Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2478/21.0T8BRG.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: PARTILHA EM VIDA
DOAÇÃO
PAGAMENTO DE TORNAS
RENDIMENTOS DA HERANÇA
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Aferindo-se pela pretensão concretamente formulada em ação declarativa comum que a autora/ora recorrente não vem exigir da ré - cabeça de casal na herança indivisa por óbito de sua mãe - a entrega antecipada de rendimentos que lhe caibam enquanto herdeira (artigo 2092.º do CC), posto que tal pretensão não surge no decurso das anuidades de administração referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, mais se verificando que as partes da ação convergem quanto ao facto de que a ré, na referida qualidade de cabeça de casal, já pagou voluntariamente à aqui autora, em 24-05-2017, o valor de 23.325,25 € a título de rendimentos da herança referentes a esses anos (montante que a autora deduz no pedido ao valor total dos rendimentos que considera serem-lhe devidos por tais exercícios), o objeto da ação configura uma disputa relativa ao acerto dos rendimentos apurados e efetivamente transmitidos aos herdeiros pela administração da herança, representada pela ré da presente ação, bem como quanto ao valor do quinhão de cada herdeiro naquele saldo, pretensão que está sujeita ao processo especial de prestação de contas, nos termos previstos no artigo 2093.º do CC;
II - A partilha em vida (artigo 2029.º do CC) não exige que os pagamentos ao(s) titular/es da(s) “tornas” se faça(m) imediatamente, podendo convencionar-se livremente que o pagamento do valor das partes que proporcionalmente lhe(s) tocaria(m) nos bens doados sejam efetuados mais tarde, como sucede no caso dos autos em que decorre da interpretação das declarações exaradas na “convenção” a que se reporta o ponto 2 dos factos provados, datada de novembro de 2008, que a mãe da autora, a ré e os restantes intervenientes nos autos quiseram realizar, em vida da primeira, a partilha de um determinado conjunto de joias pelos presumíveis herdeiros, atribuindo a cada um dos quinhões valor determinado, mas acordando que o direito da ora apelante ao pagamento da parte que proporcionalmente lhe cabe nas joias doadas pela primeira outorgante surge apenas posteriormente, quando, no futuro, se proceder à partilha dos restantes bens que à data do acordo pertenciam a esta.
III - No contexto antes enunciado, o direito de crédito da autora, a que alude o referido acordo intitulado de “convenção”, funciona como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efetuou através da doação, a qual foi deferida para a data da realização da partilha, não assistindo fundamento jurídico à pretensão formulada sob o pedido 2 da petição inicial, por constituir a antecipação do cumprimento de um crédito resultante de ajustes dos quinhões, dependente da concretização da partilha no processo de inventário ainda em curso.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

No Juízo Central Cível ... - Juiz ... - AA intentou, em 06-05-2021, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, esta na qualidade de cabeça de casal e representante da herança indivisa aberta por óbito de sua mãe CC, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe:

1. A quantia de 237.868,90 €, correspondente aos rendimentos da herança ainda em dívida referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, acrescida de 9.944,45 € a título de juros vencidos desde a data de constituição de cada obrigação até 24-05-2017 e de 37.418,45 € de juros vencidos contados desde 24-05-2017 até 30-04-2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30-04-2021 até efetivo e integral pagamento (cf. pedido retificado por despacho de 23-09-2021, no seguimento de requerimento junto pela A. a 06-07-2021, com a referência ...38);
2. A quantia de 248.628,18 €, correspondente aos valores de € 176.534,00 da sua quota parte na partilha em vida das joias da falecida mãe, de 19.164,45 € a título de juros vencidos até 28-07-2014 e de 52.929,73 € de juros vencidos contados desde 28-07-2014 até 30-04-2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30-04-2021 até efetivo e integral pagamento;
3. A quantia de 63.622,38 € correspondente à correção monetária e aos juros vencidos, devidos pela ilicitude da retenção do valor de 200.100,00 € desde a data do óbito do Inventariado - 28-07-2014 - até 21-04-2021; e
4. Quantia não inferior a 250,00 € / dia, a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações aludidas nos pontos 1 a 3.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- lhe assiste direito a receber rendimentos da herança aberta por óbito de sua mãe, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, no montante de 251.249,50 €, deduzido de 23.325,25 € voluntariamente pagos pela ré em 24-05-2017, pois não se aplica aos rendimentos da herança nos anos em apreço, a regra de que o direito de cada herdeiro exigir a distribuição está limitado a metade do valor total dos rendimentos e o cálculo do montante a receber pela autora, realizado pela administração dos bens, não está correto;
- foi realizada, em vida da sua mãe, partilha das joias a esta pertencentes - cf. convenção exarada no documento ...3 da petição inicial (fls. 170 v.º do processo físico) - estando a autora, até hoje, privada do montante de 176.534,00 € que aí estipularam pagar-lhe;
- contrariamente ao entendimento vertido na decisão final dos autos de procedimento cautelar apensos, assista à autora direito aos juros vencidos, contabilizados desde a morte da Inventariada, pela ilícita retenção do valor de 200.100,00 €.
Em contestação, a ré invocou a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade passiva da ré, a litispendência e o caso julgado. Excecionou ainda a revogação da convenção relativa às joias e impugnou os fundamentos da ação, mantendo, entre outras coisas, o acerto das contas prestadas pela administração. Concluiu, pedindo a improcedência dos pedidos formulados.
No exercício do contraditório (requerimento de 12-07-2021 - fls. 1135 e ss. do processo físico), a autora respondeu à matéria de exceção invocada pela ré, negando a ocorrência das exceções dilatórias e perentória.
Por requerimento de 18-06-2021 (fls. 1201 e ss. do processo físico) vieram os co-herdeiros não demandados, deduzir intervenção processual espontânea nos presentes autos, reclamando o direito a beneficiar, na mesma medida que a autora, de todo o qualquer valor que aqui venha a ser decidido, intervenção admitida por despacho proferido a 17-10-2021 (fls. 1027 do processo físico), transitado em julgado.
Designada data para o efeito, realizou-se audiência prévia (cf. ata de 18-01-2022 - fls. 1269 do processo físico) em que foi dada às partes a possibilidade de debaterem as questões suscitadas pela ação, após o que foi proferido despacho-saneador (cf. fls. 1312 do processo físico) que julgou:
- improcedentes as exceções dilatórias da ineptidão da petição inicial e da ilegitimidade passiva;
- parcialmente procedente a exceção suscitada pela ré, declarando a ocorrência de caso julgado formado pela decisão final proferida nos autos de procedimento cautelar n.º 1.365/17.... que correram termos no Juiz ... deste Juízo Central Cível, relativamente ao ponto 3 do pedido formulado pela autora na presente ação, absolvendo-se, nessa parte, a ré da instância;
- improcedente a exceção dilatória em apreço relativamente aos demais pontos do pedido formulado pela autora; e
- suspensa a presente ação até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no(s) incidente(s) de prestação de contas da administração da herança referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016 (processo de inventário n.º ...5 e processo de prestação de contas n.º ...7...).
