Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
583/20.9T8MDL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ANULAÇÃO
ERRO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Quando no recurso seja impugnada a decisão da matéria de facto, o recorrente deve proceder à identificação clara e rigorosa dos meios probatórios sobre os quais pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação, sob pena de rejeição do recurso sobre a matéria de facto.
2 – Assim, deve especificar, relativamente a cada ponto de facto que considera incorretamente julgado, os concretos meios probatórios que impunham uma decisão diversa da recorrida. Caso pretenda invocar provas gravadas, o recorrente deve indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso ou transcrever os excertos que considera relevantes para uma decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
3 – Caso o comprador de um veículo automóvel usado pretenda exercer qualquer direito previsto no regime jurídico resultante do Decreto-Lei n° 67/2003, de 08 de abril, cabe ao autor a alegação e prova dos factos que consubstanciam a noção de consumidor, caso pretenda exercer os seus direitos nessa qualidade.
4 – Em ação de anulação de contrato de compra e venda com fundamento em erro induzido por dolo (no que respeita à quilometragem do veículo vendido), o comprador deve demonstrar os seguintes requisitos:
a) que o declarante esteja em erro;
b) que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) que o declaratário ou terceiro haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.
d) que o erro foi essencial para o declarante formar a vontade de celebrar o contrato ou de o celebrar com determinado conteúdo (no fundo, o declarante se soubesse a verdade não contrataria ou pelo menos não contrataria com aquele conteúdo).
5 – Não tendo demonstrado um comportamento doloso dos réus, o autor não tem direito à anulação do contrato com fundamento em erro provocado por dolo.
6 – Numa situação de simples erro aquando da compra de um veículo em 26.07.2017, em que o comprador teve em 18.05.2020 conhecimento do elemento sobre que incidiu o erro e intentou a ação em 05.12.2020, verifica-se a caducidade dos direitos que se propunha exercer.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, pedindo que «se[jam] os ora Réus condenados a:
1- Solidariamente, proceder à restituição ao ora Autor da quantia por este paga no valor de € 23.500,00 (vinte e três mil e quinhentos euros), pela aquisição do veículo automóvel em questão nos presentes autos, o qual, lhes será devolvido, considerando-se assim, o negócio, entre ambos, celebrado, anulado.
2- Se assim não for entendido, deverão os ora Réus pagar ao Autor, a quantia de € 26.474,40 (Vinte e seis mil quatrocentos e setenta e quatro euros e quarenta cêntimos) com IVA incluído, para a reparação do veículo em questão, nos termos sobreditos;
3- Pagar, ainda, solidariamente, ao ora Autor, a quantia de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), pela privação do uso do automóvel em questão;
4- Pagar, solidariamente ao ora Autor, a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais.»
Para o efeito, alegou ter comprado aos Réus, em 26.07.2017, um veículo automóvel cujo conta-quilómetros indicava 85.000 km, pelo preço de € 23.500,00, que em 15.05.2020, quando o veículo estava a circular, o motor aqueceu de rompante e “gripou”, por “cansaço”, atenta a sua imensa rodagem, importando a sua reparação € 26.474,40.
Alega que investigou as razões do sucedido, tendo concluído que o veículo possuía em 29.07.2013 um total de 142.532 km e que aquando da sua venda ao Autor, em 2017, teria pelo menos, 430.596 km, ao invés dos indicados 85.000 km, o que se ficou a dever ao facto de os Réus terem subtraído 345.596 km à viatura em questão, mediante a adulteração do seu quadrante, com o intuito de facilitar a sua venda ao Autor.
Sustenta que a situação gerou despesas, danos não patrimoniais e privação do uso do veículo no valor de € 7.200,00, cujo ressarcimento peticiona.
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Os Réus contestaram, invocando a caducidade do direito do Autor, por não ter denunciado à Ré vendedora a existência de defeito no prazo de 30 dias após o conhecimento da sua alegada verificação, negando ter efetuado qualquer adulteração da quilometragem do veículo, e que os eventuais danos no motor, são única e exclusivamente imputáveis à atuação do Autor, que fez circular o veículo, por tempo indeterminado, com temperatura excessiva.
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1.2. Após a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, lavrou-se sentença, a julgar a ação improcedente e a «absolver os Réus BB e CC, dos pedidos realizados pelo Autor AA nos presentes autos.»
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1-Diremos em nosso humilde entendimento que a sentença proferida julgou incorretamente determinados pontos de facto fulcrais para uma boa decisão da causa, em contravenção com a prova, quer testemunhal quer documental existente nos autos, além de que, enferma de erro na interpretação e determinação da norma jurídica aplicável, pois bem;
2-É de nosso entender que os factos provados sob os pontos 5.1.6, 5.1.7 e 5.1.8, bem como os factos não provados 5.2.1, 5.2.2, 5.2.3, 5.2.7, 5.2.8, 5.2.10 e 5.2.12 foram incorretamente julgados, sendo que, se confrontados entre eles, enfermam de notórias contradições.
3-A sentença proferida considera como provado no seu ponto 5.1.6., que a “Quilometragem do veículo foi um fator decisivo para a sua aquisição pelo Autor”, onde se presume que decorreram conversações sobre a quilometragem.
4-Contudo, infundadamente, considera a sentença ora recorrida no seu ponto 5.2.1, que não foi garantido pelos Réus ao Autor que a quilometragem não havia sido adulterada e que não ouve conversações nesse sentido, tal é contraditório entre si e desmunido de lógica.
5-Labora em erro igualmente a sentença recorrida ao considerar como não provado, no seu ponto 5.2.7, que “Foram subtraídos pelos Réus com um intuito doloso, cerca de 345.596,00 Km à viatura em questão, mediante a adulteração do seu quadrante, com o intuito de facilitar a sua venda, no caso ao Autor, o que efectivamente conseguiram”.
6-Existe prova nos autos de processo que indiciam o contrário, nomeadamente documental que indicia dolo dos Réus nas suas ações, a qual tinha implicitamente que ser valorada de maneira distinta.
7-Em concreto, a prova documental junta aos autos, tal como o “... vehicle history report” de fls. 17 a 25, a inspeção técnica periódica de fls. 51 a informação do IMT de fls. 52, a declaração aduaneira do veículo de fls. 53 e o ofício enviado pela ..., S.A. de fls. 68 a 70;
8-Estes documentos, demonstram efetivamente que o carro em apreço viu efetivamente a sua Quilometragem ser adulterada, mas mais grave ainda é o facto que se denota por conta da quilometragem apresentada em 26.09.2013, constante da Inspeção extraordinária, da categoria B e na Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) emitida em ../../2013, em concreto 69.281KM, face à quilometragem que o veículo possuía aquando da venda ao Autor, em Julho de 2017, sendo esta de 85.000,00 Km.
9-O veículo em apreço, que de Setembro de 2013 a Julho de 2017, teve três proprietários distintos mas só circulou 15.000,00 km, tal atenta contra as regras da lógica e da experiência e denota efetivamente que o veiculo viu a sua quilometragem ser nova e dolosamente adulterada antes de ser adquirido pelo Autor.
10-Este conjunto objetivo de acontecimentos denota efetivamente que os Réus munidos da referida documentação, tinham conhecimento da adulteração da quilometragem e que omitiram tal facto dolosamente ao Autor, com o intuito de o induzir em erro sobre o estado da viatura, tendo em vista a sua venda.
11-Isto porque, os Réus desde há mais de vinte anos que exercem a atividade mercantil de comerciantes automóveis sendo extensos e exímios conhecedores das práticas do ramo, o que implica que não pudessem ser indiferentes ao facto flagrante de em quatro anos o veículo ter três proprietários distintos e apenas 15.000,00 Km percorridos.
12-Em relação ao ponto 5.2.8 e 5.2.10 dos factos não provados, na verdade em face da prova junta aos autos e já referenciada, denotamos que os Réus eram sabedores da adulteração da quilometragem e sabiam implicitamente que vendiam um produto adulterado ao Autor, com elevada probabilidade de vir a ter um qualquer problema mecânico, o que veio a suceder, além de que, detêm plena consciência de que o seu artificio foi determinante na formação da vontade do Autor em adquirir a viatura.
13-No que ao facto não provado sob o ponto 5.2.12- “Por ordem dos Réus e com a concordância do Autor, o veículo foi enviado para reparação, numa oficina (Sr. DD) da sua confiança, sita na Rua ..., em ...”.
14-Discordamos por completo, é o próprio Réu CC, em sede de declarações de parte a assumir que encetou negociações extra judiciais com o Autor e que seria sua intenção assumir o custo da reparação da viatura, cuja intervenção seria feita em ....
15-Tal facto é igualmente confirmado pelo Autor, também em sede de declarações de parte num depoimento credível e assertivo, bem como, pelas desinteressadas testemunhas, EE o qual afirma que a viatura esteve na sua oficina e que iria ser reparada em ..., bem como, pela Testemunha FF, o qual afirma que levou a viatura a ... para ser arranjada no seu reboque.
16-No que ao direito diz respeito, afirmar que discordamos da norma jurídica empregue na decisão recorrida, na verdade o prazo a considerar para efeitos de caducidade será o do regime geral da anulabilidade, que no caso, pelo prescrito no artigo 287.º, n.º 1 do Código Civil é de um ano subsequente ao conhecimento da existência do vicio/defeito.
17-Isto porque, está em causa na demanda o um erro sobre o objeto do negócio, determinante na formação da vontade do Autor para a concretização do negócio, pelo que, não está estritamente em causa uma relação de consumo entre consumidor e vendedor, em que estamos perante a mera denúncia de um dado defeito.
18-Trata-se de uma relação jurídica abrangida pela lei geral civil, a qual tem implicitamente de ser regulada pelo regime jurídico aplicável aos vícios na formação da vontade na formação do negócio jurídico.
19-Ora, se o Autor teve conhecimento do defeito em 18/05/2020 e interpôs a presente ação (05/12/2020), diremos que o fez dentro do prazo de um ano de que dispunha para o efeito, pelo que deve ser declarada improcedente a exceção da caducidade.
20-No caso de assim não ser entendido, diremos então que mesmo que se considere uma relação de consumo, que em face da prova produzida como já exposto aquando da impugnação da matéria factual, o Autor denunciou de imediato o defeito da viatura imediatamente após o seu conhecimento, tendo inclusivamente o Réu confirmado tal facto em sede de tomada de declarações de parte.
21-Foi intenção do Réu assumir a reparação do defeito numa oficina em ..., tanto que por sua indicação o Autor mandou levar a mesma de reboque para o local indicado pelo Réu.
22-Porquanto diremos que não decorreu a prescrição operante por conta da falta de denúncia do defeito.
23-Em face do dito, no artigo art 5º-A, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 67/2003 de 08/04, é de nosso entendimento que suspendeu a procedência da prescrição da denúncia formal do defeito pelo período em que decorreu a negociação extra judicial em busca à resolução do litigio, a qual ocorreu até ao inicio de Novembro de 2022, pelo que de igual modo deve ser improcedente a exceção de caducidade por haver decorrido o prazo de dois meses para denúncia do defeito.
Nestes termos e nos melhores de direito, que Vossas Exas. muito doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso, revogando a Decisão, que absolvia os Réus do peticionado e condenando-os no mesmo, V. Exas. farão inteira justiça.»
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Os Réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, o Recorrente suscita as seguintes questões:

i) Erro no julgamento da matéria de facto;
ii) Se inexiste fundamento para considerar caducados os direitos exercidos pelo Autor;
iii) Se estão verificados os requisitos para ser declarada a anulação do contrato de compra e venda por dolo, restituído ao Autor o montante correspondente ao preço do veículo ou pagamento do custo em que importa a reparação, e indemnizado o mesmo pelos danos invocados.
***
II – Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«5.1.1. A Ré, BB, possui actividade iniciada em regime de IVA de comércio e reparação de veículos automóveis.
5.1.2. O Réu, CC, além de companheiro da Ré, desempenha as funções de colaborador e vendedor nas instalações onde esta exerce a sua actividade.
5.1.3. Neste seguimento os ora Réus, CC e BB, por si, no exercício da sua atividade mercantil, venderam ao Autor no mês de Julho de 2017, um veículo importado, com as seguintes características;
-Matrícula: ..-OB-..
-Marca: ...
-Modelo: C220
-Ano: 2011
-Combustível: Gasóleo
-Cor: Cinza
-Quilometragem: 85.000,00Km
5.1.4. De acordo com os conhecimentos do Autor nesta matéria, à data da sua aquisição, a viatura apresentava um bom estado geral de conservação, com pouca Quilometragem, no caso 85.000,00Km, bem como um preço apelativo, motivo pelo qual enveredou pela sua compra.
5.1.5. Asseguraram ainda, (…) que conheciam perfeitamente a sua origem e que a mesma provinha de um vendedor com o qual fazem inúmeros negócios há bastante tempo sem qualquer incidente a registar, frisando que todas as viaturas seriam de plena confiança e sem qualquer problema.
5.1.6. Nestes moldes (…) o Autor acabou por comprar a viatura, pelo final do mês de Julho do ano de 2017 (26/07/2017), à Ré BB pelo preço de € 23.500,00, a ser pago da seguinte forma: pela entrega de € 14.500,00 e o remanescente do preço acordado, mediante a entrega de um veículo de sua propriedade, marca ..., modelo ..., do ano de 2001, com a matrícula ..-..-RI, que as partes avaliaram em € 8.000,00 e, ainda, um motor ... avaliado em € 1.000,00. (artigo 8.º da PI e 17.º da contestação)
5.1.7. Até hoje, o Autor não procedeu à entrega à Ré do referido motor ..., para pagamento integral do preço acordado para a compra e venda (artigo 18.º da contestação)
5.1.8. O veículo pouco tempo depois de ter sido adquirido, levou uma bomba de água nova e de seguida, já depois de decorrido o período de garantia de um ano, um termóstato, pago pelo ora Autor, porquanto, de vez em quando, aquecia anormalmente.
5.1.9. Apresentava ainda certos ruídos no seu trabalhar e folgas na sua marcha, o Autor fez uso do automóvel (…) por sensivelmente pouco mais de dois anos e meio.
5.1.10. No dia ../../.... do ano de 2020, quando o Autor se dirigia para ..., (…) foi obrigado a parar, entre ... e o ..., por volta das 17h30m, dado que o motor aqueceu de rompante e sem pré-aviso e começou de imediato a expelir fumo branco de modo intenso pelo capôt.
5.1.11. Neste seguimento o Autor chamou um reboque, e após o diagnóstico efectuado junto da oficina “EMP01...” de EE, sita na Zona Industrial ..., foi-lhe dito que o motor “gripou”, por “cansaço” (…).
5.1.12. De modo a reparar o veículo, era preciso a substituição do motor e seus componentes directos como injectores e bombas injectoras, cujo custo se cifra por defeito na ordem dos € 26.474,40 (Vinte e seis mil quatrocentos e setenta e quatro euros e quarenta cêntimos) com IVA incluído, ou o seu total recondicionamento, o qual representa similarmente um custo consideravelmente elevado,
5.1.13. Após o referido orçamento o Autor, em alerta e sobressalto pelo facto de não ser comum um motor com as características do que possuía a viatura adquirida ter gripado sem pré-aviso, resolveu investigar e pedir informações online no site “...”, do qual resultou um relatório com o histórico internacional do veículo.
5.1.14. No aludido relatório, datado de 18/05/2020, constatou o Autor (…) que a viatura que adquiriu aos Réus em Julho do ano de 2017 com 85.000,00Km, possuía na verdade numa intervenção realizada no país de origem num concessionário da marca ..., em 29 de Julho de 2013, um total de 142.532,00Km.
5.1.15. O Autor circulou no mesmo por 52.000,00 Km (…) .
5.1.16. A Quilometragem do veículo foi um fator decisivo para a sua aquisição pelo Autor.
5.1.17. O veículo em questão, (…) foi enviado para reparação, numa oficina (Sr. DD) da sua confiança, sita na Rua ..., em ..., por onde permaneceu, entre 29/07/2020 e 23/09/2020, sem que tenha sido reparado;
5.1.18. Para tal o Autor contratou os serviços de reboque da empresa “EMP02...”, com escritório na Rua ..., da Zona Industrial ..., a quem pagou a quantia de € 246,00 (duzentos e quarenta e seis euros) com IVA incluído, para transportar o seu veiculo automóvel de ... para ... em 29/07/2020, assim como, decorrido o período de tempo referido, teve que pagar novamente o mesmo serviço para recolha do veículo em questão e transporte, em 23/09/2020, para a garagem da casa de habitação do ora Autor, sita na Rua ..., ..., ..., ..., ....
5.1.19. Encontrando-se assim, o veículo automóvel em questão, nesta data, por reparar (….)
Da contestação.
5.1.20. À data da aquisição do veículo pela Ré já ao mesmo havia sido atribuída matrícula portuguesa, atribuição da competência da Direção Geral das Alfândegas, que exige, para o efeito, a submissão do veículo a uma inspeção extraordinária, da categoria B, pela qual procedem à observação e verificação dos elementos de todo os sistemas, componentes, acessórios e unidades técnicas do veículo.
5.1.21. Tal inspeção foi realizada ao veículo em 26.09.2013, no CIT - Centro de Inspecções Técnicas a Veículos, sito em ..., apresentando o conta-quilómetros, à data, 69.281 Km, também da referida Declaração Aduaneira do Veiculo (DAV) para circulação, emitida em ../../2013 dela constam, como quilómetros do veículo 69.281Km.
5.1.22. Sucede que, desde que o veículo foi legalizado em Portugal, no ano de 2013, e até ao momento em que foi adquirido pela aqui Ré (julho de 2017), teve anteriormente três proprietários, tendo-o a Ré adquirido à sociedade EMP03..., UNIPESSOAL, LDA, NIPC ...90, com sede na Av. ..., em ...,
5.1.20. A presente acção deu entrada no dia 05/12/2020.»
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2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«5.2.1. No hiato temporal que antecedeu a compra, aquando da sua negociação, foi a todo o tempo garantido ao Autor pelos Réus CC e BB, que a viatura não teria tido a sua Quilometragem adulterada. (…)
5.2.2. Os Réus, afirmaram exaustiva e reiteradamente que o veículo automóvel estava “imaculado”, “como novo” e não teria qualquer defeito que lhe pudesse ser apontado, ao ponto de o Autor de facto acreditar convictamente que tal assim sucedia.
5.2.3. (…) atenta a reticência do Autor em adquirir viaturas importadas.
5.2.4. (…) mediante uma condução regrada e sem excessos que pudessem danifica-lo.
5.1.5. “EMP01...” de EE, sita na Zona Industrial ..., foi-lhe dito que o motor “gripou”, por “cansaço” atenta a sua imensa rodagem.
5.2.6. (…) o seu anterior proprietário faria uma média anual de 71.766,00 Km, pelo que a mesma aquando da sua venda ao Autor no ano de 2017, teria pelo menos, 430.596,00 Km.
5.2.7. Foram subtraídos pelos Réus com um intuito doloso, cerca de 345.596,00 Km à viatura em questão, mediante a adulteração do seu quadrante, com o intuito de facilitar a sua venda, no caso ao Autor, o que efectivamente conseguiram.
5.2.8. Bem sabendo os Réus que vendiam um produto adulterado ao Autor, com elevada probabilidade de vir a ter um qualquer problema mecânico, o que veio a suceder, dado que o motor gripou atenta a sua extensa utilização, na verdade, esgotou a sua vida útil.
5.2.9. O Autor (….) prestou uma pronta assistência e cuidada manutenção no período em que circulou com o mesmo 5.2.10. (…) e a vontade do autor foi determinada em prol de tal artifício fraudulento dos Réus.
5.2.10. (…) e a vontade do autor foi determinada em prol de tal artifício fraudulento dos Réus.
5.2.11. porquanto, o ora Autor não tem condições económico-financeiras, para proceder ao seu arranjo e na sua casa de habitação, a fim de evitar o pagamento do tempo de ocupação de espaço que é devido pela permanência em qualquer oficina, enquanto não for reparado.
5.2.12. (…) por ordem dos Réus e com a concordância do Autor, o veiculo foi enviado para reparação, numa oficina (Sr. DD) da sua confiança, sita na Rua ..., em ..., (….)
Da contestação
5.2.13. O negócio foi precedido de inúmeras conversações entre o vendedor (aqui Réu CC) e o Autor, das quais nunca decorreu terem sido, para este, decisivas quer a circunstância do veículo ser importado, quer mesmo a quilometragem da viatura (…).
5.2.14. (…) a quem, de resto, a Ré há mais de vinte anos adquire veículos para venda, sem que tenha tido qualquer queixa ou reclamação quanto aos mesmos.
5.2.15. (….) o Autor circulava com o veículo com temperatura excessiva, por algum tempo, não tendo o cuidado de, apesar dos sinais luminosos indicadores da alta temperatura, imobilizar de imediato o veículo.
5.2.16. O que nas palavras do Autor, dirigidas ao Réu, sucedeu pelo menos por três ou quatro vezes.
5.2.17. No dia 15 de Maio de 20200 foi a atuação do Autor, que mais uma vez não imobilizou de imediato o veículo apesar dos sinais luminosos o imporem, o que provocou um sobreaquecimento excessivo do motor, dai resultando, naturalmente, danos no mesmo.
5.2.18. (…), os eventuais danos no motor, são única e exclusivamente imputáveis à atuação do Autor, que fez circular o veículo, por tempo indeterminado, com temperatura excessiva.
5.2.19. Se o Autor, tivesse atuado com zelo e diligência, prestando atenção ao indicador de temperatura, atento aos sinais luminosos, como qualquer condutor habitual, e imobilizando de imediato o veículo, os danos no motor seriam mínimos.»
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2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
Segundo especifica na conclusão 2ª das suas alegações, o Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que concerne aos pontos 5.1.6, 5.1.7 e 5.1.8 dos factos provados e aos pontos 5.2.1., 5.2.2, 5.2.3., 5.2.7., 5.2.8., 5.2.10. e 5.2.12. dos factos não provados.
Com vista a poder apreciar a impugnação, procedemos à audição integral da gravação da audiência final e à análise de tudo quanto consta do processo, designadamente os documentos.
Na apreciação dos fundamentos do recurso relativamente aos pontos de facto objeto da impugnação, seguiremos a sistematização do Recorrente, ou seja, a ordem pela qual expõe os seus argumentos nas suas alegações.
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2.2.1.1. Pontos 5.1.6. (5.1.16.) dos factos provados e 5.2.1. dos factos não provados
Embora o Recorrente identifique o ponto 5.1.6. como sendo objeto de impugnação, labora em lapso material, pois pretendia referir-se ao ponto 5.1.16.
Isto porque na conclusão afirma que na sentença se «considera como provado no seu ponto 5.1.6., que a “Quilometragem do veículo foi um fator decisivo para a sua aquisição pelo Autor”», quando na verdade esse facto corresponde ao teor do ponto 5.1.16. Portanto, disse 5.1.6. quando pretendia dizer 5.1.16.

