Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
91/10.6TMBRG.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGUES
FUNDAMENTOS
CLÁUSULA GERAL
RUPTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O actual regime do divórcio, instituído pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge e alargou os fundamentos objectivos da ruptura conjugal através da cláusula geral prevista no artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil.
II – A ruptura definitiva do casamento a que alude a mencionada alínea d) pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito sem o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objectiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
A… intentou no Tribunal de Família e Menores de Braga, acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, contra B… pedindo que seja decretado o divórcio entre autora e réu.
Alega, em síntese, que desde o início do casamento o réu sempre teve um comportamento de desconfiança para com a autora, questionando-a constantemente sobre tudo o que fazia, o que originava muitos conflitos no casal, mas foi só no dia 14 de Junho de 2009 que se deu a ruptura do respectivo vínculo conjugal, quando depois da autora se recusar a entregar as chaves da viatura do casal que era por si utilizada nas deslocações para o seu trabalho, o réu, na presença de dois dos três filhos do casal, chamou vários nomes à autora, tendo a discussão terminado quando o réu se apoderou de uma cadeira ameaçando atingi-la com a mesma, refugiando-se a autora nas escadas, após o que o réu se dirigiu para junto de si e começou a bater-lhe com o punho nas coxas, principalmente na direita, tendo o réu saído de seguida e apenas regressando de madrugada. No dia seguinte a autora saiu de casa definitivamente, tendo apresentado queixa no Ministério Público de Vila Verde, não havendo da sua parte o propósito de restabelecer a vida em comum com o réu.
Realizada tentativa de conciliação, não se logrou obter o acordo das partes quanto ao divórcio por mútuo consentimento.
Notificado o réu, veio o mesmo apresentar contestação, negando que alguma vez tenha chamado nomes à autora ou lhe tenha batido, concluindo pela improcedência da acção.
Saneado, condensado e instruído o processo, seguiu ele para julgamento e, discutido o pleito, foi proferido o despacho que fixou a matéria de facto apurada na audiência, o qual não mereceu reclamação.
Seguidamente foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada.
Inconformada com esta decisão e visando a sua revogação, dela recorreu a autora, formulando as seguintes conclusões:
«1ª. No ponto 1 da matéria provada diz-se que o casamento foi celebrado sem convenção antenupcial sob o regime de separação de bens. Salvaguardando a hipótese de se tratar de um lapso, o casamento dos autos só pode ter sido celebrado no regime de comunhão de adquiridos, que é o regime supletivo.
2ª. A testemunha C… disse, referindo-se à autora, “ … ela chegou com um olho todo preto …”, e acrescentou “… uma pessoa veio a saber que ele lhe batia …”. Questionada pela advogada da autora sobre a data desses factos, disse : “… já foi mais quando ela saiu…”, tudo, cfr. gravação áudio, minutos 14:37:48 a 14:43:58.
3ª. Por sua vez, a testemunha D… disse : “ … ouvimos uma guerra dentro de casa …” , “… ouvimos a discutir lá em casa …” . Questionada pela advogada da autora, se depois da discussão com o réu a autora mostrou ferimentos, respondeu: “ … ela tinha um olho preto …” , “ …. mostrou pisadurazitas …”, “ … vi que estava preta, pisada … “. Questionada pela advogada da autora, se o ferimento era na coxa, disse : “… sim …”, tudo, cfr. gravação áudio, minutos 14:50:36 a 14:56:23.
4ª. Estes depoimentos testemunhais indicam claramente que o réu maltratava fisicamente a autora, provocando-lhe ferimentos, e tal deveria ter sido dado como provado. Pelo que, ao não considerar assim, a sentença faz um errado julgamento da prova (art. 685º-B nº 1 a) e b) e nº2 do CPC).