No seguimento de informações solicitadas aos processos de inventário n.º ...5 e processo de prestação de contas n.º ...7... foi proferido despacho, datado de 11-03-2022, que declarou cessada a suspensão da instância, imediatamente seguido da continuação do despacho saneador, no qual foi então julgada improcedente a exceção dilatória de litispendência invocada pela ré e, por erro na forma do processo, foi a ré absolvida da instância relativamente ao pedido formulado pela autora sob o ponto 1., do petitório inicial.
Após, foi proferido saneador-sentença, tendo sido indicados os factos considerados provados e conhecido o mérito da causa relativamente aos pedidos ainda pendentes, formulados nos números 2 e 4 do petitório inicial, os quais foram julgados improcedentes, com a consequente absolvição da ré de tais pedidos e condenação da autora nas custas.
Inconformada com o assim decidido, a autora apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença, terminando as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem):
«A - A Recorrente, após instauração de providência cautelar, veio instaurar ação declarativa de condenação contra a Recorrida no pagamento de quantia certa referente a rendimentos fiscais de declaração obrigatória em sede de IRS da herança referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, no montante de 251.249,50 €, deduzida do montante de 23.325,25 € de rendimentos voluntariamente pagos pela Ré em 24.05.2017), acrescido de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
B- O entendimento de que a herança lhe deveria ter pago rendimentos no valor de 251.249,50 € resulta, segundo a Recorrente, de dois argumentos principais: Em primeiro lugar, considera que não se aplica aos rendimentos da herança nos anos em apreço, a regra de que o direito de cada herdeiro exigir a distribuição está limitado a metade do valor total dos rendimentos (cfr., entre outros, artigos 13º-2 a 17º da p.i.). Em segundo lugar, diverge do cálculo feito pela administração a herança, apresentando, no artigo 18º da p.i., as suas próprias contas, por contraponto às contas que aadministração da herança prestou. E este respeito, convém recordar que as partes da acção convergem quanto ao facto de que a Recorrida pagou voluntariamente à Recorrente o montante de € 23.325,25 a 24.05.2017, a título de rendimentos da herança referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016 (cfr. artigos 37º da p.i. e 107º, 138º, 147º e 148º da contestação), montante que a Recorrente deduz no pedido ao valor total dos rendimentos que considera serem-lhe devidos pelos exercícios de 2014 a 2016.
C- Concluiu o tribunal a quo que a disputa relativa à bondade ou ao acerto dos rendimentos apurados e transmitidos aos herdeiros pela administração da herança representada pela Ré da presente acção, bem como ao valor do quinhão de cada herdeiro naquele saldo, sujeita que está a forma especial do processo, não pode ser apreciada na acção de processo declarativo comum que, para além do mais, corre termos em tribunal distinto daquele onde o inventário para partilha da herança se encontra pendente de apreciação, referindo que o erro na forma do processo constitui nulidade processual consagrada no artigo 193.º do Código de Processo Civil, impondo a anulação de todo o processo como excepção dilatória e a absolvição do réu da instância, nos casos em que a petição inicial não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada (artºs. 193º, n.º 1, 278º, nº 1, al.ª b), 576º, n.º 2, e 577º, al.ª b), todos do CPC), alegando ainda que na ação instaurada a Recorrente apresenta contra a Recorrida pedidos distintos com causas de pedir diferenciadas, assim, “por erro na forma do processo relativamente ao pedido 1 que transcende a condenação da Recorrida na entrega à Recorrente de metade dos valores das contas voluntariamente prestadas pela administração do património da herança, encontra-se o tribunal impedido de o conhecer na presente acção. Por se tratar de um vício que afecta apenas o pedido 1, não tem por consequência a nulidade de todo o processado, mas apenas a absolvição da Ré da instância relativamente ao pedido em apreço, incompatível com a tramitação da presente acção (cfr. artºs. 199º, nº 1, 278º, nº 1, al.ª e), 576º, n.º 2, 577º e 578º todos do CPC). Pelo exposto, por erro na forma do processo, absolvo a Ré da instância relativamente ao pedido 1 formulado pela Autora.”
D- Não pode a Recorrente conformar-se com a douta decisão do Tribunal recorrido, porquanto a Recorrente, para entrega dos seus rendimentos próprios decorrentes da administração da herança indivisa não teria de intentar qualquer ação especial.
E- Na verdade, como decorre do libelo probatório dos autos, o cabeça de casal da herança indivisa improcede reiteradamente à não prestação de contas em processo de inventário.
F- A disponibilização dos valores correntes da administração da herança indivisa decorre dos mapas que o cabeça de casal ordena à instrução fiscalmente obrigatória e é esses rendimentos que tem de entregar à Recorrente.
G- O apuramento dos valores líquidos a entregar à Recorrente não padece de qualquer ação especial, a qual está adjacentemente incutida à Recorrida, na instauração da ação a que alude o art. 947º do C.P.C..
H- Relembre-se que a presente ação decorre de uma providencia cautelar onde tais rendimentos, de forma incorretamente apurada, advém atribuídos à Recorrente por direito,
I- E esta não tem só direito à metade dos rendimentos distribuídos, mas antes à sua totalidade, uma vez que o cabeça de casal, não deposita contas no processo de inventário, e como tal, não pode refugiar-se nessa omissão para não entregar a totalidade dos rendimentos que são da propriedade da Recorrente.
J- Assim, salvo melhor opinião, é entendimento da Recorrente que a ação declarativa de condenação é a forma de processo para obter a condenação da Recorrida na entrega dos rendimentos fiscais que instrói a Recorrente a declarar em sede de IRS e que lhe pertencem.
K- Motivo pelo qual, deve a sentença proferida, ser revogada, e ser substituída por outra, que determine a forma do processo de ação declarativa de condenação o meio idóneo para obter da Recorrida o pagamento dos rendimentos fiscais que pertencem à Recorrente nos exatos termos formulados na petição inicial.