Posto isto, verifica-se que afinal o Recorrente não impugna a decisão proferida sobre o ponto 2.1.16., antes considera que o Tribunal a quo, por ter dado como provado aquele ponto, também devia ter julgado provado o ponto 5.2.1., ou seja, que:
«5.2.1. No hiato temporal que antecedeu a compra, aquando da sua negociação, foi a todo o tempo garantido ao Autor pelos Réus CC e BB, que a viatura não teria tido a sua Quilometragem adulterada.»
O argumento do Recorrente é este: se deu como provado que a quilometragem do veículo foi um fator decisivo para a sua aquisição pelo Autor, então deve presumir-se que «decorreram conversações sobre a quilometragem».
Sucede que estão em causa dois factos distintos e com base no primeiro não é admissível presumir a realidade do segundo. A quilometragem do veículo é um facto objetivo e pode ser um elemento relevante ou até essencial para o interessado formar a sua decisão sobre a aquisição do veículo. Mas a decisão de comprar é um evento do foro interno do comprador; o que se exterioriza é a vontade formada.
Assim sendo, do facto de a quilometragem ser um elemento decisivo para o Autor daí não decorre que tenham existido «conversações sobre a quilometragem», até porque o apuramento desta não resulta de conversações, mas sim da observação do que consta do conta-quilómetros.
Por outro lado, embora na motivação do seu recurso aluda que foi «o próprio Réu CC a assumir em sede de declarações de parte que o Autor lhe disse em conversações prévias à compra do veículo, que se iria certificar do histórico do veículo dado ser GNR reformado», verifica-se que não consta da ata da audiência final qualquer assentada referente à confissão de um tal facto pelo Réu CC. Repare-se que caso o Réu CC, aquando da negociação, tivesse garantido «a todo o tempo», «que a viatura não teria tido a sua quilometragem adulterada», essa confissão teria necessariamente de ser reduzida a escrito, como impõe o artigo 463º, nº 1, aplicável por remissão do artigo 466º, nº 3, parte final, ambos do CPC («O depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente»).
Acresce que o Recorrente não deu cumprimento ao ónus que lhe é imposto no artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC: não indicou com exatidão a passagem da gravação das declarações de parte do Réu CC em que este supostamente produziu a aludida afirmação, nem transcreveu o respetivo excerto.
Por isso, nessa parte, a consequência legal é a rejeição.
Termos em que improcede a impugnação.
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2.2.1.2. Ponto 5.2.7 dos factos não provados
Neste ponto o Tribunal recorrido considerou não provado que:
«5.2.7. Foram subtraídos pelos Réus com um intuito doloso, cerca de 345.596,00 Km à viatura em questão, mediante a adulteração do seu quadrante, com o intuito de facilitar a sua venda, no caso ao Autor, o que efectivamente conseguiram.»

