Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
418/14.1T8VNF-G.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: REMIÇÃO
NULIDADE
FIM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - O direito de remição constitui um verdadeiro direito de preferência que tem por finalidade a protecção do património familiar, querendo evitar-se que os bens saiam para fora da família.
2 - Atenta essa finalidade, poderá ocorrer a verificação de fraude à lei, por parte do remidor, quando se prove que o exercício de tal direito, por parte deste, não teve como intuito a preservação do bem na família, mas, antes, qualquer outro fim diferente desse, designadamente, a proteção de interesses de terceiro através da utilização de um familiar como testa-de-ferro.
3 – Caso em que se verificará a nulidade do acto resultante do exercício do direito de remição.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 418/14.1T8VNF-G.G1
2.ª Secção Cível – Apelação em separado
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 535)
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO
Por apenso ao processo de insolvência de António S e Maria F, correm autos de liquidação onde, em acto de abertura de propostas realizado a 14/03/2016, foi decidido proceder à adjudicação das verbas n.ºs 6, 7, 8 e 9 à “Caixa C”, pelos valores de € 20.000,00, € 110.000,00, € 40.000,00 e € 9.000,00, respetivamente.

Por requerimento de 24/03/2016 apresentou-se a remir a verba n.º 7 (para além de outras adjudicadas a terceiros) Mariana B, filha dos insolventes, tendo junto, para o efeito, cheque visado, no valor de € 360.200,50, de conta titulada por Isolina P.
A “Caixa C” apresentou requerimento, através do qual solicitou que fosse recusado o direito de remição sobre a verba n.º 7, por simulado ou, caso assim não se entenda, se recuse essa remição por abuso de direito ou, caso assim não se entenda, se anule o ato de aceitação da proposta da requerente quanto às verbas seis a nove, por erro sobre os motivos.

Foi proferido despacho que indeferiu os pedidos da recorrente e admitiu o exercício do direito de remição por parte de Mariana B.

Desse despacho recorreu a “Caixa C”, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1.ª – O direito de remição está relacionado especificamente com um familiar direto dos insolventes, só pode ser exercido por este e tem necessariamente que corresponder à realidade, sob pena de se frustrar o fim próprio desse direito – vd. artigo 842.º CPC ex vi artigo 17.º CIRE.
2.ª – A recorrente alegou que a filha dos insolventes não dispõe do valor necessário para o exercício do direito de remição da verba n.º 7, nem, na realidade, a quis adquirir para si, tendo servido apenas de “testa-de-ferro” de Isolina P – vd. artigos 240.º, 286.º e 289.º CC.
3.ª – Impunha-se ao tribunal a produção das provas indicadas pela recorrente, a fim de ficar demonstrada a simulação do exercício do direito de remição e assegurar os interesses de todas as partes – vd. artigo 341.º CC e n.º 1 artigo 154.º CPC.
De harmonia com as razões expostas deve conceder-se provimento à apelação e por tal efeito:
- revogar-se o douto despacho proferido na parte em que indefere o pedido aduzido pela recorrente de não admissão, por simulação, do exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes, quanto à verba n.º 7;
- determinar-se a produção das provas requeridas pela recorrente a tal respeito.
Assim deliberando este tribunal superior fará Justiça.