L- Na ação declarativa de condenação, veio ainda a Recorrente AA, pedir a condenação da Recorrida a pagar-lhe:
1. A quantia de 237.868,90 €, correspondente aos rendimentos da herança ainda em dívida referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, acrescida de 9.944,45 € a título de juros vencidos desde a data de constituição de cada obrigação até 24.05.2017 e de 37.418,45 € de juros vencidos contados desde 24.05.2017 até 30.04.2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30.04.2021 até efectivo e integral pagamento (cfr. pedido rectificado por despacho de 23.09.2021, no seguimento de requerimento junto pela A. a 06.07.2021, com a referência ...38);
2. A quantia de 248.628,18 €, correspondente aos valores de € 176.534,00 da sua quota parte na partilha em vida das joias da falecida mãe, de 19.164,45 € a título de juros vencidos até 28.07.2014 e de 52.929,73 € de juros vencidos contados desde 28.07.2014 até 30.04.2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30.04.2021 até efectivo e integral pagamento;
3. A quantia de 63.622,38 € correspondente à correção monetária e aos juros vencidos, devidos pela ilicitude da retenção do valor de 200.100,00 € desde a data do óbito do Inventariado – 28.07.2014 – até 21.04.2021; e
4. Quantia não inferior a 250,00 € / dia, a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações aludidas nos pontos 1 a 3. Alega para o efeito que: - lhe assiste direito a receber rendimentos da herança aberta por óbito de sua mãe, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, no montante de 251.249,50 €, deduzido de 23.325,25 € voluntariamente pagos pela Ré em 24.05.2017, pois não se aplica aos rendimentos da herança nos anos em apreço, a regra de que o direito de cada herdeiro exigir a distribuição está limitado a metade do valor total dos rendimentos e o cálculo do montante a receber pela Autora, realizado pela administração dos bens, não está correcto; - foi realizada, em vida da sua mãe, partilha das joias a esta pertencentes – cfr. convenção exarada no documento ...3 da p.i. (fls. 170 v.º do processo físico) – estando a Autora, até hoje, privada do montante de € 176.534,00 que aí estipularam pagar-lhe; - contrariamente ao entendimento vertido na decisão final dos autos de procedimento cautelar apensos, assista à Autora direito aos juros vencidos, contabilizados desde a morte da Inventariada, pela ilícita retenção do valor de 200.100,00 €.
M- Questionou assim o tribunal recorrido:
Se assiste à Recorrente o direito a haver da Recorrida, na proporção do seu quinhão hereditário, o valor resultante da partilha em vida das joias da falecida mãe?
- Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, qual o montante do direito de crédito da Autora?
- Encontram-se reunidos os pressupostos para fixar sujeitar a obrigação aludida na primeira questão ao pagamento de sanção pecuniária a favor da Autora?
N- O Tribunal a quo entendeu que não. Com o que não concordamos, salvo o devido respeito:
O- Do teor do documento em apreço resulta, claramente, que a mãe da Recorrente, Recorrida BB e Intervenientes quiseram realizar, em vida da primeira, a partilha …de um determinado conjunto de jóias de ouro e de prata… como evidencia o excerto da cláusula I, … pelos seus cinco filhos (…) em partes iguais para cada um deles. Fê-lo, atribuindo a cada um dos cinco quinhões o valor de € 176.534,00, correspondente a uma quinta parte do valor total de € 882.670,00 apurado em avaliação.
P- Sobre o tema, por versarem precisamente sobre o documento intitulado de “convenção” a que aqui nos reportamos e por nos merecerem inteira concordância, remetemo-nos para as considerações feitas pelo Tribunal da Relação de Guimarães no douto acórdão proferido a 14.06.2018, pela Sr.ª Juíza Desembargadora Helena Melo, nos autos de procedimento cautelar apensos (cfr. apenso “A” dos presentes autos).
Q- Voltando à leitura interpretativa do texto do documento, a aqui Recorrente (ali Quinta Contraente) aceitou a doação das joias e a doação tem efeitos translativos da propriedade.
R- A interpretação do acordo escrito não deixa, por isso, margem para dúvida de que a partilha das joias se efetuou através da doação/partilha em vida, não se podendo deste modo alegar-se que o direito da Recorrente se constitui na antecipação do cumprimento de um crédito de tornas, dependente da concretização da partilha no processo de inventário em curso, pois, todos os seus irmãos subscritores da partilha de joias, declararam que já as receberam, pelo que, após o decesso da Mãe, donatária, a Recorrente tem o direito de exigir o pagamento que lhe cabe.
S- Razão pela qual, mal andou o tribunal recorrido ao improceder o pedido formulado pela Recorrente, quanto ao pagamento da quantia de 248.628,18 €, correspondente aos valores de € 176.534,00 da sua quota parte na partilha em vida das joias da falecida mãe, de 19.164,45 € a título de juros vencidos até 28.07.2014 e de 52.929,73 € de juros vencidos contados desde 28.07.2014 até 30.04.2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30.04.2021 até efectivo e integral pagamento e a quantia de 63.622,38 € correspondente à correção monetária e aos juros vencidos, devidos pela ilicitude da retenção do valor de 200.100,00 € desde a data do óbito do Inventariado – 28.07.2014 – até 21.04.2021, porquanto, tal valor em nada se relaciona com o processo de inventário em curso, tratando-se de uma partilha em vida e cujos efeitos já se manifestaram na esfera jurídica dos subscritores, menos na esfera jurídica da recorrente.
T- Pelo que, deverá a decisão proferida pelo Tribunal recorrido ser revogada e substituída por outra que promova a procedência do pedido da Recorrente in tottum.
U- Mais pede a Autora a condenação da Ré a pagar-lhe o montante de € 250,00 por cada dia de atraso na obrigação de entregarem os valores em apreço.
V- A sanção pecuniária compulsória visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações.
W- Estando o tribunal recorrido perante a prestação de uma obrigação, deve a sanção pecuniária compulsória ser fixada, devendo revogar-se a decisão programada de improcedência da mesma.

TERMOS EM QUE E NOS MELHORES EM DIREITO QUE OS SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES MUI PROFICIENTEMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E SER CONSIDERADO PROCEDENTE, IN TOTUM!
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA E SÃ JUSTIÇA!»

A ré/recorrida apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso interposto e a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi então admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso circunscreve-se a aferir:
a) se houve erro na subsunção jurídica das concretas incidências fáctico-processuais que relevam quanto à decidida absolvição da ré da instância, por erro na forma do processo, aferindo se o pedido formulado sob o n.º 1 pode ser conhecido nesta ação declarativa comum ou se deve ser conhecido em processo especial de prestação de contas, a instaurar por dependência do inventário já pendente e que tem por objeto a partilha do acervo hereditário de que derivam as contas a prestar, conforme entendeu o Tribunal a quo;
b) se deve manter-se a decisão que julgou não assistir fundamento jurídico à pretensão formulada sob o pedido 2 da petição inicial, absolvendo a ré de tal pedido, por constituir a antecipação do cumprimento de um crédito de tornas, dependente da concretização da partilha no processo de inventário ainda em curso;
c) verificação dos pressupostos da sanção pecuniária compulsória.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na sentença recorrida:
1. No dia 24-05-2017, a autora recebeu 23.325,25 €, por conta dos rendimentos da herança aberta por óbito de sua mãe, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016.