O Recorrente sintetiza nas conclusões 5ª a 11ª os fundamentos pelos quais entende que este ponto de facto deve ser julgado provado:
- «6-Existe prova nos autos de processo que indiciam o contrário, nomeadamente documental que indicia dolo dos Réus nas suas ações, a qual tinha implicitamente que ser valorada de maneira distinta»;
- «7-Em concreto, a prova documental junta aos autos, tal como o “... vehicle history report” de fls. 17 a 25, a inspeção técnica periódica de fls. 51 a informação do IMT de fls. 52, a declaração aduaneira do veículo de fls. 53 e o ofício enviado pela ..., S.A. de fls. 68 a 70»;
- «8-Estes documentos, demonstram efetivamente que o carro em apreço viu efetivamente a sua Quilometragem ser adulterada, mas mais grave ainda é o facto que se denota por conta da quilometragem apresentada em 26.09.2013, constante da Inspeção extraordinária, da categoria B e na Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) emitida em ../../2013, em concreto 69.281KM, face à quilometragem que o veículo possuía aquando da venda ao Autor, em Julho de 2017, sendo esta de 85.000,00 Km.»
- «de Setembro de 2013 a Julho de 2017, teve três proprietários distintos mas só circulou 15.000,00 km», o que «atenta contra as regras da lógica e da experiência e denota efetivamente que o veiculo viu a sua quilometragem ser nova e dolosamente adulterada antes de ser adquirido pelo Autor».

