Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2924/20.0T8BRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: COMPROPRIEDADE
NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LEGITIMIDADE DO ADMINISTRADOR DE CONDOMÍNIO
TRANSACÇÃO
CASO JULGADO
EX-CÔNJUGES
USO DA COISA COMUM
INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
2 - A simples privação do uso constitui, por si só, um dano indemnizável já que representa, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade que é a de usar a coisa quando e como lhe aprouver.
3 - A perda da possibilidade de utilização do bem quando e como lhe aprouver tem valor económico devendo recorrer-se para o cálculo da correspondente indemnização à equidade, por não ser possível avaliar o valor exato dos danos.
4 - O instituto da litigância de má-fé constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa-fé (ou probidade) processual.
5 - A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A. P. deduziu ação declarativa contra F. J., J. D., J. M. e C. M., este último na qualidade de administrador do condomínio da garagem sita na Rua ..., n.º …, pedindo:

a) sejam os RR. solidariamente condenados a restituir ao A. a posse da fração autónoma, designada pelas letras “AM”, correspondente a lugar marcado no pavimento com o número …, com o Valor Patrimonial Tributário de €1.596,77 (Mil, Quinhentos e Noventa e Seis Euros e Setenta e Sete Cêntimos), respeitante ao prédio urbano sito na Avenida ..., números …, … e …, com frente para a Rua ..., n.º …, da Freguesia de …, Concelho e Distrito de Braga, inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …/AM (BRAGA-...), Concelho de Braga e descrita na Primeira Conservatória do Registo predial de Braga sob o número … (Braga ...), maxime entregando-lhe uma chave que lhe permita aceder à garagem n.º …;
b) sejam os RR. solidariamente condenados a ressarcir o A. pelo dano da privação do uso/da necessidade de ter de adquirir novamente os bens e equipamentos que se encontram no interior da garagem vinda de referir-se, a saber: i) material de electricista equivalente ao que se encontra melhor discriminado nas facturas que ora se anexam sob os documentos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 e que o A. se viu forçado novamente a adquirir; ii) uma banca com um torno médio onde o A. efectuava reparações; diversas ferramentas da arte de electricista (v.g. medidor de voltímetro de correntes, alicates, chaves de fendas e de cruz); iii) uma garrafeira com encaixes para cerca de 450 – quatrocentas e cinquenta – garrafas, tendo lá umas 40 – quarenta – com vinho engarrafado; iv) uma bicicleta de ciclista da marca X em alumínio, pneus finos, de cor vermelha e matrícula camarária; v) um motociclo “Scooter”, 50 CC, marca Honda, modelo XBRX, com a matrícula EU;
c) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 60,00€ (sessenta euros) mensais desde a data da privação do uso da referida fração autónoma até à efectiva entrega, sendo neste momento o total dos prejuízos o correspondente a 1.140,00€ (MIL CENTO E QUARENTA EUROS), calculado à razão dos referidos 60,00€ (sessenta euros) mensais x 19 (dezanove) meses = 30 de Novembro de 2018 até 30 de Junho de 2020, pelos prejuízos causados ao A., acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
d) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia total de 1.196,07€ (MIL CENTO E NOVENTA E SEIS EUROS E SETE CÊNTIMOS), equivalente à quantia despendida pela forçada nova aquisição do material eléctrico que se encontra no interior da garagem, o qual o A. utiliza para efectuar uns “biscates” na arte de electricista e de que se viu privado para o efeito, acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
e) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia da quantia de 150,00€ (CENTO E CINQUENTA EUROS) mensais desde a data da privação do uso da predita banca com um torno médio onde o A. efectuava reparações; diversas ferramentas da arte de electricista (v.g. medidor de voltímetro de correntes, alicates, chaves de fendas e de cruz) que se encontram no interior da referida fração autónoma, até à efectiva e respectiva entrega, sendo neste momento o total dos prejuízos o correspondente a 2.850,00€ (DOIS MIL OITOCENTOS E CINQUENTA EUROS), calculado à razão de 150,00€ (CENTO E CINQUENTA EUROS) mensais X 19 (dezanove) meses = 30 de Novembro de 2018 até 30 de Junho de 2020, pelos prejuízos causados ao A., acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
f) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 25,00€ (VINTE E CINCO EUROS) mensais desde a data da privação do uso da garrafeira que se encontra no interior da referida fração autónoma, até à efectiva e respectiva entrega, sendo neste momento o total dos prejuízos o correspondente a 475,00€ (QUATROCENTOS E SETENTA E CINCO EUROS), calculado à razão dos referidos 25,00€ (VINTE E CINCO) mensais x 19 (dezanove) meses, pelos prejuízos causados ao A., acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
g) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 5,00€ (CINCO EUROS) por cada uma das 40 (quarenta) garrafas de vinho que se encontram no interior da garagem e de que o A. se viu privado de lograr consumir = 40 X 5,00€ = 200,00€ (DUZENTOS EUROS), acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
h) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 20,00€ (VINTE EUROS) mensais desde a data da privação do uso da aduzida bicicleta que se encontra no interior da referida fração autónoma, até à efectiva e respectiva entrega, sendo neste momento o total dos prejuízos o correspondente a 380,00€ (TREZENTOS E OITENTA EUROS), calculado à razão dos referidos 20,00€ (VINTE EUROS) mensais x 19 (dezanove) meses, pelos prejuízos causados ao A., acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
i) sejam os RR. solidariamente condenados ao pagamento da quantia de 50,00€ (CINQUENTA EUROS) mensais desde a data da privação do uso duma “Scooter” que se encontra no interior da referida fração autónoma, até à efectiva e respectiva entrega, sendo neste momento o total dos prejuízos o correspondente a 950,00€ (NOVECENTOS E CINQUENTA EUROS), calculado à razão dos referidos 50,00€ (cinquenta euros) mensais x 19 (dezanove) meses, pelos prejuízos causados ao A., acrescidos dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
j) sem prescindir, embora sem conceder e somente aqui se equacionando por mera cautela de patrocínio, no que especificamente tange ao aqui 4.º co-RR., caso não venha a ser apurada a respectiva responsabilidade na detenção da chave de acesso à fracção de garagem individual do A., em qualquer caso não se eximirá este de ser responsabilizado pelos danos aqui reclamados até à data de 02 de Março de 2020, data em que foram efectivamente entregues a chave e comando de acesso ao portão comum da garagem, os quais, respeitando ao período compreendido entre 30 de Novembro de 2018 até 02 de Março de 2020 = 15 meses, deverão ser proporcionalmente subtraídos às quantias antecedentemente arrimadas, considerando o menor diferencial do número de meses transcorridos entre a privação do uso dos bens e equipamentos e a restituição da chave e do comando de acesso à zona comum, tudo com excepção do montante atinente à aquisição do material eléctrico que teve de ser novamente adquirido, o qual deve ser ressarcido na sua integralidade, tudo acrescido dos respectivos juros calculados à taxa legal desde a citação;
k) sejam os RR. solidariamente condenados, nos termos do n.º 1 do art.º 829.º-A do Código Civil, na eventualidade de vir a ser declarada procedente a presente acção, ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória fixada em 20,00€ (VINTE EUROS) por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação da entrega efectiva de todos os bens (fracção de garagem e bem assim aqueloutros que se encontram no seu interior) objecto da presente demanda;
l) sejam os RR. solidariamente condenados a pagar todas as custas e demais encargos tidos com o processo.

Alegou, para tanto, que é dono e legítimo possuidor de uma fracção autónoma, destinada a garagem, que se integra no prédio constituído em regime de propriedade horizontal, com frente para a Rua ..., nº .., da freguesia de ..., concelho de Braga e que, em finais do mês de Novembro de 2018, foi impedido de aceder à dita garagem, uma vez que o administrador do condomínio do prédio onde a mesma se insere, aqui 4º réu, procedeu à alteração da fechadura do portão comum e do comando que dá acesso às fracções autónomas correspondentes aos lugares de garagem, chave e comando esses que o dito réu apenas lhe entregou em cumprimento do acordo homologado na acção declarativa que correu termos neste Juízo sob o nº 4216/19.8T8BRG.
Acrescentou que, todavia, não lhe foi entregue a chave de acesso à sua própria fracção autónoma/garagem, a qual foi no entretanto mudada, impedindo-o desse modo de aceder com a chave velha, que tem em seu poder, pelo que, ignorando quem deterá a nova chave de acesso à dita garagem, interpelou a aqui 1ª ré e o 4º réu para lhe entregarem uma cópia da dita chave, sem que, no entanto, qualquer dos visados lhe tivesse dado resposta.
Mais alegou que, para além de se ver privado de fruir da garagem, nomeadamente estacionar lá um dos seus veículos ou guardar outros objectos, ficou igualmente privado da utilização de diversos bens que se encontram guardados no interior da mesma, tendo inclusivamente de adquirir alguns para os substituir, tudo lhe causando os prejuízos que reclama na acção.
Os réus contestaram excecionando a ilegitimidade passiva do 4.º réu e, por impugnação. Pediram a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização de montante nunca inferior a € 1.000,00.
O autor respondeu à matéria de exceção e ao pedido de condenação por litigância de má-fé, pugnando pela improcedência dos mesmos.
Foi proferido despacho saneador, a 24/11/2020, no qual se julgou procedente a exceção de ilegitimidade do 4.º réu, que foi absolvido da instância.