2. Encontra-se redigido o documento intitulado “Convenção” tendo por “contraentes” “Primeira: D. CC”, “Segunda: D. BB”, “Terceiro: DD”, “Quarto: EE”, “Quinta: AA” e “Sexta: FF”, datado de Novembro de 2008, assinado pelos identificados “contraentes”, reproduzido no documento ...3 da p.i. (fls. 170 v.º e 171 do processo físico), contendo, entre outros, os seguintes dizeres:
I
A Primeira Contraente é proprietária, em domínio pleno - raiz e usufruto - de um determinado conjunto de jóias de ouro e de prata, de uso pessoal, tendo decidido proceder à partilha em vida das mesmas pelos seus cinco filhos - que são os Segunda a Sexta Contraentes – em partes iguais para cada um deles.
II
Para o efeito da efectivação da partilha acima indicada, todos os Contraentes promoveram a avaliação das jóias em causa, a qual foi realizada pelo sr. GG, avaliação essa da qual resultou que o valor total actual das referidas jóias é de € 882.670,00 (oitecentos e oitenta dois mil seiscentos e setenta euros) - cfr. doc. junto, o qual vai rubricado por todos os Contraentes.
III
Do valor de tal avaliação resulta que a cada um dos filhos da Primeira Contraente – os aqui Segunda a Sexta Contraentes - cabem jóias cujo valor totaliza a quantia de € 176.534,00.
IV
A Quinta Contraente declara não pretender que lhe seja atribuída qualquer uma das indicadas jóias, pretendendo, antes, que o valor da sua quota parte nessas jóias lhe seja atribuído em outros bens, actualmente pertencentes à Primeira Contraente, quando, no futuro, se proceder à partilha destes outros bens.
V
A Segunda, o Terceiro, o Quarto e a Sexta Contraentes procederam, entre eles, à partilha da totalidade das jóias em causa, em conformidade com a vontade comum e de cada um deles, tendo, por tal forma, ficado composto o lote atribuído, por mútuo acordo de todos, a cada um daqueles mesmos quatro Contraentes.
VI
Em face do exposto, a Segunda, o Terceiro, o Quarto e a Sexta Contraentes, obrigam-se perante a Quinta Contraentes a, quando, no futuro, se proceder à partilha dos restantes bens actualmente pertencentes à Primeira Contraente, atribuir à mesma Quinta Contraente, para além da quota parte que lhe couber na partilha de tais bens, o valor adicional de € 176.534,00 (cento e setenta e seis mil, quinhentos e trinta e quatro euros), correspondente ao quantitativo do respectivo quinhão de uma quinta parte das jóias, o qual não pretendeu receber nesta oportunidade.”

2. Apreciação sobre o objeto do recurso
2.1. A apelante expressa a sua discordância quanto ao segmento do despacho saneador em que se determinou a absolvição da ré da instância, por erro na forma do processo, quanto ao pedido formulado sob o n.º 1 do petitório inicial.
Assim sendo, importa aferir se o pedido formulado sob o n.º 1 pode ser conhecido nesta ação declarativa comum ou se deve ser conhecido em processo especial de prestação de contas, a instaurar por dependência do inventário ainda pendente e que tem por objeto a partilha do acervo hereditário de que derivam as contas a prestar, conforme entendeu o Tribunal a quo na decisão recorrida.
Para a apreciação do objeto da presente apelação importa começar por considerar que, de acordo com o princípio da legalidade das formas processuais, o processo pode ser comum ou especial, sendo aplicável o especial aos casos expressamente designados na lei e o processo comum a todos os casos a que não corresponda processo especial - cf.  artigo 546.º do CPC.
 Neste contexto, a delimitação do âmbito do processo comum é feita através de um critério residual, abarcando todos os litígios a que não corresponde expressamente alguma das formas de processo especial previstas no Livro V ou em diplomas avulsos[1].
 Assim, a adequação da forma de processo utilizada em concreto deve ser aferida mediante o seguinte critério: «vê-se no CPC - sobretudo no Livro V (art. 878.º a 1081.º) - e em leis avulsas se algum dos tipos de processos especiais aí contemplados abrange, no seu âmbito de aplicação, a hipótese em causa; em caso negativo, recorre-se ao processo comum»[2].
Por conseguinte, «o erro na forma de processo ocorre quando para apreciar a pretensão pedida numa ação não é adequada a forma de processo escolhida, erro esse que corresponde a uma das nulidades processuais principais e típicas, prevista e regulada nos arts.193º, 196º, 198º/1 e 200º/2 do C. P. Civil»[3].
Nos termos do disposto no artigo 548.º do CPC, o processo comum de declaração segue forma única.
Já os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum - cf. o artigo 549.º, n.º 1 do CPC.
Na sequência dos fundamentos enunciados na decisão recorrida, o Tribunal a quo entendeu que a pretensão formulada sob o n.º 1 do petitório inicial da ação em referência está sujeita ao processo especial de prestação de contas - que compreende a fase processual própria para …estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter um saldo e determinar se uma situação é de credor, ou de devedor do titular dos interesses geridos… -, mais concluindo ser impraticável adaptar os presentes autos com a forma comum às particularidades daquele processo especial e, por se tratar de um vício que afeta apenas o pedido 1, não tem por consequência a nulidade de todo o processado, mas apenas a absolvição da ré da instância relativamente ao pedido em apreço, incompatível com a tramitação da presente ação, nos termos do disposto nos artigos 199.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al.ª e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º do CPC.
A decisão recorrida começou por considerar que o pedido de condenação da ré no pagamento de quantia certa à autora, formulado sob o ponto número 1, tem como justificação, vertida pela autora na petição inicial, o alegado direito desta a receber rendimentos da herança referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, no montante de 251.249,50 €, deduzida do montante de 23.325,25 € de rendimentos voluntariamente pagos pela ré em 24.05.2017, acrescido de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, o que decorre, segundo a autora/recorrente, de dois argumentos principais:
i.
Em primeiro lugar, considera que não se aplica aos rendimentos da herança nos anos em apreço, a regra de que o direito de cada herdeiro exigir a distribuição está limitado a metade do valor total dos rendimentos (cfr., entre outros, artigos 13º-2 a 17º da p.i.).
ii.
Em segundo lugar, diverge do cálculo feito pela administração a herança, apresentando, no artigo 18º da p.i., as suas próprias contas, por contraponto às contas que a administração da herança prestou. E este respeito, convém recordar que as partes da acção convergem quanto ao facto de que a Ré pagou voluntariamente à Autora o montante de € 23.325,25 a 24.05.2017, a título de rendimentos da herança referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016 (cfr. artigos 37º da p.i. e 107º, 138º, 147º e 148º da contestação), montante que a Autora deduz no pedido ao valor total dos rendimentos que considera serem-lhe devidos pelos exercícios de 2014 a 2016.
