Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
555/15.5GAEPS-B.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: PERDÃO DE PENA
PRISÃO SUBSIDIÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Nos termos do artigo 3.º, n.º 2 alínea b) da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, é perdoada a prisão subsidiária resultante da conversão de penas de multa, sem qualquer limite.

II- É certo que a pena de multa aplicada a título principal superior a 120 dias está excluída do perdão das penas estabelecido pela Lei n.º 38-A/20023, nos termos do seu artigo 3.º, nº 2, al. a).
A conversão da multa não paga em prisão subsidiária constitui, porém, uma verdadeira modificação do conteúdo decisório da sentença.
Após a conversão não pode continuar-se a considerar a duração da pena de multa aplicada a título principal para, à revelia do legislador, limitar o perdão da pena de prisão subsidiária à resultante da conversão da pena de multa até 120 dias.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 555/15...., do Juízo de Competência Genérica ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em que é arguido AA, foi proferido o seguinte despacho, datado de 4 de setembro de 2023:

«Por decisão transitada em julgado em 13-03-2017, o arguido AA, com data de nascimento de .../.../1988, foi condenado pela prática, a 25-07-2015, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al. d) da Lei n.º 5/2006 de 23-
A pena de multa em que o arguido foi condenado foi convertida em 266 dias de prisão subsidiária por decisão datada de 17-08-2018.
Por despacho de 17-01-2019, foi determinada a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária pelo período de um ano, a qual veio a ser revogada por despacho de 09-11- 2020, já transitado em julgado.
A 04-07-2023 foi determinada a emissão de mandados de detenção, que ainda não foram emitidos.
A Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que entrou em vigor no pretérito dia 1 de Setembro, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. art. 1º do referido diploma legal).
No âmbito de tal Lei, as penas de prisão até 8 anos passam a ser perdoadas num ano de prisão e, no que se refere ao caso concreto, passam a ser perdoadas integralmente as penas de multa até 120 dias e a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa (art.º 3.º n.º 1 e 2, als. a) e b) do citado diploma legal).
A Lei 38-A/2023 abrange as penas criminais aplicadas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos respectivos artigos 3.º e 4.º.
No caso concreto, o arguido foi condenado numa pena de 300 dias de multa, pelo que a pena âmbito da condenação não se encontra abrangida pelo disposto no art. 3º, nº 2, al. a) da citada Lei, não beneficiando do perdão de penas.
Pelo exposto, proceda à emissão dos mandados de detenção anteriormente
determinada.
Notifique.»
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Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