O autor, a 02/02/2021, interpôs recurso desta decisão, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I. Vem o presente salvatério interposto do douto despacho saneador – sob refª: 171024151 atribuída pela plataforma “Citius”, proferido em 24/11/2020, delimitado ao segmento decisório que decidiu absolver da instância o réu C. M.;
II. O presente recurso encontra o seu fundamento na decisão de absolvição do 4.º R. da instância, com base na sua (suposta) ilegitimidade processual (art. 644.º, n.º 1, alínea b) do CPC);
III. Em sede da petição inicial, o Autor/Recorrente, entre outras, alega que (SIC): “O possuidor restituído tem o direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em consequência do esbulho (ou da turbação), nos termos do previsto no art.º 1284.º do CC”, “Indemnização essa que deve ser decretada na mesma sentença da restituição” (pontos 62º e 63.º da P.I., correspetivamente);
IV. Destarte aquilo que está em discussão, maxime, é a prática de um acto de esbulho e respectivos prejuízos daí advenientes, em ultima instância, da privação da posse por parte do Recorrente;
V. Encontrando-se o Apelante impedido de aceder à garagem, estar-se-á aqui perante uma situação de coacção, a qual impossibilita a posse por parte do A., materializando-se esta situação num esbulho sobre uma coisa;
VI. Não “se esgota a presente demanda” em imputar responsabilidades ao administrador de condomínio no exercício das funções por ele desempenhadas, nem tão pouco de lhe assacar culpa pelo facto de não ter exercido correctamente o seu cargo, mas outrossim apurar quem foi(ram), “in concretu”, a(s) pessoa(s) responsável(eis) pelo esbulho;
VII. Esbulho este que, na perspectiva do Apelante, pode estar a ser exercido por todos os RR., materialidade essa que se propõe demonstrar em audiência de julgamento;
VIII. Dizer que alguém é parte legítima na acção, consubstancia-se na ideia de que determinado indivíduo tem o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível;
IX. O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, sendo certo que o interesse significa a utilidade para o autor e o prejuízo para o réu (30º/2 CPC);
X. O artigo 30.º do CPC, no seu n.º 3, consagra um critério supletivo que deve ser seguido quando não exista norma especial a regular a questão da legitimidade, vale dizer, o critério da titularidade da relação material ou substantiva que nos indica que terá legitimidade quem figurar como sujeito na relação material controvertida tal como o Autor a desenhou;
XI. Como o Autor/Recorrente refere na sua Petição Inicial, nomeadamente nos pontos 13.º e 14.º, desconhece quem detém a posse das chaves que lhe impedem o acesso à sua propriedade;
XII. Ressuma de modo inequívoco da P.I., articulado no qual o Recorrente conforma a relação material controvertida, qual o objecto do litígio carecido de instrução e produção da prova, ou seja, autores do esbulho da posse e respectivas consequências em termos de responsabilidade civil;
XIII. Afigura-se inegável que fruto da posição processual em que o Autor/Recorrente coloca o 4.º R. na acção, redunda com que o requisito do interesse directo em contradizer esteja cumprido, na estrita medida em que aquele Demandado viria a ser civilmente responsabilizado, caso a acção venha a ser julgada procedente;
XIV. De igual modo, ainda que na medida inversa, poderá dizer-se que o 4.º co-RR. reúne todas as condições para poder deduzir a competente defesa contra a pretensão do Autor/Recorrente, sendo por isso parte legítima na acção;
XV. No âmbito do tema que aqui nos ocupa, importa distinguir entre a legitimidade processual da legitimidade substantiva;
XVI. A legitimidade processual deve ser aferida tendo por base a relação material controvertida tal como o autor a desenhou, sendo que a falta desta legitimidade processual dá lugar à absolvição do réu da instância, ao passo que a legitimidade substancial respeita a efectividade da relação material, ultrapassando o desenho inicial daquela e averiguando os factos que a sustentam, razão pela qual interessa e integra o mérito da causa;
XVII. No modesto entendimento do Recorrente, as considerações tecidas em sede do douto Despacho de que se recorre, integram já a predita legitimidade substantiva, extravasando já a apodada legitimidade processual “stricto sensu”;
XVIII. Com efeito, o Apelante conformou a relação material controvertida, em torno da qual corre a acção, demonstrando que o 4.º R. é parte integrante daquela;
XIX. Outrossim e ao invés, aquilo que o 4.º co-RR. tentou demonstrar no articulado de Contestação por si apresentado nos autos, assentou, precisamente, na não perpetração de um acto de esbulho, acto esse que está sub judicio na presente demanda e nessa estrita medida carecido de instrução e prova.
XX. Por tudo isto, entende-se que o 4.º co-RR. é parte processual legítima e a aferição da materialidade da acção depende da sua presença na mesma, sendo que ao decidir pela extemporânea absolvição do Réu da instância, o Tribunal a quo está desazadamente a turbar com o conhecimento do mérito da causa;
XXI. No que à invocada excepção dilatória inominada de transacção judicial homologada concerne, refira-se que o regime jurídico aplicável às transacções judicialmente homologadas tem ínsito a aplicação dos princípios legais imperativos acomodados para os negócios jurídicos, devendo ter sido considerados, ao contrário daquilo que o Tribunal “a Quo” fez, os art.ºs 195.º e 236.º n.º 1 “in fine” - teoria da impressão do declaratário – e que exige que o sentido a prevalecer tem de tornar possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este possa razoavelmente contar com ele, - pertencendo ambos os vindicados preceitos do Código Civil;
XXII. Tomando este postulado, transmutando-o para o nosso caso, facilmente se alcança a partir da redacção imprimida pelas partes na transacção em exame, se não pretendeu reconhecer-se mais ao então A. (aqui Apelante), do que a entrega das respectivas chaves do portão de acesso à garagem ali melhor identificada, nada mais para além disso se podendo extrair do clausulado da decretada homologação da transacção;
XXIII. Tendo a transacção como meta concertar a divergência das partes, o desejado consenso foi obtido no concreto contexto e termos limitados que foi já supra aventado, e, reitere-se, nada mais, não se afigurando minimamente inteligível como é que o Tribunal “a Quo” se permitiu concluir pela inclusão na transacção de algo que lá não está;
XXIV. Assim sendo, do teor das cláusulas da transacção judicial ora sob escrutínio, não se encontra razão alguma para retirar da descrição literal ali delineada, que as partes quiseram abranger para além da entrega das aduzidas chaves da garagem, a eliminação da discussão futura das questões indemnizatórias advenientes do esbulho sofrido pelo Apelante (conquanto inexiste qualquer cláusula em que expressamente se refira que se desiste quanto aos demais pedidos, relativamente aos quais, enfatize-se, não foi proferida qualquer decisão de mérito), não havendo razão para distinguir e diferenciar aspectos que no texto se não divisam;
XXV. Haverá então de ter como certo - e presumir como nos ensinam as regras da experiência comum, a grande mestra da vida - que as partes, porque acompanhadas pelos seus advogados souberam exprimir convenientemente as suas intenções e que, não podendo extrair-se da proposição que integra a expressão textual da transacção um sentido que dela está racionalmente arredado, também se não poderá conceder ao douto Despacho de que se recorre a acepção que neste domínio se permitiu inusitadamente extrapolar.
TERMOS EM QUE, deverá o Douto Despacho Saneador sob a ref.ª 171024151 atribuída pela plataforma informática “Citius”, ser revogado no que concretamente concerne ao segmento decisório que determinou a ilegitimidade do 4.º co-RR. E consequente absolvição do Réu da instancia, substituindo-o por outro, que considere aquele parte passiva processualmente legítima, seguindo os autos os seus ulteriores termos, desse modo se fazendo a habitual e acostumada Justiça!