Neste domínio, o Tribunal a quo fez o enquadramento das questões de natureza jurídica relevantes para a apreciação desta questão, entendendo - e bem - que o âmbito de aplicação dos artigos 2092.º e 2093.º do Código Civil (CC) gera direitos diferenciados do herdeiro ou do cônjuge meeiro, reportando-se o primeiro artigo à entrega de rendimentos da herança e o segundo preceito à obrigação de prestação de contas.
Nos termos do aludido 2092.º do CC, com a epígrafe “entrega de rendimentos”, qualquer dos herdeiros ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir que o cabeça-de-casal distribua por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam, salvo se forem necessários, mesmo nessa parte, para satisfação de encargos da administração.
Por sua vez, o artigo 2093.º do CC rege sobre a obrigação de prestação de contas, nos seguintes termos:
1. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente.
2. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração.
3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.
Tendo por base a análise do enunciado regime legal, o Tribunal a quo concluiu, no essencial, que a disputa relativa à bondade ou ao acerto dos rendimentos apurados e efetivamente transmitidos aos herdeiros pela administração da herança, representada pela ré da presente ação, bem como em relação ao valor do quinhão de cada herdeiro naquele saldo, está sujeita à forma especial do processo de prestação de contas, que corre por apenso ao processo de inventário, como sucede no caso em apreciação em que a herdeira, aqui autora, sustenta que lhe é devido valor superior ao montante apurado, aceite e já entregue pelo cabeça de casal.
No caso, a apelante/autora não vem pôr em causa, em sede recursiva, que diverge do cálculo feito pela cabeça de casal, ora ré, apresentando, no artigo 18.º da petição inicial, as suas próprias contas, por contraponto às contas que a administração da herança prestou.
Por outro lado, mostra-se definitivamente assente nos autos que, no dia 24-05-2017, a autora recebeu 23.325,25 €, por conta dos rendimentos da herança aberta por óbito de sua mãe, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016 - cf. o ponto 1.1. dos factos provados.
Como se viu, os campos de incidência do corpo dos artigos 2092.º e 2093.º do CC são diferentes, regulando este último para a prestação de contas do cabeça de casal e aquele para a distribuição de rendimentos pelos interessados[4], sendo que o artigo 2092.º do CC atribui a qualquer herdeiro, bem como ao cônjuge meeiro, o direito de exigir um adiantamento de metade dos rendimentos a que têm direito, de acordo com os respetivos quinhões[5], ou seja, permite o adiantamento de parte (até metade) dos rendimentos da herança, por conta do quinhão de cada um dos herdeiros e da parte dos bens inventariados destinada ao cônjuge meeiro[6].
Tal como refere Cristina Pimenta Coelho[7], com referência ao artigo 2092.º do CC,  «[t]rata-se de uma iniciativa dos herdeiros e do cônjuge meeiro e não de um dever que recaia sobre o cabeça de casal que, aliás, pode recusar a entrega dos rendimentos reclamados se os mesmos forem necessários para pagar encargos com a administração dos bens, p. ex., pagamento de impostos ou realização de obras de conservação de imóveis que fazem parte da herança».
A propósito da articulação entre o âmbito de aplicação dos citados artigos 2092.º e 2093.º do CC, refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-11-2015[8], em moldes que entendemos de sufragar integralmente: «(…) o artº 2092º CCiv regula a possibilidade de o herdeiro ou cônjuge meeiro exigir do cabeça-de-casal a distribuição dos rendimentos da herança indivisa; ou seja, que lhe seja entregue a parte correspondente ao seu quinhão na medida em que tais rendimentos se vão produzindo.
Aí o legislador, sabendo que a administração de bens gera rendimentos mas também a necessidade de realização despesas, na ponderação entre o interesse dos herdeiros/meeiro em não se verem privados do rendimento e do cabeça-de-casal em não se ver privados dos meios suficientes e prevenindo litígios estabeleceu que o herdeiro/meeiro não pode exigir mais do que metade dos rendimentos que lhe caibam, sem prejuízo de nem a isso ter direito se o cabeça-de-casal demonstrar a necessidade desses rendimentos para acudir aos encargos da herança.
Tal regra, no entanto só se aplica na pendência da anuidade da administração. Finda esta há lugar à prestação de contas (na qual se contabilizam como despesas os rendimentos que foram já entregues aos herdeiros/meeeiro - nº 2 do artº 2093º CCiv) e apurado o saldo este é distribuído pelos interessados na proporção dos seus direitos, deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano (nº 3 do artº 2093º CCiv)».
Idêntico entendimento foi já afirmado por este Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão proferido a 14-06-2018, em apelação interposta nos autos de procedimento cautelar em apenso[9], nos seguintes termos: «Enquanto a partilha não estiver efectivada e terminada, no decurso do exercício do cabecelato, qualquer dos herdeiros ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir que o cabeça de casal distribua por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam, salvo se forem necessários, mesmo nessa parte, para satisfação dos encargos da administração (artº 2092º do CC).
Os rendimentos a que a lei atende são os que respeitam aos bens da herança que o cabeça-de-casal administra e em que os herdeiros ou o cônjuge meeiro tenham parte.
A regra de que o herdeiro apenas tem direito a exigir até metade dos rendimentos que lhe caibam, só se aplica durante a anuidade respectiva. Finda esta, há lugar à prestação de contas (na qual se tomam em consideração tanto as despesas, como os rendimentos que foram já entregues aos herdeiros - 20193º, nº 2 do CC) e apurado o saldo este é distribuído pelos interessados na proporção dos seus direitos, deduzida a quantia necessária para fazer face aos encargos ao novo ano - 2093º, nº 3 do CC (…)».
No caso, resulta manifesto que a ora recorrente não vem exigir na presente ação a entrega antecipada dos rendimentos que lhe caibam enquanto herdeira[10], posto que a pretensão formulada em 1 não surge no decurso das anuidades de administração referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016, mais se verificando que as partes da ação convergem quanto ao facto de que a ré, na qualidade de cabeça de casal e representante da herança indivisa aberta por óbito de sua mãe CC, já pagou voluntariamente à aqui autora, em 24-05-2017, o valor de 23.325,25 €, a título de rendimentos da herança aberta por óbito de sua mãe, referentes aos anos de 2014, 2015 e 2016 (cf. artigos 37.º da petição inicial e 107.º, 138.º, 147.º e 148.º da contestação), montante que a autora deduz no pedido ao valor total dos rendimentos que considera serem-lhe devidos pelos exercícios de 2014 a 2016.