Revistos os apontados meios de prova documental, conclui-se que não demonstram que os Réus adulteraram o conta-quilómetros (odómetro[1]) do veículo e muito menos que subtraíram 345.596 km, expressão quantitativa que não tem qualquer suporte probatório.
O documento denominado «... vehicle history report», que constitui o documento nº ... junto com a petição inicial, apenas demonstra o que se deu como provado no ponto de facto 5.1.14., ou seja, que o veículo, em 29.07.2013, foi intervencionado no seu país de origem, num concessionário da marca ..., e o odómetro registava um total de 142.532 km.
Sabe-se, através da declaração aduaneira do veículo (fls. 53), aquando da sua importação da ... para Portugal, que o veículo deu entrada no nosso país em 31.08.2013, que obteve a matrícula provisória a 27.09.2013, que o seu proprietário era GG e que o odómetro exibia então 69.281 km.
Por conseguinte, a adulteração ocorreu forçosamente entre a data em que o veículo foi sujeito a uma intervenção no seu país de origem – 29.07.2013 – e setembro de 2013 (27.09.2013), período em que os Réus nenhuma relação tinham com o veículo, pelo que imputar-lhes tal adulteração é algo que não tem a mínima correspondência nos elementos de prova existentes no processo. Aliás, está demonstrado (5.1.22.) que desde que foi importado da ... para Portugal e até ser adquirido pela Ré, em julho de 2017, o veículo teve anteriormente três proprietários, pelo que é destituído de qualquer fundamento sério a imputação aos Réus de uma adulteração anterior ao momento em que o veículo passou a estar na sua disponibilidade.
Pelo comprovativo da inspeção técnica periódica (fls. 51) realizada em 25.05.2015 apura-se que o odómetro do veículo marcava nessa data 72.847 km. Esse elemento mostra-se secundado pela informação prestada pelo IMT (fls. 52), onde também se verifica que em 25.07.2017 (um dia antes de concretizada a compra pelo Autor), o veículo foi submetido a inspeção e registava 85.568 km. No dia 27.07.2017, quando foi emitido pelos Réus o documento denominado «certificado de garantia automóvel» (doc. ... da p.i.) o odómetro marcava 85.765 km.
A comunicação enviada ao Tribunal pela ..., SA, de fls. 68 a 70, apenas demonstra as intervenções realizadas no veículo até 2013 e a quilometragem que então registava, sendo que no último registo, em 10.05.2013, o veículo havia percorrido um total de 127.332 km.
Também estes documentos não demonstram que tenha ocorrido qualquer adulteração do odómetro posterior à que resultava patenteada na declaração aduaneira do veículo, ocorrida em 2013. Se nem essa alegada posterior adulteração está demonstrada, por maioria de razão não está provada a sua autoria.
Daí que este ponto de facto não provado se deva manter nos seus precisos termos.
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2.2.1.3. Pontos 5.2.8. e 5.2.10. dos factos não provados
Estão agora em causa os pontos em que se considerou não provado:
- «5.2.8. Bem sabendo os Réus que vendiam um produto adulterado ao Autor, com elevada probabilidade de vir a ter um qualquer problema mecânico, o que veio a suceder, dado que o motor gripou atenta a sua extensa utilização, na verdade, esgotou a sua vida útil.»
- «5.2.10. (…) e a vontade do autor foi determinada em prol de tal artifício fraudulento dos Réus.»

