeiro de ...; estavam todos sentados do lado do apeadeiro; o A. levantou-se para sair; o EE olha para fora, olharam todos e viram o A. a ser arrastado; viu o pé do A. preso na porta; ficaram em situação de “alarmismo”; o comboio parou, porque foi activado o mecanismo de emergência, não sabendo se foi o EE que o activou ou outro passageiro que apareceu, porque estava a tentar torcer o pé do A. para o mesmo sair pela “frincha” e se libertar; as portas abriam através de uma alavanca; no momento em que as portas abrem, o A. caiu; as mãos do A. estavam em carne viva e queixava-se de dores no tornozelo e de cabeça; quando o A. é assistido, o comboio já não estava; quando o A. cai, apareceu um funcionário da EMP01..., não sabendo se foi quem vendeu os bilhetes, a dizer, da porta da carruagem, que o comboio não podia estar parado; compareceu a PSP e o INEM; o A. estava consciente, mas combalido.
A esclarecimentos da Ilustre Mandatária [e, mais uma vez, centrando-nos apenas nas declarações da testemunha] declarou que ouviram um “eco”, que não sabe identificar e depois o EE olhou e viu a cabeça do A. virada para ...; quando olhou estavam no final da plataforma, onde existe uma grade, por onde passou, tendo ficado em choque naquele momento; o A. ia em diagonal; na ideia dele foi o EE a tentar acionar o alarme; quando a porta abre o A. cai e eles saem.
A esclarecimentos da Sra. Juiz a quo declarou que o A. ficou sentado de costas a olhar e a queixar-se das mãos, por estarem esfoladas.

A testemunha GG, declarou, em síntese, que é amigo do A. e que presenciou os factos; queriam apanhar o comboio e o destino do A. era ...; quando o comboio chegou ao apeadeiro de ..., o A. saiu, mas não o viram sair e acharam estranho; quando chegaram a ... o A. levantou-se e foi à vida dele; estavam a olhar para fora e não o viram a sair; “connosco já não estava; na carruagem também não estava; pusemo-nos a ver e só vimos o pé dele entalado na porta, da parte de dentro”; do lugar onde estavam sentados, dava para ver o A. a sair; quando vê o pé do A. entalado, acha que o comboio estava parado; mas depois vê o comboio em andamento, o pé preso e o A. a ser arrastado; foi um outro passageiro que puxou a alavanca de emergência; conseguiram abrir a porta e acha que o A. caiu e foram todos em auxílio dele; as mãos do A. estavam em carne viva; na cabeça tinha uma lesões, na perna também; tinha as calças rotas, rasgadas; o “pica” não prestou auxílio nenhum, tendo-se limitado a dizer que o comboio não podia estar parado e ou entravam ou saíam; ficaram todos e o comboio seguiu viagem; foi um deles que chamou o INEM, que compareceu.
A esclarecimentos da Ilustre Mandatária da Ré declarou que viu o A.  a ser arrastado quando se levantou e quando foi à porta onde ele estava pendurado; levantou-se porque não estava a ver o A. no apeadeiro, e não o viram na carruagem e foram à porta e viram ele preso; não era possível vê-lo da janela; no comboio havia pelo menos a pessoa que os veio auxiliar, mas não estava na carruagem em que estavam; quando o revisor falou, foi para todos; o mesmo não perguntou se precisavam de ajuda – “auxílio zero”.

O Autor prestou declarações de parte.
No entanto, até ao minuto 9:51:00, as mesmas são impercetíveis.
Não sendo as mesmas perceptíveis na sua totalidade entende-se não considerar as mesmas, sendo certo que o A. recorrido também não as invoca nas suas contra-alegações.

 Como já se deixou referido, o A. trouxe aos autos uma versão da dinâmica dos acontecimentos, a qual foi considerada provada e os RR. trouxeram uma outra dinâmica dos acontecimentos, a qual foi considerada não provada, sendo certo que, pelas regras da lógica, uma exclui a outra.

A recorrente pretende que se inverta a decisão, ou seja, que os factos provados sejam considerados não provados e os factos não provados, sejam considerados provados.

Desde já podemos adiantar que analisada a prova produzida, de forma conjugada e segundo as regras da lógica e da experiência, a decisão de facto, quer quanto aos factos provados, quer, concomitantemente, quanto aos factos não provados, deve, no essencial, manter-se, não podendo ser atendida a pretensão da recorrente.

