Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
958/14.2TBGMR.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES DREITAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
LISTA DE CREDORES
IMPUGNAÇÃO DA LISTA PROVISÓRIA DE CRÉDITOS
CRÉDITO SUBORDINADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Depois de publicada no Portal CITIUS, a lista provisória de créditos, que, nos termos do n.º 2 do art.º 17.º-D do C.I.R.E., cabe ao administrador judicial provisório elaborar, não mais poderá ser objecto de outras alterações que não as que decorram da decisão judicial das impugnações que lhe tenham sido movidas.
II – Podendo a lista provisória de créditos ser impugnada por qualquer credor assim como pelo devedor, não só com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de algum crédito, mas também na incorrecção do seu montante e, bem assim na qualificação dos créditos reconhecidos, não o tendo feito no prazo estabelecido no n.º 3 do art.º 17.º-D do C.I.R.E., precludiu o direito de o fazer, não podendo usar-se da resposta à impugnação movida por um credor, para exercer aquele seu direito de impugnação relativamente ao crédito do impugnante.
III – O que está na génese e justifica a sujeição dos créditos das pessoas referidas no art.º 49.º ao regime de subordinação consagrado no art.º 48.º, ambos do C.I.R.E., é a situação de superioridade informativa, relativamente aos demais credores, sobre a situação do devedor.
IV – O prazo de dois anos previsto no art.º 49.º, referido, começa a contar da data da entrada em Juízo do requerimento/petição inicial, que deu início ao processo.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -

A) RELATÓRIO
I – O credor M…, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 17.º-D, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), impugnou a lista provisória de créditos apresentada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório (A.J.P.), sustentando que o crédito que aí lhe foi reconhecido deverá ser qualificado como garantido ou, quando menos, como crédito comum e não como crédito subordinado, como foi classificado por este.
Observado o contraditório, a Devedora “I…, Ld.ª” e o Sr. A.J.P. pronunciaram-se pela improcedência da impugnação e defenderam que o referido crédito deverá ser classificado como crédito sob condição.
Conhecendo da impugnação foi proferida douta sentença que a julgou parcialmente procedente, declarando que o crédito do impugnante M…, reconhecido na lista provisória de credores pelo montante de € 100.211,38 (cem mil duzentos e onze euros e trinta e oito cêntimos) tem a natureza de crédito comum.
Inconformada, traz a Devedora “I…, Ld.ª” o presente recurso pedindo a revogação daquela decisão e se julgue que o crédito do Impugnante é um crédito sob condição e subordinado.
Contra-alegou o Credor Impugnante propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante funda o recurso nas seguintes conclusões:
Primeira – O senhor Administrador Judicial Provisório, tendo tomado conhecimento da existência dos embargos de executado cumulados com a oposição à penhora, na acção executiva intentada pelo credor M… contra a ora Recorrente – Processo n.º 4014/11.7TBGMR – tomou a iniciativa de corrigir o erro cometido na lista provisória de créditos, quanto à classificação desse crédito, o qual deve ser reconhecido como crédito sob condição.
Segunda – O crédito do ora Recorrido deve ser reconhecido como crédito sob condição, por imperativo da norma do art.º 50.º, n.º 1 do CIRE.
Terceira - Para a correcção dos erros da lista provisória de créditos, decorrentes da violação de normas legais imperativas, o senhor Administrador Judicial Provisório não está sujeito ao prazo peremptório do art.º 17.º-D, n.ºs 3 e 4 do CIRE.
Quarta - Assim, salvo o devido respeito e melhor opinião, o Tribunal “a quo” devia ter conhecido da questão suscitada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório, quanto à classificação do referido crédito, como crédito sob condição.
Quinta - Acresce que o credor M…, ao impugnar a lista provisória de créditos, impediu a produção do efeito cominatório previsto no n.º 4 do art. 17.º-D do CIRE; e a lista provisória de créditos só será convertida em definitiva, depois de resolvida a questão da classificação do crédito impugnado, quer como crédito sob condição quer como crédito subordinado.
Sexta - Assim, também por essa razão, devia o Tribunal “a quo” ter conhecido da questão suscitada pelo Sr. Administrador Judicial Provisório e pela Devedora, quanto à classificação do referido crédito, como condicional.
