Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1561/20.3T8VRL.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PERDA DE VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A jurisprudência, de um modo consensual, tem vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento.
II - A indemnização por este dano, consubstanciado numa limitação funcional perspetivada na ótica de uma diminuição da capacidade na vertente profissional, podendo não se refletir em perdas salariais imediatas, visa compensar a acrescida penosidade e esforço no exercício dessa atividade profissional e a limitação da utilização do corpo enquanto força de trabalho produtor de rendimento.
III - O défice funcional da integridade físico psíquica tem de ser alcançado por meio de perícia de avaliação do dano corporal, realizada por perito médico e tendo em consideração as tabelas de avaliação do dano corporal publicadas em Diário da República.
IV - O dano biológico é o dano que, tendo origem numa lesão corporal, se traduz na afetação da capacidade funcional de uma pessoa declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
V - Não ficando a autora a padecer de défice funcional permanente da integridade físico psíquica, não tem direito a indemnização, de natureza patrimonial, a título de perda de capacidade de ganho.
VI – Não sendo economicamente viável a reparação do veículo, haverá de ser encontrado um valor indemnizatório que recomponha o interesse do lesado.
VII - Um veículo de valor comercial reduzido pode estar em excelentes condições e satisfazer plenamente as necessidades do dono. Nestas circunstâncias a quantia equivalente ao valor de mercado do veículo (muitas vezes ínfima) não conduzirá à satisfação dessas mesmas necessidades, o que equivale a dizer-se que não reconstituirá o lesado na situação que teria se não fosse o acidente.
VIII - Por conseguinte, a situação inicial do lesado só será reintegrada se a indemnização equivalente for de molde a satisfazer o seu interesse, o qual deve prevalecer sobre o do lesante, sendo pouco relevante, para os fins em análise, que o valor dessa indemnização haja de ser superior (contanto que não seja flagrantemente desproporcional) ao seu valor comercial.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

AA e BB instauraram a presente ação contra A..., SA pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes o valor dos danos sofridos em consequência de acidente de viação, causado por veículo seguro na Ré, que computam nas seguintes quantias:

a) Ao autor o montante de 54.848,58 € a titulo de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência do acidente;
b) À autora o montante de 39.422,61 € a titulo de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência do acidente;
c) Aos autores, na qualidade de credores solidários, o montante de 4.000 € correspondente à perda total do veículo automóvel;
d) Aos autores, na qualidade de credores solidários do montante que se vier a liquidar em execução de sentença ou em incidente de liquidação, correspondente a 25 € por cada dia, a titulo de indemnização pela privação do veículo automóvel, desde a data do acidente até ao pagamento do valor do veículo automóvel reclamado na al. c);
e) Às quantias supra mencionadas acrescem juros desde a citação até efetivo e integral pagamento.
A Ré A..., SA apresentou contestação, impugnando a dinâmica do acidente que atribui à responsabilidade do autor, assim como os danos e o seu valor.
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Após julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por tudo quando se disse julgo a presente ação que AA e BB instauraram contra «A..., SA» parcialmente procedente por provada e, em consequência:

a) Condeno a ré a pagar a cada um dos autores a quantia de 12.000 € (doze mil euros) a título de danos de natureza não patrimonial;
b) Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de 12.500 € (doze mil e quinhentos euros) e à autora a quantia de 10.000 € (dez mil euros) a título de perda de capacidade de ganho;
c) Condeno a ré a pagar ao autor a quantia de 550,00 € (quinhentos e cinquenta euros) e à autora a quantia de 139,90 € (cento e trinta e nove euros e noventa cêntimos) a titulo de indemnização pelos óculos partidos e ainda a quantia de 25,15 € (vinte e cinco euros e quinze cêntimos) pelas despesas de farmácia e consultas médicas.
d) Condeno a ré a pagar aos autores a quantia de 2.500 € (dois mil e quinhentos euros) pela perda da viatura com a matricula ..-..-FR e 2.790,00 € (dois mil setecentos e noventa euros) pela privação do uso da mesma.
e) Às quantias referidas acrescem juros de mora à taxa legal desde a citação e até efetivo e integral pagamento.»
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Inconformada com a sentença veio a Ré interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A recorrente não se conforma com a decisão proferida a respeito da fixação do montante indemnizatório relativo ao dano patrimonial e ao dano não patrimonial de que os autores AA e CC ficaram a padecer em virtude do acidente dos autos.
2. Tão-pouco se conformam com a decisão proferida a respeito da fixação da indemnização relativa à perda total do veículo de matrícula ..-..-FR, no acidente dos autos.
3. Por uma questão de economia processual, dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto relevante para a decisão das sobreditas questões.
4. A decisão ora em apreço fixou em 12.500,00€ a indemnização devida ao autor AA como indemnização da vertente patrimonial futura do dano biológico, com o que a recorrente não se conforma.
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5. Tal decisão tomou em linha de conta a idade do autor à data do evento, que era de 54 anos (e, necessariamente, a esperança média de vida em Portugal, que para o homem corresponde aos 80 anos de idade), o rendimento do apelado, que à data do acidente era de €1.665,77€ mensais e o seu défice funcional permanente na integridade físicopsíquica de 1 ponto, com esforços acrescidos.
6. Não resultou demonstrado nos autos que o défice funcional permanente de que o autor padece se reflicta numa incapacidade, na mesma medida, para o exercício da sua actividade profissional, isto é, que a sua capacidade de ganho tenha resultado efectivamente diminuída.
7. Como tal, crê a recorrente que não assiste ao autor o direito a ser indemnizado nessa vertente do dano, assiste-lhe o direito a ser ressarcido pela incapacidade traduzida na diminuição da sua condição física que, como tal, representa um dano específico e autonomamente indemnizável, assente na penosidade adveniente da diminuição de capacidades e do maior esforço físico que terá de desenvolver na sua vida diária e profissional.
8. As sequelas do autor não acarretam qualquer prejuízo económico na esfera patrimonial do recorrido, pelo que o seu dano biológico tem apenas uma componente não patrimonial, pela qual, aquele deverá ser compensado.