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se podia ser exercido o direito de remição nas condições em que o mesmo foi admitido, ou devia ter sido admitida prova da simulação.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O despacho recorrido, na parte que contende com a ora apelante, é do seguinte teor:
“A "Caixa C", proponente das verbas n.ºs 6 a 9, através do requerimento de fls. 182 e ss., veio peticionar que se recuse o exercício do direito de remição por parte de Mariana B, com reporte à verba n.º 7, por simulação ou, caso assim não se entenda, por abuso de direito. Subsidiariamente, para o caso de se admitir o exercício do direito de remição quanto à verba n.º 7, peticiona que se anule o acto de aceitação da sua proposta para a aquisição das verbas n.ºs 6,8 e 9, por erro sobre os motivos.
Ora, tal pretensão não pode merecer o acolhimento deste tribunal. Vejamos porquê.
A venda mediante propostas em carta fechada foi regularmente decidida, e, bem assim, devidamente publicitada e anunciada.
Nessa medida, os credores, designadamente a credora requerente, tomaram pleno conhecimento de que as verbas iam ser vendidas individualmente, verba a verba, não havendo notícia de que se tenham insurgido contra tal decisão de venda.
Por conseguinte, não é aceitável que a credora requerente, agora que teve conhecimento do exercício de direito de remição, venha argumentar que as verbas n.ºs 6 a 9, a que se propôs, constituem uma unidade predial, e que a aquisição da verba n.º 7 pela remidora traduz uma desvalorização de 50% dos imóveis, isoladamente.
A credora requerente tinha conhecimento das condições de venda ao momento da abertura de propostas em carta fechada, e, bem assim, apresentando-se regularmente patrocinada e como entidade bancária que é, não podia desconhecer a possibilidade efectiva de as verbas n''s 6 a 9 serem vendidas a compradores distintos, dado que as verbas iam ser vendidas, como o foram, isoladamente.
Inexiste assim erro sobre os motivos do negócio (que, de todo o modo, não constitui causa para anulação de venda, nos termos previstos no n.º 1 do art. 838.º do Código de Processo Civil), sendo certo que quanto ao alegado abuso de direito de remição por parte de Mariana B, é notória a sua não verificação.
Como é óbvio a remidora não se apresenta no processo para tutelar e defender os interesses dos credores, designadamente da "Caixa C", e, como qualquer potencial adquirente dos bens em venda, pretende adquiri-los pelo preço mais baixo.
A remidora (ainda que conhecedora das alegadas circunstâncias enunciadas pela credora requerente) limitou-se a agir, nos termos legais, de harmonia com as exigências que lhe eram impostas, entregando cheque visado à Sra. Administradora de Insolvência em montante correspondente ao valor do preço global pelo qual foram vendidos os bens sujeitos a alienação.
Por outro lado, a alegada circunstância de a remidora não ter capacidade económica para o exercício do seu direito de remição é absolutamente inócua, porquanto a remidora entregou cheque visado à Sra. Administradora de Insolvência correspondente ao valor do preço global pelo qual foram vendidos os bens sujeitos a alienação. Ou seja, cumpriu este requisito legal da remição, sendo irrelevante, para este efeito (admissibilidade e legalidade do direito de remissão), a proveniência do dinheiro.
Do mesmo modo, o alegado facto de a remidora não querer para si a verba n.º 7 é contrariado pelos actos objectivos praticados, ou seja, pelo facto de a mesma ter exercido o seu direito de remição também com referência a tal verba, sinal que está efectivamente interessada em assumir a propriedade do bem, seja em benefício de interesse seu ou de outrem, pois que tal circunstância é absolutamente irrelevante para o efeito (admissibilidade e legalidade do direito de remissão). Não está minimamente demonstrada a simulação de negócio, tanto mais que a credora requerente não logra sequer relevar quem é o alegado terceiro com quem a remidora agiu em conluio.
Em suma, à Sra. Mariana B, enquanto descendente dos insolventes, assiste-lhe o direito a remir os bens em venda, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
A referida descendente dos insolventes exerceu tal direito e procedeu ao pagamento do preço global pelo qual foi efectuada a venda das verbas com relação às quais exerceu o seu direito de remição, e, bem assim, liquidou a indemnização legalmente devida nos termos do n.º 2 do art. 843.º do Código de Processo Civil, com respeito à verba n.º 11.
Acresce que, exerceu tal direito tempestivamente, porquanto, tendo a venda ocorrido mediante propostas em carta fechada, ainda não havia sido emitido o título de transmissão dos bens.
Nessa conformidade, uma vez que foram observadas todas as exigências legalmente previstas para o exercício do direito de remição, inexiste fundamento legal para não admitir Mariana B a exercer tal direito.
Pelo exposto, sem necessidade de produção das provas orais arroladas, decide-se:
- Indeferir o pedido aduzido pela credora "Caixa C" de não admissão, por simulação, do exercício do direito de remição quanto à verba n.º 7;
- Indeferir o pedido aduzido pela "Caixa C" de não admissão, por abuso de direito, do exercício do direito de remição quanto à verba n.º 7;
- Indeferir o pedido subsidiário aduzido pela "Caixa C" de anulação do acto de aceitação da proposta apresentada pela mesma quanto às verbas nºs 6 a 9.
- Admitir o exercício do direito de remição por parte de Mariana B com relação às verbas relativamente às quais se apresentou a remir;
- Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, autoriza-se a Sra. Administradora de Insolvência a adjudicar à remidora as verbas com relação às quais exerceu o seu direito de remição, nos termos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art. 827.º do Código de Processo Civil; e,
- Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, autoriza-se a Sra. Administradora de Insolvência a adjudicar aos proponentes respectivos as demais verbas alienadas, nos termos previstos nos n.ºs 1 e 2 do art, 827.º do Código de Processo Civil.
Sem custas, ante a simplicidade do decidido.
Notifique, sendo a Sra. Administradora de Insolvência para, oportunamente, proceder em conformidade”.

Os factos a considerar para a decisão resultam do supra exposto.

A apelante restringiu o seu recurso à apreciação da questão da simulação do exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes, Mariana B.
Alegou, para o efeito que a filha dos insolventes tem 28 anos de idade, vive com os pais e não dispõe de emprego remunerado, bem como não dispõe de quaisquer rendimentos ou valores que lhe permitam adquirir para si o imóvel da verba n.º 7. Mais alegou que o cheque que apresentou para o efeito do direito de remição não é titulado por si, nem envolve dinheiro que lhe pertença, pois esta, na realidade, não quis, nem quer, adquirir para si esse imóvel, servindo apenas de testa de ferro de terceiro que não poderia exercer o direito de remição, pelo que o exercício desse direito não corresponde à vontade real da remidora, tendo sido previamente combinado entre ela e terceiro, com intuito de enganar a requerente.

Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 842.º do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 17.º do CIRE): «Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda».
Este «instituto incidental da remição analisa-se na faculdade de, potestativamente, determinados interessados poderem fazer-se substituir ao adjudicatário ou ao comprador, na preferencial aquisição de bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido» - cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 05/06/2008, in www.dgsi.pt/jtrg.
Quanto à natureza do direito de remição, veja-se Alberto dos Reis, in «Processo de Execução», Vol. II, pág. 477: “Analisando o art. 912 do C.P.C., verifica-se que o direito de remição é nitidamente um benefício de carácter familiar.
Dá-se ao cônjuge do executado e aos descendentes e ascendentes deste o direito de adquirir para si os bens adjudicados ou vendidos, pelo preço da adjudicação ou da venda. Na sua actuação prática, o direito de remição funciona como um direito de preferência: tanto por tanto os titulares desse direito são preferidos aos compradores ou adjudicatários. A família prefere aos estranhos. Porque admitiu a lei esta preferência a favor da família? A razão é clara. Quis-se proteger o património familiar; quis-se evitar que os bens saíssem para fora da família”.
Como ensina, Lebre de Freitas in, “A Acção Executiva” à luz do Código revisto, 3ª ed., pág. 281 e 282, «a lei processual concede ao cônjuge e aos parentes em linha recta do executado um especial direito de preferência, denominado direito de remição, o qual, tendo por finalidade a protecção do património familiar, evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado».
Não há dúvidas que a pessoa que se apresentou a remir, sendo filha dos insolventes, o pode fazer, fê-lo no prazo que a lei consigna e procedeu ao depósito devido – artigos 842.º, 843.º, n.º 1 a) e n.º 2 do Código de Processo Civil – pelo que, formalmente, estão cumpridos os pressupostos necessários para o exercício do direito de remição.
A questão que se coloca é a de saber se o fez em fraude à lei (não tanto se houve simulação, apesar dos seus pressupostos poderem estar presentes na forma como a apelante alega os factos), considerando, como supra referimos, que a finalidade do direito de remição entronca na proteção da família, é um benefício de caráter familiar, através do qual se quis evitar que os bens saíssem para fora da família.
Ora, a provar-se que o exercício do direito de remição foi, apenas, uma manifestação aparente e que, de facto, o bem remido não continuará na esfera patrimonial da família, tendo sido o exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes apenas um subterfúgio usado para que o bem passasse para o domínio de terceiro, poderemos, então, equacionar a verificação de fraude à lei, com a consequente nulidade do acto resultante do exercício do direito de remição.
Ou seja, face á alegação da apelante, sustentada em factos que, com alguma probabilidade, a indiciam, haverá que indagar se a remidora usou o direito, não para manter o bem no património da família, mas para qualquer outro fim não protegido pela norma em questão.
Neste sentido, veja-se Acórdão do STJ de 13/04/2010 (processo n.º 477-D/1996.L1.S1), relatado pelo Conselheiro Urbano Dias, disponível em www.dgsi.pt, que acrescenta “A ilicitude, no caso, verificar-se-ia, precisamente, se a finalidade do instituto da remição tivesse sido usada para fins diferentes dos assinalados (…) De qualquer forma, temos como certo que a fraude à lei “é uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 3ª edição, página 696)”.
Não se trata, portanto, de verificar se estão reunidos os pressupostos da simulação, mas apenas se, no caso concreto, houve fraude à lei por se ter usado o instituto da remição para fins diferentes dos por ele protegidos.

Do que fica dito resulta a procedência da apelação, com a necessária revogação do despacho recorrido, na parte em que indeferiu o pedido da apelante de não admissão do exercício do direito de remição, relativamente à verba n.º 7, devendo determinar-se a produção das provas requeridas pela apelante, a fim de se averiguar se houve fraude à lei, nos termos supra referidos.

Sumário:
1 - O direito de remição constitui um verdadeiro direito de preferência que tem por finalidade a protecção do património familiar, querendo evitar-se que os bens saiam para fora da família.
2 - Atenta essa finalidade, poderá ocorrer a verificação de fraude à lei, por parte do remidor, quando se prove que o exercício de tal direito, por parte deste, não teve como intuito a preservação do bem na família, mas, antes, qualquer outro fim diferente desse, designadamente, a proteção de interesses de terceiro através da utilização de um familiar como testa-de-ferro.
3 – Caso em que se verificará a nulidade do acto resultante do exercício do direito de remição.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, na parte em que indeferiu o requerimento da apelante para que não fosse admitido o direito de remição por parte da filha dos insolventes e determinando-se o prosseguimento do incidente com a produção das provas que se entenderem pertinentes (vide requerimento de produção de prova) para averiguação de eventual fraude à lei no exercício do direito de remição.
Sem custas.
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Guimarães, 24 de novembro de 2016