Sétima - A sentença aludida no art.º 18.º do Requerimento de Impugnação da Lista Provisória de Créditos foi declarada NULA, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães do dia 22 de Janeiro de 2013;
- tal sentença, provisória por natureza, nunca foi convertida em sentença definitiva, com ou sem alterações ou modificações, e por isso nunca possuiu os requisitos da exequibilidade da sentença prescritos no art.º 704.º n.º 1 do NCPC;
Oitava - O Processo de execução n.º 4014/11.7TBGMR do Juízo de Execução de Guimarães, instaurado com base na sentença referida na conclusão anterior, É NULO e são também nulos todos os actos nele praticados, nos termos do disposto no art.º 186.º n.ºs 1 e 2 alínea a) ambos do NCPC.
Nona - O Impugnante “enxertou”, no processo referido na conclusão anterior, o requerimento para liquidação da obrigação declarada no citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que condenou a ora Requerente a pagar a quantia, ao autor/apelante, a liquidar posteriormente, correspondente aos vencimentos mensais que, como gerente, lhe são devidos desde Julho de 2008, inclusive.
Décima - Citada para os termos do processo e da liquidação, a ora Recorrente deduziu Oposição à Execução e à Penhora, e por despacho do dia 19-05-2014, foi decretada a suspensão da instância do processo de execução; e por despacho do dia 06-06-2014, foi decretada a suspensão da instância, no Processo de Oposição à Execução.
Décima Primeira - Independentemente da validade, ou não, do enxerto referido nas conclusões anteriores, a obrigação exequenda está ainda pendente de liquidação e por isso o crédito reclamado pelo ora Impugnante é um crédito sob condição suspensiva, como dispõe o n.º 1 do art.º 50.º do CIRE.
Décima Segunda - A situação económica da Requerente agravou-se a partir do momento em que transitou em julgado a sentença proferida no processo n.º 278/08.1TCGMR, da 2.ª Vara Mista de Guimarães.
Décima Terceira – A ora Recorrente não chegou a acordo com o seu dito sócio, M…, quanto ao valor das remunerações em dívida nem quanto às condições do seu pagamento, e perante esta situação, convocou a assembleia-geral dos sócios, para o dia cinco de Março de 2014, pelas 18,00 horas, e nela foi deliberado dar poderes à gerência para elaborar um plano de recuperação para apresentar aos credores, conducente à revitalização da empresa, e para dar início e promover o Processo Especial de Revitalização da Empresa.
Décima Quarta – O ora Recorrido, M…, havia já renunciado à gerência no dia 15 de Março de 2012. (Cfr. documento n.º 11 junto com a P. I.)
Décima Quinta – Demonstra-se, assim, que o ora recorrido, M… exerceu as funções de gerente da ora Recorrente nos dois anos anteriores à data da assembleia geral dos sócios que deliberou dar poderes à gerência para elaborar um plano de recuperação para apresentar aos credores conducente à revitalização da empresa, e mandatar a gerência para dar início ao processo especial de revitalização da empresa e estabelecer negociações com os credores de modo a concluir, com estes, o acordo sobre o plano de recuperação.
Décima Sexta – Acresce que a decisão que condenou a ora Recorrente a pagar ao ora Recorrido o valor a liquidar posteriormente, correspondente aos vencimentos mensais que, como gerente, lhe são devidos desde Julho de 2008, inclusive, e não foram pagos em consequência das referidas deliberações, bem como proceder aos correspondentes descontos legais, designadamente os devidos à Segurança Social, transitou em julgado menos de um ano antes do início do presente processo especial de revitalização.
Décima Sétima – O credor M… é, assim, pessoa especialmente relacionada com a ora Recorrente, e o seu crédito deve ser considerado subordinado, nos termos da alínea a) do art.º 48.º e da alínea c) do n.º 2 do art.º 49.º do CIRE.
Décima Oitava – Finalmente, salienta-se que o ora recorrido, M…, detém uma quota do valor nominal de € 50.800,00 correspondente a 25,4% do capital social da ora Recorrente; e é irmão do sócio e gerente da ora Recorrente, A…, detentor de duas quotas, dos valores nominais de € 117.460,00 e de € 31.740,00, correspondentes a 74,6% do capital social da ora Recorrente, o qual esteve e está em relação de domínio com a ora Recorrente, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários.