9. Assim, impõe-se a revogação da douta sentença na parte em que condenou a aqui recorrente a pagar ao recorrido a quantia de 12.500,00€ a título de indemnização pelo dano biológico de cariz notoriamente patrimonial, o que, desde já, se requer.
10. Quando assim se não se entenda, o que apenas se admite para efeitos do presente raciocínio, entende a recorrente que o montante indemnizatório fixado ao autor pelo ano biológico se mostra francamente exagerado, atenta a realidade a indemnizar, bem como, se mostram menos correctos os pressupostos subjacentes à sua fixação.
11. O autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físicopsíquica de 1 ponto, sem interferência com a sua capacidade de ganho, nomeadamente que acarrete uma diminuição dessa capacidade de ganho.
12. Deste modo, não parece fazer sentido entrar em linha de conta com o salário auferido pelo autor com vista à indemnização de um dano que reveste claramente uma natureza distinta.
13. O direito à integridade física é igual para todos os seres humanos, sendo independente e autónomo do nível de rendimento e da situação patrimonial dos lesados.
14. Como tal, a fixação da indemnização por danos patrimoniais emergentes do défice funcionalmente da integridade físico-psíquica não deverá entrar em linha de conta com o salário auferido pelo mesmo. (Neste sentido, o Ac. STJ de 19.02.2015, proferido no âmbito do processo n. 99/12.7TCGMR.G1.S1 e o Ac. Rel. Porto de 21.01.2016, Proc. 959/11.2TBSJM.P1, 3ª Secção).
15. Por outro lado, não se afigura justo e conforme aos princípios da equidade, que, nestas circunstâncias, se fixe uma indemnização de valor muito superior àquelas que vêm sendo atribuídas pela nossa Jurisprudência em situações em que, por exemplo, os lesados ficam a padecer de um dano biológico igual ou superior àquele que afecta o recorrido ou em que a idade do lesado seja inferior, situação em que esta incapacidade será previsivelmente vivenciada por muitos mais anos.
16. A indemnização fixada ao autor na sentença ora posta em crise mostra-se muito superior àquelas que vêm sendo fixadas pela nossa Jurisprudência em casos em que os lesados padecem de sequelas mais gravosas, sendo, inclusive, mais novos do que o recorrido.
17. Veja-se, a título de exemplo, o decidido no Acórdãos acima parcialmente transcritos: Ac. STJ de 17.01.2023, Proc. 5986/18.6T8LRS.L1.S1.; o Ac. do STJ de 06.12.2018; Ac. Da RC de 09.02.2019, Proc. 1539/17.4T8CTB.C1;
18. Ora, perante os montantes fixados nos casos acima citados parece não existir dúvida de que o valor arbitrado ao recorrido a título de indemnização pelo défice funcional permanente de 1 ponto de que o mesmo padece se afigura excessivo e injustificado.
19. Na verdade, em todos os referidos casos, os ali lesados têm uma incapacidade superior àquela de que o recorrido é portador, bem como, uma idade substancialmente inferior.
20. No primeiro caso, para um lesado 31 anos mais novo do que o autor e que ficou a padecer de uma incapacidade permanente cerca de 15 vezes superior, foi arbitrada uma indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, no valor de 50.000,00€, ou seja, apenas cinco vezes superior àquela arbitrada ao aqui autor pelo seu dano biológico de natureza patrimonial.
21. No segundo caso, para um lesado 14 anos mais novo do que o autor, que ficou a padecer de uma incapacidade permanente 10 vezes superior, foi arbitrada uma indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, no valor de 60.000,00€, ou seja, apenas seis vezes superior àquela arbitrada ao aqui autor pelo seu dano biológico de natureza patrimonial.
22. No terceiro caso, para um lesado 47 anos mais novo, que ficou a padecer de uma incapacidade permanente 2 vezes superior, foi arbitrada uma indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, no valor de 12.500,00€, ou seja, idêntica àquela arbitrada ao aqui autor pelo seu dano biológico de natureza patrimonial.
23. É com esta discrepância de critérios utilizados na fixação destas indemnizações que a ora recorrente não se conforma.
24. A respeito da indemnização arbitrada ao apelado em virtude da sobredita incapacidade funcional permanente, importa sublinhar que, ao fixar o montante indemnizatório na quantia de 12.500,00€, o Tribunal recorrido não tomou em consideração a circunstância de que essa indemnização constitui, na realidade, uma verdadeira antecipação de capital, reportada a um dano que se verificará por mais de 26 anos.
25. Para obter uma decisão tão justa quanto possível, há que atentar nas diversas decisões jurisprudenciais proferidas em casos idênticos ou comparáveis.
26. Perante as considerações acima expendidas justifica-se a redução da indemnização pelo dano biológico, na vertente de danos patrimoniais, para um valor não superior a 6.000,00€.
27. Assim, caso não se considere que o dano biológico do recorrido deve ser compensado, apenas, enquanto dano não patrimonial, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que fixe em não mais de 6.000,00€ a indemnização a arbitrar ao recorrido pelo défice funcional permanente de 1 ponto de que o mesmo ficou a padecer em consequência do acidente dos autos.
28. A recorrente também não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido relativamente ao ressarcimento do alegado dano biológico, na vertente patrimonial, sofrido pela autora CC.
29. Quanto a este aspecto da sentença recorrida, importa sublinhar que, ao contrário do alegado pela recorrida, esta não ficou a padecer de qualquer défice permanente de integridade físico-psíquica, não se aceitando a indemnização arbitrada à autora CC no valor de 10.000,00€, pelo suposto dano biológico que sofreu, na vertente patrimonial.
30. Não se provou que a autora sofreu qualquer dano biológico permanente em consequência do acidente dos autos, nem qualquer dano de natureza patrimonial dele dito decorrente.
31. Resulta evidente dos trechos da sentença acima invocados que a autora viu reconhecida duas indemnizações pelo dano biológico, uma por danos patrimoniais e outra não patrimoniais, assentes, no essencial, nos mesmos factos, o que não se aceita.
32. A apelante entende que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que a absolva do pedido de indemnização formulado pela autora em consequência do dano biológico permanente (vertente patrimonial) que alegou nos autos, mas que não provou. O que se requer.
33. O Tribunal a quo condenou a apelante a pagar ao autor a quantia de 12.000,00€ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo mesmo em consequência do acidente dos autos.
34. Apesar de se reconhecer que os danos não patrimoniais sofridos pelo mesmo são relevantes e dignos de compensação pecuniária, importa reconhecer que o montante indemnizatório fixado a esse título peca por excessivo, distanciando-se não apenas da factualidade que vem dada como demonstrada, mas também do sentido das decisões que vêm sendo proferidas pela nossa Jurisprudência em casos análogos.
35. Sem minimizar os sofrimentos do recorrido e os prejuízos que estes lhe causaram – que a recorrida, sinceramente, muito respeita – certo é que as lesões por aquele sofridas em consequência do presente sinistro não justificam, nem se adequam ao valor indemnizatório fixado na sentença ora posta em crise.
36. Em consequência do presente sinistro, o autor sofreu dores intensas resultantes dos ferimentos com que ficou; foi transportado para o Hospital, fez exames, tendo sido medicado para as dores e recebido alta no mesmo dia do acidente; ficou cerca de dois meses quase impossibilitado de se mexer em virtude das dores e dificuldades respiratórias que passou a sentir, carecendo de ajuda para a realização das tarefas mais básicas, designadamente para tomar banho e ir à casa de banho; Durante esse período ficou ainda o autor impossibilitado de fazer uma quantidade de coisas de que retirava prazer, designadamente cultivar e tratar de uma vinha;
37. Hoje o autor mantém sequelas do acidente, designadamente dores ao nível do estorno e dificuldades em respirar o que o limita e condiciona no exercício das suas actividades pessoais e profissionais, correspondendo tais sequelas a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica.
38. As indemnizações fixadas a título de danos não patrimoniais devem aproximar-se em casos semelhantes, sob pena de não serem justas, por tratarem de maneira diferente situações idênticas.
39. Vejamos, pois, algumas decisões proferidas pela nossa Jurisprudência no que tange a questão relativa às indemnizações por danos não patrimoniais atribuídas a sinistrados em diversas situações, todas elas mais gravosas do que aquela de que nos ocupamos, que aqui se dão por reproduzidas: Ac. Rel. Porto, 04.04.2022, Proc. 542/19.4T8PVZ.P1; Ac. Rel. Coimbra de 11-06-2019, Proc. 107/17.5T8MMV.C1; Ac. Rel. Lx de 05/11/2020 – proc. 12146/17.1T8LSB.L1; Ac. da Rel. Lx Proc. 3181/14.2TBVFX-2, de 09/13/2018;Ac. da Rel. Porto, Pro. 595/14.1TBAMT.P1, de 09/26/2016;
40. Os danos não patrimoniais sofridos pelo recorrido revestem uma gravidade muito menor do que a dos casos acabados de citar.
41. Por conseguinte, considerando a, felizmente, muito menor gravidade das lesões sofridas pelo autor em comparação com os casos citados, todos os demais factos provados e recorrendo ainda a critérios de equidade, entende a recorrente que o valor da compensação pelos danos não patrimoniais não deveria exceder os 5.000,00€.
42. Note-se que em várias decisões recentes, ilustrativas da orientação jurisprudencial dos nossos Tribunais Superiores, vêm sendo arbitradas indemnizações por danos não patrimoniais de valor pouco superior àquele que foi arbitrado ao aqui recorrido, para ressarcimento de sequelas muito mais graves e que correspondem a défices permanentes da integridade físico-psíquica 6 vezes superiores.
43. Sendo que, o ressarcimento de danos não patrimoniais decorrentes de sequelas mais aproximadas àquelas que foram sofridas pelo autor, as quais correspondem, de resto, a défices permanentes da integridade físico-psíquica 2 vezes superiores à do recorrido, foram indemnizadas por montante inferior àquele que foi arbitrado a este último (10.000,00€ vs. 12.000,0€).
44. Assim, considera a Ré que a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor deve ser reduzida para o montante de 5.000,00€, o que se pede.
45. A recorrente também não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido relativamente ao ressarcimento do alegado dano biológico, na vertente não patrimonial, sofrido pela autora CC.
46. Ao contrário do alegado pela recorrida, esta não ficou a padecer de qualquer défice permanente de integridade físico-psíquica em consequência do acidente dos autos, tendo padecido apenas dores, limitações e incómodos meramente transitórios.
47. A apelante entende que não se justifica o arbitramento de uma indemnização por danos não patrimoniais de valor idêntico ao do autor, já de si excessivo para o ressarcimento dos danos por este sofridos.
48. Recordando as decisões situações acima referidas, de gravidade bem superior àquela que envolveu as lesões sofridas pela autora, não pode deixar de se considerar que a indemnização de 12.000,00€, a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora, configura um manifesto exagero.
49. Donde, também este segmento da decisão recorrida deve ser revogado e substituído por outra decisão que condene a aqui recorrente a pagar à recorrida CC uma quantia não superior a 3.500,00€ a título de danos não patrimoniais. O que se requer.
50. A recorrente não se conforma com esta decisão que arbitrou aos recorridos o montante de 2.500,00€ pela perda da sua viatura e consequência do acidente dos autos.
51. Vem referido no ponto 74 do elenco dos factos provados da sentença, “à data do acidente viaturas idênticas à dos autores tinham um valor de mercado na ordem dos 1.900 €.”
52. Ora, estando demonstrado que o valor de viaturas idênticas à dos autores tinham um valor de mercado na ordem dos 1.900,00€, e não se tendo provado que o veículo dos recorridos tinha alguma qualidade especial que lhe conferisse valor superior a outras viaturas idênticas, não vê a recorrente qualquer razão para que a decisão recorrida tivesse arbitrado aos autores uma indemnização superior a esse montante.
53. Entende, pois, a recorrente, que o Tribunal recorrido errou ao arbitrar aos autores a indemnização no valor de 2.500,00€ pela perda da sua viatura no acidente dos autos, quando outras idênticas tinham, à data, o valor de 1.900,00€.
54. Esta decisão deve, pois, ser revogada e substituída por outra que condene a recorrente a pagar aos recorridos o valor de 1.900,00€ pela perda da sua viatura em consequência do acidente dos autos. O que se requer.
55. A douta sentença sob censura violou as regras dos artigos 483º, 496º, 562º, 563º e 564º e 566º do Código Civil.
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Os Autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação da Ré.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

A questão decidenda a apreciar, delimitada pelas conclusões do recurso, reconduz-se a saber se existiu erro na fixação da compensação devida pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos Autores, devendo a mesma ser reduzida.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 28 de junho de 2017 pelas 12h20m, na Estrada Nacional ...08, ao ..., na localidade de ..., freguesia ..., concelho ... ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-FR, propriedade do autor e por si conduzido e o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-JB-.. propriedade de DD e por ele conduzido.
2. No local do acidente a estrada apresenta um traçado com uma curva suave, tendo a faixa de rodagem uma largura total de 5 m.
3. Nas circunstâncias de tempo e lugar em que se deu o acidente as condições climáticas eram boas, o tempo estava seco e existia boa visibilidade.
4. Nas referidas circunstâncias o autor conduzia o FR a uma velocidade moderada de não mais de 50 km/h, no sentido ... – ....
5. E o condutor do JB seguia no sentido ... – ....
6. O JB invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário em cerca de 0,30m.
7. Nenhum dos condutores se apercebeu atempadamente da viatura que circulava na mesma faixa de rodagem mas em sentido contrário.
8. O autor travou a sua viatura, mas não foi capaz de evitar o embate frontal com o JB.
9. O FR embateu com a sua frente esquerda na frente esquerda do JB.
10. Por força da colisão o FR do autor, embateu ainda com a traseira na elevação em pedra que limita a faixa de rodagem.
11. Nas circunstâncias de tempo e lugar em que se deu o embate, o autor deslocava-se do seu lugar de trabalho para a sua residência.
12. No veículo do autor, seguia como ocupante, a autora EE.
13. No momento do embate, atenta a violência do mesmo, os autores sofreram ferimentos que lhe provocaram dores.
14. Foi solicitada a assistência médica para o local do acidente, tendo sido transportados e ambulância para o Centro Hospitalar ... – os ..., ....
15. Como consequência direta e necessária do acidente o autor ficou com fortes dores no peito e abdómem, com especial incidência na zona torácica.
16. À chegada do hospital o autor realizou radiografia ao tórax e tomografia computorizada ao tórax e ao abdómen.
17. Foi medicado com um analgésico.
18. O autor teve alta, no mesmo dia, pelas 20h11m, com indicação para repouso com vigilância de sinais de alarme.
19. O autor apresentava um hematoma do músculo peitoral direito e queixas no tórax que lhe provocaram dificuldades respiratórias, com episódios de grande aflição e dor, por não conseguir respirar com normalidade.
20. O autor ainda passou a sofrer de palpitações sentindo o seu coração permanentemente a acelerar ou disparar, o que provoca crises de ansiedade e o deixava perturbado.
21. O autor teve de ficar imobilizado por completo, sendo obrigado a permanecer sentado durante todo o dia no sofá aí dormir sentado. 22. O autor ficou profundamente abatido, sentindo-se permanentemente cansado, perdeu o apetite, deixou de ter energia. 23. Em consequência das dores sentidas no tórax e a necessidade de estar imobilizado o autor passou a sofrer de limitações para efetuar as mais elementares tarefas do quotidiano, bem como para a satisfação das suas necessidades mais básicas.
24. Necessitando ao auxílio de terceiros para a sua higiene pessoal e para a satisfação das suas necessidades básicas,
25. O que lhe provocava uma grande tristeza.
26. O autor passou a estar constantemente ansioso, de mau humor, irritado, triste e deprimido, isolando-se do convívio dos seus familiares e amigos.
27. Cerca de um mês após o acidente, e uma vez que continuava com dores e desconforto, o autor fez novo raio X ao tórax, que relevou a existência de uma fratura com cavalgamento dos topos do corpo esternal proximal, que exigiu, para a sua consolidação, repouso absoluto e imobilização total.
28. O autor esteve 42 dias com incapacidade temporária absoluta e 6 dias com incapacidade temporária parcial de 30%.
29. Teve de tomar vários medicamentos, ir a diversas consultas médicas.
30. Com o acidente os óculos do autor partiram-se, tendo o autor de se submeter a uma consulta de oftalmologia e a exames oftalmológicos tendo despendido o valor de 12,02 €, e 550 € na aquisição de um novo par de óculos.
31. À data do acidente o autor era (e é) técnico superior da Câmara Municipal ..., exercendo funções de secretariado da vereação.
32. As funções exercidas pelo autor exigem que passe muito tempo sentado à secretária, impondo-lhe ainda deslocações permanentes em reuniões exteriores.
33. O facto de ter de permanecer sentado e as várias deslocações que tem de efetuar, provocaram no autor, durante vários meses dores e desconforto.
34. O autor dedicava-se em horário pós-laboral e aos fins de semana à atividade agrícola, designadamente à produção de vinho e azeite tanto para consumo próprio como para fins comerciais.
35. Permitindo-lhe auferir um rendimento de cerca de 1.500 € por ano.
36. Desde a data do acidente, e como consequência do mesmo, o autor deixou de conseguir efetuar a maioria das atividades agrícolas por não poder fazer uso da força necessária para a sua execução e pelas dificuldades respiratórias que sente,
37. Tendo de contratar mão de obra para desempenhar as tarefas agrícolas que, até à data do acidente sempre conseguiu desempenhar sozinho.
38. Com a contratação da referida mão de obra, o autor teve de despender pelo menos cerca de 500 € por ano, bem como necessita da ajuda de familiares e amigos, acabando em 2020 por cessar a atividade.
39. O que causa ao autor tristeza e angústia uma vez que tirava uma grande satisfação pessoal do trabalho agrícola, representado o refúgio do stress e das dificuldades da vida do dia a dia.
40. O autor continua com queixas dolorosas no tórax anterior quando faz esforços com pesos ou conduz em distâncias médias.
41. E tem, reiteradamente, em situações de maior esforço, dificuldades respiratórias.
42. Evidencia uma deformidade esternal o que lhe causa desgosto e vergonha.
43. O autor apresenta um Défice Funcional Permanentes da Integridade Físico –Psíquica de 1 ponto.
44. O autor nasceu em .../.../1963, tendo 54 anos à data do acidente. Auferia um vencimento mensal de 1.565.77 €.
45. A autora seguia no FR no lugar do passageiro à direita do condutor.
46. Com a violência do embate a autora sentiu uma dor muito forte, uma grande dificuldade em respirar e ficou em choque.
47. Do acidente resultou para a autora dor esternal, dor no ombro esquerdo e na anca direita.
48. Chegada ao hospital, realiza ou radiografia ao tórax, da grelha costral esquerda e do tórax e foi medicada com analgésico.
49. Em consequência das dores que sofreu a autora viu-se limitada para a execução das tarefas básicas bem como para a satisfação das necessidades essenciais, designadamente, a sua higiene pessoal, necessitando o auxílio de terceiros.
50. O que lhe provocou um sentimento de angustia e humilhação.
51. As dores que sentia impediam a autora de dormir e repousar convenientemente, ficando com uma constante sensação de cansaço.
52. Por se manterem as dores, nos dias seguintes ao acidente a autora realizou novo exame onde se constatou haver consolidação residual da fratura esternal.
53. Desta fratura esternal resultou para a autora uma grande limitação funcional e respiratória, bem como fortes dores.
54. A autora sofre ainda de rigidez cervical.
55. A autora é funcionária da receção e loja da Fundação ....
56. Em resultado do acidente a autora ficou em situação de incapacidade temporária absoluta de 36 dias.
57. Para o exercício das suas funções a autora tem de carregar pesos, como caixas, livros e vinhos, vendo-se forçada a subir e descer escadas.
58. Todas essas tarefas, em consequência do acidente, provocam à autora muitas dores e desconforto físico, passado a cansar-se mais facilmente.
59. À data do acidente a autora contava com 47 anos de idade e auferia um vencimento mensal de 653,25 €.
60. Em consequência do acidente os óculos da autora partiram-se tendo de despender o montante de 139,90 €.
61. A autora gastou 18,15 € em despesas com medicamentos e 7 € para a consulta no Centro de Saúde ....
62. O veículo sinistrado dos autores, com a matrícula ..-..-FR, é um veículo ligeiro de passageiros, da marca ..., modelo A 3 ..., matriculado a 15/09/1995.
63. Em consequência do acidente o FR sofreu danos em toda a frente que ficou totalmente destruída, bem como a extensão lateral traseira esquerda.
64. Por força dos danos sofridos deixou de poder circular pelos seus próprios meios.
65. A reparação da viatura orça em 20.258,35 €.
66. O autor sempre cuidou devidamente da viatura encontrando-se a mesma em perfeito estado de conservação e funcionamento.
67. O veículo sinistrado era usado diariamente pelos autores nas suas deslocações diárias para o trabalho e escola da filha, bem como para as atividades de lazer do agregado familiar.
68. Atenta a privação da viatura os autores ficaram dependentes do auxílio e da boa vontade de terceiros que os conduziram nas deslocações que tiveram de realizar.
69. Bem como servir-se de viaturas emprestadas por amigos.
70. Os autores residem numa localidade que não é servida de transportes públicos.
71. O acidente aqui em causa foi concomitantemente um acidente de trabalho participado à contestante ao abrigo da apólice de seguro de acidente de trabalho n.º ...75 (em relação ao autor) e da apólice de seguro de acidente de trabalho n.º ...57 (em relação à autora).
72. Os salvados da viatura dos autores foram avaliados em 130,00 €.
73. Os autores adquiriram uma viatura que lhes foi entregue em janeiro de 2018.
74. À data do acidente viaturas idênticas à dos autores tinham um valor de mercado na ordem dos 1.900 €.
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3.1.2. Factos Não Provados

a) O condutor do FR conduzia a viatura a uma velocidade de cerca de 30 km/h.
b) O condutor do JB seguia a uma velocidade superior à adequada atentas as características da via.
c) O condutor do JB circulava desatento a ver as vistas.
d) Com as deslocações que teve de fazer para ir a consultas, estacionamento e alimentação gastou 500 €.
e) Por força do trauma provocado pelo acidente a autora passou a ter ataques de pânico sempre que se via na necessidade de fazer a estrada onde ocorreu o acidente.
f) Chegando mesma a autora a ponderar deixar de trabalhar.
g) Em consequência do acidente o telemóvel da autora partiu-se tendo de despender 130,00 € para a aquisição de um novo.
h) A autora gastou 350 € em despesas de transporte, estacionamento, e alimentação nas deslocações que se viu forçada a fazer para ir a consultas medicas.
i) No ano em que ocorreu o acidente o autor tinha substituído a bomba de água e o kit da correia de distribuição, a bateria, retificado o turbo e a bomba injetora, assim como mudou o óleo, pneu e filtro da viatura, no que despendeu 1.100 €.
j) Quando o condutor do JB circulava pela hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido em que seguia, (... – ...) foi súbita e inesperadamente surpreendido pelo FR a circular desgovernado no sentido de marcha oposto.
k) O condutor do JB acionou os travões tendo parado quase de imediato.
l) À data do acidente os autores dispunham de um outro veículo que permitia que fizessem as suas deslocações habituais.
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3.2. O Direito

Importa avaliar o montante indemnizatório a atribuir aos Autores em virtude dos danos que sofreram com o acidente de viação, apurado que foi que a Ré responde civilmente pelos mesmos, por se terem encontrado os pressupostos da responsabilidade civil, sendo o embate imputável exclusivamente ao lesante, a título de culpa.
O Tribunal a quo, apreciando a ressarcibilidade e o enquadramento jurídico do dano patrimonial e não patrimonial, decidiu que cada um dos autores tinha direito à quantia de 12.000 € (doze mil euros) a título de danos de natureza não patrimonial; que o autor tinha direito à quantia de 12.500 € (doze mil e quinhentos euros) e autora à quantia de 10.000 € (dez mil euros) a título de perda de capacidade de ganho e ainda à quantia de 2.500 € (dois mil e quinhentos euros) pela perda da viatura e 2.790,00 € (dois mil setecentos e noventa euros) pela privação do uso da mesma.
Insurge-se a Ré quanto à indemnização fixada a ambos os autores pela perda da capacidade de ganho que considera não existir e quanto ao valor do dano não patrimonial que entende ser excessivo. Discorda também do valor fixado pela perda do veículo que não tem correspondência com o valor de mercado.
Quanto ao dano patrimonial resultante da perda da capacidade de ganho, considera que:
- não ocorreu uma diminuição efetiva no rendimento proveniente do trabalho por força défice funcional permanente atribuído ao autor, pelo que a este título não deveria ser fixada qualquer indemnização;
- a não se entender assim, a indemnização não deveria atender ao rendimento do autor;
- a autora não ficou a padecer de qualquer défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, pelo que não deve ser indemnizada a título de perda de capacidade de ganho.
Apreciemos.
O segmento impugnado reconduz-se à questão da necessidade (ou não) de demonstração de uma diminuição efetiva no rendimento proveniente do trabalho por força do défice funcional permanente.
Esta questão convoca para a sua apreciação o chamado dano biológico.
O dano biológico vem sendo entendido como um dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais.[i]
A jurisprudência, de um modo consensual, tem vindo a reconhecer o dano corporal ou biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido[ii].
Não é de agora que se vem considerando a ressarcibilidade do dano biológico, sendo particularmente impressivas as considerações expendidas a este propósito no acórdão do STJ de 10 de outubro de 2012[iii], onde se diz que a compensação do dano biológico "tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.
A perda relevante de capacidades funcionais, acrescenta o acórdão, constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, que condiciona, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável. Conclui-se que, nesta perspetiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal.
   No desenvolvimento do quadro conceptual assim definido, na sua vertente patrimonial, o dano biológico pode ser considerado, por um lado, quanto à perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa atividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir; por outro lado, quanto à perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.
Em suma, como bem se resumiu no Ac do STJ de 2 de junho de 2016, o dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis[iv].      
Independentemente da forma como seja visto ou classificado, este dano é sempre ressarcível e como dano autónomo, indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos[v].
A sentença recorrida estribada em pertinente e atual jurisprudência considerou que a indemnização a arbitrar por este dano, consubstanciado numa limitação funcional perspetivada na ótica de uma diminuição da capacidade na vertente profissional, podendo não se refletir em perdas salariais imediatas, tem de ser atribuída por consubstanciar uma acrescida penosidade e esforço no exercício dessa atividade profissional e uma limitação na utilização do corpo enquanto força de trabalho produtor de rendimento.
 E isto é assim mesmo que os rendimentos do lesado aumentem no futuro, pois o que está em causa é que tais rendimentos poderiam ainda aumentar mais sem aquela afetação da integridade física.
A consciencialização de que os valores normalmente encontrados para ressarcir os lesados em ações emergentes de acidentes de viação eram excessivamente exíguos e humana e socialmente desadequados, conduziu à necessária reapreciação quantitativa de tais valores, levada a cabo pela nossa jurisprudência.
A jurisprudência tem-se socorrido muitas vezes de fórmulas, tabelas e outros critérios mais ou menos matemáticos para fundamentar com racionalidade objetiva os valores indemnizatórios atribuídos.
Sufragamos na esteira do Ac. do STJ de 29 de Outubro 2019[vi] que na fixação dos valores de lucros cessantes, os montantes obtidos através da aplicação de processos objetivos assentes em fórmulas e tabelas matemáticas constituem mero auxiliar e indicador para uma tradução do quantum indemnizatório, sem que tal obste nem de todo impeça o papel corretor e de adequação da ponderação judicial assente na equidade, perante a gravidade objetiva e subjetiva dos prejuízos sofridos, as circunstâncias específicas do facto e do agente e as variantes dinâmicas que escapam aos referidos cálculos objetivos.
De forma mais pragmática, o Ac. do STJ de 08 de Novembro de 2018[vii] considerou que na fixação do montante indemnizatório, para alcançar a justa indemnização, o tribunal não deve estar limitado pelo uso de fórmulas matemáticas, sejam elas quais forem, nem limitado pelas tabelas da Portaria n.º 377/2008, de 26-05, revista pela Portaria n.º 679/2009, de 25-06. Tais fórmulas e tabelas devem servir essencialmente como instrumento de trabalho e não como critérios de determinação rígidos, pois o tribunal tem sempre de se socorrer da equidade.
Ou seja, nunca tais modelos poderão deixar de ser adaptados casuisticamente, introduzindo as correções exigidas pelas circunstâncias de cada caso. Como refere o Ac. STJ de 04 de fevereiro de 1993, “na avaliação dos prejuízos verificados, o juiz tem de atender sempre à multiplicidade e à especificidade das circunstâncias que concorram no caso e que o tornarão sempre único e diferente”.[viii]
A atribuição de indemnização por perda de capacidade de ganho (dano biológico patrimonial), segundo um juízo equitativo, tem-se baseado em função dos seguintes fatores principais: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou atividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações; a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da atividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado[ix].
Estes foram os parâmetros atendidos na decisão, considerando-se equitativamente justa e adequada a indemnização de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), atribuída ao autor pelos danos futuros, que como tal se deverá manter.
No que se refere à correção do montante indemnizatório por antecipação do seu recebimento, tem que se ter em conta que o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva atualmente como em tempos já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzida.
A regra ou princípio geral segundo a qual o benefício da antecipação deve descontar-se na indemnização arbitrada pelo dano patrimonial futuro deve ser adequada às circunstâncias do caso concreto, podendo nomeadamente tal benefício ser eliminado perante o quadro económico atual e face às perspetivas de nula ou reduzida rentabilização do montante indemnizatório recebido.
Assim, não se justifica, no caso concreto e face às circunstâncias atuais e ao montante indemnizatório em questão, que se efetue qualquer correção.
Quanto ao direito a indemnização pela autora pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial.
Importa assinalar dois aspetos fundamentais resultantes do relatório medico pericial: (i) não admitiu a existência de um nexo de causalidade entre o traumatismo e as queixas de dor cervical e ombro direito (ii) e não atribuiu qualquer Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (referente à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo os familiares e sociais, e sendo independente das atividades profissionais).
Considerou, no entanto, a sentença recorrida que mesmo não tendo sido atribuído qualquer Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica à autora, tal não obstaculiza a que seja atribuída uma indemnização pelo dano biológico na sua vertente patrimonial. Basta que fique demonstrado nos autos que por força da ocorrência do acidente o sujeito passe a sentir mais dificuldade e a fazer mais esforço para o exercício da sua atividade habitual.
Ressalvado o devido respeito, a maior dificuldade e a necessidade de fazer mais esforço para o exercício da atividade habitual, é o que traduz o défice funcional da integridade físico psíquica, que tem de ser alcançado por meio de perícia de avaliação do dano corporal, realizada por perito médico, seguindo as normas em vigor no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses[x] (INMLCF) e tendo em consideração as tabelas de avaliação do dano corporal publicadas em Diário da República.
Não há que confundir o período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, teve a sua autonomia condicionada nas atividades diárias, que traduz o défice funcional temporário, e a afetação permanente da integridade físico-psíquica, parâmetro de dano que corresponde à afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, constitutiva de um défice funcional permanente com eventual repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais. Trata-se de uma redução definitiva do potencial físico, psico-sensorial e ou intelectual.
Não cremos que, como é defendido na sentença, as dores e esforços suplementares possam não constituir uma incapacidade a nível clinico, mas ainda assim constituir uma qualquer outra incapacidade fundamentadora de indemnização pela perda da capacidade aquisitiva.
Em causa estará sempre uma lesão que importa ou não perda da capacidade funcional, e quando importa esta representa um handicap físico-emocional que, ainda que não implique perda de rendimentos, torna mais penosa a realização das tarefas quotidianas, profissionais e pessoais a título definitivo e sempre medicamente avaliável.
Note-se que o dano biológico é o dano que, tendo origem numa lesão corporal, se traduz na afetação da capacidade funcional de uma pessoa declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
Ora, não ficando a autora a padecer de défice funcional permanente da integridade físico psíquica, não tem direito a indemnização, de natureza patrimonial, a título de perda de capacidade de ganho.
Quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais.
Segundo o artigo 496º nº 1 do Código Civil, na fixação da indemnização devem atender-se os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Os danos não patrimoniais são aqueles que não atingem os bens materiais do lesado ou que, de qualquer modo, não alteram a sua situação pa­trimonial - formulação negativa -, ou seja, aqueles danos que têm por objeto um bem ou interesse sem conteúdo patrimonial, insuscetível, em rigor, de avaliação pecuniária.
Neste caso, a indemnização não visa propriamente ressarcir ou tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido.[xi]
Dentro dos danos não patrimoniais resultantes de lesões determinantes de invalidez ou incapacidade, como bem evidencia o Prof. Almeida e Costa[xii], podem descortinar-se quer as dores físicas e sofrimentos psicológicos (o ‘pretium doloris’), quer a perda de capacidade de descanso ou de fruição dos prazeres da vida, quer a afetação da integridade anatómica, fisiológica ou estética, quer a perda de expectativas de duração de vida.
A reparação destes prejuízos, precisamente porque são de natureza moral e, nessa exata medida, irreparáveis, é uma reparação indireta.
São suas componentes essenciais, o "dano biológico", consistente na alteração morfológica, enquanto privação da capacidade de utilizar o corpo como antes do evento lesivo, a perda da fruição dos prazeres da vida e mesmo a diminuição da expectativa da duração da vida, o “dano estético”, que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade”, em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; o “pretium juventutis”, que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária’.[xiii]
O montante da in­demnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso - artigos 496º, nº 3 e 494º do C.C. - e também os padrões de indemnização geralmente adotados na jurisprudência.
Na execução desta operação devem tomar-se em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[xiv].
O facto de os tribunais estarem agora sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais (credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser humano), que passa pela valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, valem hoje mais do que ontem.
Por outro lado, não pode deixar de ser tido em conta a progressiva melhoria da situação económica individual e global e a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia[xv].
Postas estas considerações, tendo por base o que o quadro fáctico nos apresenta, e ponderadas adequadamente as circunstâncias do caso e os critérios jurisprudenciais que – numa jurisprudência atualista – devem ser seguidos na concretização do juízo de equidade, não se vê que o critério seguido pelo tribunal a quo se afaste, de modo significativo, dos padrões que vêm sendo seguidos em casos equiparáveis, quanto à indemnização atribuída ao autor.
Concordamos, assim, no que respeita ao autor, com a justeza e adequação do montante indemnizatório fixado na sentença recorrida a título de dano não patrimonial.
Já não quanto à autora.
Os factos apurados são substancialmente diferentes no que tange às dores, angústia, incómodos e restrições físico-psiquicas sofridos.
A extensão dos danos sofridos pelo autor é superior em relação aos sofridos pela autora, quer no que tange ao âmbito do período de danos temporários e sua repercussão quer na existência de um dano permanente e ainda ao quantum doloris, o qual se fixou no grau 4/7 para o autor e 3/7 para a autora.
Situações diferentes exigem tratamento diferenciado, assim respeitando os princípios da igualdade e proporcionalidade.
Pelo exposto, o montante da indemnização atribuído à autora haverá de ser reduzido para o valor de € 9.000,00
Por último, insurge-se a recorrente contra a indemnização arbitrada pela perda do veículo, que foi fixada em € 2.500,00, quando resultou provado que o seu valor de mercado é de € 1.900,00.
Cremos que não asiste razão à recorrente.
Aceitam as partes que o montante em que importa a reparação do veículo se apresenta como manifestamente oneroso.
Quando assim é haverá de ser encontrado um valor indemnizatório que recomponha o interesse do lesado.
E, para esse efeito, não basta ter em conta o valor venal ou comercial do veículo, antes se impondo o seu confronto com o valor de uso que o lesado dele extrai pelo facto de dele dispor para a satisfação das suas necessidades.
Na verdade, como é do conhecimento geral, um veículo de valor comercial reduzido pode estar em excelentes condições e satisfazer plenamente as necessidades do dono. Nestas circunstâncias a quantia equivalente ao valor de mercado do veículo (muitas vezes ínfima) não conduzirá à satisfação dessas mesmas necessidades, o que equivale a dizer-se que não reconstituirá o lesado na situação que teria se não fosse o acidente.
Por conseguinte, a situação inicial do lesado só será reintegrada se a indemnização equivalente for de molde a satisfazer o seu interesse, o qual deve prevalecer sobre o do lesante, sendo pouco relevante, para os fins em análise, que o valor dessa indemnização haja de ser superior (contanto que não seja flagrantemente desproporcional) ao seu valor comercial.
Como se refere no Acórdão do STJ de 04/12/2007 era à seguradora que cabia o ónus de provar que a reparação era excessivamente onerosa e se quer beneficiar dessa exceção não lhe basta “encostar-se ao valor venal, antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente satisfizesse as suas necessidades «danificadas»”.[xvi]
Assim, para efeitos do disposto no art. 566.º, 3, do Código Civil, em caso de perda total, o valor venal do veículo há-de corresponder ao valor de substituição antes do acidente, ou seja, um valor suficiente e necessário que permita ao lesado adquirir outro bem do mesmo valor económico e uso concreto equivalente ao bem danificado.
Nestes termos, a quantia fixada de € 2.500,00 apresenta-se adequada.
Improcede, assim, nesta parte a pretensão da recorrente em ver reduzida a indemnização.
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Sumário:
I - A jurisprudência, de um modo consensual, tem vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento.
II - A indemnização por este dano, consubstanciado numa limitação funcional perspetivada na ótica de uma diminuição da capacidade na vertente profissional, podendo não se refletir em perdas salariais imediatas, visa compensar a acrescida penosidade e esforço no exercício dessa atividade profissional e a limitação da utilização do corpo enquanto força de trabalho produtor de rendimento.
III - O défice funcional da integridade físico psíquica tem de ser alcançado por meio de perícia de avaliação do dano corporal, realizada por perito médico e tendo em consideração as tabelas de avaliação do dano corporal publicadas em Diário da República.
IV - O dano biológico é o dano que, tendo origem numa lesão corporal, se traduz na afetação da capacidade funcional de uma pessoa declarada pela atribuição de um determinado grau de incapacidade físico-psíquica.
V - Não ficando a autora a padecer de défice funcional permanente da integridade físico psíquica, não tem direito a indemnização, de natureza patrimonial, a título de perda de capacidade de ganho.
VI – Não sendo economicamente viável a reparação do veículo, haverá de ser encontrado um valor indemnizatório que recomponha o interesse do lesado.
VII - Um veículo de valor comercial reduzido pode estar em excelentes condições e satisfazer plenamente as necessidades do dono. Nestas circunstâncias a quantia equivalente ao valor de mercado do veículo (muitas vezes ínfima) não conduzirá à satisfação dessas mesmas necessidades, o que equivale a dizer-se que não reconstituirá o lesado na situação que teria se não fosse o acidente.
VIII - Por conseguinte, a situação inicial do lesado só será reintegrada se a indemnização equivalente for de molde a satisfazer o seu interesse, o qual deve prevalecer sobre o do lesante, sendo pouco relevante, para os fins em análise, que o valor dessa indemnização haja de ser superior (contanto que não seja flagrantemente desproporcional) ao seu valor comercial.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida na parte em que condenou a ré a pagar à autora a quantia de 10.000 € (dez mil euros) a título de perda de capacidade de ganho e reduzindo a indemnização devida à autora pelos danos não patrimoniais para o montante de €9.000,00 (nove mil euros).
No mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas na proporção de ¾ para a recorrente e ¼ para os recorridos.
Guimarães, 10 de Julho de 2023

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Anizabel Sousa Pereira
2º Adj. Jorge dos Santos



[i] Acórdão do STJ de 13.04.2021, disponível em www.dgsi.pt.
[ii] Por todos o Acórdão do STJ de 08.02.2018, disponível em www.dgsi.pt.
[iii] Acessível em www.dgsi.pt.
[iv] Disponível em www.dgsi.pt.
[v] Acórdão do STJ de 13.04.2021, disponível em www.dgsi.pt.
[vi] Disponível em www.dgsi.pt.
[vii] Disponível em www.dgsi.pt.
[viii] Em Colectânea Jurisprudência STJ, Ano I, T-I, pag 130.
[ix] Neste sentido, o Ac. do STJ de 29/10/2019, disponível em www.dgsi.pt.
[x] Laboratório do Estado com funções periciais, médico-legais e forenses que atua no âmbito da administração da justiça.
[xi] Neste sentido, Antunes Varela, Das Obriga­ções em Geral, 4ª edição, pag. 560.
[xii] Direito das Obrigações, 5ª edição, pag. 478,
[xiii] Acórdão desta Relação de Guimarães, de 21-03-2019, acessível em www.dgsi.pt.
[xiv] P. de Lima e A. Varela, C. C. Anot., 4ª edição, Vol. I, pág. 501.
[xv] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 30-05-2019, acessível em www.dgsi.pt.
[xvi] Disponível em www.dgsi.pt.