Daí que o Tribunal a quo tenha concluído - e bem - que o objeto da presente ação configura uma disputa relativa à bondade ou ao acerto dos rendimentos apurados e efetivamente transmitidos aos herdeiros pela administração da herança, representada pela ré da presente ação, bem como quanto ao valor do quinhão de cada herdeiro naquele saldo, pretensão que está sujeita ao processo especial de prestação de contas.
Com efeito, a ação de prestação de contas tem por objeto, conforme dispõe o artigo 941.º do CPC, o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
Daqui decorre que o apuramento do saldo configura o objetivo da propositura da ação de prestação de contas, o qual decorrerá, necessariamente, do prévio apuramento e da subsequente aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas.
Note-se que a obrigação de dar contas em juízo tanto impende sobre aquele que se recusa a prestá-las particularmente como sobre aquele que, tendo-as oferecido extrajudicialmente, não logrou vê-las aprovadas por quem tem o direito de as receber ou exigir[11].
Ora, a possibilidade de exigir metade dos rendimentos está de alguma maneira ligada à obrigação de prestação anual de contas que incumbe ao cabeça de casal, já que, através de tal prestação, fica a conhecer-se o montante do rendimento gerado e as despesas pagas nesse ano, podendo haver lugar a nova distribuição[12].
A este propósito, elucidam Pires de Lima/Antunes Varela[13], em anotação ao artigo 2092.º do CC: «[a] obrigação de entrega de parte dos rendimentos é independente da obrigação de prestação anual de contas, de que trata a disposição subsequente, embora da prestação de contas, quando haja saldo positivo, possa resultar um dever de nova distribuição de rendimentos (…)».
Tal como amplamente sustentado na jurisprudência, a obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito[14].
Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo ao absolver a ré da instância relativamente à pretensão formulada pela autora sob o n.º 1 do petitório inicial, por erro na forma do processo, visto tratar-se de vício que afeta apenas tal pedido, incompatível com a tramitação da presente ação, não tendo por consequência a nulidade de todo o processado.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente, nesta parte, o recurso apresentado e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, no segmento que determinou a absolvição da ré da instância, por erro na forma do processo, quanto ao pedido formulado sob o n.º 1 do petitório inicial.

2.2.  No pedido formulado em 2 do petitório inicial, a autora peticionou a condenação da ré, na qualidade de cabeça de casal e representante da herança indivisa aberta por óbito de sua mãe CC, a pagar-lhe a quantia de 248.628,18 €, correspondente aos valores de € 176.534,00 da sua quota parte na partilha em vida das joias da falecida mãe, de 19.164,45 € a título de juros vencidos até 28-07-2014 e de 52.929,73 € de juros vencidos contados desde 28-07-2014 até 30-04-2021, bem como de juros vencidos e vincendos, contados desde 30-04-2021 até efetivo e integral pagamento.
A este propósito, a recorrente retoma em sede de apelação os argumentos já aduzidos nos articulados da ação em referência, alegando que a sua mãe, autora da herança, procedeu à partilha em vida das joias de que era proprietária, pelos cinco filhos, o que correspondeu ao montante 176.534,00 € a cada um (fundamentando-se no documento n.º ... que juntou com o requerimento inicial) e que esse crédito lhe é devido desde a morte da inventariada, pois todos os seus irmãos, subscritores da partilha de joias, declararam que já as receberam, produzindo efeitos na esfera jurídica dos mesmos, do que retira a conclusão de que lhe assiste o direito de exigir o pagamento imediato do valor que lhe cabe por força de tal convenção.
A sentença recorrida fez o enquadramento das questões de natureza jurídica relevantes para o objeto de tal pretensão, começando por enunciar - e bem - que o sucesso de tal pedido depende da interpretação do sentido das declarações exaradas na “convenção” a que se reporta o ponto 2 dos factos provados, datada de novembro de 2008, do qual entendeu resultar claramente que a mãe da autora, a ora ré, e os restantes intervenientes nos autos, quiseram realizar, em vida da primeira, a partilha…de um determinado conjunto de joias de ouro e de prata… como evidencia o excerto da respetiva cláusula I, … pelos seus cinco filhos (…) em partes iguais para cada um deles, atribuindo a cada um dos cinco quinhões o valor de 176.534,00 €, correspondente a uma quinta parte do valor total de 882.670,00 € apurado em avaliação.
A este propósito, a decisão recorrida analisou o tratamento dado na nossa ordem jurídica à figura da partilha de bens em vida, no que seguiu de perto a fundamentação desenvolvida no citado acórdão deste Tribunal da Relação de 14-06-2018 (proferido nos autos de procedimento cautelar em apenso), o mesmo sucedendo quanto à interpretação do aludido acordo escrito, por versar precisamente sobre o documento intitulado de “convenção” aqui em análise, tal como vertido no ponto 2 da matéria de facto provada, vindo a concluir que «o direito de crédito da Autora, a que alude o acordo intitulado de “convenção”, celebrado entre a Autora, os seus irmãos e a mãe de todos, “…funciona como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efetuou através da doação; no entanto, essa igualação foi deferida para a data da realização da partilha”».
Sobre esta questão, refere-se no aludido acórdão do Tribunal a Relação de Guimarães de 14-06-2018, em moldes que merecem a nossa inteira adesão: «Nos termos do artº 2029º, nº 1 do CC, não é havido por sucessório o contrato pelo qual alguém faz doação entre vivos, com ou sem reserva de usufruto, de todos os seus bens ou parte deles, a algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários, com o consentimento dos outros, e os donatários pagam ou se obrigam a pagar a estes o valor das partes que proporcionalmente lhes tocariam nos bens doados.
A doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes, no que respeita à qualificação da partilha em vida como um contrato de doação e, portanto, como um negócio gratuito, ou seja, um negócio em que não existe nenhuma contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens, já que importa sacrifícios económicos apenas para uma das (…) partes - o doador. Como claramente resulta do artº 2029º do CC a partilha em vida é efectivamente uma doação, tal como definida no artº 940º, nº 1, muito embora com um regime particular, específico, que resulta de ser feita a presumidos herdeiros legitimários e com encargos a favor dos outros presumidos herdeiros legitimários.
É uma doação com características especiais, na medida em que, muito embora, se verifiquem os efeitos translativos do direito sobre os bens doados, tal não ocorre em virtude de mero espírito de liberalidade do doador, já que este tem em vista partilhar, ainda em vida, os seus bens pelos presumíveis herdeiros legitimários, de modo a evitar questões futuras entre eles, após a sua morte, ou até a manter a unidade de determinados bens. Aliás, essa “natureza transaccional” está bem patente no facto de se permitir que os bens sejam doados a apenas alguns dos presumíveis herdeiros contra o pagamento aos demais de tornas pelo valor que proporcionalmente lhes tocaria na partilha dos bens doados (cfr. se defende no Ac. do TRL de 27.04.2010, proc. 31/95. L1-7).
