Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
56/13.6PTBGC .G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ARGUIDO
ACUSADO
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Tendo a arguida sido acusada pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e em julgamento sido decidido que, afinal, a conduta da arguida consubstanciava uma contra-ordenação muito grave, a decisão a proferir, não é da competência da autoridade administrativa, mas antes do tribunal.
II) Perante ilícitos de natureza diferente não há que ponderar o regime mais favorável da sucessão de leis, pois a lei que converte um crime ou uma contravenção em ilícito de mera ordenação social opera uma verdadeira despenalização, extinguindo a responsabilidade penal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Na 2º Juízo do Tribunal Judicial de Bragança, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 56/13.6PTBGC), foi proferida sentença que decidiu (transcreve-se):
a) Absolver a arguida MARIA D. da prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e 292º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual vinha acusada;
b) Condenar a arguida MARIA D., pela prática, em autoria material, de 1 (uma) contra-ordenação p. e p. pelos artigos 81.º, n.ºs 1, 2, 4 e 6, al. b), 137.º, 138.º, n.ºs 1 e 4, 146.º, al. j) e 147.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, e, em conformidade:
i. Decide-se ordenar a notificação da arguida MARIA D. para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, após trânsito em julgado, efectuar o pagamento voluntário da coima, a liquidar pelo montante mínimo de € 500,00 (quinhentos euros), para o que deverão ser emitidas as pertinentes guias;
ii. Decide-se condenar a arguida MARIA D. no pagamento de uma coima no montante de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros), para a eventualidade da coima não ser voluntariamente liquidada no prazo fixado em b), I;
iii. Decide-se condenar a arguida MARIA D. na sanção acessória de inibição de condução de quaisquer veículos a motor, pelo período de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias;
*
A arguida MARIA D. interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- o tribunal recorrido é incompetente para condenar pela contraordenação, sendo a competência da autoridade administrativa;
- a condenação em processo crime implica uma diminuição relativamente às garantias que a arguida teria no processo por contraordenação;
- havendo degradação de crime em contraordenação, esta última, ou o facto, deixa de ser punida;
- deve ser suspensa a execução da sanção acessória; e
- é constitucionalmente proibida a automaticidade da sanção acessória, pois nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (art. 30 nº 4 da CRP).
*
Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.
Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
*
I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 26/10/2013, pelas 5h10m, a arguida conduzia na Avenida C. em, Bragança, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula , apresentando uma T.A.S. de 1,18 gr./l.
2. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Condições pessoais do arguido:
3. É psicóloga, mas encontra-se desempregada, auferindo o subsídio social de desemprego no montante mensal de cerca de € 300,00.
4. Reside em casa do pai, com o filho de 19 anos de idade, o qual se encontra a frequentar o ensino secundário.
5. Não possui antecedentes criminais.
6. Não consta averbada a prática de qualquer contra-ordenação no R.I.C.
*
FUNDAMENTAÇÃO
1 – A competência para julgar a contraordenação
A arguida foi acusada como autora de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, por conduzir com uma TAS de 1,24 gr/litro no sangue. Porém, depois de deduzido o erro máximo admissível (EMA), foi fixada na sentença recorrida a TAS de 1,18 gr/litro (o que não vem posto em causa).
A condução de veículo esta TAS de 1,18 gr/litro não constitui crime, mas contraordenação muito grave, tendo o tribunal recorrido decidido a condenação pela contraordenação.
Argumenta a recorrente que não o podia fazer, porque:
- a decisão compete a uma autoridade administrativa (no caso a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), sendo o tribunal judicial incompetente em razão da matéria;
- foram violados os direitos de defesa da arguida, pois poderia ter aproveitado o prazo de 15 dias para a defesa perante a autoridade administrativa, a que se seguiriam a impugnação judicial para o tribunal de primeira instância e para a relação;
É uma argumentação que contende com lei expressa, pois o art. 77 nº 1 do RGCO dispõe que “o tribunal poderá apreciar como contraordenação uma infração que foi acusada como crime”. Esta norma “refere-se aos casos em que a acusação foi deduzida por crime e aceite tal qualificação e, no julgamento, vem a decidir-se que os factos integram apenas contraordenação. Nestas situações não há conversão do processo criminal em contraordenacional, passando o tribunal, desde logo, a apreciar a contraordenação que entende ter ocorrido” – Simas Santos e Lopes de Sousa, em anotação ao artigo em referência.
Nenhuma diminuição de garantias houve, pois, por definição, o processo penal concede mais garantias de defesa aos arguidos do que o processo por contraordenação. É certo que as fases dos dois processos não são coincidentes, mas o patamar de garantias concedidas por cada direito processual não se afere pelo número de requerimentos ou incidentes que são permitidos, ou por uma perspetiva subjetiva sobre as estratégias de defesa que poderiam ser ensaiadas. Mesmo nessa perspetiva, não houve prejuízo para os direitos de defesa. Por exemplo, após a acusação em processo comum, poderia a arguida tê-la “impugnado”, requerendo a instrução para que fosse proferido despacho de não pronúncia, com os mesmo fundamentos que levaram a julgadora a decidir a alteração da qualificação jurídica de crime para contraordenação. É uma possibilidade que não existe no processo por contraordenação.
II – A degradação do crime em contraordenação
Citando o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 3-6-87 (BMJ 368/592), alega a recorrente que “uma vez que o crime se degradou em contraordenação, esta última, ou o facto, deixa de ser punido”.
Aquele acórdão tratou de caso sucessão no tempo de leis sancionatórias de natureza diferente, distinto do destes autos.
Foi questão discutida na doutrina e na jurisprudência, que pode ser assim enunciada: determinado comportamento é punível pelo Direito Penal (como crime ou contravenção), mas o legislador despenaliza-o, passando a ser sancionado pelo direito contraordenacional.
Nesses casos, não há que recorrer ao princípio da lei mais favorável, previsto no art. 2.º n.º 4 do Cod. Penal, porque esse princípio só tem aplicação quando se ponderam leis que versam infrações que tenham, em comum, natureza penal.
O crime ou a contravenção integram-se no domínio do ilícito criminal, enquanto a contraordenação faz parte do ilícito de mera ordenação social, sendo ilícitos de natureza qualitativa diferente. O primeiro protege aquele núcleo de valores essenciais à vida em sociedade, cujas violações envolvem uma censura ética e são punidas com penas, enquanto que "no direito das contraordenações, estão em causa advertências sociais, sanções ordenativas ou coimas, que não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal" - Figueiredo Dias, Direito e Justiça, vol. IV, 1989/1990, pag. 22 e 24. O direito de mera ordenação social caracteriza-se pela ausência de uma dimensão de censura ética da respetiva sanção (coima) e com a especificidade dessa sanção ser aplicada pela própria autoridade administrativa.
Perante ilícitos de naturezas diferentes não há que ponderar o regime mais favorável da sucessão de leis, pois a lei que converte um crime ou uma contravenção em ilícito de mera ordenação social opera uma verdadeira despenalização, extinguindo a responsabilidade penal.
Como refere Taipa de Carvalho, em Sucessão de Leis Penais, pag. 133 "não pode deixar de concluir-se que, quanto à responsabilidade penal, uma lei que "converte" uma infração penal (crime ou contravenção) numa contraordenação é uma lei despenalizadora e que, enquanto tal, se aplica retroativamente, não se trata pois de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio da "lex mitior" (art. 2 n.º 4 do Cod. Penal), mas o princípio da lei despenalizadora, isto é, da extinção da responsabilidade penal (nº 4 do mesmo art. 2 do Cod. Penal).
Não é o caso dos autos, pois a condução sob o efeito do álcool, com a TAS considerada provada, integra a prática da mesma contraordenação quer na data da prática dos factos, quer na da sentença.
III – A suspensão da execução da sanção acessória
Trata-se de uma pretensão legalmente inadmissível, porque a contraordenação praticada é «muito grave» – art. 146 al. j) do Cod. da Estrada (TAS igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l)
Preceitua o art. 141 nº 1 do Código da Estrada que “pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes”.
Dispondo o Código da Estrada que “as contraordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e sanção acessória” (art. 138) e prevendo apenas a suspensão da execução para o caso das contraordenações «graves», então, por maioria de razão, é porque a suspensão não é legalmente possível nas contraordenações «muito graves».
Nenhuma violação existe dos princípios constitucionais invocados, porque o legislador ordinário não está impedido de limitar certas sanções de substituição aos casos menos graves - similarmente, não é permitida a suspensão da execução da pena de prisão superior a cinco anos, por mais favoráveis que sejam os juízos formulados sobre o condenado.
IV – A não automaticidade da sanção acessória e a imposição constitucional de que nenhuma pena envolva como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (art. 30 nº 4 da CRP)
É questão com mais de duas dezenas de anos.