Teve lugar a audiência de julgamento, com inspeção ao local, após o que foi proferida sentença, a 17/09/2021, cujo teor decisório é o seguinte:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela parcial procedência da demanda, decido:

a) Condenar a ré F. J. a entregar ao autor uma chave que lhe permita aceder à fracção autónoma/garagem identificada no ponto 1. dos factos provados;
b) Absolver do pedido aquela ré, assim como os réus J. D. e J. M., de tudo o mais peticionado pelo autor;
c) Condenar o autor e a ré F. J. no pagamento das custas do processo, na proporção de 9/10 e de 1/10, respectivamente (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil;
d) Condenar o autor no pagamento da multa processual de € 1.020,00 (mil e vinte euros), por ter litigado de má-fé, e em indemnização a favor dos réus, no montante que vier a ser fixado após observância do disposto no nº 3 do artigo 543º do Código de Processo Civil”.

O autor interpôs recurso, a 02/11/2021, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I. Vem o presente salvatério interposto da douta sentença – refª: 175031855 atribuída pela plataforma “Citius”, proferida em 17/09/2021, que julgou parcialmente procedente a acção de processo comum instaurada pelo Apelante;
II. Nessa conformidade, o presente recurso fundamenta-se, em primeiro lugar, na circunstância do douto aresto recorrido ter violado o preceituado no n.º 1, alínea c) do artigo 615.º, n.º 1 do C.P.C., vale isto por dizer, no facto dos fundamentos estarem em oposição com a decisão, ou, senão mesmo, por ocorrer uma ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível, o que poderá conduzir a uma nulidade da sentença, ou à sua anulação com vista a uma ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 662.º, do C.P.C.;
III. Por sua vez, o presente recurso fundamenta-se ao abrigo do artigo 640º do CPC., na impugnação da matéria de facto ínsita na factualidade dada como provada, verbi gratia, a facticidade constante dos números 5, 15 e 18, bem assim, no sentido inverso, relativamente à não provada, máxime, a facticidade constante da alínea a) da douta sentença, indicando como elemento de prova que impõe decisão diversa, os depoimentos das testemunhas;
IV. Doutra sorte, estriba-se ainda a presente Apelação, na circunstância do douto aresto recorrido ter feito uma desajustada interpretação/aplicação do direito efetuada na douta sentença recorrida, atinente ao direito do autor a indeminização, como consequência da privação da posse a que foi sujeito e com o qual o Apelante não concorda, nomeadamente, com a aplicação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artº 483º, nº1 do CC, bem como, dos artºs 1406º, nº1 do CC, e 1284º, nº1 do CC, devendo para além de uma diferente aplicação e interpretação destes, ter sido considerados, ainda, o artº 1284º, nº1 do CC;
V. Sem prescindir, e salvo o respeito por melhor decisão, o presente recurso tem ainda por fundamento a desajustada Interpretação/aplicação do direito efetuada na douta sentença recorrida, atinente à condenação do Apelante em litigância de má-fé, com o qual o mesmo não concorda, designadamente, sobre o número 1 e 2 do artº 542º do Código de Processo Civil, devendo o Tribunal ter feito uma diferente aplicação e interpretação destes.
VI. O aqui Apelante, em 02/02/2021 mediante a refª: 11081651 veio oportunamente interpor recurso interlocutório do douto despacho saneador – sob a refª: 171024151 atribuída pela plataforma “Citius”, proferido em 24/11/2020, que decidiu absolver da instância o réu C. M., Alegações de recurso essas que não se entende porque motivo, nunca foram ordenadas subir a este Venerando Tribunal...?;
VII. “In casu”, nenhuma evidência foi apurada no que especificamente tange ao sobredito do 4.º co-RR. C. M., sendo que, inclusivamente, a prova que foi considerada relativamente aos demais, não serve para demonstrar se aquele demandado teve (ou não) qualquer responsabilidade na prática dos actos trazidos a juízo, na estrita medida em que tal foi apenas CONCLUSIVAMENTE decidido, sem direito a contraditório, por parte do Meritíssimo Juiz “a Quo”..., tanto bastando para que a decisão de que ora se recorre, deva ser anulada, apreciado o recurso interlocutório e só após pronúncia por parte deste Venerando Tribunal acerca das questões naquele suscitadas, ordenada a repetição do julgamento em sede de 1.ª instância, o que expressamente se requer;
VIII. Prima facie, ressuma de modo inequívoco que o julgador “a Quo”, incorreu, no vício de oposição entre os fundamentos e a decisão, senão mesmo numa ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível;
IX. No nosso caso é manifesto, que ocorreu a nulidade referida no art.º 615.º n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil;
X. Efectivamente, pode constatar-se que de entre o acervo dos factos dados como provados e não provados no âmbito do aresto de que se recorre, contraditoriamente, foram dados como assentes e não assentes alguns factos essenciais dissonantes com a solução jurídica preconizada pelo Tribunal “a quo” no âmbito deste processo, atentas as grandes questões que se suscita(va)m nos presentes autos;
XI. Ficou indubitavelmente demonstrado que a 1ª Ré mandou substituir a chave de acesso à garagem em discussão nos presentes autos, mas mais do que isso, por força dessa substituição, como consequência directa, imediata e necessária, o lesado/Apelante viu-se privado de usufruir das utilidades da fracção autónoma, bem como, dos bens que se encontram guardados no seu interior;
XII. Tendo sido dados como provados todos os factos integradores que motivaram a judicialmente ordenada restituição da posse ao Autor, mediante a entrega da respectiva chave de acesso à garagem em apreço, conformaria uma decorrência lógica que lesado/Recorrente, pudesse exigir uma indemnização pelos prejuízos causados advenientes da privação da aduzida posse;
XIII. Afigura-se totalmente inteligível o raciocínio ínsito relativamente à fundamentação plasmado no âmbito da douta sentença recorrida, quando por um lado, nos termos que se deixaram antevistos supra, tendo sido reconhecida a privação da posse e a 1ª Ré condenada a entregar ao Autor uma chave de acesso à garagem aqui em causa (tendo inclusivamente ficado demonstrada, quer a impossibilidade do lesado usufruir das utilidades da fracção autónoma, bem como, dos bens que se encontram guardados no seu interior);
XIV. Mas por outro, a final, numa “reviravolta imprevisível”, veio a mesma sentença de que se recorre, absolver TODOS os co-RR. do pagamento de qualquer indemnização (entendimento esse totalmente desacertado, como de resto ao diante melhor se explicitará em sede da impugnação atinente à errónea interpretação/subsunção/aplicação do Direito);
XV. Não obstante ter parcialmente reconhecido as pretensões do Apelante veio, ainda, condenar o Autor/Apelante enquanto litigante de má-fé, com base na circunstância de, nomeadamente, terem sido solidariamente demandados vários Réus;
XVI. Relativamente ao tema que aqui ora nos ocupa, foi – ANTINOMICAMENTE - dada como provada a facticidade constante dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15;
XVII. Ressuma de modo inequívoco que o ponto 4, encontra-se em contradição com os pontos 10, 11 e 12, conquanto, aludindo expressamente a parte final do ponto 4 à impossibilidade de aceder à garagem em apreço, LOGICAMENTE, ficou igualmente impossibilitado de usufruir das respectivas utilidades do imóvel e bem assim dos bens que se encontravam no seu interior, reconhecidos nos referidos pontos 10, 11 e 12;
XVIII. Doutra sorte, inculca o Tribunal “a Quo”, para determinados efeitos, fazer-se valer do dado como provado nos pontos 14 e 15 da matéria assente, mas, outrossim e ao invés, para outros, já é a mesma totalmente obnubilada;
XIX. Destarte, de molde a justificar que a 1.ª co-RR. não preencheu o requisito do dolo, nos termos e para os efeitos do art.º 483.º do Código Civil, no âmbito do apuramento da respectiva responsabilidade civil, resolveu considerar-se a circunstância do aqui Apelante ter de usar uma pulseira electrónica;
XX. Por outro lado, a mesmíssima circunstância já não foi devidamente considerada - vide factos dados como provados nos pontos 6 e 7 -, nem tampouco relevada, designadamente, aquando da propositura da acção, o ali vindicado desconhecimento por parte do Recorrente acerca de quais os concretos intervenientes que teriam sido os co-autores da mudança da fechadura, na estrita medida em que a privação da posse não pressupõe a existência de uma relação subjacente anterior, ou seja, o lesado poderia ter sido privado da posse da garagem sub judicio, não apenas por qualquer um dos demandados, bem como, em termos abstractos, inclusivamente por um qualquer terceiro;
XXI. E/ou aquando do envio da carta de interpelação por parte da irmã do lesado (pois que sem prejuízo do que mais ao diante se aventará em sede de impugnação da matéria de facto, por mera cautela, nem poderia aproximar-se do domicílio ou do local de trabalho da 1.ª co-RR. e/ou ter qualquer contacto com a mesma – vide factos dados como provados no ponto 5...);
XXII. Na esteira daquilo que vem de referir-se, a obscuridade adensa-se, quando o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, sempre ressalvado o devido respeito, incoerentemente vem reconhecer, ainda que parcialmente, a pretensão do lesado/Recorrente, mas concomitantemente vem dizer que o mesmo utilizou o apoio judiciário de forma indevida, tendo para tanto descurado por completo as razões expressamente arrimadas na p.i. (v.g. desconhecimento dos autores da lesão/silêncio dos visados após interpelação escrita);
XXIII. Na verdade, tendo sido, ainda que parcialmente, reconhecido mérito e provimento ao principal pedido realizado pelo lesado, respeitante à restituição da posse da garagem vinda de referir-se não parece fazer qualquer sentido, salvo o devido respeito por melhor opinião, que o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, venha determinar e fundamentar a condenação daquele por litigância de má-fé, adveniente duma meramente presumida circunstância deste se ter – abusivamente - valido no apoio judiciário, até porque ignora o aqui Apelante a figura da “parcial litigância de má-fé”, ao que acresce que, nos termos antecedentemente vistos, no que especificamente tange ao 4.º co-RR. C. M., foi absolutamente vedada a possibilidade de apurar a respectiva responsabilidade, na medida em que até foi ININTELIGIVELMENTE retido o recurso dirigido a este Venerando Tribunal a tal propósito...;