Uma vez que funciona como doação, a partilha em vida tem efeitos imediatos, designando quem fica com que parte dos bens, ficando os donatários com os bens a partir da data da partilha em vida e ficando obrigados a pagar tornas aos demais naquela data ou posteriormente, uma vez que com a partilha em vida pretende-se a igualação de todos os quinhões.
No caso foi efectuada uma partilha em vida das jóias da 1ª contraente por quatro dos seus cinco filhos, com o consentimento da apelante que declarou não pretender receber qualquer das jóias, obrigando-se os demais irmãos a, no momento da partilha, a atribuir à apelante um valor adicional em igual valor ao das jóias que receberam.
As partes convencionaram que o direito da apelante ao pagamento surge apenas posteriormente, quando se proceder à partilha dos bens. O crédito reconhecido funciona como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efectuou através da doação».
Ponderando o que decorre do documento intitulado “Convenção” tendo por “contraentes” “Primeira: D. CC”, “Segunda: D. BB”, “Terceiro: DD”, “Quarto: EE”, “Quinta: AA” e “Sexta: FF”, datado de novembro de 2008, assinado pelos identificados “contraentes”, reproduzido no ponto 2 da matéria de facto provada, entendemos que se impõe um juízo de total concordância relativamente à decisão proferida pelo Tribunal a quo relativamente a esta questão.
Conforme decorre do aludido ponto 2 dos factos provados, a declaração negocial em causa tem o seguinte teor:
« I
A Primeira Contraente é proprietária, em domínio pleno - raiz e usufruto - de um determinado conjunto de jóias de ouro e de prata, de uso pessoal, tendo decidido proceder à partilha em vida das mesmas pelos seus cinco filhos - que são os Segunda a Sexta Contraentes – em partes iguais para cada um deles.
II
Para o efeito da efectivação da partilha acima indicada, todos os Contraentes promoveram a avaliação das jóias em causa, a qual foi realizada pelo sr. GG, avaliação essa da qual resultou que o valor total actual das referidas jóias é de € 882.670,00 (oitecentos e oitenta dois mil seiscentos e setenta euros) - cfr. doc. junto, o qual vai rubricado por todos os Contraentes.
III
Do valor de tal avaliação resulta que a cada um dos filhos da Primeira Contraente – os aqui Segunda a Sexta Contraentes - cabem jóias cujo valor totaliza a quantia de € 176.534,00.
IV
A Quinta Contraente declara não pretender que lhe seja atribuída qualquer uma das indicadas jóias, pretendendo, antes, que o valor da sua quota parte nessas jóias lhe seja atribuído em outros bens, actualmente pertencentes à Primeira Contraente, quando, no futuro, se proceder à partilha destes outros bens.
V
A Segunda, o Terceiro, o Quarto e a Sexta Contraentes procederam, entre eles, à partilha da totalidade das jóias em causa, em conformidade com a vontade comum e de cada um deles, tendo, por tal forma, ficado composto o lote atribuído, por mútuo acordo de todos, a cada um daqueles mesmos quatro Contraentes.
VI
Em face do exposto, a Segunda, o Terceiro, o Quarto e a Sexta Contraentes, obrigam-se perante a Quinta Contraentes a, quando, no futuro, se proceder à partilha dos restantes bens actualmente pertencentes à Primeira Contraente, atribuir à mesma Quinta Contraente, para além da quota parte que lhe couber na partilha de tais bens, o valor adicional de € 176.534,00 (cento e setenta e seis mil, quinhentos e trinta e quatro euros), correspondente ao quantitativo do respectivo quinhão de uma quinta parte das jóias, o qual não pretendeu receber nesta oportunidade.”
Nos termos do artigo 236.º, n.º 1 do CC, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Nestes casos, por força do n.º 2 do mesmo preceito, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Como salienta Manuel Pita[15], em anotação ao citado artigo 236.º do CC, «[o] ponto de partida é objetivista e está consagrado  no n.º1: a declaração vale com um sentido que lhe possa ser atribuído por um declaratário, não com o sentido que lhe tenha sido atribuído pelo declarante. Mas este declaratário não é o declaratário real, é um declaratário normal (…) colocado na posição do declaratário real, nas circunstâncias do declaratário real».
Assim, «[o] apuramento do sentido jurídico de uma declaração faz-se a partir de um modelo que consiste em ficcionar, na posição do declaratário real, um homem médio (um declaratário normal). E é esse homem médio, colocado na posição do real declaratário, que irá atribuir o sentido ao comportamento do declarante (o objeto da interpretação).
(…) O declaratário normal é uma bitola de diligência, na recolha dos elementos de interpretação, na atenção ao comportamento do declarante e na agudeza de espírito a relacionar os elementos de interpretação. Declaratário normal é o destinatário (do comportamento) médio, mediano»[16].
Por outro lado, o artigo 238.º do CC estabelece regras específicas para a interpretação dos negócios formais, ao prever que em tais negócios não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 1).
Tal como resulta do disposto neste último preceito, «[e]xiste um mínimo de correspondência entre o sentido apurado e o texto do documento quando o elemento literal da interpretação negocial (o texto do documento) corrobora o sentido apurado. Ou seja: o sentido pode não ter sido apurado apenas com base no texto do documento; no entanto, esse sentido tem que se poder atribuir ao texto do documento, o texto do documento tem que poder dizer-se a forma do sentido negocial apurado»[17].
  Ora, perante a estipulação vertida no acordo escrito intitulado de “convenção”, celebrado entre autora, seus irmãos e a mãe de todos, a conclusão que retiramos é a de que, colocado na posição das partes, um declaratário normal, extrairia o sentido negocial apurado pelo Tribunal a quo, com o significado evidente de que as partes convencionaram que o direito da ora apelante ao pagamento surge apenas posteriormente, quando se proceder à partilha dos bens.
Assim, o sentido aqui evidenciado resulta claramente das concretas referências vertidas nos correspondentes pontos IV e VI, em conformidade com a vontade ali expressamente declarada pela aqui autora de não pretender que lhe seja atribuída qualquer uma das indicadas jóias, pretendendo, antes, que o valor da sua quota parte nessas jóias lhe seja atribuído em outros bens, actualmente pertencentes à Primeira Contraente, quando, no futuro, se proceder à partilha destes outros bens (cf. cláusula IV) e pela obrigação assumida pelos restantes intervenientes (Segunda, Terceiro, Quarto e Sexta Contraentes), perante a Quinta Contraente a, quando, no futuro, se proceder à partilha dos restantes bens atualmente pertencentes à Primeira Contraente, atribuir à mesma Quinta Contraente, para além da quota parte que lhe couber na partilha de tais bens, o valor adicional de € 176.534,00 (cento e setenta e seis mil, quinhentos e trinta e quatro euros), correspondente ao quantitativo do respetivo quinhão de uma quinta parte das jóias, o qual não pretendeu receber nesta oportunidade (cf. cláusula VI), não permitindo que se estabeleça qualquer correspondência com o alcance que a recorrente/autora parece sustentar ao invocar o direito de exigir o pagamento imediato da parte que lhe cabe, após o decesso da mãe (autora da doação).