5ª. A prova dos maus tratos físicos, do réu sobre a autora, aliada à prova da separação de facto de ambos, mesmo com duração inferior a 1 (um) ano (confirmada na sentença) seriam motivo para a procedência do pedido de divórcio, por integrarem a previsão legal do art. 1781º nº 1 d) do CC.
6ª. Mesmo sem a prova dos maus tratos, como se concluiu na sentença, ainda assim subsistem motivos para a procedência do pedido, pois a simples constatação da separação de facto, ainda que por menos de um ano, aliada à prova do propósito da autora de não reatar a relação conjugal com o réu (confirmado na sentença), constituem motivos suficientes para a procedência do pedido de divórcio.
7ª. Neste sentido se inclina vária jurisprudência, nomeadamente:
Ac. Relação de Coimbra, proferido por unanimidade em 07.06.2011, Proc. 394/10.0TMCBR.C1:
Sumário:
1- O actual regime jurídico do divórcio, instituído pela Lei nº 61/2008, de 31.10, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem consentimento do outro cônjuge (à semelhança da maioria de legislações dos Países que integram a União Europeia) e alargou os fundamentos objectivos da ruptura conjugal (sistema de divórcio-ruptura) através de uma cláusula geral (art.1781 d) CC), dando relevância a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo.
2- Verifica-se situação integradora da “cláusula geral” da alínea d) do art. 1781 do CC (na redacção conferida pela Lei nº 61/2008, de 31.10, quando deixa de existir a comunhão de vida própria de um casamento, como evidente e irremediável quebra de afectos e o desfazer do que representava esse mundo comum.”
8ª- O mesmo acórdão refere ainda que “ … Dada a importância actualmente atribuída aos afectos para o bem-estar das pessoas, passou a considerar-se que em caso de persistente desentendimento no casamento os cônjuges não devem ser obrigados a manter o vínculo a qualquer preço.”.
9ª. É o que se passa no caso dos autos, onde se vislumbra a presença desse “persistente desentendimento no casamento”, tal como é dito pela testemunha C… que refere: “ os filhos (das partes) que disseram que não iam mais.” (entenda-se aqui para casa) e “os miúdos já estavam cheios de estar em casa com tanto barulho”cfr. Gravação áudio, minutos 14:37:48 a 14:43:58. (parêntesis e sublinhados nossos).
10ª. E mais se acrescenta no acórdão em abono do que se vem agora defendendo: “O Tribunal recorrido, atendendo ao alegado na p.i. e à factualidade dita em II.1, supra, considerou, primeiro, que “sobre a factualidade alegada nada se apurou” e, depois, ter ficado demonstrado que o “casal está separado de facto, o que ocorria ter menos de um ano aquando da propositura da acção”, vindo a concluir pela improcedência da acção, por falta de prova dos factos alegados.”.
11ª. Tal situação tem paralelo no caso dos autos. De facto, a douta sentença considera como provado que a autora deixou de viver onde até então vivia com o réu, e ainda que, “a autora deixou de manter o propósito de restabelecer a relação conjugal com o réu”. E ainda que “com efeito, desde essa data que deixaram de viver na mesma casa, não partilhando a mesma cama e/ou mesa, não existindo, da parte da autora, propósito de restabelecer essa comunhão.”.
12ª. Apesar de não se encontrar preenchido o decurso de um ano da separação de facto, o tribunal deveria ter atendido, na esteira do Acórdão ora citado, ao facto de se encontrar verificada a “factualidade suficiente integradora da “cláusula geral” da alínea d) do art. 1781º do CC podendo-se assim concluir pela ruptura definitiva do casamento, porquanto deixou inequivocamente de existir a comunhão de vida própria de um casamento”.
13ª. O tribunal deveria ter averiguado se ainda persistia “uma qualquer “parcela” da plena comunhão de vida que constitui a sua razão de ser” ou antes a “falência do casamento”, falência esta que se encontra aqui plasmada nas agressões que ocorreram antes da saída de casa da autora e que culminaram com essa mesma saída que perdurou, depois, por mais de um ano. Se o tivesse feito só poderia ter concluído pela procedência do pedido.