Décima Nona – Assim, também por força do que vem alegado na conclusão “Décima Oitava”, o crédito do ora Recorrido, M…, deve ser classificado como crédito subordinado, nos termos do disposto na al. a) do art. 48.º, da al. b) do n.º 1 e das alíneas b), c) e d) do n.º 2 do art. 49.º do CIRE.
Vigésima – A douta decisão recorrida viola ou não faz correcta interpretação e aplicação das normas dos art.ºs 17.º-D, n.ºs 3 e 4; 48.º, alínea a); 49.º n.º 1, alínea b), e n.º 2, alíneas b), c) e d); e art.º 50.º, n.º 1, todos do CIRE.
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III.- Nas suas contra-alegações defende o Credor Impugnante que:
a) Depois de publicada no portal “Citius” a lista provisória de créditos não pode o Administrador Judicial Provisório requerer ou proceder à alteração do seu conteúdo sob pena de se colocar em risco a certeza e segurança jurídicas;
b) Não tendo a Recorrente impugnado em devido tempo o reconhecimento do seu crédito precludiu o direito de o fazer;
c) Tendo a Recorrente reconhecido expressamente a existência do seu crédito ao comunicar conjuntamente com o Administrador Judicial Provisório que o montante reclamado foi reconhecido na totalidade, ainda que com a natureza de crédito subordinado, não pode vir agora alegar factos contrários aos por si já reconhecidos no processo em claro abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium;
d) O crédito não tem a natureza de crédito subordinado por se não verificar nenhuma das situações referidas no art.º 49.º do C.I.R.E., já que, como resulta dos autos, a Recorrente e o seu sócio maioritário pretenderam afastá-lo dos desígnios da sociedade pelo que desde então não tem qualquer informação privilegiada sobre o estado daquela, pelo que há mais de dois anos se encontra “às cegas”, como os demais credores.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões a (única) questão trazida à apreciação neste recurso é a da classificação do crédito do credor M…, como “comum” ou “subordinado” ou ainda “sob condição”.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
V.- Com interesse para a decisão extrai-se dos autos que:
1.- O credor/reclamante M… e F…, sócios minoritários da Devedora “I…, Ldª”, intentaram acção ordinária contra esta e contra A… (sócio maioritário) e a mulher pedindo a declaração de nulidade das deliberações que referem na petição inicial e a condenação da primeira a repor a situação deles, Autores, em termos laborais e patrimoniais, pagando-lhes o que for devido e procedendo aos correspondentes descontos para a Segurança Social; a condenação solidária dos 2.os Réus com a 1.ª Ré a reembolsarem-nos dos vencimentos que como gerentes desta lhes são devidos; a condenação solidária dos 2.os Réus a reembolsarem a 1.ª Ré dos prejuízos causados em consequência do pagamento de despesas indevidas.
2.- No Tribunal de 1.ª Instância foi decidido: i) julgar os Autores partes ilegítimas quanto a este último pedido de reembolso, absolvendo da instância os 2.os Réus; ii) anular as deliberações tomadas na assembleia geral da 1.ª Ré de 16/08/2008: “de redução dos vencimentos de cada um dos gerentes para o salário mínimo nacional”; e “de suspensão temporária do pagamento do vencimento dos gerentes” pagamentos que só seriam retomados “quando os resultados de exploração da sua actividade económica o permitir, sem pôr em risco o seu equilíbrio financeiro”; iii) condenar esta Ré a pagar ao Autor (Reclamante) a quantia de € 79.200, acrescida da quantia mensal de € 2.200 desde a data da prolação da sentença até integral pagamento.
3.- Inconformados com esta decisão, recorreu a aquela Ré (aqui Apelante) pretendendo a declaração de nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto a documentos juntos aos autos ou, em alternativa, a revogação da mesma sentença, com alteração da matéria de facto, e a sua absolvição do pedido.