Ademais, da análise do regime legal previsto no artigo 2029.º do CC, referente à partilha em vida, resulta que «se não exige que os pagamentos aos titulares das tornas se façam imediatamente, nem sequer que se fixe no acto da doação o valor pecuniário dos bens doados. Pode convencionar-se livremente, como se depreende do disposto no n.º 3, que os pagamentos sejam efectuados mais tarde ou que só posteriormente seja determinado o valor que os bens tinham à data da doação, para o efeito da fixação das tornas»[18].
Por conseguinte, ponderando todos elementos interpretativos antes enunciados, entendemos resultar da referida “Convenção” o acordo dos respetivos subscritores no sentido de que o direito da ora apelante ao pagamento da parte que proporcionalmente lhe cabe nas joias doadas pela Primeira Outorgante surge apenas posteriormente, quando, no futuro, se proceder à partilha dos restantes bens que à data do acordo pertenciam a esta.
No contexto antes enunciado, forçoso será sufragar a conclusão a que se chegou na sentença recorrida, no sentido de que o direito de crédito da autora, a que alude o referido acordo intitulado de “convenção”, funciona como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efetuou através da doação; no entanto, essa igualação foi deferida para a data da realização da partilha.
Deste modo, não assiste fundamento jurídico à pretensão formulada sob o pedido 2 da petição inicial, por constituir a antecipação do cumprimento de um crédito resultante de ajustes dos quinhões, dependente da concretização da partilha no processo de inventário ainda em curso, tal como entendeu o Tribunal recorrido.
Como tal, não existem razões para censurar a solução adotada na decisão impugnada sobre esta questão, improcedendo a apelação nesta parte.

2.3. Por último, sustenta a recorrente que, estando o Tribunal recorrido perante a prestação de uma obrigação, deve a sanção pecuniária compulsória ser fixada, conforme pedido formulado em 4 do petitório inicial, em quantia não inferior a 250,00 €/dia, por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações aludidas nos pontos 1 a 3.
Ora, sendo a sanção pecuniária compulsória uma condenação acessória e condicional de uma condenação no cumprimento de uma obrigação principal, resulta manifesto que o conhecimento da apelação nesta parte sempre dependia da prévia procedência do recurso relativamente às questões supra enunciadas em II - a) e b) - o que não sucedeu.
Ainda assim, sempre se dirá não assistir qualquer razão à apelante quanto aos argumentos invocados a este propósito, pois, como bem se ponderou na sentença recorrida, «desde logo se constata que a obrigação a que a Ré se encontra sujeita não é de prestação de facto infungível, mas uma obrigação pecuniária, fungível.
Razão pela qual também carece de fundamento jurídico esta parte do pedido formulado pela Autora».
Com efeito, o artigo 829.º-A do CC, com a epígrafe Sanção pecuniária compulsória prevê o seguinte:
1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.
Conforme se afirma no preâmbulo do Dec. Lei 262/83, de 16-06, diploma que aditou o citado artigo 829.º-A do CC, “a sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis”.
Tal como refere Calvão da Silva[19], “o legislador concebeu a sanção pecuniária compulsória como processo coercitivo de aplicação subsidiária, destinado a colmatar a lacuna, existente no nosso sistema jurídico, devida à inidoneidade da execução para realizar in natura as prestações de facto infungíveis”.
Na síntese de Almeida Costa[20], é possível tirar do regime previsto no artigo 829.º-A, nºs 1, 2 e 3, do CC as seguintes ilações:
- Só pode funcionar em obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, e desde que o cumprimento destas não exija especiais qualidades científicas ou artísticas do devedor;
- Impede-se o tribunal de agir oficiosamente, enquanto a imposição da providência depende de um pedido do credor;
- A sanção pecuniária pode referir-se a cada dia de atraso no cumprimento ou a cada infracção, consoante as circunstâncias da hipótese concreta aconselhem;
- A indemnização pelo incumprimento não se confunde com a sanção pecuniária compulsória;
- Esta última providência, embora fixada pelo tribunal de acordo com critérios de razoabilidade, uma vez cominada, torna-se definitiva, quer dizer, é insusceptível de revisão oficiosa ou a requerimento das partes;
- A quantia liquidada reverte, em montantes iguais, para o credor e o Estado.
Daí que improcedam as correspondentes conclusões do recurso.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar integralmente a decisão recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu decaimento.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Guimarães, 30 de novembro de 2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
José Carlos Dias Cravo (Juiz Desembargador - 1.º adjunto)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)



[1] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 597.
[2] Cf. João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, p. 68.
[3] Cf. o Ac. TRG de 17-02-2022 (relatora: Alexandra Viana Lopes), p. 1242/20.8T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, cf., por todos, Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Volume II, 4.ª edição, Almedina, 1990, p. 77; Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pgs. 153-154.
[5] Cf. Cristina Pimenta Coelho, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 997.
[6] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela - obra citada -, p. 153.
[7] Obra citada, p. 997.
[8] Relator Rijo Ferreira, p. 3479/13.7TBCSC.L1-1, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Relatora Helena Melo, p. 1365/17.0T8PVZ.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Nestes casos, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que o formalismo próprio configura um verdadeiro incidente do inventário, a processar nos próprios autos - cf., Lopes Cardoso - obra citada - p. 78; na jurisprudência, cf. o Ac. TRL de 16-06-2015 (Relator: Roque Nogueira), p. 1785/12.7TBCSC.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Coimbra Editora, 2011, p. 130.
[12] Cf. Cristina Pimenta Coelho - obra citada -, p. 998.
[13] Obra citada, pgs. 153-154.
[14] Neste sentido, cf. entre outros, os Acs. do STJ de 9-02-2006 (relator: Araújo Barros), revista n.º 05B4061; de 3-02-2005 (Relator: Salvador da Costa,), acessíveis em www.dgsi.pt.
[15] Cf. Código Civil, Anotado, Coord. Ana Prata, Volume I, Almedina, 2017, p. 290.
[16] Cf. Maria Raquel Rei, Código Civil Comentado, I - Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, Almedina, 2020, p. 694.
[17] Cf. Maria Raquel Rei - obra citada -, p. 701.
[18] Neste sentido, cf. Pires de Lima/Antunes Varela - obra citada -, p. 21.
[19] Cf. Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 2.ª edição (reimpressão), Coimbra, 1995, p. 450
[20] Cf. Direito das Obrigações, 12.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2013, págs. 1066 e 1067