Os factos provados constantes das alíneas m), n), o), p) e q) devem manter-se como tal com base no depoimento das testemunhas EE, FF e GG, por terem:
- consistência interna – revelaram razão de ciência, por terem vivenciado os factos, nada havendo que a coloque em causa; relevando o facto de terem, à data dos factos entre 15 e 17 anos e terem passado cerca de cerca de 8 anos sobre a dada dos mesmos e a idiossincrasia de cada um, depuseram, no que ao essencial respeita, de forma congruente;
- e externa – os depoimentos são, no essencial, concordantes entre si, corroborados por outros meios de prova e são compatíveis com as regras de experiência.
Assim – e quanto a concordância entre si -, as referidas testemunhas referiram que o A. ficou com o pé preso e foi arrastado; e, depois de ter sido accionado o mecanismo de emergência, as portas terem aberto e o mesmo ter caído na via ferroviária, verificaram que o mesmo estava com as mãos em carne viva.
Quanto à corroboração por outros meios de prova, a testemunha HH, agente da PSP em ..., que foi chamado e esteve presente no local, mas não presenciou os factos, declarou em julgamento a informação que na altura lhe foi dada sobre a dinâmica do evento, informação essa que coincide, no essencial, com a dinâmica do evento relatada pelas testemunhas referidas, assim as corroborando.
Além disso esta testemunha, perguntado sobre as lesões que o A. apresentava, declarou que a única memória que tem é das mãos, mas ele queixava-se da cabeça e de uma das pernas.
Ainda quanto à corroboração por outros meios de prova, a testemunha II, voluntário da Cruz Vermelha e que na data do evento colaborava no INEM e que ia na ambulância, não se pronunciou sobre a dinâmica do evento, mas sobre o esfolamento que a vítima apresentava nas mãos, afirmando que não era compatível com um tropeçar e cair; para ficar esfolado como ficou, tinha de “ser esfregado em algum sítio”;  se o A. tivesse caído do comboio teria lesões nas mãos, braços, cara; não acredita que caso tivesse caído, o A. apresentasse aquelas lesões nas mãos.
Este depoimento conjugado com as regras da experiência comum, corrobora, ou seja, reforça a credibilidade daqueles depoimentos, na medida em que  o “resultado final“ do evento, que é o facto de o A. ter ficado com as mãos em carne viva, confere lógica e, assim, permite afirmar a sequência dos factos relatados: pé preso na porta do comboio quando o A. ia a sair e “arrastamento”, nomeadamente pela plataforma.
Além disso e ainda no âmbito da corroboração por outros meios de prova, consta da informação da EMP02... – Unidade de Saúde ..., relativa ao episódio de urgência do dia 18/04/2014, pelas 6:42, junta com a petição inicial e junta a 03/12/2021, tendo como sujeito o aqui A. e onde consta (sublinhados nossos):
- (pág.1): Arrastado pelo comboio; Trauma de pé esquerdo; Luxação perna direita; Trauma Região Lombar; TCE [Traumatismo Crânio Encefálico]; Consciente, orientado; Trauma dos MS [ membros superiores]”;arrastado pelo comboio; múltiplas lesões”; “ 15 anos, refere ter sido arrastado por um comboio quando a porta se fechou ao tentar entrar e ainda tinha parte do corpo de fora; apresenta escoriações na região palmar de ambas as mãos; dores difusas sem pontos álgicos específicos; dores e edema no tornozelo esquerdo; equimose na face interna do joelho direito”;
- (pág. 2): “adolescente de 15 anos trazido ao SU após ter sido arrastado pelo comboio (pé esquerdo preso nas portas automáticas); (…) apresenta escoriações na região palmar de ambas as mãos» perda de substância (epiderme). Limpeza com SF [soro fisiológico] e aplicado gase gorda; Edema no tornozelo esquerdo; equimoses múltiplas.”
Também este elemento, produzido imediatamente após o evento e por quem não tem qualquer interesse nos factos, mas procura apenas elementos para melhor tratar o paciente, corrobora o depoimento das referidas testemunhas, quer no que diz respeito à dinâmica do evento -  arrastamento pelo comboio; pé esquerdo preso nas portas -, quer no que diz respeito às lesões - trauma dos membros superiores, escoriações na região palmar de ambas as mãos, perda de epiderme, dores e edema no tornozelo esquerdo – as quais são compatíveis com a descrição da dinâmica do evento.

Dito de outra forma: o facto de haver elementos de prova sobre a dinâmica do evento relatada na data da sua ocorrência, que coincidem com a relatada pelas testemunhas presenciais - EE, FF e GG - no julgamento, quase 8 anos depois e o facto de se estabelecer, em resultado da prova produzida - o depoimento das testemunhas EE, FF e GG; o depoimento da testemunha HH; o depoimento da testemunha II; a informação da EMP02... -, que, em resultado da dinâmica do evento relatada pelas testemunhas EE, FF e GG, o A. apresentava as mãos em carne viva, permite, de acordo com as regras da lógica e experiência, conferir racionalidade e, assim, credibilidade, quanto à dinâmica do evento descrita pelos mesmos e que está descrita nas alíneas m), n), o), p) e q) dos factos provados que assim se devem manter.

Relativamente ao facto constante da alínea s) dos factos provados - Apesar de terem verificado o Autor acidentado, o 2º e 3º R. não lhe prestaram auxílio, abandonando o local –, verifica-se que o mesmo não tem qualquer relevância para o recurso porque este tem única e exclusivamente em vista a absolvição da Ré do pedido, com fundamento na alegação de que o acidente se deu única e exclusivamente por facto imputável ao A (os RR. BB e CC foram absolvidos do pedido, essa decisão não foi impugnada, tendo, portanto, transitado em julgado), ou seja, o mesmo não interfere, de forma alguma, com o juízo jurídico-conclusivo relativo a tal questão.

Dispõe o art.º 130º do CPC que não é licito realizar no processo actos inúteis.

Tal normativo tem aplicação à reapreciação da matéria de facto: se a modificação dos pontos de facto impugnados não tiver a virtualidade de, segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, conduzir, de per si ou conjugados com outros factos, à alteração do julgado, não faz sentido proceder à sua reapreciação.

Neste sentido o Ac. do STJ de 17/05/2017, proferido no processo 4111/13.4TBBRG.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma:
“Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis.
O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.
Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.”