Alega o Recorrente que «em face da prova junta aos autos e já referenciada, denotamos que os Réus eram sabedores da adulteração da quilometragem e sabiam implicitamente que vendiam um produto adulterado ao Autor, com elevada probabilidade de vir a ter um qualquer problema mecânico, o que veio a suceder, além de que, detêm plena consciência de que o seu artificio foi determinante na formação da vontade do Autor em adquirir a viatura

Como já referimos, os documentos invocados, cuja relevância probatória já apreciamos em 2.2.1.2., não demonstram que os Réus adulteraram o conta-quilómetros e nenhum elemento probatório permite concluir que sabiam da adulteração ocorrida no ano de 2013, numa altura em que nenhum contato tinham com o veículo, ou seja, quase quatro anos antes de passar a estar no seu domínio e de, subsequentemente, o terem vendido ao Autor.
Termos em que fenece a impugnação relativamente a estes dois factos não provados.
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2.2.1.4. Ponto 5.2.12. dos factos não provados
Neste ponto o Tribunal a quo julgou não provado:
«5.2.12. (…) por ordem dos Réus e com a concordância do Autor, o veículo foi enviado para reparação, numa oficina (Sr. DD) da sua confiança, sita na Rua ..., em ..., (…)».

Alega o Recorrente que «o próprio Réu CC, em sede de declarações de parte[, assumiu] que encetou negociações extra judiciais com o Autor e que seria sua intenção assumir o custo da reparação da viatura, cuja intervenção seria feita em ...».
Mais alega que «[t]al facto é igualmente confirmado pelo Autor, também em sede de declarações de parte num depoimento credível e assertivo, bem como, pelas desinteressadas testemunhas, EE o qual afirma que a viatura esteve na sua oficina e que iria ser reparada em ..., bem como, pela Testemunha FF, o qual afirma que levou a viatura a ... para ser arranjada no seu reboque.»

Revistos os meios de prova produzidos sobre esta questão factual, concluímos pela inexistência de fundamento substancial que permita alterar a decisão do Tribunal recorrido sobre este ponto de facto.
Em primeiro lugar, a questão não é a de saber se o veículo foi rebocado para reparação na oficina do Sr. DD na Rua ..., em ..., mas sim se foi «por ordem dos Réus».
É que já está demonstrado, sob o ponto 5.1.17., que o veículo «foi enviado para reparação, numa oficina (Sr. DD) da sua confiança, sita na Rua ..., em ..., por onde permaneceu, entre 29/07/2020 e 23/09/2020, sem que tenha sido reparado».
O que faltava apurar era se o foi «por ordem dos Réus».

Em segundo lugar, quanto à concreta matéria de facto que se deu como não provada, novamente o Recorrente não cumpriu o ónus que lhe era imposto pelo artigo 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC: não indicou com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, nem procedeu à transcrição dos excertos relevantes, o que implica a rejeição da impugnação. Daí a irrelevância do alegado relativamente às declarações de parte do Réu CC e do Autor, e aos depoimentos das testemunhas EE ou FF.
Mais uma vez se verifica que a suposta confissão do Réu CC não foi objeto de qualquer assentada.
Termos em que se desatende a impugnação.
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2.2.1.5. Pontos 5.1.7. e 5.1.8. dos factos provados e 5.2.2. e 5.2.3. dos factos não provados
Na conclusão 2ª das suas alegações o Recorrente indica que também são objeto de impugnação os pontos 5.1.7 e 5.1.8 dos factos provados e os pontos 5.2.2 e 5.2.3 dos factos não provados.
Sucede que o Recorrente não apresenta nenhum específico fundamento para impugnar a decisão da matéria de facto relativamente a estes pontos de facto, o qual não consta nem da motivação das alegações nem nas suas conclusões. Por isso, desconhece-se por completo o concreto motivo por que impugna tais factos.
Em segundo lugar, o Recorrente não especifica os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.
Em terceiro lugar, não indica a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre esses quatro pontos de facto.
Por isso, ao abrigo do disposto no artigo 640º, nº 1, als., b) e c), do CPC, rejeita-se a impugnação quanto aos pontos 5.1.7 e 5.1.8 dos factos provados e aos pontos 5.2.2 e 5.2.3 dos factos não provados.
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2.2.2. Reapreciação de Direito
2.2.2.1. O Autor interpôs recurso de apelação da sentença, pretendendo a sua revogação e, em decorrência, que a ação seja julgada totalmente procedente.
A ação foi configurada na petição inicial como uma ação de anulação de contrato de compra e venda com fundamento em erro provocado por dolo, uma vez que aí se mostra alegado que «o Autor foi induzido em erro sobre o objeto do negócio de forma dolosa pelos Réus, nos termos dos artigos 253.º e 254.º do Código Civil, in casu, sobre as qualidades da coisa».
Por conseguinte, a ação foi proposta com base em erro-vício gerador da anulabilidade do próprio contrato celebrado entre as partes, mais propriamente numa atuação de carácter doloso por banda dos Réus, fazendo apelo ao disposto nos artigos 253º e 254º do Código Civil (CCiv).
Sendo uma ação de anulação, nos termos do artigo 581º, nº 4, do CPC, a causa de pedir «é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido».
O que o Autor pretende através da ação é, em primeira linha, a restituição do que prestou, o que se mostra em conformidade com o disposto no artigo 289º, nº 1, do CPC, pois a anulação «tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente».
*

2.2.2.2. Na sentença, enquadrou-se a pretensão do Autor no regime jurídico resultante do Decreto-Lei n° 67/2003, de 08 de abril, ou seja, na venda de um bem para consumo.
Tendo considerado a relação como de consumo, com base no disposto no artigo 5º-A, nº 2, daquele regime, onde se prevê que o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade do bem móvel com o contrato num prazo de dois meses a contar da data em que a tenha detetado, concluiu-se que os direitos exercidos na presente ação haviam caducado, uma vez que a ação foi intentada em 05.12.2020 e o Autor havia detetado o “defeito” em 18.05.2020.

