Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2197/23.2T8VNF-F.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: EXECUÇÃO
JUROS COMPULSÓRIOS
ORDEM DOS PAGAMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Na fase de pagamento da execução instaurada com base em sentença condenatória do devedor no pagamento de quantia pecuniária, se o montante obtido através do património do executado for insuficiente para a satisfação da totalidade da quantia exequenda, os juros compulsórios previstos no nº 4 do artigo 829º-A do CCiv são pagos simultaneamente ao exequente e ao Estado, antes do capital devido ao mesmo exequente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. Na execução para pagamento de quantia certa que EMP01..., Lda., move a EMP02..., SA, o agente de execução, em 29.05.2025, apresentou requerimento (referência ...12) com o seguinte teor:

«1- O título executivo da presente execução é uma injunção.
2- Sendo o título executivo uma injunção ou sentença, o AE deve calcular os juros compulsórios devidos em função das penhoras realizadas.
3- No âmbito dos presentes autos e conforme resulta do historial dos mesmos, não foi possível penhorar valores suficientes para entregar ao exequente.
4- E consequentemente, também não serão suficientes para cobrar os juros comerciais devidos nem tão pouco os juros compulsórios.
5- Pelo que se suscitam duvidas ao AE, no caso em apreço, não sendo suficiente as quantias penhoradas nos presentes autos, no montante de 33.039,35€
6- E a quantia exequenda de 90.142,67€.
7- Se os juros compulsórios gozam da precipuicidade dos bens penhorados, previstas no artigo 541º do CPC,
8- Ou se ao invés, o AE somente deve liquidar os juros compulsórios após liquidar todos os valores devidos ao exequente.
9- O que, nos presentes autos, não irá suceder, pois não são conhecidos mais bens penhoráveis pertença do executado.
10- Para melhor esclarecimento, em anexo remete a simulação da conta do processo, com as despesas e honorários realizados, assim como dos valores penhorados.
Atento os motivos expostos, requer a V. Exa se digne ordenar o que tiver por conveniente, designadamente se devem sem liquidados juros compulsórios, atento o facto dos valores penhorados serem insuficientes para pagar ao exequente.»
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1.2. Tendo os autos sido continuados com vista, o Ministério Público sustentou que «os juros compulsórios beneficiam da prioridade de imputação nos termos do artigo 785.º do Código Civil e, por isso, o pagamento de tais juros deve ser assegurado antes do capital devido.»
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1.3. Por sua vez, a Exequente pronunciou-se no sentido de que «o valor correspondente aos juros compulsórios não deverá ser retirado, de forma precípua, do produto da venda dos bens penhorados.»
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1.4. Seguidamente, foi proferido o despacho recorrido, concluindo «não assistir razão ao Ministério Público, não podendo os juros compulsórios devidos ao Estado ser pagos sem que esteja assegurado o pagamento do capital ao Exequente, pois que este não é responsável pelo seu pagamento.»
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1.5. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«1. O Tribunal a quo decidiu que não podem os juros compulsórios devidos ao Estado ser pagos sem que esteja assegurado o pagamento do capital ao exequente.
2. Justificou-o com a circunstância de solução contrária ser particularmente penalizadora para o credor, na medida em que transferiria para este a sanção que é da responsabilidade do executado.
3. A sanção pecuniária compulsória legal prescrita no n.º 4 do art. 829.º-A do Código Civil traduz-se num adicional fixado pela lei que acresce à prestação pecuniária em dívida, a par dos juros moratórios ou de qualquer outra indemnização a que haja lugar, destinada, em partes iguais ao credor e ao Estado.”
4. E o art. 785.º, n.º 1 do Código Civil estabelece que quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital. Só assim não será se o credor concordar que a imputação do capital se faça antes (n.º 2).
5. Não tendo o Estado dado a sua concordância a que a imputação do capital se fizesse primeiro, a tanto se opondo, não pode o Tribunal decidir da forma como o fez, sob pena de violação destes normativos.
6. A unidade do sistema jurídico exige que, nesta particular situação, como nas restantes, se cumpra a ordem de imputação estabelecida no art. 785.º, n.º 1 do Código Civil.
7. Além do mais, a obediência a este comando não implica que seja o exequente a suportar o pagamento da sanção, porquanto este não deixa de ser feita à custa do património do devedor.
8. O que se passa é que receberá menos do que se receberia se a sanção pecuniária compulsória legal não existisse.
9. A decisão recorrida viola o disposto no art. 829.º-A, n.º 4 e o art. 785.º, ambos do Código Civil.
10. Deve, pois, ser substituída por outra que determine o pagamento dos juros (moratórios e compulsórios) antes do capital, sendo os juros compulsórios devidos ao exequente e ao Estado em partes iguais.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, suscita-se a questão de saber se os juros compulsórios referidos no nº 4 do artigo 829º-A do Código Civil devem ser pagos antes do capital devido à exequente.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Para a apreciação da apontada questão relevam as incidências processuais referidas em I.
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2.2. Do objeto do recurso

O artigo 829º-A do Código Civil (CCiv), aditado pelo Decreto-Lei nº 262/2003, de 16 de junho, introduziu no nosso ordenamento o instituto da sanção pecuniária compulsória.
No preâmbulo daquele diploma expõem-se a finalidade e as razões que justificaram a sua introdução:
«Autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções compulsórias reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo francês das astreintes, sem todavia menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-se-lhe um carácter de coerção pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.
A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução especifica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.
Quando se trate de obrigações ou de simples pagamentos a efetuar em dinheiro corrente, a sanção compulsória – no pressuposto de que possa versar sobre quantia certa e determinada e, também, a partir de uma data exata (a do trânsito em julgado) – poderá funcionar automaticamente. Adota-se, pois, um modelo diverso para esses casos, muito similar à presunção adotada já pelo legislador em matéria de juros, inclusive moratórios, das obrigações pecuniárias, com vantagens de segurança e certeza para o comércio jurídico.»

No nº 1 do artigo 829º-A do CCiv prevê-se uma sanção pecuniária, determinada pelo tribunal a pedido do credor, destinada a compelir o devedor a cumprir uma prestação de facto, positivo ou negativo, de natureza infungível. Nos termos do seu nº 3, o montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
Por sua vez, no nº 4 do artigo 829º-A do CCiv prevê-se uma outra sanção pecuniária compulsória, consistente num adicional automático (ope legis) de juros à taxa de 5% ao ano, independentemente dos juros de mora ou de outra indemnização a que haja lugar. Vence-se a partir do trânsito em julgado da sentença e reverte metade para o credor (2,5%) e a outra metade para o Estado (2,5%). É habitualmente designada como sanção pecuniária compulsória legal, sendo que o legislador a qualifica como «juros», pelo que a designação mais conforme com a sua natureza é a de juros legais compulsórios.

Nenhuma dúvida parece existir de que os juros compulsórios impostos pelo artigo 829º-A, nº 4, do CCiv estão abrangidos pela sentença condenatória como título executivo[1].
Desde que se execute obrigação pecuniária, os juros compulsórios são devidos e a sua liquidação não depende de requerimento do exequente, devendo ser feita a final pelo agente de execução, conforme disposto no artigo 716º, nº 3, do CPC.
A este propósito refere-se no acórdão do STJ de 12.09.2019 (Manuel Tomé Gomes), «tratando-se da sanção pecuniária compulsória prescrita no n.º 4 do artigo 829.º-A do CPC, tal imposição decorre da própria lei, sem necessidade de qualquer impulso processual por parte do credor, o que bem se compreende, como foi dito, atenta a sua finalidade meramente coercitiva, de reforço das decisões judiciais que condenem o devedor em prestação pecuniária determinada e, portanto, com relevo predominante do interesse público numa realização mais eficaz da justiça.
De resto, a referida sanção traduz-se num adicional taxativamente fixado pela lei que acresce à prestação pecuniária em dívida, a par dos juros moratórios ou de qualquer outra indemnização a que haja lugar, destinado, em partes iguais ao credor e ao Estado.
Nessa conformidade, é de presumir que o legislador, ao estabelecer, de forma tão lapidar, a liquidação a final em consequência da imposição da sanção pecuniária compulsória devida, caso pretendesse torná-la ainda dependente de petição do exequente, o tivesse ressalvado expressamente, tanto mais que se tratava de questão controvertida na jurisprudência.
Contudo, não só o não fez, como até determinou a notificação do executado em momento subsequente àquela liquidação para poder então exercer o respetivo contraditório.»

Posto isto, sendo manifesto que a lei impõe a liquidação a final, pelo agente de execução, dos juros compulsórios legais, vejamos se existe algum fundamento normativo para diferenciar, quanto ao adicional de juros à taxa de 5% ao ano, os 2,5% destinados ao exequente dos 2,5% que revertem a favor do Estado.
Em primeiro lugar, esse crédito é geneticamente uno. É o próprio nº 4 do artigo 829º-A do CCiv a estabelecer que «são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado». Quando a sentença transita em julgado não começam a vencer-se dois créditos, cada um de 2,5%, mas sim um único crédito de juros à taxa de 5% ao ano.
Em segundo lugar, é meramente por interpretação que chegamos à forma da divisão do montante desses juros pelo credor e o Estado. Até ao momento da liquidação, a que já aludimos, o crédito nasce como uma realidade única, sem diferenciação de parte, e mantém essa integridade.
Em terceiro lugar, inexiste qualquer norma legal que autonomize e diferencie (em termos de tratamento jurídico), antes da liquidação, uma parte desse crédito, seja a metade que reverte para o exequente ou a metade destinada ao Estado.
Em quarto lugar, só no momento da liquidação, o mesmo é dizer do pagamento dos juros compulsórios, é que se opera a divisão do seu montante em partes iguais, pagando-se ao exequente 2,5% dos mesmos e ao Estado os restantes 2,5%.
É nesse momento que o agente de execução liquida «as importâncias devidas em consequência da imposição de sanção pecuniária compulsória», conforme dispõe o nº 3 do artigo 817º do CPC. Repare-se que a lei se refere às «importâncias devidas», utilizando o plural. Se só impusesse a liquidação da importância devida a título de sanção compulsória ao exequente, não só o referiria expressamente, como utilizaria a forma singular.