Destarte, por inútil para a boa decisão da causa, não se conhece da impugnação da decisão de facto quanto à alínea s) dos factos provados.

Relativamente aos factos constantes das alíneas e) e f) dos factos não provados, aplica-se o que se acabou de dizer quanto à alínea s) dos factos provados - estando única e exclusivamente em causa no recurso a pretensão de absolvição da Ré (os RR. BB e CC foram absolvidos do pedido, decisão não foi impugnada, tendo, portanto, transitado em julgado) com fundamento na alegação de o acidente dos autos se dá por facto imputável única e exclusivamente ao A., os mesmos não têm qualquer interferência em tal questão.

Destarte, por inútil para a boa decisão da causa, não se conhece da impugnação da decisão de facto quanto às alíneas e) e f) dos factos não provados.

Relativamente ao facto não provado constante da alínea i) O Autor decidiu antecipar o seu desembarque – importa ter em consideração ter ficado provado e não ter sido impugnado que:
f) No dia em apreço, por volta das 05h00, o Autor encontrava-se na estação de ..., e pretendendo regressar a sua casa, sita na freguesia ..., adquiriu um bilhete de comboio com destino à estação de ..., pagando o preço correspondente.
g) Após entrou no comboio, que partiu da estação de ..., pelas 05h11.

Além disso, resulta da prova produzida – vd. os depoimentos acima transcritos – que o apeadeiro de ... é anterior à estação de ....
Sendo assim, à luz do facto de o A. ter adquirido bilhete para a estação de ..., ao sair no apeadeiro de ..., que é anterior àquela, impõe-se concluir, logicamente, que o A. quis antecipar a sua saída do comboio, relativamente à estação para a qual havia adquirido bilhete.

Destarte, este facto deve considerar provado e, assim, deve ser eliminada a alínea i) dos factos não provados e deve aditar-se uma alínea k) 1 aos factos provados com o seguinte teor:
k) 1 - O A. quis antecipar a sua saída do comboio, relativamente à estação para a qual havia adquirido bilhete.

Com a eliminação da alínea i) dos factos não provados, impõe-se alterar a redacção da alínea j) dos factos não provados, tornando-a compreensível, pois a mesma inicia-se com a expressão “Por essa razão…”.
Destarte, a alínea j) dos factos não provados passa a ter a seguinte redacção:
j) Devido ao facto referido na alínea em k) 1 dos factos provados, o Autor saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito.

Quanto aos factos não provados constantes das alíneas j) e k) devem manter-se como tal, não só porque se considera provada uma outra versão dos acontecimentos, pela natureza das coisas incompatível com a versão trazida aos autos, mas também porque não colhe adesão na prova produzida.

Assim e desde logo não tem sustentáculo nos depoimentos de parte porque:
- o depoimento de parte da Ré EMP01..., prestado por DD, não tem, desde logo, consistência interna, pois a sua razão de ciência é, apenas e tão só, a leitura dos elementos resultantes de um processo sumário de averiguações internas, em que apenas foram ouvidos o maquinista e o revisor do comboio, os aqui RR. BB e CC, não tendo presenciado qualquer dos factos considerados não provados e, além disso não tem consistência externa, pois não pode considerar-se corroborado pelo depoimento de parte de tais RR., pois eles próprios não tem consistência interna, como diremos a seguir;
- o depoimento de parte do R. BB, não tem consistência interna, pois a sua razão de ciência é o que lhe foi relatado pelo revisor e “chefe do comboio”, o R. CC, já que nunca saiu da cabine de condução, não tendo presenciado qualquer dos factos considerados não provados e, além disso não tem consistência externa, pois não pode considerar-se corroborado pelo depoimento de parte do R. CC, pois ele próprio não tem consistência interna, como diremos a seguir;
- o depoimento de parte do R. CC não tem consistência interna, porque não tem qualquer razão de ciência, sendo, acompanhando o afirmado na decisão recorrida, “meramente especulativo”, já que não presenciou nenhum dos factos e não tem consistência externa, porque, muito embora tenha afirmado que o A. e os jovens que o acompanhavam lhe afirmaram que puxaram o sinal de alarme porque queriam sair naquela estação, não só nenhum deles corroborou tal versão, como nenhuma outra prova a corroborou.

O R. CC fez referência a uma grade no final da plataforma e que o espaço entre ela e o comboio era de 20/30 cm e o A. não conseguiria passar por ela.
As testemunhas EE e FF, confirmaram a existência da grade.
Mas não confirmaram qual a distância entre a mesma e o comboio e se a mesma permitia ou não ao A. passar por ela. Aliás, afirmaram que passou por ela, sem que saibam como.
E não foi produzida qualquer outra prova quanto a tal grade, ou seja, distância até ao comboio no momento em que este estivesse perpendicular à mesma e altura da mesma e, concretamente, se alguém preso pelo tornozelo na porta do comboio e arrastado pelo mesmo e com a configuração física do A. à data, podia passar pela mesma.
Não tendo sido feita esta prova – e cabia aos RR. produzi-la de forma consistente, o que não foi feito – aquela afirmação não tem consistência externa e como tal é de desconsiderar.