Uma precisão liminar se impõe: apesar de na alínea b) do artigo 54º do Decreto-Lei nº 84/2021 se revogar «o Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, na sua redação atual», aquele primeiro diploma estatui no nº 1 do seu artigo 53º que «as disposições do presente decreto-lei em matéria de contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor». Por conseguinte, o Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro, não é aplicável ao caso dos autos por o contrato ter sido celebrado em ../../2017, antes da entrada em vigor do apontado diploma (entrou em vigor em 01.01.2022 – v. art. 55º).
Por isso, a situação dos autos, designadamente a questão de saber se o Recorrente tem a qualidade de consumidor, deve ser analisada no âmbito do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, na versão aplicável que se encontrava em vigor em 26.07.2017, que é a decorrente do Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de maio.
Posto isto, é perfeitamente pacífico que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda (v. artigo 874º do CCiv), pelo que apenas importa determinar, enquanto condição de aplicabilidade do regime estabelecido no Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, se é uma relação de consumo.
Com efeito, nos termos do seu artigo 1º-A, nº 1, o regime estabelecido no Decreto-Lei nº 67/2003 «é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores», incluindo bens móveis e imóveis, novos e usados (v. al. b) do artigo 1º-B).
Segundo o artigo 1º-B, als. a) e c), do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril[2], considera-se «“consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de julho», e «“vendedor”» qualquer pessoa singular ou coletiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua atividade profissional».
Nenhuma dúvida havendo, em face da matéria de facto apurada nestes autos, sobre o facto de os Réus terem vendido o veículo automóvel no âmbito da sua atividade profissional, o que importa saber é se o Autor, no âmbito daquele contrato, pode ser qualificado como “consumidor”.
Embora a qualificação como consumidor seja matéria de direito, tal noção assenta em factos, que carecem de ser demonstrados, ou seja, tem de existir um suporte factual que permita qualificar como consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos direitos. Como bem salienta Jorge Morais de Carvalho, «[o] ónus da alegação dos factos que consubstanciam a noção de consumidor, nos casos em que o consumidor pretende exercer os seus direitos enquanto tal, é seu, por se tratar de factos que o direito material consagra como constitutivos do direito que pretende fazer valer»[3]. Alerta aquele autor que «relativamente ao ónus da prova, este cabe ao consumidor relativamente aos elementos indicados, que sustentam a qualificação como consumidor, nomeadamente o “uso não profissional”»[4].
Por conseguinte, se o comprador pretender fazer valer um direito previsto no Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril (ou, atualmente, no Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro), cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 1, do CCiv, sendo que o elemento estruturante é a qualidade de consumidor, sem o qual nenhum direito pode ser reconhecido. Esse é o pressuposto fundamental da aplicação do regime do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril. Como refere Micael Martins Teixeira, «segundo o critério da distribuição dinâmica do ónus da prova, este deverá impender sobre o consumidor relativamente aos factos que implicam a verificação dos elementos subjetivo, objetivo e teológico da noção de consumidor e sobre o (suposto) profissional quanto aos factos que implicam a verificação do elemento relacional da mesma noção»[5].
No caso vertente, desde logo, na petição inicial o Autor não fundou os direitos que invoca numa relação de consumo.
Depois, em lado algum o Autor ou os Réus invocaram que se tratava de uma relação de consumo. Nem o Autor alegou a qualidade de consumidor nem ela resulta de qualquer dos elementos dos autos.
Mais, o Autor não mostrou sequer interesse em demonstrar factos suscetíveis de sustentar a qualificação como consumidor, designadamente o uso não profissional do veículo.
Finalmente, é o próprio Recorrente que nas suas alegações começa por afastar a aplicação do referido regime.
Por isso, não tem aplicação o regime resultante do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril, em especial o prazo de caducidade previsto no artigo 5º-A, nº 2, daquele regime.
*

2.2.2.3. O contrato de compra e venda dos autos incide sobre um veículo automóvel usado que os Réus, no exercício da sua atividade comercial, venderam ao Autor em 26.07.2017 (v. pontos 5.1.1., 5.1.2. e 5.1.3.).
O Autor alega que a sua vontade de contratar foi determinada por erro induzido pelos Réus no que respeita à quilometragem do veículo vendido. Mostra-se assim alegado um erro sobre o objeto do negócio, que é um erro-vício.
Nos termos do artigo 251º do Código Civil (CCiv), o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira ao objeto do negócio, «torna este anulável nos termos do artigo 247º». Embora no artigo 247º do CCiv se regule o erro na declaração, há uma semelhança com o erro-vício, nas modalidades previstas no artigo 251º, pelo que a lei acabou por estabelecer a identidade do regime[6], ou seja, o mesmo tratamento jurídico.
Em geral, o contrato celebrado em erro sobre os motivos é anulável se se verificarem os requisitos prescritos pelos artigos 251º a 254º do CCiv para diversas modalidades de erro.
Segundo o artigo 253º, nº 1, do CCiv, «entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.»
Quanto aos efeitos do dolo, rege o nº 1 do artigo 254º do CCiv: «O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração; a anulabilidade não é excluída pelo facto de o dolo ser bilateral.»
Portanto, havendo dolo, o erro determina a anulabilidade do negócio.
Mas para que haja dolo são necessários os seguintes requisitos:
a) que o declarante esteja em erro;
b) que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) que o declaratário ou terceiro haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão, embuste, etc.
Exige-se ainda um requisito positivo para a relevância do erro (v. art. 247º): a causalidade, isto é a essencialidade do erro para a celebração do contrato ou a celebração com determinado conteúdo[7]. É necessário que o elemento sobre que incidiu o erro seja essencial para a formação da vontade de contratar por parte do declarante. No fundo, que o declarante se soubesse a verdade não contrataria ou fá-lo-ia em termos substancialmente diferentes.
Em resumo, quanto aos requisitos de relevância e efeito, o comportamento doloso do declaratário é fundamento de anulação se tiver sido causa do erro do declarante e se o erro for essencial.
Atenta a conformação da causa de pedir desta ação, mostra-se alegado um erro nos motivos relativos ao objeto (mediato), isto é, sobre as qualidades do veículo, em concreto a verdadeira quilometragem do veículo aquando da compra, em 26.07.2017, pois o conta-quilómetros exibia a expressão quantitativa de 85.000 km (em rigor, 85.765 km, conforme doc. ... da p.i.) percorridos, quando na realidade era muito superior, pois em 29.07.2013, quase quatro anos antes, o veículo já havia percorrido 142.532 km.