4.- Recorreu igualmente o aqui Credor Reclamante (ali Autor) pedindo a revogação da supra mencionada sentença e a condenação da Ré (aqui Apelante) a pagar-lhe “uma quantia ilíquida correspondente aos vencimentos devidos e não pagos” ou, a não se entender assim, a pagar-lhe a quantia de € 92.400 acrescida da quantia mensal de € 2.200, “contados desde Junho passado até integral pagamento e bem assim a proceder ao pagamento dos correspondentes descontos sobre os vencimentos devidos à Segurança Social”.
5.- Por acórdão desta Relação de Guimarães, proferido em 22/01/2013, foi decidido:
“A – julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela ré “I…Ldª e, alterando-se a decisão sobre a matéria de facto no que concerne ao artigo 49º da base instrutória, dá-se ao mesmo a resposta de “Não provado” (questionava-se se “Ao propor as medidas aprovadas na assembleia geral do dia 16.07.2008, o segundo réu marido visou exclusivamente a protecção dos interesses e a recuperação económica e financeira da sociedade?”).
B – julgar procedente a apelação interposta pelo autor M…, declarando-se nula a decisão recorrida, na parte que condenou a ré “I…, Ldª” a pagar ao autor a quantia de € 79.200,00, acrescida da quantia mensal de € 2.200,00 desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento, condena-se a mesma ré a pagar ao autor/apelante a quantia, a liquidar posteriormente, correspondente aos vencimentos mensais que, como gerente, lhe são devidos desde Julho de 2008, inclusive, e não foram pagos em consequência das referidas deliberações, bem como a proceder aos correspondentes descontos legais, designadamente os devidos à Segurança Social” (itálico nosso).
Em tudo o mais mantém-se a sentença recorrida”.
6.- Inconformada, a ré “I…, Ldª” interpôs recurso de revista, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 20/06/2013 negado provimento ao recurso, deixando exaradas as seguintes conclusões:
“I – Constitui deliberação abusiva e, por conseguinte, anulável nos termos do artigo 58.º/1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais, a deliberação social, aprovada pelo sócio gerente maioritário com os votos contrários dos demais gerentes minoritários, que reduziu a remuneração dos gerentes para o salário mínimo, suspendendo-se o seu pagamento até que os resultados de exploração da sociedade permitisse retomá-lo.
II – Assim se deve entender considerando, face à prova efectuada, que essa deliberação visava pôr os sócios numa situação de enorme precariedade para, desse modo, os levar a abandonar a sociedade, constituindo mero pretexto a justificação de tal deliberação com as dificuldades económicas da sociedade, provando-se que a ré suportava todo um conjunto de amplas despesas do sócio maioritário que, assim, pouco prejuízo sofria pela redução do seu vencimento.
III – A circunstância de o sócio minoritário que impugnou a deliberação ter adquirido sem pagamento a sua posição social, beneficiando, no passado e em período de tempo subsequente, do apoio do sócio maioritário, seu irmão, não significa que, por isso, fique inibido de exercer os respectivos direitos sociais.
IV – Não se suscitando qualquer dúvida de que o exercício da gerência era remunerado, ponto sobre o qual as partes estão de acordo e incidindo a deliberação precisamente sobre a redução dessa retribuição, constitui questão nova (artigo 660.º do C.P.C.), que não importa à resolução do litígio, saber se tal retribuição que vinha sendo paga resultava ou não de deliberação social, podendo sempre, se suscitada fosse, discutir-se a natureza abusiva, e mesmo a má fé, da invocação de uma tal razão para, por via dela, se pretender justificar a deliberação em causa.”.
7.- O ora Credor/Reclamante foi notificado, na pessoa do seu Mandatário Judicial, pelo A.J.P., D…, “conjuntamente com a Gerência da I…, Ldª”, de que lhe foi reconhecido “um crédito de 100.211,38€ sobre a referida sociedade”, acrescentando-se “No entanto, o crédito reclamado foi reconhecido como sendo de natureza subordinada …” (cfr. fls. 660, II vol.).
8.- O ora Credor/Reclamante renunciou ao cargo de gerência em 15 de Março de 2012.
9.- O presente processo especial de revitalização foi instaurado em 9 de Abril de 2014.
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VI.- Transcrita a facticidade relevante para o conhecimento do recurso, passemos à discussão jurídica da(s) questão(ões) em apreciação.
A Apelante começa por reintroduzir a questão da correcção do que classifica como “erro cometido na lista provisória de créditos” quanto à classificação do crédito do Credor Impugnante M… que, por imperativo legal, decorrente do art.º 50.º, n.º 1 do C.I.R.E., deve ser reconhecido como “crédito sob condição”.
O Tribunal a quo considerou que lhe estava vedado conhecer da questão por já não ser admissível a correcção pretendida, pelo lado da Requerente, ora Apelante, uma vez que, não tendo, no prazo legalmente estabelecido, impugnado o crédito precludiu o direito de o fazer, e pelo lado do Sr. A.J.P. atendendo ao efeito cominatório constante do n.º 4 do art.º 17.º-D do C.I.R.E. (como o serão todas as disposições legais infra citadas sem menção do respectivo Diploma Legal).
Objecta a este fundamento a Apelante alegando que, tendo o Credor referido impugnado a lista provisória de créditos impediu a produção daquele efeito cominatório.
Com o respeito devido, discordamos da interpretação propugnada pela Apelante.
Com efeito, estando os credores obrigados a reclamar os seus créditos, e a enviar as reclamações precisamente para o A.J.P. – cfr. n.º 2 do art.º 17.º-D -, apesar do curto prazo de que este dispõe para elaborar a lista provisória de créditos, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, “Impõe-se que faça uma avaliação do seu mérito, ainda que necessariamente perfunctória … tanto mais quanto, precisamente na eventualidade de não haver impugnação, os créditos se têm por firmes, com os contornos definidos na lista” e prosseguem, “Mas então, compreende-se (exige-se) que a reclamação seja efectuada em termos de fornecer toda a informação que permita, efectivamente, formular um juízo de razoabilidade sobre a existência, conteúdo, alcance e natureza do crédito reclamado” (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” “Quid Juris”, 2.ª Ed., 2013, pág. 155).
É que, por aplicação analógica do disposto no n.º 1 do art.º 128.º, que se justifica por não virem aqui regulamentadas as formalidades a que devem obedecer as reclamações, o credor tem o ónus de fazer acompanhar o seu requerimento de reclamação “de todos os documentos probatórios” de que disponha, devendo ainda indicar “a proveniência” do seu crédito, “data de vencimento, montante de capital e de juros”; as “condições”, quer as suspensivas, quer as resolutivas, a que esteja subordinado o crédito; a sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida; a existência de eventuais garantias pessoais; e a taxa de juros moratórios aplicável.
De posse destes elementos, e podendo/devendo ainda socorrer-se dos que existam na contabilidade da empresa, o A.J.P. está em condições de formular o seu juízo fundamentado sobre a existência, o conteúdo e a natureza do crédito reclamado.
Por isso é que concordamos que, depois da publicação da lista provisória no Portal CITIUS já não é mais possível introduzir nela alterações salvo as que decorram da decisão judicial das impugnações que lhe tenham sido movidas (cfr., neste sentido, v.g. Ac. da Rel. do Porto de 04/02/2014, Proc.º 622/13.0TBCHV-A.P1, Desembª Anabela Dias Silva, in www.dgsi.pt).
A única correcção que, quando muito, se poderá permitir é a de lapsos manifestos, que o próprio contexto da lista revele, nos termos do disposto no art.º 249.º do Código Civil (C.C.) aplicável aos actos processuais por força do disposto no art.º 295.º do mesmo Cód., conforme orientação jurisprudencial pacífica.
De resto, a correcção de erros manifestos que não vem expressa no n.º 4 do art.º 17.º-D, tem especial menção no n.º 3 do art.º 130.º.
E se assim é relativamente ao A.J.P., no que se refere à Apelante a inevitabilidade da solução acabada de expor é mais evidente se considerarmos que, tendo legitimidade para impugnar a lista provisória de créditos, não só com fundamento na indevida inclusão ou exclusão, mas também na incorrecção do seu montante e, bem assim (para o que ora interessa), na qualificação dos créditos reconhecidos – cfr. art.º 130.º, n.º 1 – não o tendo feito no prazo legalmente estabelecido, como bem fundamentou o Tribunal a quo, precludiu o direito de o fazer, não podendo agora usar o direito de resposta à impugnação porque lhe está vedado alterar o âmbito da mesma impugnação que, na situação sub judicio, foi definido e delimitado pelo Credor Reclamante.
Sem embargo, sempre diremos não assistir razão à Apelante na sua pretensão de ver classificado o crédito do Reclamante como crédito sob condição.
De facto, nos termos do disposto no art.º 50.º, n.º 1, consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respectivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência (itálico nosso) se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial, ou de negócio jurídico.
Ora, basta atentar no segmento condenatório proferido pelo acórdão desta Relação acima transcrito em 5, para se concluir que, de modo inequívoco, foi reconhecida a existência do crédito do Reclamante, cuja exigibilidade não ficou sujeita à verificação de qualquer acontecimento futuro e muito menos incerto.
Apenas se relegou para momento ulterior a fixação exacta do quantum desse crédito.
E essa “quantificação” ficou definitivamente assente nestes autos nos reclamados € 100.211,38, montante expressamente reconhecido pelo Sr. A.J.P. “conjuntamente com a Gerência” da Apelante, como resulta do documento de fls. 660 (supra referido em 7).
Destarte fixado o montante do crédito do Credor Reclamante, atingiu-se o objectivo que visava o incidente da liquidação com que se iniciou a execução que moveu à ora Apelante, cuja suspensão decorreu do imperativo legal estabelecido no n.º 1 do art.º 17.º-E (tendo o presente processo entrado em Juízo em 09/04/2014 é esta a única justificação para a suspensão decretada pelo despacho proferido em 19/05/2014, a que alude a conclusão décima).
Improcedem, pois, as conclusões 1.ª a 10.ª nos termos e com os fundamentos vindos de expor.
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VII.- Tendo o crédito do Reclamante M… sido reconhecido pelo Tribunal a quo como “comum”, pretende a Apelante que ele seja antes havido como “crédito subordinado”, fundamentando no especial relacionamento do Credor Reclamante com ela, Apelante, e ainda na relação familiar fraternal que existe entre aquele e o sócio-gerente que está em relação de domínio com a mesma Apelante.
De acordo com o disposto na alínea a) do art.º 48.º, consideram-se subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
São considerados como especialmente relacionados com o devedor, em se tratando de pessoa colectiva, os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas e as que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência – alínea a) do n.º 2 do art.º 49.º; as pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em relação de domínio ou de grupo, nos termos do art.º 21º do Código de Valores Mobiliários, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência – alínea b); os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência – alínea c); e, finalmente, as pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1 – alínea d) -, que contemplam a relação fraternal, nos termos da alínea b).
Como explica o legislador na parte final do 3.º e no 4.º parágrafos do n.º 25 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, é a “situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores” que justifica a sujeição dos créditos daquelas pessoas ao regime da subordinação.
É, afinal, também esta, a par da resolução de actos em benefício da massa insolvente, uma medida de combate à frustração das finalidades do processo de insolvência porquanto, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, “o que está aqui em causa é a presunção de os actos praticados pelo insolvente, para mais num período vizinho da abertura do processo de insolvência, com pessoas que, por uma razão ou outra, lhe são próximas, tenderem a beneficiá-las” (ob. cit., págs. 310/311).
Contudo, e divergindo daqueles Autores, acompanhamos o entendimento dos que defendem que esta presunção é ilidível, podendo os credores subordinados demonstrarem não terem actuado de forma a prejudicarem os restantes credores – cfr. Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 6.ª ed., pág. 96) – tanto mais que, como vem sendo decidido, se uma das pessoas referidas no art.º 49.º for titular de crédito que beneficie de privilégio creditório, como é o caso do gerente-trabalhador, em que, a par das suas funções de administrações ele tem ainda um vínculo laboral com a empresa, o seu crédito não poderá ser considerado subordinado – cfr. Ana Prata et al., que citam os Acs. da Relação de Évora de 28/04/2010 e da Relação do Porto de 29/04/1013 (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pág. 163).
A data do termo do prazo de “resguardo” é, por opção do legislador, a do início do processo de insolvência (e não, como pretende a Apelante, a data da assembleia geral que deliberou dar poderes à gerência para elaborar um plano de recuperação – conclusão 15.ª), in casu, 09/04/2014.
Ora, como ficou provado, o crédito reclamado e reconhecido ao Credor Impugnante é relativo a retribuições ou vencimentos que lhe são devidos por ser gerente da Apelante. Assim, tendo ele, provadamente, renunciado à gerência em 15 de Março de 2012, a partir desta data deixou de ter direito a tais remunerações.
Decorreram, pois, mais de dois anos entre a data em que cessou a especial relação com a Apelante e a data em que esta fez entrar em Juízo o presente processo, com o que o seu crédito já não tem, por esta via, a natureza de crédito subordinado.
Invoca ainda a Apelante, como fonte de atribuição da natureza de subordinado ao crédito do Reclamante, a sua relação familiar fraternal com o sócio A…, que é titular de duas quotas cujo valor corresponde a 74,6% do capital social dela, Apelante, estando, por isso, numa relação de domínio – cfr. a alínea a) do n.º 2 do art.º 21.º do Código dos Valores Mobiliários.
Temos de conceder que se se considerar todo o circunstancialismo que esteve na génese do crédito do Reclamante, a invocação deste fundamento não poderá deixar de ser vista como envolta em algum cinismo.
É que, como no acórdão o S.T.J. se fez eco, este sócio maioritário visou com a sua actuação “pôr os sócios numa situação de enorme precariedade para, desse modo, os levar a abandonar a sociedade, constituindo mero pretexto a justificação de tal deliberação com as dificuldades económicas da sociedade, provando-se que a ré suportava todo um conjunto de amplas despesas do sócio maioritário que, assim, pouco prejuízo sofria pela redução do seu vencimento” (cfr. supra ponto II do n.º 6).
E assim temos que é a própria sociedade Apelante, pela “mão” do seu sócio maioritário e gerente, quem intenta prejudicar o credor Reclamante pelo que as razões que subjazem à classificação como subordinado do seu crédito, in casu, de todo, se devem considerar ausentes.
A intenção da Apelante torna-se óbvia se considerarmos que os créditos subordinados são graduados em último lugar, depois dos restantes créditos sobre a insolvência, nos termos da parte introdutória do art.º 48.º, donde resulta que só serão pagos depois de integralmente satisfeitos os créditos comuns, o que torna altamente improvável que venham a receber o que quer que seja, e, na situação sub judicio, a ser aprovado o Plano Especial de Revitalização proposto (como o foi), haverá “o perdão integral do capital em dívida e respectivos juros moratórios” já que a decisão de homologação “vincula os credores mesmo que não hajam participado nas negociações”, nos termos do disposto no n.º 6 do art.º 17.º-F, conseguindo, deste modo, a Apelante reverter totalmente a decisão desfavorável proferida pelas três Instâncias Judiciais.
Daqui resulta que se lhe assiste o direito de impugnar a classificação do crédito como comum, essa impugnação, pelos fundamentos em que assenta, configura um claro abuso do direito, que o art.º 334.º do Código Civil reprime.
Com efeito, a actuação da Apelante, nos termos acima configurados, ofende clamorosamente o sentimento jurídico socialmente dominante (nos dizeres do Prof. Vaz Serra, in B.M.J., nº. 85º., pág. 253) o que ilegítima o exercício daquele direito (cfr. Prof. A. Varela, in Revista Leg. e Jurisprudª., ano 114, pág. 75. Cfr. ainda, v.g. o Ac. do S.T.J. de 21/09/1993, in C.J., Acs. do S.T.J., ano I, tomo III – 1993, pág. 21, e referências doutrinais aí mencionadas).
Cumpre, pois, fazer improceder a pretensão da Apelante, merecendo inteira confirmação a douta decisão impugnada, que atribuiu ao crédito do credor Reclamante a natureza de “comum”.
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C) DECISÃO
Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo, consequentemente, a decisão impugnada.
Custas da apelação pela Apelante.
Guimarães, 09/07/2015
Fernando Fernandes Freitas
Purificação Carvalho
Espinheira Baltar