Invoca-se ainda que se a porta não estiver completamente fechada, nomeadamente por nela estar “entalado” um objecto, é impossível o comboio iniciar a marcha.
Sucede que tal asserção é contrariada, desde logo, pelo extracto do “Manual de Condução” do comboio, junto com a petição inicial, mas ilegível e junto com a contestação, onde é legível (cfr. fls. 126v e 127 do processo físico) onde consta que:
“Caso uma porta não feche na totalidade após a ordem de fecho (…), a unidade não corta a tracção, ficando apenas sinalizada no indicador luminoso.”
Ou seja: perante este documento, da Ré EMP01..., afinal é possível o comboio iniciar a marcha, não estando as portas completamente fechadas.
Por outro lado, no depoimento de parte da Ré EMP01..., prestado por DD, este afirmou que as portas têm uma função de anti-entalamento; se ficar um objecto preso nas portas, estas devem chegar a um determinado ponto e voltar a abrir; mas se for um objecto pequeno, admite que dê o sinal de porta fechada; se houvesse um objecto preso na porta, ele não consegue iniciar a marcha.
Mas o mesmo acabou por declarar que se ficar um pé ou perna preso na porta, é “improvável” que a porta dê o sinal de fechada; mas se o pé estiver na parte de baixo e o micro estiver na parte de cima, admite seja possível que dê o sinal de porta fechada, sendo que o “micro” é o interruptor que quando a porta fecha, quando a porta encosta à parte fixa, faz contacto eléctrico e dá sinal que a porta fechou.

Em síntese:
i) - não se conhece da impugnação da decisão quanto aos factos constantes das alíneas s) dos factos provados e e) e f) dos factos não provados;
ii) - julga-se procedente a impugnação quanto ao facto constante da alínea i) dos factos não provados, determinando-se a sua eliminação e o aditamento aos factos provados de uma alínea k) 1, com o seguinte teor:
k) 1 - O A. quis antecipar a sua saída do comboio, relativamente à estação para a qual havia adquirido bilhete.
iii) - altera-se a redacção da alínea j) dos factos não provados, nos seguintes termos:
j) Devido ao facto referido na alínea em k) 1 dos factos provados, o Autor saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito.
iv) - julga-se improcedente a impugnação da decisão quanto aos factos constantes das alíneas m), n), o), p) e q) dos factos provados e alíneas j) e k) dos factos não provados.

5. Direito
5.1. Enquadramento jurídico
5.1.1. Do contrato de transporte ferroviário

A situação dos autos impõe a convocação do regime jurídico aplicável ao transporte ferroviário de passageiros, o qual está plasmado no Decreto-Lei 58/2008, de 26/03 (e que foi objecto de várias alterações, a primeira das quais pelo Decreto-Lei n.º 35/2015, de 6 de março, que, por posterior aos factos, de 2014, não é aqui aplicável) e concretamente de algumas normas.

Assim e desde logo, o seu art.º 2º, onde constam algumas definições, nomeadamente:
a) «Transporte de passageiros por caminho de ferro» o transporte guiado em carris que se realiza através de veículos que utilizam diversos tipos de tracção (vapor, diesel, eléctrica ou outras), operando exclusivamente em canal próprio, e por marcha programada, ou transporte ferroviário;
b) «Contrato de transporte» o contrato a título oneroso, ou gratuito, celebrado com o operador em que este se obriga a prestar ao passageiro, mediante título de transporte ou outro meio de prova, o serviço de transporte ferroviário desde o local de origem até ao local de destino;

Depois, as normas onde estão expressos os direitos de deveres dos intervenientes no contrato de transporte ferroviário: passageiro e operador.

Assim:
- o art.º 3º (sublinhados nossos):
1 - O contrato de transporte confere ao passageiro o direito ao transporte, mediante título de transporte ou outro meio de prova, nas condições definidas no presente decreto-lei.
           
- o art.º 4º:
1 - O operador obriga-se a transportar os passageiros munidos de títulos de transporte ou de outro meio de prova, nos termos do presente decreto-lei.
2 - São obrigações do operador, designadamente:
(…)
g) Prestar o serviço objecto do contrato de transporte com segurança e qualidade, nos termos da legislação aplicável;
(…)
           
- o art.º 6º:
1 - O acesso ao serviço de transporte ferroviário implica o cumprimento por parte dos passageiros do disposto neste decreto-lei e da demais legislação aplicável.
2 - É proibido aos passageiros:
a) Fazer uso do sinal de alarme fora do caso de perigo iminente;
b) Utilizar os dispositivos de emergência fora dos casos em que tal se justifique;
c) Entrar ou sair da carruagem quando esta esteja em movimento, ou depois do sinal sonoro que anuncia o fecho das portas ou sempre que, por aviso sonoro ou equivalente, tal seja determinado;
(…)

Finalmente o diploma em referência contêm uma norma sobre a responsabilidade do operador do transporte ferroviário, o art.º 25º, que tem o seguinte teor:
1 - O operador é responsável pelos danos causados ao passageiro e a bens por este transportados durante a viagem, sem prejuízo do direito de regresso sobre o gestor da infra-estrutura ferroviária caso os danos resultem de defeito dessa infra-estrutura ou avaria dos respectivos elementos.
2 - Fica excluída a responsabilidade do operador quando o passageiro não tenha observado os deveres e obrigações a que está obrigado, designadamente a aquisição do título de transporte e demais deveres relativos à segurança a respeitar relativa ao transporte.

Esta norma, constitui a específica previsão de um dever de indemnizar por violação de deveres de protecção.

Vejamos melhor e sinteticamente esta questão.

5.1.2. Da responsabilidade obrigacional
A responsabilidade obrigacional resulta do incumprimento de obrigações; pressupõe a existência de uma relação inter-subjectiva, que primariamente atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa relação específica.
 
A responsabilidade obrigacional destina-se à tutela e à realização das expectativas ligadas ao vínculo obrigacional. O seu fundamento é, no caso da assunção contratual de obrigações, uma frustração da promessa de realização nos termos acordados. Por isso, a responsabilidade obrigacional pauta-se pelo interesse de cumprimento da obrigação. Ela protege contra um risco específico de dano, aquele que decorre de uma relação creditícia precedentemente instituída entre as partes e que é, afinal, o risco da falha ou frustração do plano obrigacional estabelecido. É pois uma responsabilidade que ocorre entre pessoas determinadas e que deriva de um vínculo específico (creditício) estabelecido entre elas – Carneiro da Frada, Uma  “terceira via “ no direito da responsabilidade civil ?, 1997, pág. 22-23.

Um contrato institui uma específica ordenação de posições jurídicas entre os contraentes que vale como regra inter partes. A responsabilidade contratual pressupõe o desrespeito de uma posição jurídica atribuída pelo contrato. As posições protegidas pelo contrato são identificadas pelo seu conteúdo perceptivo. É o programa contratualmente instituído, na forma como o foi, que determina o âmbito possível da responsabilidade contratual – aut. e ob. cit. pág. 24.

Mas o vinculo obrigacional é uma realidade complexa (cfr. Mota Pinto, in Cessão de posição Contratual, pág. 321, 323, 330, 334, máxime 335 e segs, Menezes Cordeiro, Da boa fé, pág. 586 e segs., Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, pág. 36 e segs., Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações I, 10ª edição, pág. 109-112, Nuno Pinto de Oliveira, Princípios e Direito  dos Contratos, Coimbra Editora, pág. 48 e segs.), ou seja, envolve para além do dever primário de prestar e outras situações, os deveres acessórios de conduta - deveres de informação, protecção e lealdade (Menezes Cordeiro, Da boa fé, pág. 603).

Os deveres acessórios de conduta são rebeldes a uma enumeração definitiva. Mas pode efectuar-se uma distinção estrutural.

Alguns deveres acessórios visam possibilitar o interesse prosseguido pelo credor com a prestação - prosseguem um interesse conexo com a prestação (“interesse de prestação”) e têm, assim, uma finalidade positiva.
Outros visam defender as partes de todas as intromissões danosas na sua esfera jurídica (pessoa e património) - pretendem proteger a contraparte dos danos na sua pessoa e património que nascem por causa da relação contratual estabelecida (“interesse de conservação”) e têm, assim, uma finalidade negativa.

Os últimos são apelidados de deveres de protecção – sobre estes vd. Carlos Mota Pinto, Cessão da posição contratual, Coimbra, 337-356, Carneiro da Frada, que lhes dedica toda uma obra, Contrato e deveres de protecção, Coimbra e Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Coimbra, 586-631.

Carneiro da Frada, in ob. cit., pág. 41, define os deveres de protecção como ”aqueles que têm em vista defender as partes de todas aquelas intromissões danosas na sua esfera de vida (pessoa e património) que o contacto reciproco durante todo o ciclo vital  da relação obrigacional propicia.”

E elenca – ob. cit., pág. 143-185 -, vários grupos de casos de deveres de protecção.
Um respeita a deveres que visam a preservação da integridade pessoal e patrimonial das partes face aos “riscos tipicamente conexos com a configuração da actividade de execução do contrato”.
 Outro respeita a “danos na propriedade ou saúde em virtude de uma deficiente execução da própria prestação” devida.

Entretanto o mesmo autor, in “Os deveres (ditos)” acessórios” e o arrendamento”, ROA Ano 73 - Vol. I- Jan/Mar – 2013, pág. 267- 268 refere (sublinhados nossos) que “constituem aquela espécie de deveres acessórios que apresentam uma “direcção negativa”, endereçados que se encontram à preservação (reciproca) das posições e interesses, pessoas e patrimoniais, das partes susceptíveis de serem afectadas pelas condutas ou omissões uma da outra no âmbito ou no contexto da execução do contrato. De facto, a relação contratual, para lá das atribuições (patrimoniais ou não patrimoniais) pretendidas pelas suas estipulações e pelo programa contratual voluntariamente instituído, impõe, a cada um dos sujeitos que nela participam, deveres de cuidado ordenados à defesa da integridade do status quo pessoal ou patrimonial do outro.
Que assim é explica-se facilmente. Os deveres de protecção – tal como os deveres acessórios em geral – explicitam ou concretizam a consideração e a correcção do agir com que as partes hão-de tratar-se uma à outra quando unidas por um contrato. E decorrem do direito positivo…”

E mais adiante – pág. 271 - refere: “No seu conjunto os deveres de protecção e os demais deveres acessórios, [expressam] a atenção, o respeito, a correcção e o cuidado que cada um dos sujeitos há-de ter para com aqueles com os quais fica em relação por via do contrato…”

Entretanto impõem-se algumas precisões.