XXIV. Com efeito, “a tão verberada” concessão do apoio judiciário no âmbito do douto aresto de que se recorre, decorrência constitucional do acesso ao Direito por parte de todos os cidadãos, permitiu, “in casu”, o decretamento judicial da restituição da posse da garagem...;
XXV. Do elenco dos factos provados consta que que para além de ter ficado demonstrado que a 1ª Ré mandou substituir a chave de acesso à garagem em discussão nos presentes autos, mais do que isso, por força dessa substituição o Autor viu-se privado de usufruir das utilidades da fração autónoma, bem como, dos bens que se encontram guardados no seu interior;
XXVI. Uma vez aqui chegados, na Jurisprudência do S.T.J. tem-se entendido que a nulidade sub judice está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artºs. 154.º e 607.º nºs. 3 e 4, de o Juiz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor);
XXVII. No que especificamente tange à impugnação e modificação da matéria de facto, dispõe o art.º 662.º, n.º 1, do CPC, que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 640.º do CPC, a decisão com base neles proferida;
XXVIII. Nos termos que ao diante melhor se explicitarão, do processo constam, do universo concatenado da prova produzida, verbi gratia, as declarações das testemunhas C. F. e F. C., as declarações em sede de depoimento e declarações de parte dos Apelados, F. J., J. D. e J. M., bem como, as declarações do Autor, aqui Recorrente, A. P.;
XXIX. A este propósito, entendeu-se na douta sentença ter sido dada como não provada a facticidade vertida na alínea a);
XXX. A tal propósito, prescrutem-se as declarações prestadas pela testemunha C. F., na sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:04:16 a 00:04:38;
XXXI. Por sua vez, em complemento das anteriores declarações a testemunha F. C., ainda no decurso da sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:05:16 a 00:06:58, voltou a salientar que os materiais referidos na alínea a se encontravam na garagem nos autos em discussão;
XXXII. Por seu turno, o Apelante, A. P., veio corroborar e reforçar tudo quanto se deixou aventado pelas duas anteriores testemunhas, no âmbito das declarações proferidas na sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:10:45 a 00:11:25;
XXXIII. Desta sorte, é possível concluir, objectivamente e sem qualquer margem para ambiguidades do teor das declarações do depoimento das testemunhas C. F. e F. C. e por parte das declarações prestadas pelo autor A. P., todos na sessão de julgamento de 20/04/2021, que existem nos autos elementos probatórios suficientes para que tivesse sido dado como provados os factos inscritos na alínea a;
XXXIV. Da impugnação e modificação da redacção do ponto 5 da matéria de facto dada como provada;
XXXV. Para tanto, escutem-se as declarações por parte da demandada, F. J., na sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:08:46 a 00:09:52;
XXXVI. De igual sorte, o demandado, J. M., na mesma sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:06:53 a 00:08:05 declarou acrescidamente acerca deste o assunto que foi enviada uma carta para a Apelada F. J., por parte da irmã do Apelante;
XXXVII. O anteriormente aduzido ponto 5 da matéria de facto dada como provada, deveria ser modificado, passando a ter a seguinte redacção: 5. Já após o desfecho do aludido processo judicial, o autor, através de carta registada com aviso de recepção datada de 18 de Maio de 2020, interpelou C. M., bem assim, por intermédio da sua irmã, F. J., para que, no prazo de 10 dias, lhe entregassem uma cópia da nova chave da fracção autónoma acima identificada;
XXXVIII. Ademais, deveria ter sido dado como facto provado um outro ponto com a seguinte redacção: Os co-RR. F. J., J. D. e J. M. procederam à mudança da chave da fechadura por não quererem que o Autor tivesse acesso à garagem;
XXXIX. Tal decorrendo das declarações do Réu J. D., em sede de sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:03:01 a 00:03:27;
XL. Bem assim, das declarações do co-RR. J. M., sede de sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:06:27 a 00:06:38;
XLI. Ainda a este propósito deverão ser tidas em consideração as declarações prestadas pelo co-RR. J. M. no âmbito da sessão de julgamento de 20/04/2021, CD/registo fonográfico: 00:01:47 a 00:02:17;
XLII. Doutra sorte, o ponto 15 da matéria dada como assente deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção: “Na presente data, o autor, não obstante o trânsito em julgado da sentença mencionada no ponto anterior, tenha já transitado em julgado desde 19/01/2021, devido a circunstâncias não imputáveis ao mesmo, encontra-se ainda a ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, através de pulseira electrónica.”, factualidade essa de suma relevância, para a aferição de qualquer óbice que obstasse à vontade do lesado em aceder à garagem e outrossim e ao invés, da verificação da ilicitude da conduta observada por todos os co-RR.!;
XLIII. Finalmente, embora sem conceder e sem prejuízo de tudo quanto até aqui se esgrimiu, salvo o devido respeito por melhor entendimento, o Apelante não concorda “in totum” com a desajustada interpretação/aplicação do direito efectuada na douta sentença recorrida atinente à verificação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art.º 483.º, n.º 1 do CC, bem como, dos artºs 1406.º, n.º 1 do CC, e 1284.º, n.º 1 do CC, devendo para além de uma diferente aplicação e interpretação destes, terem sido considerados, ainda, os n.º 2 do art.º 1282.º, artºs 1284.º, nº1, 335.º, 562.º, n.º 3 art.º 566.º e 569.º, todos do Código Civil;
XLIV. Sem prescindir, ainda que assim não se entendesse, embora sem conceder e/ou conceber, e somente aqui se equacionado por mera cautela de patrocínio, na eventualidade de V. Exªs não perfilharem do entendimento de que os 2º, 3º e 4º co-RR. foram solidariamente responsáveis pelos danos causados ao Apelante, em qualquer caso, sempre deveria o pedido de indemnização proceder relativamente contra a 1ª Ré;
XLV. No modesto entendimento do Apelante, a indemnização dos danos depende unicamente da verificação da privação da coisa, o que de resto, in casu, ficou demonstrado em sede da factualidade dada como provada;
XLVI. Neste sentido, vide, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24/05/2018, prolatado no âmbito do processo nº 1263/16.5T8GMR.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/12/2018, prolatado no âmbito do processo nº 11482/16.9T8PRT.P1;
XLVII. Atentos os sinais evidenciados nos autos, deverão ter-se por integralmente verificados os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art.º 483.º, n.º 1 do CC e nessa conformidade, deveria ter sido reconhecido o direito do Apelante a perceber dos Apelados uma quantia indemnizatória;
XLVIII. Finalmente, foi o aqui Recorrente INFUNDADAMENTE condenado enquanto litigante de má-fé;
XLIX. O instituto da litigância de má fé, previsto nos artºs 542.º e segs. do C.P.C., constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual (artºs. 7.º e 8.º do C.P.C.);
L. Desta feita, no modesto entendimento do aqui Recorrente, não se afigura que “...atuou o Autor com negligência grave ao deduzir ação cuja falta de fundamento não devia ignorar.”;
LI. Nesta conformidade a denominada lide temerária ou ousada não pode ser sancionada com a litigância de má-fé – apenas a lide dolosa ou gravemente negligente pode fundamentar a condenação da parte como litigante de má-fé;
LII. A invocação de instituto jurídico desadequado, desajustado ou inoperante é já sancionado ao nível da decisão do mérito da causa.
LIII. E, apenas quando o desrespeito pela justiça flua com nitidez do comportamento processual da parte se pode afirmar a litigância de má-fé, por deduzir pretensão (ou oposição) cuja falta de fundamento não devia ignorar;
LIV. No caso dos autos, dúvidas não restam de que a pretensão manifestada por parte do A., emerge da convicção profunda e absolutamente arreigada, a qual, saliente-se, hodiernamente se mantém, de que lhe assistem na integralidade os direitos, retius: pretensões possessória e indemnizatórias ali impetradas.
LV. Nessa conformidade, tendo sido o A. impedido de aceder à referida fracção/garagem, é também razoável e legítimo que o mesmo pretenda ser indemnizado pelos prejuízos causados pela privação da respectiva posse;
LVI. Assim sendo, o que se nos afigura evidente é que o entendimento perfilhado pelo A. consubstanciado na instauração da presente demanda não pode representar, nem representa, por parte daquele, um desrespeito pelo processo e pela justiça, uma vez que se não enquadra em qualquer uma das alíneas do art.º 542.º, n.º 2 do C.P.C., e designadamente, a prevista nas alíneas a) e b) do n.º 2, ou seja, não resulta que tenha actuado com negligência grave ao deduzir ação cuja falta de fundamento não devia ignorar;
LVII. Estabelece o artº 1281º, n.º 2 do Código Civil, que a acção de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado, não só contra o esbulhador, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho;
LVIII. Tudo isto para além do facto de ter sido oportunamente interposto o competente recurso do despacho saneador que determinou a absolvição do 4º Réu, sem que, contudo, até hoje tivesse sido ordenada a subida do mesmo para apreciação por parte deste Colendo Tribunal;
LIX. Ainda no que ao tema que aqui ora nos ocupa concerne, cumpre expender uma última nota para salientar que não pode conformar fundamento atendível para justificar a imputada litigância de má fé ao Apelante, o “argumento estafado”, assente no estigma de por este beneficiar de apoio judiciário, nessa justa medida “gozaria de uma certa impunidade em termos processuais”;
LX. Ademais, se fosse, sequer, concebível limitar o direito de defesa de acesso aos tribunais ao Recorrente adveniente de tal concepção, estar-se-ia a violar o princípio da proibição da indefesa, consignado, precisamente, no predito art.º 20.º da CRP;
LXI. De tudo o exposto impõe-se concluir não poder considerar-se o Apelante como litigante de má-fé.