Transcreve-se de recente acórdão Tribunal Constitucional sobre a matéria, embora o mesmo trate da sanção acessória do art. 69 do Cod. Penal – ac. 53/11 de 1-2-2011. É, no entanto aplicável, com as evidentes adaptações, ao caso destes autos:
O Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas vezes sobre a conformidade à Constituição de normas que preveem a medida de inibição de conduzir em caso de condenação por infração às regras relativas à condução de veículos motorizados, tendo apreciado, concretamente, a sua alegada aplicação sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito adicional. Com efeito, norma idêntica à constante do atual art. 69.º, n.º 1, alínea a) do CP, contida no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril, foi julgada não inconstitucional pelo Acórdão n.º 667/94 (in ATC, 29.º vol., pág. 359), para cujos fundamentos remetem ainda, entre outros, os acórdãos n.ºs 70/95, 73/95, 144/95, 292/95, 354/95, 382/95, 439/95, 624/95 (todos acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt)...
(…)
Idêntico juízo no sentido da não inconstitucionalidade da referida norma foi sustentado em diversos outros acórdãos do Tribunal Constitucional, designadamente, no acórdão n.º 143/95 (in ATC, 30.º, pág. 717), para cuja fundamentação remetem os Acórdãos n.ºs 292/95, 354/95, 382/95, 422/95, 439/95, 440/95 e 624/95 (todos acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt),
(…)
Posteriormente, o Acórdão n.º 53/97 (in ATC, 36.º vol., pág. 227) julgou não inconstitucional a norma do artigo 12.º, n.º 2, do mesmo Decreto-Lei n.º 124/90, igualmente relativa à inibição de faculdade de conduzir
(…)
Mais recentemente, os Acórdãos n.ºs 149/01, 586/04 e 79/09 (todos acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt), vieram julgar não inconstitucional a própria norma do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do CP, remetendo para a fundamentação do citado Acórdão n.º 53/97”.
Em conformidade, decidiu-se naquele acórdão 53/11 “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, quando interpretado no sentido segundo o qual, com a condenação pela prática do crime previsto no artigo 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tem lugar, sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito, a aplicação da sanção acessória consistente na inibição de conduzir”.
Ainda assim, acrescentar-se-á o seguinte:
O que as normas constitucionais proíbem é que à condenação em certas penas se acrescente de forma automática, independentemente de decisão judicial, por efeito direto da lei, a perda de direitos civis profissionais ou políticos.
Ou, como se escreveu no ac. TC 143/95 de 15-3-95, DR IIª Série de 20-6-95, “pretendeu-se proibir que, em resultado de certas condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente opes leges efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais ou políticos. Mas não se pretendeu impedir que a sentença condenatória pudesse decretar essa perda de direitos em função de uma graduação da culpa feita casuisticamente pelo juiz”.
Ora, a sanção acessória de inibição de conduzir resulta sempre de uma decisão, que, depois de avaliar as circunstâncias do caso concreto, a gradua entre os limites mínimo e máximo fixados na norma, o que só por si afasta a ideia de automaticidade.
Citando novamente o já referido ac. 143/95 do TC, “é certo que o juiz (ou a entidade administrativa, nos casos do Código da Estrada), caso haja lugar a aplicação da pena principal, não pode deixar de aplicar também a inibição.
Mas essa circunstância em nada afeta o princípio da culpa, e nem sequer é uma característica específica da pena acessória.
Na verdade, o mesmo acontece nos numerosos casos em que a lei prevê, para um dado facto ilícito, a aplicação de uma pena de prisão e multa. Também nesses casos, quando aplica a pena de prisão, o juiz não pode deixar de aplicar igualmente a multa. Não há aí, como aqui, qualquer violação do princípio da culpa.
De todo o modo, bem se compreende que, em certas infrações com a natureza daquela a que se reportam os autos, o legislador preveja a aplicação da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir como de uma pena principal se tratasse: isto é, a aplicação da pena resulta da prova da prática do facto ilícito e da culpa, sem necessidade de se provarem factos adicionais. É que não deixa de haver uma óbvia conexão entre a inibição e o facto ilícito. Pois, se talvez pudesse questionar-se a medida no caso de não ter qualquer conexão com a infração praticada, não se poderá negar que neste caso tal conexão existe: é por ter violado de forma intensa os seus deveres enquanto condutor, que o agente é privado temporariamente da faculdade legal de conduzir” (sublinhado do relator).
Assim, não podia deixar de ser imposta à recorrente a pena acessória de inibição de conduzir.
*
Não vêm questionados o montante fixado para a coima, no caso de não ser efetuado o pagamento voluntário, nem a medida concreta da sanção acessória de inibição de conduzir, no caso de esta se manter.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
A recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.