Assim, a relação obrigacional, além de ter uma estrutura complexa, a mesma é, também, dinâmica.
Neste sentido escreve Carneiro da Frada, in Deveres…, pág. 273: “Situados que estão, em rigor, fora do programa contratual e dos compromissos negociais que o delimitam – ainda que na sua órbita -, os deveres de consideração não se deixam determinar com exactidão ex ante. Dependem das circunstâncias, moldam-se às facetas da vida, variam e concretizam-se diferentemente consoante o desenrolar da relação (…) Têm, portanto, estes deveres, a feição de uma cláusula geral, de âmbito e conteúdo indeterminados.
A concretização que reclamam requer forçosamente ponderações de exigibilidade…”

Por outro lado, não é pelo simples facto de haver aquela ligação especial entre determinadas pessoas, tendo como fonte um contrato, que a causação de um dano, por uma parte, na pessoa ou no património da contraparte, deve ser considerada, sem mais, violação de um dever de protecção.
Atente-se no exemplo a que se refere Ricardo Gaspar Dias, in Deveres de protecção e fronteira entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual: um problema (também) de direito internacional privado, pág. 11, citando M Yzquierdo Tolsada, Sistema de responsabilidade civil, contratual e extracontractual, pág. 94, consultável in  https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16606/1/DEVERES%20DE%20PROTE%C3%87%C3%83O%20E%20A%20FRONTEIRA%20ENTRE%20RESPONSABILIDADE%20CIV.pdf: “se o arrendatário atropelar o senhorio, por negligentemente circular em excesso de velocidade, ninguém sustentará o direito de este resolver o contrato de arrendamento com base em tal ocorrência (o ”arrendatário” poderia atropelar o senhorio como qualquer outra pessoa que se aprestasse a circular naquela via).”

Assim, cabe indagar os critérios que permitam determinar se dada actuação, violadora de direitos absolutos da contraparte, releva no domínio dos deveres de protecção/consideração ou releva no âmbito dos deveres gerais e, portanto, no âmbito da responsabilidade delitual.

Quanto a esta questão escreveu Mota Pinto in Cessão…, pág. 407-410:
“Ora, a delimitação dos deveres de protecção da pessoa ou do património da contraparte, abrangidos na relação obrigacional complexa, suscita algumas dificuldades. É óbvio não ser correcta uma desmesurada extensão dos deveres de cuidado abrangidos no conteúdo do laço contratual.
Quando se poderá entender que os danos causados por uma das partes contratuais à outra, não resultam da lesão de deveres gerais, promanando, antes, da violação de especiais vínculos obrigatórios que se sobrepõem ao dever passivo universal de respeitar os direitos absolutos, pessoais e patrimoniais? Ou, o que é o mesmo, quando é que a reparação de tais danos está sujeita à tutela contratual e não à tutela aquiliana, por se situar a infracção dos deveres jurídicos no “perímetro do contrato”?
Para serem cobertos segundo os cânones da responsabilidade obrigacional (contratual), torna-se necessário que tais prejuízos pessoais ou no restante património da contraparte sejam provocados no exercício duma actividade da parte contrária compreendida no âmbito contratual. Poderia pensar-se, primo conspecto, que os deveres especiais de protecção seriam apenas os de evitar os danos provocados pela actividade do devedor no cumprimento da sua obrigação. Este entendimento seria demasiado estrito. As partes contratuais realizam, no âmbito do ordenamento contratual traçado, outras actividades, para além da mera actividade debitória de adimplemento do dever principal de prestação. (…)
(…)
Só se poderá, portanto, falar de (…) violação dum dever contratual de protecção da pessoa ou do património da outra parte, quando o comportamento danoso teve lugar na actuação ou execução do contrato, isto é, intima conexão com ela e não por ocasião dela.”

Por sua vez, Carneiro da Frada, in Contrato…, pág. 144-149 refere-se aos “riscos tipicamente conexos com a configuração da actividade de execução do contrato”, ou, em outra formulação, “danos concomitantes que se inscrevem na zona típica de risco propiciada pelo contacto contratual…”
De fora ficam “aqueles danos concomitantes cuja ligação com a relação contratual é meramente ocasional exprimindo um simples risco geral da vida” (aut. e ob. cit. pág. 154) - “no sentido de risco não típica e sensivelmente agravado pela  entrada numa relação contratual” ( aut. e ob. cit., pág. 154, nota 316) - “pese embora possa ter sido  o contrato que “pôs a ocasião” da ocorrência desses danos” (aut. e ob. cit. pág. 154).

E o mesmo aut., in Deveres…, pág. 275 escreve: “(…) o teor dos deveres de consideração requer, na ausência de lei que os especifique, uma concretização/ponderação que reclama processos argumentativos complexos e estruturas de fundamentação “ situacionadas”.
(…)
Estes deveres de comportamento, ainda que no conteúdo possam apresentar-se, em parte, coincidentes com adstrições de outro tipo – máxime delituais (…) – têm um sentido e fundamento especifico que resulta de estarem ao serviço da relação contratual”

Tendo em consideração estas reflexões, cremos que o critério essencial (com várias formulações e que nunca poderá prescindir das particularidades do caso concreto) radica no facto de o comportamento danoso ter tido lugar na actuação ou execução do contrato, isto é, em intima conexão, relação, ligação com ela e não por ocasião dela,

Quanto ao fundamento jurídico, Carneiro da Frada in Deveres…, pág. 270 considera que “No plano juspositivo, os deveres [de protecção] fundamentam-se certamente na regra de conduta segundo a boa fé (art.º 762º n.º 2 [do CC]) expressando as exigências desta”.

Ao considerar-se que os deveres de protecção decorrem da cláusula geral da boa fé, considera-se do mesmo passo que os mesmos não têm de ser objecto de declarações de vontade das partes e são autónomos face ao concreto conteúdo negocial.

Carneiro da Frada, insere os deveres de protecção na dogmática da denominada “terceira via da responsabilidade civil”, por recurso à figura da relação deveral particular (relação de deveres especiais entre sujeitos determinados).

Nuno Pinto de Oliveira, in ob. cit., pág. 403, entende que a consequência da violação dos deveres de protecção não está prevista na lei, constituindo um caso omisso.

Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações I, 10ª edição, pág. 111 entende que a violação dos deveres de protecção não dão lugar a acção de cumprimento, mas a indemnização pelos danos sofridos.

Considerando o dever de protecção como elemento integrante da estrutura da relação obrigacional complexa, na medida em que a actividade de execução da prestação principal potencie o risco de surgimento de danos laterais para o credor e na medida em que tais deveres de protecção extravasam o perímetro delitual, já que não se destinam a pessoas indeterminadas (os deveres de protecção distinguem-se das normas de conduta que conferem uma protecção delitual geral da propriedade e da pessoa, por visarem uma defesa de integridade individualizada no âmbito de uma relação social limitada e particularizada), entende-se que a violação dos deveres de protecção dá lugar a acção de indemnização, a que se aplicam as regras da responsabilidade contratual, concretamente o disposto no art.º 799º do CC, o qual dispõe que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua.

A incidência de um dever de protecção faz correr contra a parte onerada, o risco do não esclarecimento (seguro) do evento causador do dano.
Neste sentido caberá ao onerado com o dever de protecção, demonstrar que não lhe é pessoalmente censurável o facto de não ter adoptado o comportamento devido e destinado a evitar o dano, o que sucederá sempre que o dano seja devido a facto do credor, de terceiro ou a caso fortuito ou de força maior.

5.2. Em concreto
A sentença recorrida considerou, em síntese, que a situação dos autos era “enquadrável na responsabilidade contratual, na medida em que ocorre no âmbito de um contrato de transporte“ e que o “contrato de transporte é um contrato típico, nominado, que se rege pelas normas específicas de regulamentação previstas no decreto-lei nº 58/2008, de 26/03, e pelo Código Civil, nomeadamente no que concerne ao cumprimento e não cumprimento”.

            Nem a recorrente, nem o recorrido colocam em causa que se está perante um contrato de transporte ferroviário e também não vemos razões para dissentir de tal entendimento, tendo em consideração ter ficado provado que: f) No dia [18/04/2014] por volta das 05h00, o Autor encontrava-se na estação de ..., e pretendendo regressar a sua casa, sita na freguesia ..., adquiriu um bilhete de comboio com destino à estação de ..., pagando o preço correspondente.  g) Após entrou no comboio, que partiu da estação de ..., pelas 05h11.

Por outro lado, dúvidas não há de que a Ré EMP01..., enquanto operador do serviço de transporte ferroviário, estava onerada com deveres de protecção, pois nos termos do disposto na alínea g) do n.º 2 do art.º 4º do DL 58/2008, estava obrigada a “[p]restar o serviço objecto do contrato de transporte com segurança….”, o que significa o reconhecimento de que à actividade de transporte ferroviário estão associados riscos de danos, que devem ser prevenidos pelo operador, observando os deveres de cuidado que, de acordo com as circunstâncias, se imponham, sob pena de, não o fazendo incorrer, nos termos do art.º 25º, n.º 1 do mesmo diploma, no dever de indemnizar. 

A sentença recorrida ponderou ainda:
(…)
Dúvidas não existem que o Autor não chegou incólume e em segurança ao seu destino. Na verdade, o seu destino era apeadeiro de ..., embora tenha adquirido um bilhete para a estação seguinte, estação-..., desconhecendo-se as razões porque tal sucedeu, designadamente se houve dificuldades de comunicação e entendimento no momento de aquisição do bilhete entre si e o revisor.
Ficou provado que cerca das 05h20, após ter percorrido todo o trajecto que mediava desde a estação de ..., local de embarque do Autor, o comboio nº ..., parou no apeadeiro da ..., na freguesia .... Porque pretendia sair nesse apeadeiro da ..., o Autor tentou sair pela porta da composição por onde viajava. No momento em que o Autor se encontrava a sair pela porta da carruagem onde viajava, ocorreu o fecho súbito das portas, tendo o Autor ali ficado preso pelo tornozelo esquerdo. O comboio reiniciou a marcha arrastando o Autor ao longo de cerca de 90 m, pendurado com o tornozelo esquerdo entalado e preso entre as portas da carruagem.
O comboio só parou a marcha após ter sido accionada a alavanca de emergência por um passageiro que na altura viajava no referido comboio. Momento esse em que a porta abriu e o Autor se conseguiu soltar.
(…)
É certo que não se fez prova do circunstancialismo que determinou que a porta se fechasse repentinamente no momento em que o Autor ia a desembarcar, só que estando em causa uma obrigação de facto positiva – efectuar o transporte em segurança – é sobre a 1ª Ré que impende a obrigação de ilidir a presunção de culpa que sobre a mesma recaía pelo incumprimento da prestação, já que não se provou que o acidente se ficou a dever a culpa do lesado (neste sentido Acórdão do STJ, de 26/09/2013, proc. nº 7798/09.9 T2SNT.L1.S1).
            (…)
Por outro lado, a 1ª Ré não logrou provar que o acidente se tenha ficado a dever ao comportamento do Autor, ou que este tenha contribuído para a sua eclosão.
(…)
A responsabilização da primeira Ré ocorre por via da presunção de culpa, não ilidida, enquanto empresa transportadora, nos termos do disposto no art.º 799º, nº 1 do Cód. Civil. A presunção legal de culpa implica a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no art.º 344º do Cód. Civil, impendendo sobre a parte onerada o encargo de alegação e prova da imputação do acidente a causas estranhas à sua esfera jurídica, nomeadamente, a caso fortuito, de força maior ou de acto do lesado ou de terceiro (…)”

E, finalmente, no que releva, ponderou que “[p]or força do disposto no art.º 799º, nº 1 do Cód. Civil, competia à 1ª Ré, como devedora, provar que o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, o que não logrou demonstrar, não ilidindo a presunção de que o acidente sofrido pelo Autor não se deveu a culpa sua, pelo que não tendo sido afastada a culpa presumida, considera-se responsável pelo facto de ter assumido a obrigação de efectuar o transporte, bem como pelos danos decorrentes do acidente.”

Dissente a recorrente da sentença recorrida, invocando que foi o recorrido quem deu causa ao acidente, por ter violado os seus deveres de passageiro, já que, tendo decidido antecipado o seu desembarque, saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito, tendo, para isso, accionado o sistema de alarme e aberto a porta da carruagem de forma forçada, já com o comboio em movimento, e após o fecho automático das portas.

Ficou efectivamente provado que o A. quis antecipar a sua saída do comboio, relativamente à estação para a qual havia adquirido bilhete.

Porém, esse facto, por si só, é inócuo.

Mas, a sentença recorrida já tinha considerado não provado e mantém-se como tal, pese embora a impugnação da decisão de facto deduzida pela Ré/recorrente, que o A. saltou para fora do comboio enquanto este se encontrava em andamento e fora do local próprio para o efeito, tendo, para isso, accionado o sistema de alarme e aberto a porta da carruagem de forma forçada, já com o comboio em movimento, e após o fecho automático das portas.

Assim e como já afirmado na sentença recorrida, não tendo ficado provada esta factualidade - única alegada pela Ré tendente a demonstrar que o evento dos autos se tinha ficado a dever a facto culposo do aqui A. – a Ré não logrou provar que o evento dos autos se ficou a dever a facto culposo do aqui A. e, portanto, não logrou afastar o seu dever de indemnizar, como determinado pela sentença recorrida.

Deste modo, a sentença recorrida deve ser mantida e o recurso julgado improcedente.

5.3. Custas
As custas da apelação são a cargo da Ré por vencida – art.º 527º, n.º s 1 e 2 do CPC

6. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção desta Relação em manter a decisão recorrida e em consequência julgar improcedente o recurso.
*
Custas pela recorrente – art.º 527º n.ºs 1 e 2 do CPC
*
Notifique-se
*
Guimarães, 09/11/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Maria João Marques Pinto de Matos
2º Adjunto: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
           


[1] Dispõe o n.º 1 do art.º 639º do CPC (sublinhado nosso) que: “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Este normativo impõe dois ónus: o de alegação e o de conclusão.
No caso releva este último e traduz-se na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que é suposto que o apelante resuma ou condense os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. (Ac. RP de 09/11/2020, proc. 18625/18.6T8PRT.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp).
Já referia Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V volume, 1984, pág. 359, que: “As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”.
No mesmo sentido Aveiro Pereira, in “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil“, pág. 31, acessível in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf, onde refere que as conclusões são as “ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida.”
Tendo em consideração as questões objecto do recurso, que cumpre decidir, é patente a prolixidade das conclusões em virtude de não se ter observado os referidos critérios de elaboração das mesmas.
Mas opta-se por não proferir despacho de aperfeiçoamento (art.º 639º n.º 3 do CPC) e, assim, convidar a recorrente a sintetizá-las para não dilatar mais a apreciação do recurso.
[2] A motivação da decisão de facto tem uma função de autocontrolo do julgador, quer para dar cumprimento ao n.º 4 do art.º 607º, quer para evitar que a Relação se veja na necessidade de dar cumprimento ao disposto no art.º 662º, n.º 2, alínea d).
Mas a sua função essencial é, tendo em vista a transparência da Justiça, permitir que, num primeiro momento, as partes possam compreender a razão pela qual o tribunal considerou um determinado facto como provado ou não provado e, discordando, possam impugná-lo com observância dos requisitos do art.º 640º, ou seja, indicando com precisão os meios de prova que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida e explicar porque é os mesmos são determinantes para uma alteração da decisão de facto. E, num segundo momento, permitir à Relação, com precisão, eficácia e sem margem para dúvidas, o reexame da decisão de facto e decidir se houve erro de julgamento.
Neste contexto e tendo em consideração o cada vez mais elevado número de recursos em que há impugnação da decisão de facto, a bem da eficácia do sistema, cremos que também cada vez mais se impõe uma motivação com referência a cada facto, ou, pelo menos, a conjuntos de factos ligados entre si.