No despacho recorrido, se bem o interpretamos, considerou-se que no caso de não ser possível obter na execução produto suficiente para pagar integralmente o crédito do exequente (capital e juros de mora), não deve ser assegurado o pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado por não ser «da responsabilidade do exequente suportar o pagamento de tal sanção». Parece sustentar-se que, a assim não se entender, «estar-se-ia a penalizar o credor/exequente e não o devedor/executado que incumpriu a obrigação a que foi condenado, transferindo-se a sanção daquele que se quis punir para aquele que se quis proteger.»
Ressalvado a devida consideração, a referida linha de raciocínio parte de um pressuposto errado: na realização coativa da prestação executa-se «o património do devedor» (artigo 817º do CCiv), não o património do exequente. Estando necessariamente em causa a execução de obrigação pecuniária, na ação executiva para pagamento de quantia certa, o credor (exequente) pretende obter o cumprimento da obrigação pecuniária através da execução do património do devedor (executado).
Se é do património do executado que se obtém o pagamento, não é o exequente que suporta os juros compulsórios.
Depois, em vez de se discutir a questão apenas no respetivo contexto normativo, em especial como se pode afastar uma disposição expressa como a do artigo 716º, nº 3, do CPC, transfere-se para um plano argumentativo baseado numa alegada penalização e punição do exequente.
Ora, é impróprio falar em penalização do exequente ou em transferência da sanção do executado para o exequente.
Primeiro, quem suporta os juros compulsórios é o executado e não o exequente.
Segundo, nenhuma transferência da sanção existe do executado para o exequente. É o executado que suporta sempre o respetivo pagamento.
Terceiro, estamos a falar de uma sanção pecuniária compulsória (art. 829º-A, nº 4, do CCiv) que emerge da própria lei, de modo taxativo e automático, em virtude do trânsito em julgado de sentença que condene o devedor no cumprimento de obrigação pecuniária. É um adicional que foi criado com a finalidade de reforçar a eficácia da decisão judicial condenatória e em que o legislador decidiu, mesmo tendo contra si críticas contundentes[2], que seriam beneficiários da mesma, em partes iguais, o credor e o Estado, em perfeito plano de igualdade, sem conferir a qualquer um deles uma vantagem em relação ao outro.
Daí que na execução do património do devedor não possa ser considerada conforme com a finalidade legal conferir ao exequente a vantagem de ser pago de metade dos juros de 5% ao ano de que também é beneficiário o Estado, em parte idêntica.
Como bem se salienta no acórdão desta Secção e Relação de 13.03.2025 (António Beça Pereira), proferido no processo 1391/18.2T8GMR.G1, «Quanto a esses 5% de juros o credor e o Estado estão numa posição de igualdade; nenhum tem um privilégio ou vantagem em relação ao outro. Significa isso que quando chegar o momento do pagamento de tais juros, o credor e o Estado recebê-los-ão simultaneamente; nenhum será pago antes do outro e nessa ocasião serão pagos "em partes iguais".»
Quarto, a entrarmos pela mesma ordem de considerações, também teríamos de concluir que na execução a realização do concurso de credores também pode ser “penalizante” para o exequente. Não é uma penalização, é a efetivação do que a lei estabelece.

Finalmente, conforme já destacamos, o legislador qualificou o adicional estabelecido no nº 4 do artigo 829º-A do CCiv como “juros”, isto é, juros devidos por força da lei – juros legais. Sendo essa a qualificação legal, é aplicável o disposto no artigo 785º, nº 1, do CCiv, que dispõe o seguinte: «Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.»
Secundamos o entendimento do atrás citado acórdão desta Relação de 13.03.2025 (proc. 1391/18.2T8GMR.G1): «o artigo 785.º do Código Civil estabelece a ordem dos pagamentos a efetuar quando "a prestação (…) não chegue para cobrir tudo o que é devido". Essa ordem, não obstante este preceito estar redigido no pressuposto de que a "prestação" é cumprida voluntária e extrajudicialmente pelo devedor, deve, em nome da "unidade do sistema jurídico" e por via de uma interpretação extensiva, também ser aplicada no âmbito da ação executiva quando o património do devedor for insuficiente para a satisfação da totalidade da quantia exequenda. (…) Dentro da mesma linha de raciocínio, devemos ter por abrangidos pela expressão "juros" os juros compulsórios, pois esta "sanção traduz-se num adicional taxativamente fixado pela lei que acresce à prestação pecuniária em dívida, a par dos juros moratórios"».

Termos em que procede a apelação.
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Responsabilidade tributária:
As custas, na vertente de custas de parte, devem ser suportadas pela Recorrida EMP01..., Lda. (arts. 527º, nºs 1 e 2, 529º, nºs 1 e 4, e 533º do CPC), sendo certo que estão apenas em causa interesses com concreta expressão económica.
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2.3. Sumário
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o crédito por juros compulsórios legais, devidos à Exequente e ao Estado, seja pago antes do capital devido à mesma Exequente, em paridade com os juros moratórios.
Custas a suportar pela Recorrida EMP01..., Lda..
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Guimarães, 27.11.2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Afonso Cabral de Andrade
José Carlos Dias Cravo


[1] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, em comentário ao acórdão do STJ de 12.09.2019 (Manuel Tomé Gomes), proferido no processo nº 8052/11.1TBVNG-B.P1.S1, acessível em https://blogippc.blogspot.com/2020/02/jurisprudencia-2019-172.html.
[2] V., por todos, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, em anotação ao art. 829º-A.