1. «Não pretende o recorrente nas conclusões que se seguem reduzir o objeto do presente recurso.
2. Vem o presente recurso interposto do despacho de 04.09.2023 com a referência ...14 que considerou que a pena em que o recorrente foi condenado nos presentes autos não beneficia do perdão de penas consagrado na lei 38-A/2023, de 2 de agosto e em consequência ordenou a emissão dos mandados de detenção anteriormente determinada para cumprimento da pena de prisão subsidiária.
3. Por decisão transitada em julgado em 13-03-2017, o arguido AA, com data de nascimento de .../.../1988, foi condenado pela prática, a 2507-2015, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1 al. d) da Lei n.º 5/2006 de 23-02, numa pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 6,50, no montante global de € 1950,00;
4. O arguido não procedeu ao pagamento voluntário da multa em que foi condenado; 5. Requerido e deferido o pagamento prestacional, o arguido apenas pagou a quantia de € 216,66;
6. Por decisão datada de 17-08-2018 foi convertida a pena de 266 (duzentos e sessenta e seis) dias de multa em 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária;
7. Por despacho de 17-01-2019, foi determinada a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária pelo período de um ano, a qual veio a ser revogada por despacho de 09-11-2020, já transitado em julgado.
8. A 04-07-2023 foi determinada a emissão de mandados de detenção, os quais à data do despacho ainda não tinham sido emitidos;
9. Assim, o ilícito praticado pelo recorrente foi praticado antes da meia-noite do dia 18 de junho de 2023 (em 25-07-2015) e o recorrente tinha menos de 30 anos (27 anos) à data da prática dos factos, pelo que se encontra abrangido pela lei n.º 38A/2023, de 2 de agosto – Cfr. Artigo 2.º, n.º1.
10. O ilícito praticado pelo recorrente está excluído da amnistia de infrações penais prevista no artigo 4.º da citada lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, porquanto não reúne os pressupostos aí exigidos.
11. O ilícito praticado pelo recorrente não se enquadra no elenco das exceções previstas no artigo 7.º da n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
12. O despacho recorrido considerou que no caso concreto, o recorrente foi condenado numa pena de 300 dias de multa, pelo que a pena âmbito da condenação não se encontra abrangida pelo disposto no artigo 3.º, 2, al. a) da citada Lei, não beneficiando do perdão de penas.
13. O despacho recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos, porque no caso concreto do recorrente, à data de entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a pena de multa em que havia sido condenado, já se encontrava convertida em 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária, inclusivamente já havia sido determinada a emissão de mandatos para o cumprimento da pena de prisão subsidiária. 
14. Assim, à data da entrada em vigor da lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o recorrente já se encontrava na situação de facto e de direito para ter de cumprir a pena de prisão subsidiária.
15. Deste modo, a pena a ser considerada para efeitos de aplicação do perdão de penas deve ser a pena de prisão subsidiária e não a pena de multa. 
16. O legislador deliberadamente não estipulou qualquer limite relativamente à prisão subsidiária. 
17. Contudo, por dever de patrocínio, refere-se, que a pena de prisão subsidiária aplicada ao recorrente é de 176 dias pelo que é inferior a 1 ano.
18. Assim, atenta a factualidade atrás descrita verifica-se que a situação concreta do recorrente se encontra abrangida pelo perdão de penas previsto no artigo 3.º, n.º 2, alínea b) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
19. O perdão genérico extingue a pena aplicada ao recorrente em conformidade com o preceituado nos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 3 do Código Penal e conduz à ilegalidade dos mandados de detenção mandados emitir.
20. Em face do exposto deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por douto acórdão, que considere que a pena de prisão subsidiária aplicada ao recorrente se encontra abrangida pelo perdão de penas previsto no artigo 3.º, n.º 2, alínea b) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, e em consequência a declare extinta com todas as consequências legais.
21. O despacho recorrido viola entre outros o artigo 3.º n.º 2, alíneas a) e b) da lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto e os artigos 127.º, nº 1 e 128, nº 3 do Código Penal.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.
A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.
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Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu parecer, o qual conclui do seguinte modo: «O recurso do arguido deverá ser julgado procedente declarando-se o perdão da sobredita pena de prisão subsidiária com a duração de 176 dias, tendo em vista o previsto no art.º 3, n.º1 e n.º2, al. b) da Lei 38-A/2023, de 02/08, declaração a efectuar sob a condição estabelecida no seu art.º 8.º, n.º1 desta Lei, relevando, consequentemente, a data do cometimento dos factos, a idade do arguido recorrente, a circunstância de estar definitivamente condenado numa pena de prisão – art.ºs 2, n.º1, e não se mostrar verificada uma qualquer das excepções previstas no art.º 7 da mesma Lei.»
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].

1. Questão a decidir:

Saber se a Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, contempla o perdão de pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa superior a 120 dias.
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2. OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS COM INTERESSE PARA A DECISÃO.

a. Por sentença datada de 09.02.2017, transitada em julgado em 13.03.2017, o arguido AA, nascido em .../.../1988, foi condenado pela prática, a 25.07.2015, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006 de 23.02, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 6,50 € (seis euros e cinquenta cêntimos).
b. Do montante correspondente à pena de multa, o arguido procedeu apenas ao pagamento da quantia de 216,66 € (duzentos e dezasseis euros e sessenta e seis cêntimos).
c.  Por despacho datado de 17.08.2017, foi convertida a pena de 266 (duzentos e sessenta e seis) dias de multa em 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária.
d. Por despacho de 17.01.2019, foi determinada a suspensão da execução da pena de prisão subsidiária pelo período de um ano, a qual veio a ser revogada por despacho de 09.11. 2020, já transitado em julgado.
e. Em 03.09.2023 foi proferido o despacho recorrido, já supratranscrito no início do acórdão, que expressando o entendimento de que a Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, não contempla o perdão de pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa superior a 120 dias, conclui com a ordem de emissão dos mandados de detenção do arguido, para cumprimento dos 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária.
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III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recurso encontra-se circunscrito a saber se a pena de 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária se encontra, ou não, abrangida pelo perdão de penas estabelecido na Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto[2], que entrou em vigor em 01.09.2023.
Em conformidade com o artigo 2.º desse diploma, estão abrangidas por esta Lei de clemência as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto, nos termos definidos nos seus artigos 3º e 4º.
No caso em apreço, é pacífico que o arguido/recorrente, nascido em .../.../1988, tinha menos de 30 anos quando, a 25.07.2015, praticou factos integradores de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1 al. d) da Lei n.º 5/2006 de 23.02, pelo qual veio a ser condenado.
Tal crime está excluído da amnistia de infrações penais prevista no artigo 4.º da citada Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, porquanto não reúne os pressupostos aí exigidos para tal; mas não se enquadra no elenco das exceções previstas no artigo 7.º da mesma Lei, que excluem o perdão e a amnistia.
A pena que o arguido tem agora de cumprir é de 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária, resultante da conversão da parte da multa não paga, nos termos previstos no artigo 49.º, nº 1 do Código Penal.
No que respeita à pena de prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, o artigo 3.º, nº 2 da, al. b), da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, estabelece um perdão nos seguintes termos:
«2. São ainda perdoadas:
(…)
b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
(…)».
Neste contexto legal, não tendo o legislador concretizado qualquer limitação à aplicação do perdão da pena de prisão subsidiária, designadamente em função da sua duração, os 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária que o recorrente tinha de cumprir não podem deixar de ser considerados perdoados.
É certo que a pena aplicada a título principal na sentença foi de 300 (trezentos) dias de multa, cuja duração, caso fosse ela que aqui estivesse em causa, a excluiria do perdão das penas estabelecido pela Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, nos termos do seu artigo 3.º, nº 2, al. a).
Só que não é essa a pena agora a considerar por, entretanto, ter ocorrido a conversão da parte da multa não paga em prisão subsidiária, o que constitui uma verdadeira modificação do conteúdo decisório da sentença. Impedindo que se continue a considerar a duração da pena de multa aplicada a título principal para, à revelia do legislador, limitar o perdão da pena de prisão subsidiária à resultante da conversão da pena de multa até 120 dias.
A lei é muito clara a estabelecer o perdão da pena de prisão subsidiária sem qualquer limite, afirmando-se aqui com toda a validade o princípio hermenêutico de que onde a lei não distingue, não pode o intérprete fazer distinções (ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus).
E nem se argumente que tal interpretação é uma «porta travessa» para que o condenado não cumpra as penas de multa superiores a 120 (cento e vinte) dias, com o propósito de depois vir a obter o perdão da prisão subsidiária correspondente,  pois o decretamento da prisão subsidiária não está dependente apenas do não pagamento voluntário da multa, mas também da impossibilidade do seu pagamento coercivo (cf. artigo 49.º, nº 1 do Código Penal).
Não se pode também olvidar  que  o direito de graça ou de clemência, no qual se inclui a amnistia e o perdão genérico têm sempre uma natureza excecional, não comportando interpretação analógica nem extensiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas. Como se pode ler a propósito, com inteira atualidade, no então designado Assento n.º 2/2001, de 25.10.2001, publicado no DR 264 SÉRIE I-A, de 14.11.2001, “(…) o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» — artigo 11.º do Código Civil —, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (…)”
De tudo decorrendo, em síntese conclusiva, não poder subsistir a decisão recorrida, que não aplicou o perdão à pena de prisão subsidiária com fundamento em ter resultado da conversão da pena de multa superior a 120 dias.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando o despacho recorrido e, por aplicação do artigo 3º, nº 2, al. b) da Lei nº 38-A/23 de 02 de agosto, declarar perdoados os 176 (cento e setenta e seis) dias de prisão subsidiária, sob a condição resolutiva imposta pelo artigo 8º, nº 1 da mesma Lei.
 Sem tributação.
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Guimarães, 6 de fevereiro de 2024
(Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.)

Fátima Furtado (Relatora)
Júlio Pinto (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)


[1] Cf. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.