Que existiu erro não há a mínima dúvida: o Autor comprou o veículo pensando que o veículo tinha 85.000 km e veio a verificar, em maio de 2020, que isso não correspondia à realidade.
Importa agora apurar se essa falsa representação da realidade foi essencial para a decisão de comprar o veículo.
A este respeito, provou-se que «a quilometragem do veículo foi um fator decisivo para a sua aquisição pelo Autor», pelo que podemos considerar preenchido o apontado requisito positivo.

Falta agora saber se os Réus agiram com dolo.
Sucede que o Autor não logrou demonstrar, por um lado, que foram os Réus que adulteraram o conta-quilómetros do veículo (v. 5.2.7.) ou que tivessem conhecimento da sua anterior adulteração (v. 5.2.8.) e, por outro, que eles tenham empregue qualquer sugestão ou artifício com a intenção ou consciência de induzir ou manter o Autor em erro (v. 5.2.1., 5.2.2., 5.2.3., 5.2.7., 5.2.8. e 5.2.10).
Significa isto que o Autor não demonstrou que os Réus agiram com dolo. Falta pelo menos um dos requisitos para a anulabilidade por dolo.
Não tendo os Réus assumido um comportamento doloso, o Autor não tem o direito de requerer a anulação do contrato com fundamento em erro provocado por dolo, pelo que a ação, baseada na aludida causa de pedir, improcede.

Não sendo viável a anulação com base em dolo, resta agora saber se pode alicerçar-se em erro simples.
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2.2.2.4. Da remissão do artigo 913º para o artigo 905º, ambos do CCiv, resulta que, se a coisa for defeituosa, «o contrato é anulável por erro ou por dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade».
Estando afastado o dolo, devemos circunscrever a nossa apreciação ao erro.
No caso de erro simples, os requisitos a que alude o citado artigo 905º são, in casu, os do erro sobre os motivos relativos ao objeto, isto é, os do artigo 247º, por remissão do artigo 251º, ambos do CCiv. Sendo assim, tratando-se de erro sobre o objeto, o pressuposto para a anulação, adaptando os termos do artigo 247º, em virtude da aludida remissão, consiste em o elemento sobre que incidiu o erro ser essencial e o vendedor conhecer ou não dever ignorar a essencialidade, para o comprador, da inexistência da desconformidade, não bastando a existência desta.
Nos termos do artigo 879º do CCiv, por efeito do contrato de compra e venda, o vendedor entrega a coisa e o comprador paga o preço.
Porém, a coisa entregue pelo vendedor pode estar afetada de vícios jurídicos ou vícios materiais, sendo que para o caso dos autos apenas nos interessam estes últimos.
A este respeito, o artigo 913º, nº 1 do CCiv, alude a coisa vendida que sofre de «vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim».
Portanto, diz-se defeituosa a coisa em relação à qual se verifique, pelo menos, uma das seguintes circunstâncias:
a) Sofra de vício que a desvalorize;
b) Sofra de vício que impeça a realização do fim a que é destinada (sendo que nos termos do nº 2 do artigo 913º, no caso de a finalidade a que é destinada não resultar do contrato, releva a função normal das coisas da mesma categoria);
c) Não tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Não tenha as qualidades necessárias para a realização do fim a que é destinada.
Na qualificação de Calvão da Silva[8], o vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.

De harmonia com aquele regime legal, o comprador tem vários direitos, relevando apenas para o caso dos autos a anulação do contrato por erro, se se verificarem os pressupostos de aplicação do artigo 251º, que remete para o artigo 247º (art. 905º por via da remissão do art. 913º), e a indemnização em caso de erro simples, pelo interesse contratual negativo, abrangendo apenas os danos emergentes, exceto se o vendedor desconhecer sem culpa o vício ou a falta de qualidade (arts. 909º, por via do artigo 913º, e 915º). O comprador tem ainda direito à reparação ou substituição da coisa, independentemente da verificação dos pressupostos para a anulação do contrato por erro ou dolo, exceto se o vendedor desconhecer sem culpa o vício ou a falta de qualidade (art. 914º), bem como a indemnização pelo incumprimento da obrigação de reparar ou substituir a coisa, nos casos em que esta exista (arts. 910º, por via da remissão do art. 913º, 914º e 921º).
Sucede que, nos termos do artigo 916º, nºs 1 e 2, do CCiv, o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, «até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa». Consagra-se assim um prazo curto para a denúncia do vício ou falta de qualidade, sendo que o comprador apenas não tem o ónus dessa denúncia no caso de o vendedor ter usado de dolo (parte final do nº 1 do art. 916º).
Na ausência de denúncia no aludido prazo, os direitos do comprador caducam.
Mais, em conformidade com o disposto no artigo 917º do CCiv, a ação de anulação por simples erro caduca decorridos seis meses a contar da data da denúncia.
No caso dos autos, o Autor não demonstrou ter feito a denúncia da falta de qualidade do veículo – quilometragem diferente da que exibia o odómetro –, pelo que é manifesta a caducidade dos direitos exercidos nesta ação.
Portanto, apesar de o Tribunal a quo ter aplicado o regime relativo às relações de consumo, a solução é a mesma: a verificação da caducidade dos direitos do Autor relativamente aos Réus.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas no recurso.
***
III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo Recorrente.
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Guimarães, 21.03.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Afonso Cabral de Andrade
Maria dos Anjos Melo Nogueira



[1] Equipamento destinado a medir a distância percorrida por um veículo.
[2] Pertencem ao Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de abril, as disposições que se citarem de ora em diante sem indicação da respetiva proveniência.
[3] Manual de Direito do Consumo, 5ª edição, Almedina, pág. 35.
[4] Ob. cit., pág. 36.
[5] A Prova no Direito do Consumo: Uma Abordagem Tópica, in I Congresso de Direito do Consumo, Almedina, 2016, pág. 149. 
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 235.
[7] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V – Invalidade, Almedina, 2017, págs. 126 e 127.
[8] Compra e venda de coisas defeituosas, 4ª edição, Almedina, pág. 41.