14ª. Veja-se ainda o Ac. Relação de Guimarães, proferido por unanimidade em 11.09.2012, Proc. 250/10.1TMBRG.G1:
“Sumário:
3- O prazo de um ano consecutivo, na separação de facto, tem de verificar-se no momento da propositura da acção.
4- Na concepção do divórcio ruptura basta constatar ou concluir dos factos provados que o casamento se rompeu definitivamente.”
15ª. O tribunal deveria, no seguimento desta tese, ter averiguado se “a relação afectiva se esgotou, espelhada na forma como os cônjuges se relacionavam, (…) ao ponto de a ré (no caso dos autos: autora) renunciar a viver na casa de morada de família. Não é normal uma atitude destas, quando a relação conjugal está de boa saúde ou mesmo quando sofra de alguma doença. É típica de situações extremas em que a vida em comum já não é possível.”. Caso o tivesse feito, só poderia ter-se concluído na sentença recorrida que a relação afectiva entre autora e réu estava acabada, e que isso cabia perfeitamente na previsão legal da alínea d) do nº 1 do art. 1781º do CC.
16º. Assim, e na linha seguida neste Acórdão, o tribunal deveria ter entendido que a separação de facto entre autora e réu, aliada ao facto de a autora não estar disposta a reatar a vida em comum com o réu significava o reconhecimento do cansaço de viver naquela situação, motivos mais que suficientes para se considerar preenchido o fundamento do divórcio consagrado na alínea d) do artigo 1781 do Código Civil.
17ª. A sentença recorrida faz uma incorrecta interpretação e aplicação do disposto no art. 1781º nº1 alínea d) do CC.».
Não houve contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 660º, nº 2, 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, do CPC), pressupõe a análise das seguintes questões:
- se enferma de lapso o facto elencado sob o nº 1 dos “factos provados” na sentença;
- se a matéria de facto deve ser alterada;
- se deve ser decretado o divórcio entre autora e ré com o fundamento previsto no art. 1781º, nº 1, al. d), do Código Civil.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora e o Réu celebraram casamento civil, sem convenção ante nupcial sob o regime de separação de bens, no dia 9 de Dezembro de 1990.
2. Deste casamento nasceram dois filhos, André … e Cristiano ….
3. Em Junho de 2009 a Autora deixou de viver na casa onde até então vivia com o réu.
4. A autora deixou de manter o propósito de restabelecer a relação conjugal com o réu.

B) O DIREITO
Questão prévia.
Deu-se como provado na sentença recorrida que “A Autora e o Réu celebraram casamento civil, sem convenção antenupcial sob o regime de separação de bens, no dia 9 de Dezembro de 1990”.
Como é bom de ver e é, aliás, admitido pela recorrente na sua conclusão 1ª, só pode tratar-se de um lapso manifesto a referência ao regime de separação de bens, quando é evidente que aquilo que se quis dizer foi o regime da comunhão de adquiridos, que é o regime legal supletivo (art. 1721º do Código Civil).
Seja como for, também não se vê razão para que na sentença se tenha alterado a redacção que constava da alínea A) da “Matéria de Facto Assente”, formulada aquando da selecção da matéria de facto no despacho saneador.
Assim, altera-se a redacção do facto elencado supra sob o nº 1, nos seguintes termos:
«No dia 09.12.1990 B… e A… contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial».
De igual modo, o facto elencado sob o nº 2 dos factos provados, que deveria corresponder ao que consta da alínea B) da “Matéria de Facto Assente”, foi objecto de uma nova redacção na sentença, sem que nada o justifique, redacção esta que enferma de uma incorrecção, uma vez que do casamento da autora e do réu não nasceram dois, mas sim três filhos.
Assim, o nº 2 dos factos provados passará a ter a seguinte redacção:
«No dia 23.09.1991 nasceu Tiago …, no dia 18.01.2001 nasceu André … e no dia 29.05.1993 nasceu Cristiano …, os quais têm a maternidade registada em nome de A… e paternidade em nome de B…»[1].

Da alteração da matéria de facto.
Como resulta do art. 712º, nº 1, al. a), do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (os pontos impugnados pelo recorrente) ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, ou seja, os depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode-se dizer que a recorrente cumpriu satisfatoriamente os ónus impostos pelo nº 1 do art. 685º-B do CPC, já que:
- indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida;
- referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, sem deixar de assinalar, resumidamente, o que, em seu entender, disseram em julgamento as testemunhas cujos depoimentos pretende ver reapreciados e que se mostram gravados no CD de suporte;
- e indicou com exactidão as passagens da gravação em que se funda.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 712º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam[2], mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto[3].
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Feitas estas breves considerações, vejamos então a factualidade posta em causa pela recorrente – nº 3 da base instrutória[4] - e o que se afere dos meios de prova que na 1ª instância estiveram na base da decisão de facto proferida.
Perguntava-se o seguinte no aludido ponto (quesito) da base instrutória:
«Na ocasião aludida em 1) – ou seja, no dia 14.06.2009 – o réu bateu na autora com o punho na coxa direita?»
A Mm.ª Juíza a quo respondeu “não provado”, tal como respondeu “não provado” ao ponto nº 1 da base instrutória.
E entendemos que respondeu acertadamente.
Antes de dizermos porquê, importa ter presente que aquilo que se perguntava no artigo/quesito 3º da base instrutória, era se no dia 14.06.2009 o réu havia batido na autora com o punho na coxa direita, e não se o mesmo, em outras ocasiões, tinha agredido a autora, o que,
Esta diferença, como adiante se verá, faz “toda a diferença” no caso em apreço.
Como é sabido, às partes cabe alegar os factos integrantes da causa de pedir, só podendo o tribunal, em regra, fundar a decisão nos factos alegados pelas partes e a selecção da matéria de facto para integrar a base instrutória ou a “matéria de facto assente” tem de assentar nesses factos (artigos 264º, nº 1 e 2, e 511º, nº 1, do CPC).
Isso está em conformidade com o princípio de que o tribunal só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo no que concerne aos factos notórios, aos instrumentais, aos essenciais complementares e aos relativos ao uso anormal do processo (artigo 664º do CPC).
O “quesito” 3º assentou na articulação na petição inicial que numa data precisa, ou seja, em 14.06.2009, o réu bateu na autora com o punho na coxa direita.
Ora, depois de ouvirmos integralmente todos os depoimentos testemunhais prestados na audiência de julgamento, nomeadamente os das testemunhas indicadas pela recorrente, pudemos verificar que nem a C… nem a D… precisaram com o rigor necessário a data em que viram a autora com “um olho preto” e “pisaduras nas pernas”, que situaram no mês de Junho, quando “os miúdos ainda andavam na escola” e “antes dela sair de casa”.
Face a tais depoimentos não se pode afirmar que no dia 14.06.2009 o réu bateu na autora com o punho na coxa direita, quando é certo que nem sequer a autora alegou ter ficado com o olho preto nessa data, o que aponta até para que, a ter havido alguma agressão por parte do réu, a mesma tenha ocorrido noutra data.
Nada impedia a autora de ter alegado quaisquer outras situações em que o réu a terá agredido, mas esta optou, porém, por concentrar num único facto e numa data precisa a data da agressão, o que não logrou provar.
Nem podia a Mm.ª Juíza a quo responder de forma genérica que “o réu batia na autora”, sob pena de considerar provados factos que não tinham sido articulados na acção, infringindo, dessa forma, o disposto nos artigos 264º, nº 1, 511º, nº 1, e 664º, cuja consequência seria a de ter por não escrita tal resposta, por aplicação do que se prescreve no nº 4 do artigo 646º, todos do CPC.
Resulta do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no art. 712º, nº 1, al. a), do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou o Mm.º Juiz a quo ao dar como não provado o nº 3 da base instrutória.

Face às alterações efectuadas na “questão prévia”, os factos finalmente julgados provados são os seguintes:
1. No dia 09.12.1990 B… e A… contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial.
2. No dia 23.09.1991 nasceu Tiago …, no dia 18.01.2001 nasceu André … e no dia 29.05.1993 nasceu Cristiano …, os quais têm a maternidade registada em nome de A… e paternidade em nome de B….
3. Em Junho de 2009 a Autora deixou de viver na casa onde até então vivia com o réu.
4. A autora deixou de manter o propósito de restabelecer a relação conjugal com o réu.

Da existência de fundamento para o decretamento do divórcio.
A questão essencial que se coloca é a de saber se há fundamento para ser decretado o divórcio por ruptura definitiva do casamento entre autora e réu.
Na verdade, estamos em contexto de divórcio sem consentimento, na terminologia da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, cuja disciplina de direito material se contém, no essencial, naquilo que releva para a questão em apreço, nos artigos 1773º, nº 3, 1781º, 1782º e 1785º, todos do Código Civil, na redacção da referida lei.
O art. 1773º no seu n.º1 distingue as duas modalidades de divórcio, por mútuo consentimento e sem consentimento do outro cônjuge e no seu n.º3 estabelece que este é requerido no tribunal contra o outro, com algum dos fundamentos previstos no era. 1781º.
Nos termos do art. 1781º, com a epígrafe “Ruptura do Casamento”, constituem fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
«a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.»
Por sua vez, o art. 1782º preceitua: “Entende-se que há separação de facto, quando não existe comunhão de vida entre os dois cônjuges e há da parte de ambos ou de um deles o propósito de não a restabelecer.”
Por último, o art. 1785º estipula que o divórcio com o fundamento das alíneas a) e d) do art. 1781º pode ser requerido por qualquer dos cônjuges.
Sobre a génese da alteração ao regime de divórcio implementada pela Lei n.º 61/2008, transcreve-se, data venia, o que se escreveu no Acórdão do STJ de 09.02.2012 (Hélder Roque)[5]:
«(…), a relação a dois existente dentro do casal, movida pelo propósito da realização pessoal, independentemente de qualquer quadro de valores e de respostas externas, apenas baseada no compromisso permanente e na gratificação renovada, contém, em si mesma, o acordo prévio sobre a sua própria dissolução.
A ideia do casamento como relação pura, baseada no compromisso privado, que contém em si a possibilidade antecipada da sua dissolução, torna injustificada a definição de deveres conjugais imperativos, conduzindo os sistemas jurídicos para uma regulamentação minimalista do sistema de divórcio.
Tratou-se do prenúncio do aparecimento do modelo do «divórcio sem culpa», assente na constatação da ruptura do matrimónio, indiciada por causas objectivas, ou no acordo dos cônjuges, através do mútuo consentimento activo ou do consentimento passivo do cônjuge que se não opõe ao pedido de divórcio formulado pelo outro.
(…). Seguindo esta tendência, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, expressão que preferiu à anterior designação de «divórcio litigioso», deixando de existir o divórcio com fundamento na violação culposa dos deveres conjugais, afastando-se a culpa, quer quanto às causas, quer quanto aos efeitos do divórcio.
Este último diploma encontra-se em linha coerente com a crescente propensão para a “privatização” do casamento, subtraído, gradualmente, à intervenção tutelar do Estado, como contrato, tendencialmente, denunciável, cada vez mais próximo da disciplina dos contratos em geral, de cujo tronco comum, outrora, já fez parte e, por outro lado, com as tentativas actuais da sua descontratualização, pela sua assimilação a outras fórmulas de comunhão de vida, mas, também, de descontextualização, pela alteração do binómio natural das pessoas, originariamente, hábeis a contraí-lo, associadas à desformalização do divórcio e à sua frequência redobrada, já bem longe da natureza publicista e sacramental antecedentes, enquanto realidades a tomar em consideração na abordagem da questão do divórcio.
Da exposição de motivos do projecto de lei nº 509/X, que contempla as alterações ao regime jurídico do divórcio constam como fundamentos do casamento, nas sociedades actuais, a liberdade de escolha pelo casamento [a], a igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges [b], a afectividade no centro da relação [c] e a plena comunhão de vida, cooperação e apoio mútuo na educação dos filhos, quando os houver [d].
Do princípio da liberdade decorre que ninguém deve permanecer casado contra a sua vontade, incluindo quando considerar que houve quebra do laço afectivo, devendo o cônjuge que for tratado, de forma desigual, injusta ou de forma a atentar contra a sua dignidade, poder terminar a relação conjugal, mesmo sem a vontade do outro, sendo certo que a invocação da ruptura definitiva da vida em comum deve constituir fundamento suficiente para a declaração do divórcio, não como sinal de facilitismo, mas antes de valorização de uma conjugalidade, feliz e conseguida, potencialmente, repetível.
Por outro lado, os movimentos de sentimentalização, individualização e secularização, no âmbito da vida conjugal, de que a dimensão afectiva, tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos, é o seu núcleo fundador e central, conferem à conjugalidade particular relevo, mal se tolerando, pois, que o casamento se possa tornar fonte persistente de mal-estar, e que, no caso de reiterados desentendimentos no matrimónio, as pessoas sejam obrigados a manter a instituição, a qualquer preço.
(…).
As alterações introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que consubstanciam a aproximação do regime nacional às opções legislativas europeias ao por fim à declaração de culpa no divórcio e às consequências patrimoniais negativas à mesma associadas, face ao regime de sanções do ilícito conjugal refletidas sobre os efeitos do divórcio, atento o preceituado pelos artigos 1790º a 1792º e 2016º, do CC, na redacção do DL nº 496/77, de 25 de Novembro, vieram dotar o regime legal de maior flexibilidade e a situação dos cônjuges de maior segurança e previsibilidade, ao contrário da situação anterior, dotada de rigidez e aleatoriedade.(…)».
A questão colocada no recurso tem assim a ver com a delimitação e definição do âmbito da alínea d) do art. 1781º do CC.
É indiscutível que a nova lei adoptou claramente a ideia do divórcio-consumação ou divórcio-falência, ao afirmar o princípio de que a dissolução do casamento pode sempre fundar-se na ruptura definitiva do casamento.
E também não sofre discussão que a previsão da mencionada alínea d) não comporta o pedido de divórcio apenas por vontade unilateral e infundamentado de um dos cônjuges, tendo de estar demonstrados factos que consubstanciem à luz da normalidade das relações entre duas pessoas, que se verifica uma ruptura na comunhão de vida entre elas.
Assim, «o preenchimento do conceito indeterminado “ruptura definitiva do casamento” implica que não se esteja perante factos banais e esporádicos, mas é suficiente que se esteja perante factos que demonstrem o comprometimento consolidado da vida em comum, permitindo a lei que o causador dessa rutura possa pedir com base nesses factos o divórcio.»[6]
Acompanhando, de novo, o citado Acórdão do STJ de 09.02.2012: “Efectivamente, a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, limitou-se a aprofundar o modelo “moderno” de casamento, por contraposição ao seu modelo “tradicional”, modelo esse que “desvaloriza o lado institucional e faz do sentimento dos cônjuges, ou seja, da sua real ligação afectiva, o verdadeiro fundamento do casamento”, que passa a ser “tendencialmente”, ou, no limite, antes que uma “instituição”, “uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e a sua realização pessoal” ideia que justifica e propugna a dissolução jurídica do vínculo matrimonial quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, ele se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e, sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.”
Na sentença recorrida entendeu-se que a factualidade provada não integrava a previsão da al. a) do art. 1781º do CC, por não se ter provado a separação de facto por um ano consecutivo, até à propositura da acção.
Para tanto, convocou-se o Acórdão da Relação do Porto de 29.03.2011 (Guerra Banha)[7], e afastou-se o entendimento de alguma jurisprudência[8], segundo a qual a invocação do abandono do lar com não regresso, nada mais é, também, do que a alegação da separação de facto, integradora da mesma causa de pedir, podendo o tribunal, ao abrigo do artigo 664º do CPC, qualificar esse facto como violação do dever de coabitação ou, se decorreu o tempo necessário, como causa de separação de facto, ser atendível na decisão o prazo de separação de facto que se completou na pendência da lide, face ao principio da actualidade da decisão constante do artigo 663º CPC.
A primeira questão que se coloca é, porém, a de saber se a ruptura definitiva do casamento pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos ou antes se os factos passíveis de integrar as previsões das alíneas a) a c) do art. 1781º, não podem ser considerados para esse efeito.
Numa visão formalista podíamos ser tentados a considerar que tendo os factos sido alegados para integrarem a previsão da al. a) do art.1781º – separação de facto há mais de um ano – e não se provando integralmente essa factualidade, designadamente por não se ter demonstrado a separação com essa duração, estava afastada a possibilidade dessa factualidade ser considerada para integrar a previsão da al. d) do mesmo artigo.
No entanto, funcionando a al. d) como uma “cláusula geral”, entendemos que não se justifica uma interpretação que comporte essa exclusão.
Com efeito, «não há fundamento legal que impeça que uma situação de separação de facto por período não apurado possa ser valorada, para se aferir se existe ou não uma ruptura do casamento, o que é relevante é que os factos provados sejam graves e reiterados e demonstrativos que objectivamente e com carácter definitivo deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.
Quando essa separação tem a duração de 1 ano consecutivo, o legislador presume iruis et de iure que a ruptura definitiva do casamento se consumou, não sendo necessário provar outros factos mas da não prova do decurso desse prazo não se pode tirar a ilação oposta, ou seja, que não há ruptura definitiva.»[9]
In casu provou-se que autora e réu contraíram casamento em 9 de Dezembro de 1990, e que em Junho de 2009 a autora deixou de viver na casa onde até então vivia com o réu.
Para além disso, ficou também provado que a autora deixou de manter o propósito de restabelecer a relação conjugal com o réu.
Verificamos, pois, que a situação de abandono da casa de morada de família por parte da autora, mantém-se desde Junho de 2009 e, à data da instauração da acção de divórcio – 5 de Fevereiro de 2010 -, não podia ainda ser invocada como fundamento autónomo para fundar a ruptura do casamento com base na separação de facto e o consequente pedido de decretação do divórcio. Porém, à data da realização da audiência de discussão e julgamento (13.03.2012), autora e réu já estavam separados de facto há 1 ano e oito meses.
Sem entrar na polémica quanto à questão de saber se é necessário que o prazo de um ano de separação de facto tem de estar completado à data da propositura da acção ou pode ser atendido quando se complete antes do encerramento da audiência de julgamento, nos termos do art. 663º n.º1 do CPC, o que releva é que estamos perante uma prolongada violação do dever de coabitação em todas as suas vertentes e, por outro lado, dela decorre que os cônjuges deixaram de assumir em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram, ou seja, não cumprem também o dever de cooperação.
Acresce que por parte da autora está demonstrada uma vontade irreversível de colocar um fim ao seu casamento.
Estando nós perante um casamento celebrado há mais de 20 anos, havendo neste momento dois filhos maiores[10] e estando já reguladas as responsabilidades parentais relativamente ao filho menor, podemos concluir que se encontra definitivamente comprometida e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum entre autora e réu.
Da referida factualidade decorre que o casamento deixou de constituir o centro da realização pessoal da autora e que deixou de haver afecto entre os cônjuges, que têm de ser recíprocos.
Assim, apesar da autora não ter logrado provar que a causa remota da falência do casamento tenha sido o comportamento do réu, certo é que, como se viu, o legislador deixou de preservar o casamento enquanto instituição, dando prevalência à liberdade dos cônjuges e quando se constate uma situação objectiva e socialmente aceite como de ruptura do casamento, independentemente das causas, o tribunal deve decretar o divórcio[11].
Tem-se, pois, como demonstrado o fundamento de divórcio do art. 1.781º, al. d), do Código Civil, com a consequente procedência do recurso.

Sumário (art. 713º, nº 7, do CPC)
I - O actual regime do divórcio, instituído pela Lei n.º 61/2008, de 31.10, eliminou a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento do outro cônjuge e alargou os fundamentos objectivos da ruptura conjugal através da cláusula geral prevista no artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil.
II – A ruptura definitiva do casamento a que alude a mencionada alínea d) pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos, incluindo os passíveis de preencher as previsões das alíneas a) a c) do mesmo preceito sem o período temporal neles previsto, desde que sejam graves, reiterados e demonstrativos de que, objectiva e definitivamente, deixou de haver comunhão de vida entre os cônjuges.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida e decreta-se o divórcio entre a autora e o réu, com efeitos reportados à data da cessação da coabitação (Junho de 2009).
Custas pelo réu, em ambas as instâncias, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Guimarães, 14 de Março de 2013
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Rita Romeira
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[1] É certo que com a petição inicial foram juntas, certamente por lapso, duas cópias do assento de nascimento do filho Tiago e uma do filho André, sem que tivesse sido junta nenhuma do filho Cristiano (cfr. fls. 13-15). Porém, como se vê da certidão de fls. 81 a 85 relativa aos autos de regulação das responsabilidades parentais em que foi requerente a aqui autora e requerido o aqui réu, pode-se constatar a existência daquele filho, tal como alegado no artigo 2º da petição inicial (cfr. cláusula quinta do acordo obtido na conferência de pais dos aludidos autos).
[2] Nesta concepção, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório.
[3] A jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de se firmar um entendimento mais abrangente no que se refere aos poderes de alteração da matéria de facto pela Relação, considerando-os com a mesma amplitude que a dos tribunais de 1ª instância. Nessa medida, e no que se refere à questão da convicção, já não estará em causa cingir apenas a sua actividade de apreciação ao apuramento da razoabilidade da convicção do julgador da 1ª instância, mas antes formar a sua própria convicção nos elementos probatórios disponíveis nos autos (cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 16.12.2010, proc. 2401/06.1TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt).
[4] Embora a recorrente não tenha indicado expressamente este nº 3, não sofre qualquer dúvida que é este o “quesito” em questão, pois é aquela que se refere à agressão do réu sobre a autora.
[5] Proc. 819/09.7TMPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Ac. da RP de 14.02.2013 (Leonel Serôdio), proc. 999/11.1TMPRT.P1, in www.dgsi.pt.
[7] Proc. 1506/09.1TBOAZ.P1, in www.gsi.pt.
[8] De que são esteio os Acórdãos do STJ de 3 de Novembro de 2005 (Lucas Coelho), proc. 05B2266 e de 14.11.2007 (Sebastião Póvoas), proc. 07A297, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[9] Cfr. o citado Ac. da RP de 14.02.2013.
[10] O Cristiano, nascido em 29 de Maio de 1993, atingiu a maioridade no decurso da acção.
[11] Neste sentido, além do citado Ac. da RP de 14.02.2013, ver os Acs. da RL de 15.05.2012 (Dina Monteiro), proc. 1017/09.5 TMLSB.L1-7 e da RC de 07.06.2011 (Fonte Ramos), proc. 394/10.0TMCBR.C1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.