TERMOS EM QUE, deverá o Douto aresto de que se recorre, ser revogado, na parte em que foi julgada a acção improcedente, por não provada, substituindo-o por outro, que condene solidariamente os co-RR. no pagamento de uma indemnização ao Apelante por todos os danos sofridos em toda a sua extensão e bem assim, absolvendo este último da condenação enquanto litigante de má-fé, desse modo se fazendo a habitual e acostumada Justiça!

Não foram oferecidas contra-alegações.
Foi proferido despacho que admitiu os dois recursos interpostos pelo autor, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Já neste Tribunal foi proferido o seguinte despacho:
“Recursos próprios, admitidos com o efeito devido.
O recurso do despacho saneador que absolveu da instância um dos réus deveria ter sido admitido, na altura em que foi interposto, com subida em separado – artigo 645.º do CPC.
Não tendo subido nessa altura, não se justifica estar agora a separá-lo, tanto mais que já há recurso da sentença final, pelo que se irá conhecer de ambos os recursos”
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a averiguação da legitimidade do 4.º réu, com a nulidade da sentença por ambiguidade, obscuridade ou contradição, com a impugnação da decisão de facto, com a questão da indemnização pela privação do uso e, finalmente, com a questão da litigância de má-fé.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos:

Factos Provados:
1. Por escritura pública outorgada a 19 de Fevereiro de 2008, A. S. e mulher M. D. declararam vender a A. P., casado com F. J. sob o regime da comunhão de adquiridos, pelo preço de € 4.900,00, uma fracção autónoma designada pelas letras “AM”, correspondente a lugar marcado no pavimento com o número onze, integrada no prédio urbano sito na Av.ª ..., nºs .., .. e .., com frente para a Rua ..., nº 1..0, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …, afecto ao regime de propriedade horizontal nos termos da inscrição F, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, tendo A. P. declarado aceitar a venda, nos termos exarados.
2. Desde 19 de Fevereiro de 2008 que o autor fruiu das utilidades daquela fracção autónoma, pagando o respectivo IMI, o que fez sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente, com a consciência de não lesar o direito de quem quer que seja, com o ânimo de quem exerce um direito seu, de propriedade.
3. Em cumprimento do acordo homologado na acção declarativa que correu termos pelo Juízo Local Cível de Braga-J1, sob o nº 4216/19.8T8BRG, C. M. entregou ao autor quer a chave, quer o comando, de acesso ao portão comum da garagem, mas não a chave de acesso da própria fracção/garagem nº 11, supra identificada.
4. No mês de Março de 2020, a 1ª ré mandou substituir a chave de acesso a essa garagem, ficando autor impedido da possibilidade de aceder à mesma com a “chave velha” que tem em seu poder.
5. Já após o desfecho do aludido processo judicial, o autor, através de carta registada com aviso de recepção datada de 18 de Maio de 2020, interpelou C. M. para que, no prazo de 10 dias, lhe entregasse uma cópia da nova chave da fracção autónoma acima identificada.
6. O autor encontra-se separado de facto da aqui 1ª ré desde final de Janeiro de 2017, tendo sido decretado o seu divórcio por sentença proferida a 11 de Junho de 2019, no âmbito do processo que correu termos no Juízo de Família e Menores de Braga-J2 sob o nº 1369/17.3T8BRG.
7. Não mantém o autor, desde então, qualquer contacto com a sua ex-mulher, nem com os seus filhos, aqui 2º e 3º réus.
8. Desde final de Janeiro de 2017 que a ex-esposa do autor deixou de residir com este naquela que era a casa de morada de família, localizada em fracção autónoma que faz parte integrante de um prédio urbano situado lateralmente ao prédio urbano onde se insere a garagem em causa nos autos.
9. Na presente data, encontram-se a residir naquela fracção que era a casa de morada de família os aqui réus F. J. e J. D..
10. O autor encontra-se privado de usufruir das utilidades da fracção autónoma designada pelas letras “AM”, vendo-se privado de estacionar lá qualquer veículo automóvel que pretenda, bem como de guardar qualquer objecto, uma vez que se trata de uma fracção autónoma fechada e não de um lugar de garagem.
11. O autor procedeu à compra da referida fracção, nomeadamente, porque o extinto casal que formou com a 1ª ré tem dois automóveis e apenas uma garagem, sita no prédio urbano onde também residiam, mas que apenas dá para estacionar um veículo.
12. O autor vê-se também privado dos bens que se encontram guardados no interior da garagem aqui em questão e, assim, de usufruir dos mesmos e garantir o seu estado de conservação, vale dizer: i) uma garrafeira com encaixes para garrafas; ii) um motociclo “scooter” da marca Honda, com a matrícula EU.
13. O autor continua a fazer uns biscates enquanto electricista.
14. Por sentença proferida a 13 de Julho de 2018, no processo nº 344/17.2PBBRG, que correu termos pelo Juízo Local Criminal de Braga-J2, foi o aqui autor A. P. condenado, como autor material, por um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nºs 1, al. a) e 2 do Código Penal, além do mais, na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer forma, com a ofendida F. J., com o afastamento do arguido da residência da ofendida, ou do seu local de trabalho, respeitando uma distância de pelo menos 500 (quinhentos) metros, durante os primeiros dois anos após o trânsito, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
15. Na presente data, o autor encontra-se ainda a ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, através de pulseira electrónica.
16. Por sentença proferida a 4 de Abril de 2019 no processo nº 1369/13.3T8BRG, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Braga - J2, ficou atribuído à aqui 1ª ré o direito de utilização da casa de morada de família, correspondente à fracção autónoma destinada a habitação, situada na Rua …, nº …, na freguesia de ..., desta cidade de Braga.
17. Através de execução dessa decisão, foi o autor forçado a entregar a casa, em diligência realizada pela Sra. Solicitadora de Execução a 10 de Setembro de 2019.
18. A garagem aqui em discussão localiza-se na lateral do prédio onde se situa a casa de morada de família, pelo que o autor, ao aproximar-se ou ao tentar entrar naquela garagem incumpriria a pena acessória em que foi condenado.

Factos Não Provados:

Não se provaram outros quaisquer factos com relevo para a decisão a proferir além dos acima elencados e, designadamente, que:
a) O autor viu-se privado de usufruir e garantir o estado de conservação dos seguintes bens, que se encontram guardados no interior da garagem aqui em questão, a saber: i) material de electricista equivalente ao que se encontra discriminado nas facturas anexas como docs. 3 a 22 com a petição inicial, e que o autor se viu forçado novamente a adquirir: ii) uma banca com um torno médio, diversas ferramentas da arte de electricista (v.g., medidor de voltímetro de correntes, alicates, chaves de fendas e de cruz); iii) quarenta garrafas com vinho engarrafado; iv) uma bicicleta de ciclista da marca X, em alumínio.
b) Ao ter-se visto privado do material de electricista equivalente ao que se encontra discriminado nas facturas anexas como docs. 3 a 22 com a petição inicial, e que o autor se viu forçado novamente a adquirir, fez com que este tivesse de despender a quantia total de € 1.196,07 (mil cento e noventa e seis euros e sete cêntimos) para o adquirir novamente.

Comecemos por apreciar o recurso do despacho saneador relativo à legitimidade do 4.º réu.
O autor demandou C. M. “na qualidade de administrador do condomínio da garagem sita na Rua ..., n.º 10” e alegou que intentou contra este réu uma ação, que terminou por transação em que o réu se obrigou a entregar uma chave de acesso à garagem e um comando de acesso ao portão, o que efetivamente fez – cfr. facto provado n.º 3.
Mais alega o autor que, nessa ação não pediu os danos resultantes da privação do uso e não só, de todos os bens que se encontravam no interior da dita garagem, o que se verifica que não é verdade, pela simples análise da petição inicial junta como documento n.º 2 a fls. 18 e seguintes dos autos, de onde decorre que, sob a alínea b) do pedido, pediu a condenação do réu no pagamento de € 60,00 mensais, desde a data da privação do uso até efetiva entrega (pedido que repete nesta ação).
Na contestação, o réu alegou que apenas é administrador do condomínio e que sempre agiu apenas nessa qualidade, detendo a chave e o comando de acesso ao portão comum da garagem, mas já não da porta de acesso à fração/garagem, desconhecendo quem tem a chave da mesma e a quem pertence a referida fração.
Vejamos.
O conceito de legitimidade é-nos fornecido pelo artigo 30.º do Código de Processo Civil. Aí se pode ler que «o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer», sendo que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que da procedência da acção lhe advenha. O n.º 3 deste mesmo artigo acrescenta, com interesse para esta questão, que «na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
Ou seja, o critério normal de determinação da legitimidade das partes pressupõe a titularidade por estas da relação material controvertida, sendo certo que, como é sabido, entre nós triunfou, na disputa doutrinária encabeçada por Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, a tese defendida por este último, segundo o qual, a relação material controvertida deve ser tomada com a configuração que lhe foi dada unilateralmente, pelo autor, na petição inicial.
Ora, o 4.º réu foi demandado nesta ação na sua qualidade de administrador do condomínio e, nessa qualidade, obviamente que é estranho à disputa do autor com a sua ex-mulher e filhos quanto à posse da garagem de que serão proprietários, designadamente, quanto ao facto de não lhe ser fornecida a chave da mesma, impedindo-o de ter acesso ao seu interior e de usar os bens que aí estarão guardados. Trata-se de questão relativa a fração de exclusiva propriedade de um condómino e não de questão relativa às partes comuns do prédio e, conforme resulta do disposto no artigo 1437.º, n.º 2 do Código Civil, o administrador só pode ser demandado nas ações respeitantes às partes comuns do edifício. A alegação do autor de que não sabe se o réu detém a chave da fração é perfeitamente inócua, face à qualidade em que foi demandado.
Por outro lado, verifica-se que o autor já propôs ação contra este réu em que peticionou indemnização pela privação do uso e que tal ação veio a terminar por transação em que apenas ficou cominada a entrega da chave do portão e respetivo comando, o que bem se compreende porque só sobre essas partes comuns poderia ser imputada qualquer responsabilidade ao réu, uma vez que o portão de acesso às garagens é uma parte comum do prédio.
Ora, se é certo que esta sentença homologatória de transacção proferida no anterior processo não decidiu da controvérsia substancial existente entre as partes, já que foram estas que puseram fim a tal lide, por acordo alcançado entre elas, a verdade é que decidiram terminar a lide, solucionando o litígio, sem qualquer alusão à questão da indemnização por privação de uso, ficando, assim, precludida a possibilidade de vir intentar nova ação com o mesmo pedido. É a chamada exceção de transação (Como esclarece Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, 499, “A excepção de caso julgado pressupõe que, tendo uma causa sido decidida por sentença com trânsito em julgado, posteriormente se propõe a mesma causa” (…) A lide não foi decidida por sentença anterior; foi composta por acordo das partes. É certo que sobre a transacção judicial há-de incidir sentença do tribunal, sem o que o acto das partes não produz efeito; mas a função dessa sentença não é decidir a controvérsia substancial, é unicamente fiscalizar a regularidade e validade do acordo. De maneira que a verdadeira fonte da solução do litígio é o acto de vontade das partes e não a sentença do juiz. Desde que o conflito em si não foi decidido por sentença, não tem cabimento a excepção de caso julgado(…).Em vez de opor a excepção do caso julgado o que o Réu deve opor é a excepção de transacção”- Ac. da Relação de Lisboa de 11/01/2018, processo n.º 8008/16.8T8STN-B.L1-2, in www.dgsi.pt).
Ou seja, a questão objeto daquela ação foi arrumada e resolvida pela transação efetuada entre as partes; “essa transacção tem, entre as partes, o valor de caso julgado; portanto não pode o tribunal conhecer do mérito da acção" – Ac do STJ de 30/10/2001, processo n.º 012924, in www.dgsi.pt.
Assim, não só o réu não tem qualquer interesse em contradizer pois, na qualidade em que é demandado, nenhum prejuízo lhe pode advir da eventual procedência da ação, como, ainda, a questão da eventual indemnização foi já debatida entre as partes no processo anterior e foi afastada na transação que é um verdadeiro acto de vontade das partes que põe termo às questões em discussão nos autos.
Improcede, nestes termos, o recurso que o autor interpôs do despacho saneador.

A questão prévia suscitada pelo apelante no seu recurso da sentença, ficou já decidida, desde logo, no despacho que recebeu os recursos neste tribunal e na apreciação do recurso do despacho saneador a que se procedeu supra.
Não obstante o apelante ter razão quanto a não se descortinar o motivo pelo qual o recurso do despacho saneador não subiu de imediato, em separado, a verdade é que, entretanto, foi proferida a sentença e os dois recursos subiram conjuntamente. Tendo sido distribuídos conjuntamente, não se afigurou correto, nesta fase, separar as apelações.
Sendo decididos em conjunto, não há dúvida que a procedência do recurso do despacho saneador, conduziria à anulação da sentença (e do julgamento) para que aí fossem consideradas as questões relativas ao 4.º réu. Contudo, como decorre do supra explanado, tal recurso foi considerado improcedente, confirmando-se o despacho recorrido, pelo que nada obsta a que se prossiga para a análise do recurso da sentença final.

Entende o apelante que a sentença é nula por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, por o julgador ter incorrido no vício de oposição entre os fundamentos e a decisão “senão mesmo numa ambiguidade ou obscuridade que tornam a decisão ininteligível”.
Considera que, provado o esbulho e a impossibilidade de o autor usufruir das utilidades da fração autónoma em questão, bem como dos bens que aí se encontram guardados, não podia ter-se concluído como concluiu pelo não preenchimento do direito à indemnização peticionada, não estando os fundamentos de facto e de direito em concordância lógica com a decisão.
Ora, o que acontece, à semelhança do que, aliás, vem acontecendo em inúmeros recursos que temos apreciado, é que o apelante confunde a nulidade da decisão com a discordância quanto ao resultado.
No caso de que nos ocupamos, estão especificados os fundamentos de facto e de direito que conduziram à decisão final e se, neste caso, como em tantos outros, são admissíveis diversas interpretações jurídicas sobre os factos assentes, a verdade é que o Sr. Juiz explicou detalhadamente os motivos que o levaram a concluir da forma que concluiu. Ou seja, não há uma contradição entre a fundamentação e o resultado final, no sentido da nulidade invocada, nem a sentença é ininteligível, nem se presta a interpretações diferentes, caso em que poderíamos concluir pela obscuridade ou ambiguidade da mesma.
O percurso silogístico do julgador está perfeitamente delineado. Pode é não se concordar com ele, do ponto de vista jurídico, mas tal divergência não configura uma nulidade da sentença, pelo que improcede a invocação da mesma.

Seguidamente, o apelante impugna a decisão de facto.
Considera que deveria ter sido dado como provada a alínea a) dos factos não provados, alterado o ponto 5 dos factos provados, de forma a que do mesmo passe a constar que o autor também interpelou a 1.ª ré para que lhe entregasse cópia da chave, aditados dois novos factos provados para que ficasse a constar que os 2.º e 3.º réus também têm uma cópia da chave e usam a garagem e que mudaram a fechadura por não quererem que o autor tivesse acesso à garagem e alterado o ponto 15 dos factos provados no sentido de ficar a constar que o autor continua a usar pulseira eletrónica devido a circunstâncias não imputáveis ao mesmo.
Quanto à alínea a) dos factos não provados, entendemos que não se fez prova suficiente para que os factos aí descritos possam transitar para os factos provados.
É certo que tal resultou das declarações de parte do próprio autor e do depoimento das testemunhas C. F. e F. C., amigos de longa data do autor. Tal, contudo, não resultou da inspeção ao local efetuada pelo tribunal, conforme decorre do que ficou a constar no auto respetivo e das fotografias juntas. Conforme se refere na motivação da decisão de facto, algum material e objetos a que o autor se refere, poderiam ter sido retirados do local na pendência da causa, apesar de se verificar das fotografias que a bicicleta, por exemplo, está presa ao teto da outra garagem por uma roldana e que as caixas de material estão dispostas em prateleiras, que não existem na garagem em causa nos autos que, aliás, não tem espaço para a banca com o torno, tudo a indiciar que tais objetos não estariam neste espaço, mas sim na outra garagem. Os depoimentos dos amigos limitam-se a reproduzir o alegado pelo autor, sendo que a testemunha F. C. até se tinha esquecido da garrafeira, que só acrescentou posteriormente. Por outro lado, os documentos que o autor juntou para provar a aquisição do dito material elétrico, não têm a virtualidade de provar que tal material lá existiria, até porque, muitas das faturas se reportam a anos muito anteriores (2006, 2007, 2008 e por aí adiante) e a filha – A. L. - até refere que tudo o que lá existia já era muito antigo e era o que o pai trazia das obras, uma vez que só comprava material novo para por diretamente na obra. A mesma testemunha refere a existência da moto, apesar de salientar que a moto era usada pelos irmãos e que era do pai e da mãe, o que indicia porque é que a moto estaria na garagem utilizada pelos irmãos. Esta testemunha também é muito perentória e fica até admirada por se colocar a questão da mãe e dos irmãos terem andado a mudar as coisas de sítio, porque considera que sempre tais objetos estiveram na garagem do prédio e não na garagem aqui em causa. Quanto às ferramentas, diz que o pai sempre as trouxe na mala do carro.
Assim, não se vê motivo para alterar a decisão quanto a esta alínea dos factos não provados.
Já quanto ao ponto 5 dos factos provados, o apelante tem razão. Resulta da assentada relativa ao depoimento de parte dos réus a sua confissão quanto ao facto de a 1.ª ré ter recebido uma carta assinada pela irmã do autor a pedir-lhe uma cópia da chave da garagem, carta essa, registada com aviso de receção assinado pela própria ré, conforme se pode ver dos documentos de fls. 71 e 72 dos autos.

Assim, decide-se acrescentar o ponto 5-A aos factos provados, com a seguinte redação:
“Com a mesma data de 18 de maio de 2020, o autor, por carta registada com aviso de receção, assinada por sua irmã, interpelou a 1.ª ré para que esta, no prazo de 10 dias, lhe entregasse uma cópia da nova chave da fração autónoma acima identificada”
Já os aditamentos pretendidos não têm razão de ser. Quem procedeu à substituição da chave de acesso à garagem foi a 1.ª ré – facto provado n.º 4. Se depois fez cópias para os filhos que vivem consigo, como estes admitem, não tem relevância autónoma e muito menos acrescentar-se que o fizeram por não quererem que o autor tivesse acesso à garagem, o que resulta como facto notório de todo o desenvolvimento da lide e da conjugação dos factos provados.
Finalmente, também não se vê que deva ser alterado o que consta dos factos provados n.ºs 14 e 15, uma vez que traduzem fielmente o que resulta do processo crime e da constatação de que o autor continua com a pulseira eletrónica, como o próprio admitiu, não sendo relevante o facto de dizer “quando ma quiserem tirar podem tirar, eu não tenho problemas nenhuns”. Não havendo factos em contrário, os que subsistem são os relativos ao que ficou a constar da sentença crime e o facto de o autor ainda usar a pulseira eletrónica. Tudo o mais são especulações, que o próprio autor não soube explicar.

Relativamente à interpretação jurídica dos factos, considera o apelante que o tribunal decidiu mal as questões que se prendem com o seu direito à indemnização pela privação do uso da garagem, da garrafeira e da scooter e dos demais objetos constantes da alínea a) dos factos não provados (caso tivesse ocorrido a alteração da matéria de facto pretendida).
Vejamos.
Em primeiro lugar deve dizer-se que os 2.º e 3.º réus nada têm a ver com os factos aqui dados como provados e que sustentam as pretensões do autor.
Quem mandou substituir a chave de acesso à garagem, impedindo o autor de aceder à mesma, foi a 1.ª ré, no mês de março de 2020. O facto desta ter disponibilizado cópia da referida chave aos seus filhos, para que estes pudessem aí estacionar as suas viaturas, não os faz incorrer em qualquer responsabilidade extracontratual perante o autor.
Ora, sendo o imóvel um bem que integra o património comum do extinto casal, ainda não partilhado, aplicam-se as regras da compropriedade (duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa), sendo que, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito – artigo 1406.º, n.º 1 do Código Civil – isto porque, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular (artigo 1405.º, n.º 1 do CC).
Uma vez que a coisa não é divisível materialmente, poderiam os consortes ter acordado numa divisão temporal ou por turnos ou, não parecendo tal conveniente, resta o uso direto promíscuo ou simultâneo – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, pág. 357. No caso de se entender que o uso pretendido ou exercido pelo outro, priva um deles do direito que tem a usar a coisa (porque a nenhum dos comproprietários pode ser imposto o dever de co-habitar com os outros), o único recurso a adotar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá, em regra, na locação da coisa com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes – autores e obra citada, pág. 357 – nada obstando a que o locatário seja um dos comproprietários.
Este uso da coisa comum estipulado pelo artigo 1406.º do CC, em qualquer uma das formas supra referidas, não pode ser afastado, como parece decorrer da sentença, pelo facto de o autor ter sido condenado em processo-crime numa pena acessória de proibição de contactos com a 1.ª ré e o seu afastamento da residência daquela, respeitando uma distância de, pelo menos, 500 metros. Esta condenação não limita o direito de propriedade do autor e, como vimos, é possível o uso da coisa comum através de variadas formas e mesmo por interpostas pessoas.
Ora, o que é certo é que a 1.ª ré, ao substituir, em março de 2020, a chave de acesso à garagem impediu o autor de a usar, privou o outro consorte do uso a que igualmente tem direito, nos termos daquele artigo 1406.º, n.º 1 do CC, sendo correta a condenação da mesma a entregar ao autor uma chave que lhe permita o acesso à garagem.
A sentença sob recurso ficou-se por esta condenação, entendendo que não havia lugar a qualquer indemnização.
Mas aqui teremos que dar razão ao apelante, ainda que parcialmente.
Reportamo-nos à indemnização pela privação do uso.
Na sentença sob recurso considerou-se não estar preenchido um dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual: o requisito da ilicitude da atuação da 1.ª ré, por o comproprietário não ter manifestado um interesse concreto em fazer também uso da coisa. Sustentou-se, para o efeito, num Acórdão da Relação de Lisboa de 12/04/2016, de onde decorreria que a ilicitude da conduta de um comproprietário que utilize em exclusivo a coisa co-titulada apenas se afirmará quando o outro comproprietário tenha manifestado um interesse concreto em fazer também uso da coisa e aquele que faz uso da coisa se negue, depois de intimado para tal, a, nos termos da lei, facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela.
Ora, o que se verifica é que o autor, com data de 18 de maio de 2020, por carta registada com aviso de receção, assinada por sua irmã, interpelou a 1.ª ré para que esta, no prazo de 10 dias, lhe entregasse uma cópia da nova chave da fração autónoma acima identificada – facto provado n.º 5-A – manifestando, assim, um interesse concreto em também fazer uso da coisa.
Daí que, mesmo aceitando a tese da sentença recorrida quanto à ilicitude do comportamento da 1.ª ré, não há dúvida que a mesma se verifica.
E o mesmo se diga do dano sofrido.

A respeito do dano de privação do uso, é possível surpreender na jurisprudência, essencialmente, duas correntes (seguimos de perto, Acórdão desta Relação de 05/03/2015, processo n.º 883/14.7TBVCT.G1, www.dgsi.pt):
- para uns a simples privação do uso constitui, por si só, um dano indemnizável já que representa, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade que é a de usar a coisa quando e como lhe aprouver (o art.º 1305.º do C.C. reconhece ao proprietário o direito de gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, direito que só conhece os limites e as restrições legalmente impostos) - Ac. do S.T.J. de 28/09/2011, proc.º 2511/07.8TACSC. L2.S1, (Oliveira Mendes), Ac. da Rel. do Porto de 17/03/2011, Proc.º 530/09.9TBPVZ.P1, (Freitas Vieira); Ac. desta Relação de Guimarães de 11/11/2009, Proc.º 8860/06.5TBBRG.G1, (Isabel Fonseca), também in www.dgsi.pt);
- a outra corrente defende que a privação do uso de uma coisa por parte do seu proprietário, que um terceiro cause, somente será ressarcível se aquele cumprir com o ónus da prova do dano concreto e efectivo que decorreu da privação (a mera privação não é indemnizável) - Ac. do STJ de 15-11-2011, Processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1, (Moreira Alves), em www.dgsi.pt.
Surpreende-se ainda o que pode ser havido como uma via intermédia: a simples privação do uso do bem não basta para justificar a indemnização mas também o essencial é que se prove a frustração de um propósito real e concreto de proceder à sua utilização, não se exigindo a prova de danos efectivos - Ac. do S.T.J. de 06/05/2008, Proc.º 08A1389, (Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
Na jurisprudência que pugna pela indemnização da simples privação do uso salienta-se que a perda da possibilidade de utilização do bem quando e como lhe aprouver tem valor económico e recorre-se para o cálculo da correspondente indemnização à equidade, por não ser possível avaliar “o valor exato dos danos”. Entre muitos outros, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 25/10/2018, no processo 2511/10.0TBPTM.E2.S1 (Alexandre Reis), disponível em www.dgsi.pt.
E mesmo que nos atenhamos à tese intermédia – veja-se, a propósito, Pinto de Almeida, in “ Responsabilidade Civil Extracontratual” no texto que apresentou no Curso de Especialização Temas de Direito Civil organizado pelo CEJ, a 02 de Março de 2010, disponível in http://www.trp.pt/ficheiros/estudos/pintoalmeida _respcivilextracontratual.pdf -, se, por um lado, se “afirma que não basta a simples privação do uso do bem, também não exige a prova de danos concretos e efetivos; será essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.”, remetendo para o Ac STJ de 09.12.2008, no processo 08A3401 (sempre conduziria, no nosso caso, à indemnização pela privação do uso, se atendermos ao facto de que o autor intimou diretamente a ré para que ela lhe entregasse a chave da fração a fim de a poder utilizar, bem como os seus bens que lá se encontravam).
Ou seja, quer se sufrague a tese de que a simples privação do uso constitui um dano indemnizável, quer se entenda que é necessária a prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, sempre o autor teria direito a uma indemnização pela privação do uso do imóvel, considerando a prova que fez.
Sem embargo, e voltando ao Acórdão desta Relação já citado, “temos para nós, ressalvado o devido respeito pelo bem fundamentado do entendimento divergente, que a simples privação do uso, como na situação sub judicio, ostensivamente contra a vontade do proprietário, consubstancia um dano porque só ele tem o direito de fruir a coisa que lhe pertence e de a utilizar quando lhe aprouver”.
Assim se concluindo que o autor/apelante tem direito a ser ressarcido do dano consubstanciado na privação do uso do seu imóvel, sendo apodíctico o nexo de causalidade entre este dano e a acção cometida pela Ré. O facto de o autor ter estado privado de usar a garagem de que é comproprietário (estacionando viaturas ou guardando objetos, ou, como já se referiu, auferindo um valor patrimonial pela sua locação) e dos bens de que é proprietário e lá se encontram – una garrafeira com encaixes para garrafas e um motociclo – faz com que seja credor de uma indemnização pela privação do uso.
O montante da indemnização terá que ser fixado equitativamente, por não ser possível averiguar o valor exato dos danos – artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.
Ora, considerando que o autor se viu privado do uso da garagem de que é comproprietário e dos seus bens que lá se encontravam – garrafeira e motociclo (tendo ficado a dúvida quanto a saber se este bem também pertence ao extinto casal) – desde a data em que a ré procedeu à mudança da fechadura – março de 2020, considera-se adequado e equitativo fixar uma indemnização pela privação do uso durante estes dois anos, na quantia de € 1.000,00 (arredondando um valor próximo de € 40,00/mês que corresponderia a metade do valor locatício de uma garagem).
Procede, assim, parcialmente, a apelação no que toca ao pedido de indemnização pela privação do uso.

Finalmente, o apelante também tem razão quanto à sua condenação como litigante de má-fé.
A sentença recorrida considera que o autor agiu dolosamente, ou pelo menos, com negligência grave, por não ter curado de identificar o agente responsável pela prática do facto que lhe vedou o acesso à garagem, “arrastando” para a ação os seus filhos e o administrador do condomínio, “sem um mínimo de fundamento, de facto ou de direito que o justificasse”, atribuindo culpas ao facto de beneficiar de apoio judiciário (!).
Vejamos.
O instituto da litigância de má-fé, previsto nos arts. 542º e segs. do C.P.C., constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa fé (ou probidade) processual (arts. 266º e 266º-A do C.P.C., atuais artigos 7.º e 8.º do CPC) – cfr Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil Vol. I (2ª edição revista e ampliada), pag. 97.
A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.
O instituto em causa acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má-fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial – cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má-fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.
A condenação como litigante de má-fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que fez do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável.
A simples proposição de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte. O mesmo acontece com a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.
A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé - cfr., entre outros, os Ac. do STJ de 14/03/2002 e 15/10/2002, in www.dgsi.pt.
No acórdão do S.T.J de 11/12/2003, in www.dgsi.pt, argumentou-se dever entender-se que “a garantia de um amplo acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art. 456º do CPC, nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2”, pelo que não é por “se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má-fé”, pois a verdade revelada no processo não é mais que a verdade do convencimento do juiz, uma verdade judicial e relativa, “não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”.
Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má-fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão são feitas – Ac. STJ de 15/10/2002, já citado.
Exige-se para a condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte
Ora, da análise do comportamento processual do autor não pode concluir-se pela sua litigância de má-fé.
O autor intentou a ação contra quatro réus, convencido do bem fundado da interpretação que fez dos normativos legais aplicáveis, conforme decorre, aliás, das suas alegações de recurso, onde continua a sustentar a sua versão. Não decorre da falta de prova de alguns dos factos alegados, designadamente quanto aos bens existentes na garagem e à atuação dos réus (e veja-se o seu inconformismo, interpondo recurso também da matéria de facto), que o autor tenha litigado de má-fé.
Já vimos que tal não basta para que se possa concluir pela litigância de má-fé, no sentido de uma conduta desrespeitosa perante o tribunal ou perante a parte contrária, não derivando do seu comportamento uma vontade consciente e reprovável com vista a impedir ou entorpecer a ação da justiça.

Do que fica dito resulta a procedência do recurso do apelante, com a necessária revogação da sentença recorrida, no que toca à condenação deste como litigante de má-fé.

II. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando-se parcialmente a sentença:

a) Mantém-se a condenação da ré F. J. a entregar ao autor uma chave que lhe permita aceder à garagem identificada no ponto 1 dos factos provados;
b) Condena-se a ré F. J. a pagar ao autor a quantia de € 1.000,00 devida pela privação do uso da garagem e bens que lá se encontravam, desde março de 2020 até à presente data, absolvendo-se esta ré das demais indemnizações peticionadas;
c) Absolvem-se os réus J. D. e J. M. de todos os pedidos formulados pelo autor;
d) Absolve-se o autor do pedido de condenação como litigante de má-fé.
Custas do recurso do despacho saneador pelo apelante.
Custas do recurso da sentença por apelante e apelada, 1.ª ré, na proporção de metade para cada um.
***
Guimarães, 24 de março de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira