Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ROSÁLIA CUNHA | ||
Descritores: | EXCEÇÃO DA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/22/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - A causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”. II - Ao autor compete alegar de forma substanciada os factos que integram a causa de pedir, isto é, tem que invocar de forma específica e concreta os factos constitutivos do direito atinente ao tipo legal de que pretende prevalecer-se e do qual faz derivar a pretensão que deduz. III - Quando ocorre uma situação de ineptidão da petição inicial, por verificação de qualquer das situações previstas no art. 186º, nº 2, als. a) a c), a consequência é a nulidade de todo o processado, impondo-se o indeferimento liminar ou a absolvição do réu da instância, consoante a fase em que tal vício é declarado, não sendo este vício sanável e não havendo, nessa situação, lugar ao convite ao aperfeiçoamento, sendo este um poder-dever do juiz que se encontra reservado apenas para as situações de insuficiência de alegação de factos complementares ou concretizadores. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães: RELATÓRIO AA veio propor contra BB ação declarativa com processo comum na qual peticiona que: “deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequencia: a) Se reconhecendo, decidindo e declarando que A. e Réu viveram em situação análoga á dos cônjuges, em regime de união de facto, por um periodo de 18 anos, com início em Setembro de 2002 e término em Novembro de 2019 na conformidade do alegado nesta petição inicial e com a abrangência da Lei nº 23/2010 de 30/08, e em consequência; b) Mais se reconhecendo, decidindo e declarando que todo o património existente, seja em nome da A., seja em nome do Réu ou sociedades por este constituidas e bens constantes não só do auto de arrolamento mas ainda os que se identificam nos artigos 17º, 34º, 35º, 36º e 37º, desta petição inicial, foi constituido, aumentado, construido e enriquecido com o esforço comum da A, que nele aplicou ou investiu todos os proventos, esforço e trabalho sempre na proporção de nunca menos de metade desse valor; c) Ser o Réu condenado a restituir à Autora 50% nos ditos imóveis, móveis, incluindo quotas societárias, dinheiro, veiculos, que se encontrem na sua posse adquiridos durante a “união de facto” e/ou subsidiariamente, quando tal não seja possivel uma vez que todos os bens, incluindo as sociedades e as respectivas quotas, os imóveis, os veiculos deverão ser avaliados devendo igualmente ser apurados os valores das contas bancárias existentes, pelo que se irá requerer a final a notificação do Banco de Portugal, para o efeito; d) Ser o Réu condenado a ver relegado para liquidação em execução de desse património, sem prejuízo da fixação dos valores mínimos de alguns dos bens que constituem esse património se encontrarem fixados já nestes autos, devendo igualmente ser apurados os valores das contas bancárias existentes, e) Ser o Réu condenado a restituir á Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença do apuramento de todos os bens e contas bancárias, por enriquecimento sem causa, com juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento; f) Ser o Réu condenado a ver considerado que a prestação do trabalho doméstico, bem como a prestação de cuidados, acompanhamento e educação das filhas, exclusivamente ou um empobrecimento do membro da união de facto que realizou essas tarefas sem receber contrapartida e um enriquecimento do outro membro da união de facto que não teve de realizar essas tarefas e beneficiou do resultado da realização das mesmas, sem incorrer em custos e que o valor hora por serviço doméstico ronda os 5/7 Euros/hora, pelo que para além das contribuições fruto do seu trabalho e bens pessoais da A., em prol da união de facto com o Réu, sempre deverá ser valorada e valorizada contribuição daquela com o serviço doméstico e de cuidadora das filhas e até do Réu, ao longo de 19 anos de união de facto, pelo que tal desiquilibrio deverá levar a uma compensação, deverá ser efectuada, mas relegada para sede de execução de sentença. g) Ser o Réu condenado no pagamento das custas totais.” Como fundamento dos pedidos formulados em b) a e) (que são os que no caso do presente recurso relavam pois só quanto a estes é que a p.i. foi julgada inepta como infra melhor se referirá), alegou, em síntese, a nível factual que: - viveu com o réu em união de facto, em regime de comunhão de leito, mesa e habitação no período de setembro de 2002 a novembro de 2019, tendo duas filhas em comum; - a família da autora, designadamente os seus pais e irmão contribuíram economicamente para que o réu concluísse os seus estudos e formação académica; - quando a autora engravidou, o agregado familiar sobreviveu com o seu salário de esteticista e com a ajuda económica dos aludidos familiares; - todas as empresas se iniciaram com o dinheiro pertencente à autora e ao réu e com o trabalho de ambos, sendo que os familiares da autora emprestaram ao réu os seus veículos e lhe pagaram o gasóleo; - foi neste contexto que autora e réu constituíram a sociedade BB, Lda., na qual cada um detinha uma quota de 50%; - no mesmo contexto foram criadas as demais sociedades, para as quais autora e réu contribuíram com capital, meios e trabalho em iguais proporções; - foi ainda criada a sociedade G..., Lda. na qual a autora possuía quotas iguais com a mãe do réu e com o réu, no mesmo espírito de proporcionalidade de capitais e meios; - estas sociedades não singraram; - não obstante, autora e réu criaram mais sociedades em que o objetivo era o mesmo, ou seja, serem sócios em partes iguais e gerirem ambos o património que ia sendo criado; - autora e réu trabalharam lado a lado, sendo que, em termos gerais, o réu tratava dos negócios no exterior e a autora geria o serviço administrativo; - autora e réu tornaram-se comproprietários de vários imóveis e móveis, incluindo automóveis, barco, quotas, ações societárias e dinheiro; - paralelamente à esfera patrimonial que ia edificando, a autora, sempre crente na construção de um património comum – de facto – e de um futuro comum, contribuiu para a vida em conjunto com o réu, não só com a remuneração do seu trabalho, com o seu empreendedorismo e dedicação profissional a todos os projetos, como assim e ainda com verbas próprias, tendo para o efeito dedicado todo o seu empenho e esforço em prol do bem comum; - a autora sempre esteve convicta de que a relação se manteria; - em novembro de 2019, o réu casou com uma terceira pessoa, tendo assim cessado a união de facto que mantinha com a autora; - a autora, ao longo dos anos sempre confiou no réu, aceitando e acedendo às suas solicitações, tendo muitas vezes assinado documentos que ele lhe apresentava, muitas vezes sem os ler ou sequer entender devidamente o seu conteúdo, contraindo e subscrevendo dívidas bancárias e avais pessoais de centenas de milhares de euros às empresas, julgando sempre que estava a contribuir e a trabalhar em prol da família por ambos constituída, bem como que o património que estava a ser criado estaria a ser colocado na titularidade de ambos, em partes iguais, conforme o réu lhe ia fazendo crer, até à separação em que o réu a expulsa da fábrica e impede o seu acesso ao seu local de trabalho; - a autora e o réu criaram, nos moldes descritos, onze empresas, as quais se encontram identificadas no art. 17º da p.i.; - a autora só se apercebeu da realidade em que as aludidas empresas se encontravam, nomeadamente quanto à titularidade das quotas e ações e às diversas operações jurídicas realizadas nas mesmas pelo réu, em seu proveito exclusivo, após se separar definitivamente do réu, em novembro de 2019; - a autora não é, nem nunca foi, apenas funcionária da C... e de algumas das demais empresas pois é, a par do réu, igualmente fundadora e acionista das mesmas e em algumas delas vogal do Conselho de Administração ou gerente, tendo participado ao longo dos anos na sua gestão e crescimento; - a autora ajudava muitas vezes a fechar negócios difíceis e a sua presença inspirava confiança às pessoas, fazia as pontes entre as pessoas, que preferiam lidar com ela do que com o réu e viam apenas nela uma pessoa correta, honesta e confiável, transmitindo confiança a todos com quantos lidava, designadamente colaboradores, fornecedores e clientes; - a autora orientava sempre em back office a postura do réu, opinando, sendo comercial, negociando com fornecedores e clientes, preços e orçamentos, resolvendo problemas, procurando os melhores fornecedores, fazendo muitas vezes as decorações dos interiores; - apesar de tudo quanto o réu beneficiou com o profissionalismo e dedicação da autora, esta apercebeu-se que as alegadas retribuições e tributações eram feitas pelo mínimo, ou seja o réu sempre quis pagar apenas à autora um salário mínimo e descontos em função do mesmo, penalizando-a, pois poderia ganhar muito melhor e descontar muito mais, noutro local, isto apesar das empresas faturarem uma média de 7 milhões de euros anuais com previsões para 2021 de 14 milhões; - tal só era aceitável porque tudo o que se fazia entre autora e réu, julgava a autora, que o era em conjunto e que todos os ganhos deviam ser distribuídos de forma igual, pois a autora contribuiu por igual na criação do património e assim foi sempre desde o início, conforme estava convencida; - a autora nunca exerceu de forma formal as suas competências ou o exercício dos seus direitos sociais, nem interveio em atos aquisitivos de forma meramente formal. Interveio sempre porque tinha pago por igual e contribuído com igual valor e esforço, na aquisição dos bens, das quotas e das propriedades e porque achava que estava a exercer um direito seu e porque apesar de a maior parte dos bens figurar em nome do réu, a autora de nada desconfiava, nem alguma vez pensou que a sua relação e consequente união de facto com o réu seria posta em causa; - em suma, muitos foram os bens adquiridos para o casal, diretamente por autora e réu, ou através de sociedades, que também foram criadas com esforço, proventos e rendimentos da autora e do réu, pese embora averbados em nome deste; - todas as economias da autora e do réu foram aplicadas nos bens existentes - móveis e imóveis – independentemente da figura do seu titular; - para além das participações nas sociedades a autora é comproprietária de diversos imóveis em comum com o réu, nomeadamente, os constantes das verbas nºs, 1, 2 e 5, constantes do auto de arrolamento da providência cautelar nº 2295/20.... do Juízo Central Cível ... – J... e de outros imóveis existentes no património das diversas empresas criadas, nomeadamente a C..., S.A., e T..., Lda dos quais sempre usufruiu como seus; - “no caso presente se formou, constituiu e enriqueceu um património, que se acha averbado em nome do Réu, por isso não se verifica em termos legais e no sentido restrito a compropriedade”; - “A A., desde finais de Novembro de 2019, que se encontra impedida de aceder ás empresas, de aceder ás contas bancárias, na qual depositava os seus rendimentos do seu trabalho e que passaram a ser movimentadas exclusivamente pelo Réu e que naturalmente dispõe delas a seu bel prazer e conveniencia, tendo o Réu lhe retirado não apenas os cartões de crédito que possuia, bem como igualmente lhe bloqueou o acesso ás passwords das mesmas, isto apesar da mesma constar em diversas contas bancárias conjuntas ou como titular ou como procuradora” (...) “bem como a impediu de aceder às empresas e a todos os imóveis dos quais é comproprietária ou e de outros cuja propriedade se encontra inscrita nas inumeras sociedades comerciais, das quais é accionista e administradora ou sócia e gerente”; - “A Autora sempre trabalhou lado a lado com o Réu, no pressuposto e firme convicção da construção de um património comum para ambos e para as suas filhas, a nível profissional, como a nível pessoal, nomeadamente com a assistência que a mesma sempre prestou à sua família, que aliás sempre foi prioritária na vida da A., e as repercussões desta, nomeadamente numa redução considerável de despesas de ambos, quer pelas contribuições que tenha efetuado com a prestação do seu trabalho não remunerado, quer com a atividade que desenvolveu enquanto doméstica, tratando da casa, do companheiro e das filhas de ambos, o que não deve ser de todo ignorado”; - “A A., nas diversas empresas e particularmente na C..., fazia uma imensidão de trabalhos, sendo contactada pelos diversos setores de produção, desde o designer grafico ao juridico, passando pelo financeiro e pelos clientes para dar ideias, formalizar negócios, apoiando o crescimento, apoiando-o nos momentos dificeis, quando precisava de decorar a Quinta ..., a capela do pai do Réu, para lhe arranjar formações, para decorar o seu iate”; - “A A., muitas vezes subscreveu avais pessoais para que o Réu pudesse movimentar dinheiro e adquirir bens, julgando estarem os mesmos a serem adquiridos para as sociedades como a C..., S.A., ou a T..., Lda., com capitais iguais, tendo avalizado centenas de milhares de Euros, como por exemplo para a aquisição da Quinta ..., mediante contrato de Euros 500000,00 (quinhentos mil euros), celebrado com o Banco 1... (...) para onde haviam planeado ir viver com as filhas e que a A., ajudou a decorar, mas onde vive actualmente o Réu e sua nova companheira”; - “O mesmo sempre convenceu a A. que deveriam colocar todo o património dos dois nas empresas, mas sem nunca lhe dizer que já tinha tudo planeado para ficar assim formalmente com mais do que o dela, enganando-a descaradamente e abusando sobretudo da confiança cega que a Autora nele depositava”; - “Aliás o Réu impediu a A., de aceder a inumeras propriedades que igualmente são suas mas que estão em nome das empresas, como por exemplo casa de ... e a Quinta ... em ..., cujo financiamento a mesma avalizou pessoalmente e que foi adquirida para os dois habitarem com as filhas, com a promessa de que viviram lá todos mas onde agora vive com a nova companheira”; - “Mas o que foi constituido, criado, construido, aumentado, enriquecido com o reforço e proventos de ambos os intervenientes, A. e Réu, todo o esforço, trabalho e demais atividades da A, nele aplicado trouxeram a esse património (averbado em nome do Réu), um enriquecimento que se computa em nunca menos metade desse valor para a A, na totalidade e relativamente a cada bem, achando-se a A empobrecida do quanto em contrapartida fez entrar naquele património do Réu”; -“ Cumpre referir que a presente acção visa não só o reconhecimento da realidade de vida de A. e Réu em união de facto, como determinar o momento da cessação e, subsequentemente, dividir/destrinçar todo o património que tenha advindo aos dois titulares de tal relação durante o período em que ela se manteve”; - “Porém nesta ação o que se pretende apurar (independentemente da posse ou do registo) é a quem pertencem todos os bens adquiridos na pendência da união”; * Regularmente citado, o réu contestou invocando, entre outras questões, a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir.* Por requerimento de 7.3.2022 (ref. ...73), a autora respondeu à exceção de ineptidão da p.i., entendendo que a mesma não se verifica.* O despacho de 10.4.2022 (ref. Citius ...49), na parte que aqui interessa, entendeu ser desnecessária a notificação da autora para responder à exceção invocada por a pronúncia sobre tal questão já ter ocorrido de forma espontânea.* Em 22.6.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...09) que, na parte que aqui releva:a) dispensou a realização da audiência prévia com a seguinte fundamentação: “Uma vez que não se mostra necessário fazer atuar o princípio do contraditório (por as partes já terem discutido entre si as exceções invocadas), dispensa-se a audiência prévia, já que ela destinar-se-ia apenas às finalidades previstas nas als. d), e) e f), do artigo 591º, do CPCiv (cfr. ainda artigo 593º/1, do CPCiv)”; b) fixou à causa o valor de € 683.040,00; c) julgou parcialmente procedente a exceção de ineptidão alegada e, em consequência, julgou inepta a ação no que se reporta aos pedidos formulados em b) a e), da petição inicial, por falta de causa de pedir e contradição entre a causa de pedir e os pedidos; d) delimitou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova quanto aos demais pedidos formulados. * A autora não se conformou e interpôs recurso de apelação.* O réu apresentou contra-alegações nas quais pediu que o recurso não fosse admitido, por ausência de conclusões, e, vindo a ser admitido, pugnou pela manutenção da decisão recorrida.* O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.* Foi proferido despacho pela relatora que indeferiu o pedido de rejeição do recurso feito pelo recorrido nas contra-alegações, por não existir falta absoluta de formulação de conclusões, e convidou a recorrente a aperfeiçoar as conclusões.* A recorrente apresentou conclusões aperfeiçoadas (requerimento de 17.10.2022, ref. Citius ...09, que aqui se dá por integralmente reproduzo, para todos os efeitos legais) e o recorrido pronunciou-se no sentido de o recurso não dever ser conhecido porquanto a recorrente não cumpriu o dever de apresentação de conclusões sintéticas, na sequência do convite que para o efeito lhe foi dirigido pelo tribunal.* Em 24.10.2022 foi proferido despacho pela relatora (ref. Citius ...28) que decidiu não conhecer do recurso por a recorrente não ter eliminado o vício existente nas conclusões na sequência do anterior despacho de convite ao aperfeiçoamento.* A recorrente apresentou reclamação para a conferência desta decisão, tendo sido proferido acórdão, em 30.11.2022, que confirmou a decisão da relatora.* A recorrente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça o qual, por acórdão proferido em 9.5.2023 (ref. Citius ...77) considerou “serem inteligíveis as três questões que emergem das conclusões:1. - Saber se petição inicial quanto aos pedidos formulados de a) a e) é inepta ou apenas deficiente; 2. – Saber se deveria o tribunal da 1ª instância ter proferido despacho de aperfeiçoamento, por força do art. 590 nº2 b) e 3 CPC; 3. - Saber se, não tendo sido proferido despacho de aperfeiçoamento, o saneador-sentença é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do art.615 nº 1 d) CPC” e revogou o acórdão de 30.11.2022, determinando que a Relação deveria conhecer do objeto do recurso. * Foram colhidos os vistos legais.OBJETO DO RECURSO Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso. Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes. Neste enquadramento, no presente caso, as questões relevantes a decidir são as que foram elencadas no acórdão do STJ, mais concretamente: 1. - Saber se a petição inicial quanto aos pedidos formulados de b) a e) é inepta ou apenas deficiente; 2. - Saber se deveria o tribunal da 1ª instância ter proferido despacho de aperfeiçoamento, por força do art. 590º, nº2, al. b) e nº 3, do CPC; 3. - Saber se, não tendo sido proferido despacho de aperfeiçoamento, o saneador-sentença é nulo por excesso de pronúncia, nos termos do art.615º, nº 1, al. d), do CPC. FUNDAMENTAÇÃO FUNDAMENTOS DE FACTO Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório, os quais resultam da consulta dos atos praticados no processo. FUNDAMENTOS DE DIREITO A recorrente entende que o despacho saneador-sentença recorrido, que julgou inepta a petição inicial quanto aos pedidos formulados em b) a e), deve ser anulado, devendo o Tribunal a quo proferir despacho, nos termos previstos no art. 590º, nº 2, al. b), do CPC, convidando a recorrente a, em prazo a fixar, suprir a insuficiência na alegação dos factos constitutivos do direito a que se arroga. Vejamos se lhe assiste razão. Dispõe o artº 5º, nº 1, do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem), o qual consagra o princípio do dispositivo, que cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. Como decorrência e concretização deste princípio geral, estabelece o art. 552º, nº 1, als. d) e e), que na petição com que propõe a ação deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação e formular o pedido. Por seu turno, estatui o art. 186º que: 1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial. 2 - Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis. A causa de pedir consiste no facto jurídico concreto, ou no complexo de factos jurídicos concretos, que integram a relação material controvertida invocada e dos quais procede o efeito jurídico pretendido ou a pretensão deduzida em juízo. Nas palavras de Lebre de Freitas, a causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido” (in Ação Declarativa Comum, à Luz do C. P. Civil de 2013”, pág. 41). E é delimitada pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o autor formula, cumprindo a este a alegação desses factos (cf. Remédio Marques, in Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 226/227). Para Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Vol II, 3ª ed., pág. 67 e 69) “a causa de pedir (causa petendi ou origo petitionis) consiste no ato ou facto jurídico (“simples ou complexo, mas sempre concreto”) ou no específico vício invalidante que constituem a fonte de que dimana “o direito que o autor (ou o réu-reconvinte) pretende fazer valer” em juízo. Ato ou facto legalmente idóneo a “condicionar ou a produzir o efeito jurídico” correspondente ao pedido com base nele formulado”. (...) Intimamente ligada ao princípio do dispositivo, a causa de pedir exerce “uma função individualizadora do pedido e de conformação do objeto do processo”; ao apreciar o pedido, o tribunal não pode basear a sua decisão de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor (arts. 608º e 609º), sob pena de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, al. d)”. No nosso sistema processual civil vigora a denominada teoria da substanciação, nos termos da qual na exposição da causa de pedir não basta ao autor a indicação genérica do direito que pretende tornar efetivo e de que faz derivar o pedido, antes sendo necessário que indique de forma específica e concreta o facto constitutivo do direito do qual faz derivar a sua pretensão. “Será pela demonstração desses factos em juízo que o autor alcançará a tutela jurisdicional desejada. É da correspondência entre o quadro factual apurado nos autos e o quadro fáctico previsto numa ou mais normas substantivas que resultará o reconhecimento do direito invocado. O cumprimento daquele ónus de alegação não se basta, pois, com a mera alegação do direito em causa ou com a reprodução da norma ou normas de que aquele emana” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 629). Portanto, ao autor compete alegar de forma substanciada os factos que integram a causa de pedir, isto é, o quadro factual atinente ao tipo legal de que pretende prevalecer-se e do qual faz derivar a pretensão que deduz. Da conjugação das disposições dos arts. 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1, al. d), do CPC, resulta que o autor apenas tem o ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, ou seja, dos concretos factos essenciais nucleares da norma ou normas substantivas que elege e de onde faz derivar o direito em que assenta o pedido, mas já não dos factos complementares ou instrumentais. “A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 30), mas não gerará a ineptidão da petição inicial, pois este vício apenas ocorre quando se esteja perante uma ausência de alegação dos factos nucleares essenciais. Revela-se assim crucial a destrinça e integração dos factos na categoria de factos essenciais nucleares ou na categoria de factos complementares ou instrumentais, tarefa esta que tem de ser feita casuisticamente sendo que a inserção numa ou noutra categoria determina de modo decisivo a possibilidade de prosseguimento da ação. Com efeito, se se concluir que os factos em falta são factos essenciais nucleares, tal implica que há falta de causa de pedir, com a consequente ineptidão da petição inicial, vício de gravidade tal que a lei comina a sua ocorrência com a nulidade de todo o processado, sem qualquer possibilidade de convite ao aperfeiçoamento. Diversamente, se se concluir que os factos em falta são factos complementares ou instrumentais, impõe-se o convite ao aperfeiçoamento como forma de sanar e suprir a deficiente exposição ou concretização da matéria de facto. A lei não nos fornece o conceito de factos com a aludida natureza. Daí que Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Vol II, 3ª ed., pág. 74) refira que “à míngua de densificação legal, os conceitos abstratos (indeterminados) de “factos complementares” e de “factos concretizadores” terão de ser casuisticamente integrados pelo juiz”. Não obstante esta afirmação, o citado autor avança com uma noção exemplificativa da aludida categoria de factos dizendo que “factos concretizadores são as afirmações que especificam, clarificam ou esclarecem conceitos ou expressões jurídicas utlizadas pelas partes nos articulados; factos complementares são os que consubstanciam aditamentos ou acrescentos quando em causa tipos legais integrados por uma pluralidade de pressupostos de facto (tipos legais complexos). Uns e outros limitam-se a concretizar ou a completar a relação material/controvertida” (in Direito Processual Civil, Vol II, 3ª ed., pág. 73). No que concerne à relação entre o pedido e a causa de pedir, aquele tem de apresentar-se como a consequência ou o corolário lógico desta. Recorrendo às claras e esclarecedoras palavras de Alberto dos Reis (in CPC Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 350) “Os fundamentos de facto e de direito devem estar para o pedido na mesma relação lógica em que as premissas de um silogismo estão para a conclusão. Quer dizer, a petição deve ser construída de maneira que possa, sem esforço, converter-se num silogismo em que a premissa maior sejam as razões ou fundamentos de direito, a premissa menor os fundamentos de facto, e a conclusão o pedido. (...) Com efeito, se os fundamentos de facto (e de direito) não conduzirem logicamente ao pedido que se formula, estamos perante o mesmo vício lógico que se verifica quando a conclusão dum raciocínio está em oposição com as suas premissas”. Quando ocorre uma situação de ineptidão da petição inicial, por verificação de qualquer das situações previstas no art. 186º, nº 2, als. a) a c), a consequência é a nulidade de todo o processado impondo-se o indeferimento liminar ou a absolvição do réu da instância, consoante a fase em que tal vício é declarado. Porém, fora dos casos de ineptidão, ou seja, não havendo falta, total ou parcial, de causa de pedir, mas mera insuficiência de exposição factual, impõe-se que seja endereçado à parte prévio convite ao aperfeiçoamento dessa irregularidade, sob pena de ocorrer uma situação de nulidade caso tal ato seja omitido. Com efeito, dispõe o art. 6º, nº 2, do CPC, sob a epígrafe “dever de gestão processual” que o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo. Como manifestação deste princípio geral, lê-se no art. 590º, nº 2, al. b), que, findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, sendo que, de acordo com o nº 4 do mesmo normativo, incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido. Assim, neste momento e face à redação atual do preceito citado, ficou ultrapassada a anterior controvérsia sobre a natureza discricionária ou vinculada da prolação do despacho de aperfeiçoamento e parece-nos ser entendimento pacífico o de que, em questões de insuficiência de alegação de matéria de facto, o tribunal está obrigado ou vinculado a dirigir à parte convite de aperfeiçoamento no sentido de ser sanada ou suprida a aludida insuficiência, não podendo o processo prosseguir sem que tenha lugar este ato. Porém, e como já se deixou antedito, “o juiz só pode convidar a parte a corrigir a exposição ou concretização da matéria de facto quando esta apresente a densidade suficiente para constituir uma causa de pedir inteligível. Se não há causa de pedir (...) a petição sofre do vício da ineptidão, nos termos do art. 186º. Em suma: só se pode aperfeiçoar um existente objeto processual (“não se pode aperfeiçoar o que não existe”, como sintetiza o ac. RP 23-2-2006 (Deolinda Varão)) (...) Por outras palavras, o objeto da ulterior atividade de correção da parte não é suprir a ausência total ou parcial do referido núcleo essencial da causa de pedir, mas sim, aclarar e corrigir prévios factos essenciais ou aditar factos complementares” (cf. Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, págs. 109 e 110). Por conseguinte, não ocorrendo uma situação de ineptidão, mas de mera insuficiência de alegação factual, o juiz está obrigado a dirigir à parte convite ao aperfeiçoamento sob pena, de não o fazendo, cometer uma nulidade. Pois, como escrevem Castro Mendes e Teixeira de Sousa (in Manual de Processo Civil, Vol. II, pág. 84), “o juiz que não convida ao aperfeiçoamento e decide desfavoravelmente à parte com base numa deficiência que podia ter sido corrigida deixa de praticar um acto que não devia ter omitido (art. 195º, nº 1). No entanto, a omissão só se torna patente no momento do proferimento da decisão em que o tribunal decide contra a parte com base na deficiência – ou seja, no momento em que o tribunal decide utilizando matéria que, atendendo à falta de convite ao aperfeiçoamento, não podia ter conhecido – pelo que aquela decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d)). Esta nulidade só pode ser evitada se, antes do proferimento da decisão, o tribunal convidar a parte a aperfeiçoar o articulado”. Assentes nestas premissas, importa agora aplicá-las ao caso concreto, impondo-se que se comece por analisar se ocorre ineptidão da petição inicial quanto aos pedidos formulados nas als. b) a e). A decisão recorrida considerou que ocorre ineptidão da petição inicial quanto a tais pedidos por falta de causa de pedir e por contradição entre o pedido e a causa de pedir. Lendo a petição inicial torna-se claro que a autora alega a existência de uma situação de união de facto entre si e o réu que se iniciou em setembro de 2002 e terminou em novembro de 2019. Esta situação está devidamente sustentada do ponto de vista factual, em conformidade com a teoria da substanciação pois são alegados, de forma suficiente, os concretos e específicos factos de onde decorre a convivência em união de facto no período temporal referido e a sua cessação na sequência do casamento do réu com terceira pessoa. De seguida, a autora começa a descrever a existência de um património comum (arts. 16º e ss) e refere que autora e réu são comproprietários de vários imóveis e móveis, incluindo automóveis e barco, quotas, ações societárias e dinheiro. Porém, pese embora esta alusão à situação de compropriedade, não invoca o modo de aquisição de tal direito e não identifica em concreto os bens em situação de compropriedade, fazendo unicamente as afirmações genéricas já referidas, o que não se compadece com as exigências impostas pela substanciação da causa de pedir. No art. 17º faz uma enumeração das sociedades e refere quem são os titulares das ações e quotas das mesmas, embora não fazendo qualquer alusão ao modo concreto e específico de aquisição dessas ações e quotas. Não obstante tal omissão, o certo é que da aludida enumeração não decorre qualquer situação de compropriedade, mas sim uma situação de propriedade exclusiva de quotas e ações. Refere que alguns bens, que também não identifica nem discrimina, são sua propriedade ou compropriedade sua e das suas filhas, mas que estão na posse do réu e das empresas que o mesmo gere. Diz que contribuiu de forma igual para a criação de todo o património embora, reafirma-se, não tenha identificado que concreto património é esse, salvo um ou outro bem que refere de forma exemplificativa. Invoca que, apesar desse contributo, muitos foram os bens que estão apenas em nome do réu. Mas, novamente não identifica que bens são esses. Alega meras generalidades dizendo que todas as economias da autora e do réu foram aplicadas nos bens existentes – móveis e imóveis – independentemente da figura do seu titular. Diz que é comproprietária de imóveis com o réu, exemplificando com as verbas 1, 2 e 5 do auto de arrolamento e diz igualmente que é comproprietária de imóveis existentes no património das diversas sociedades criadas. Alude a um veículo ... de matrícula ..-NI-.. e a um barco de recreio dizendo que é o réu que os possui. Nada é esclarecido quanto ao concreto e específico modo de aquisição dos poucos bens que foram identificados. De seguida, já diz que o património está averbado em nome do réu e que por isso não se verifica em termos legais a compropriedade (art. 39º da contestação). Ou seja, e aqui chegados, verifica-se que há uma contradição quanto ao que atrás a autora alegou, embora de forma genérica, vaga e sem concretização, sobre a compropriedade. Porém, no art. 41º, a autora retoma a alegação de que é comproprietária dizendo que está impedida de aceder às empresas e aos imóveis de que é comproprietária ou que são propriedade das sociedades de que é administradora, sócia ou gerente. Refere no art. 46º que o réu a convenceu que deviam colocar o património dos dois nas empresas, enganando-a e abusando da confiança que a autora nele depositava. De novo, sem concretização de qual o concreto e específico património a que se refere e do modo como o mesmo foi adquirido, diz que o réu a impediu de aceder a inúmeras propriedades que são suas mas que estão em nome das empresas, dando como exemplo a casa de ... e a Quinta ... (art. ...7º). No art. 48º já retoma a matéria do património averbado em nome do réu, mas construído, aumentado e enriquecido com o esforço de ambos aludindo a um enriquecimento que se computa em pelo menos metade, estando a autora empobrecida nessa medida. De seguida, no art. 49º, diz que a presente ação visa dividir/destrinçar todo o património que tenha advindo aos dois titulares da relação durante o período em que ela se manteve e, no art. 50º, diz que na ação se pretende apurar (independentemente da posse ou do registo) a quem pertencem todos os bens adquiridos na pendência da união. De seguida, e no que concerne ao enquadramento jurídico, pretende fazer assentar a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, pois refere, no art. 57º, que está afastada a via da compropriedade e que pretende reclamar tudo quanto lhe pertence e tem direito por via daquele instituto e, nos arts. 63º e ss, refere, de forma mais uma vez vaga, genérica e sem concretização, que tem direito a receber metade de todo o património, incluindo o que se encontra em nome das sociedades, posto que contribuiu com o seu esforço para a criação desse património na proporção de metade. Ora, para além de existirem as contradições na exposição factual que já se referiram, pois a autora mistura os conceitos de propriedade e compropriedade e alude indistintamente aos bens que estão em nome do réu e de sociedades terceiras, as quais têm personalidade jurídica própria, a autora não expôs a causa de pedir em conformidade com a teoria da substanciação, como lhe era exigível, pois fez uma exposição genérica, vaga, e não concretizada e específica. Não basta invocar que contribuiu com o seu esforço em metade para a criação do património comum e requerer que o réu seja condenado na restituição de metade do valor ao abrigo do enriquecimento sem causa. Impunha-se que a autora alegasse factos concretos sobre essa matéria, o que não sucedeu. Por isso, existe efetivamente falta de causa de pedir quanto ao pedido de restituição, com base em enriquecimento sem causa, de 50% de todo o valor do património, que se encontre em nome da autora, do réu e das sociedades pelo mesmo criadas. Na verdade, na petição inicial não há uma mera ausência de factos concretizadores ou instrumentais, mas antes uma ausência de factos essenciais à pretensão deduzida que consiste na obrigação de restituição com base em enriquecimento sem causa. E também existe contradição entre os pedidos e a causa de pedir. Verdadeiramente o que a autora pretende com os pedidos que formulou nas als. b) a e), como a mesma refere, é dividir/destrinçar todo o património que tenha advindo aos dois titulares da união de facto durante o período em que ela se manteve e apurar (independentemente da posse ou do registo) a quem pertencem todos os bens adquiridos na pendência da união. Mas estes pedidos, formulados nestes moldes, são contraditórios com a invocação do enriquecimento sem causa como causa de pedir, o qual é um instituto de natureza subsidiária que determina que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, tendo a obrigação de restituir de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido ou o que for recebido por uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (art.s 473º e 474º, do CC). A autora, embora não tendo sido casada com o réu, pretende, na prática, exercer direitos como se o tivesse sido, formulando uma pretensão de partilha de todo o património adquirido na constância da relação de união de facto, como se ambos tivessem sido casados no regime de comunhão de adquiridos, pressuposto que não se verifica. E pretende inclusive dividir património que não pertence a nenhuma das partes, mas sim a sociedades terceiras, com personalidade jurídica própria, nada tendo alegado a nível factual que permita concluir pela possibilidade excecional de levantamento da personalidade jurídica das sociedades. E vai até ao ponto de pedir que o réu seja condenado a restituir à autora 50% dos bens que estão em nome da autora. A autora não alega, à luz da teoria da substanciação, os factos concretos e específicos essenciais da obrigação de indemnizar com base em enriquecimento sem causa. E entre o pouco que a autora alegou em termos factuais e o que pediu não existe a necessária relação de silogismo, em termos de o pedido ser a consequência lógica do alegado. Por conseguinte, chegamos à mesma conclusão alcançada pela decisão recorrida: a petição inicial é inepta, quanto aos pedidos formulados nas als. b) a e), por falta de causa de pedir, entendida esta de acordo com a teoria da substanciação, e por contradição entre os referidos pedidos e a causa de pedir. Ora, como já supra explanámos, ocorrendo uma situação de ineptidão da petição inicial, tal vício acarreta a nulidade de todo o processado e não é sanável, não havendo, nessa situação, lugar ao convite ao aperfeiçoamento, sendo este um poder-dever do juiz que se encontra reservado apenas para as situações de insuficiência de alegação de factos complementares ou concretizadores, estando arredado das situações em que não são alegados os factos essenciais ou nucleares. E, não havendo fundamento para proferir despacho de aperfeiçoamento, a sua omissão não é geradora de nulidade por excesso de pronúncia. De tudo quanto se expôs, conclui-se que improcede o recurso. * Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido que julgou inepta a petição inicial quanto aos pedidos formulados em b) a e) e considerando que, perante tal ineptidão, não pode haver lugar à prolação de despacho de aperfeiçoamento. Custas da apelação pela recorrente. Notifique. * Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):I - A causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”. II - Ao autor compete alegar de forma substanciada os factos que integram a causa de pedir, isto é, tem que invocar de forma específica e concreta os factos constitutivos do direito atinente ao tipo legal de que pretende prevalecer-se e do qual faz derivar a pretensão que deduz. III - Quando ocorre uma situação de ineptidão da petição inicial, por verificação de qualquer das situações previstas no art. 186º, nº 2, als. a) a c), a consequência é a nulidade de todo o processado, impondo-se o indeferimento liminar ou a absolvição do réu da instância, consoante a fase em que tal vício é declarado, não sendo este vício sanável e não havendo, nessa situação, lugar ao convite ao aperfeiçoamento, sendo este um poder-dever do juiz que se encontra reservado apenas para as situações de insuficiência de alegação de factos complementares ou concretizadores. * Guimarães, 22 de junho de 2023 (Relatora) Rosália Cunha (1ª Adjunta) Lígia Venade (2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas |