Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
622/22.9T8BGC.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: INVENTÁRIO
REMESSA DO PROCESSO
NOTÁRIO
DESPACHO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No âmbito de inventário instaurado na vigência da Lei n.º 23/2013, de 05-03, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário (RJPI), a coexistência de competências decisórias entre Juiz e Notário não significa nem comporta sobreposição, estando a intervenção do Juiz ao nível decisório circunscrita à prolação da decisão homologatória da partilha (para lá das questões incidentais a que se refere o artigo 26.º-A do RJPI), sendo que toda a demais tramitação processual (determinação de atos, presidência de diligências e competência decisória) é da exclusiva competência do Notário.
II - O despacho que determina a remessa do inventário notarial para o Tribunal, por estarem verificados os pressupostos a que se referem o n.º 3 do artigo 12.º e o n.º 1 do artigo 13.º da Lei 117/2019, de 13-09, configura uma decisão sobre uma questão concreta da relação processual que é da competência exclusiva do Notário.
III - Ainda que não esteja em causa uma decisão judicial, a decisão do Notário não deixa de se tornar definitiva se não for judicialmente impugnada por meio de reclamação ou de recurso no momento oportuno.
IV - Deste modo, estava o Tribunal a quo impedido de apreciar novamente, e de forma oficiosa, a questão da verificação dos pressupostos fáctico-jurídicos da remessa de inventário pendente no Cartório Notarial para os Tribunais Judiciais, por se tratar de questão definitivamente resolvida no processo, sendo que a mesma nunca foi suscitada em sede recursiva pelos interessados no referido inventário.
V - Em consequência, deve cumprir-se a decisão que passou em julgado em primeiro lugar (a notarial), uma vez que estamos perante duas decisões de sentido oposto que incidiram sobre a mesma questão, o que importa a ineficácia da decisão recorrida (judicial), por violação do caso julgado formal, nos termos aplicáveis dos artigos 620.º, n.º 1, e 625.º do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Em 16-03-2015, AA instaurou inventário - destinado a pôr termo ao acervo hereditário deixado por óbito de BB, falecido em .../.../2015 -, perante o Senhor Notário do Cartório Notarial ....
A requerente foi nomeada cabeça de casal, prestando o compromisso de honra e as correspondentes declarações iniciais, das quais consta, entre o mais, que o inventariado foi casado com a requerente, em segundas núpcias de ambos, sob o regime da comunhão de adquiridos, tendo deixado testamento público, junto aos autos, no qual legou à requerente, por conta da sua quota disponível, diversos imóveis, ali devidamente identificados, não tendo manifestado qualquer outra disposição de última vontade, deixando a suceder-lhe o seu cônjuge, ora requerente e duas filhas, CC, casada sob o regime de comunhão de adquiridos com DD, e EE, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com FF.
Citadas para o inventário, vieram as interessadas CC e EE apresentar reclamação da relação de bens, à qual respondeu a cabeça de casal.
Posteriormente, o Senhor Notário proferiu despacho, de 30-03-2017, no qual determinou a remessa das partes para os meios comuns para decisão das questões controvertidas, ali enunciadas, mais determinando a suspensão da tramitação do inventário até decisão definitiva das questões controvertidas.
Por requerimento apresentado a 05-05-2017, as interessadas CC e EE, apresentaram comprovativo de ter sido interposta a respetiva ação decorrente da remessa para os meios comuns.

Por requerimento apresentado a 30-03-2022, as interessadas CC e EE, requereram a remessa do inventário para o Tribunal da Comarca ..., ao abrigo do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019, de 13-09, com os seguintes fundamentos:

«(…)
1 - O inventariado BB deixou como sucessoras directas da herança, sua esposa, AA, e duas filhas, CC e EE.
Como herdeiras legitimárias do inventariado – artº 2157 e 2159 CC – na quota indisponível (2/3 da herança), tem cada uma quota igual (1/3).
Por via do testamento outorgado em 8-10-2014, a interessada AA beneficia ainda de um legado, ao abrigo da quota disponível.
2 - Considerando que as requerentes, na qualidade de herdeiras legitimárias, têm uma quota na herança superior à que detém a interessada AA (2/3 x 2/3; 1/3 x 2/3), ou seja, respectivamente 4/9 e 2/9, estão na situação prevista no artº 12 da Lei 117/19, na medida em que aquelas dispõem de mais de metade da herança (2/3 : 2 =1/3).
Nos termos do artº 12 nº 3 da citada lei, a remessa pode ser requerida para o tribunal competente, por interessado ou interessados directos que representem isolada ou conjuntamente mais de metade da herança, o que é o caso.
3 - A interessada AA, ainda que beneficie de um legado, não é nessa qualidade herdeira (artº 2101, 2250 CC; 1085 CPC), nem interessada directa na partilha, motivo pelo qual nem podia, como legatária, requerer inventário.
Portanto o legado de que dispõe, que até podia ser atribuído a uma pessoa estranha à herança, não conta para efeitos do apuramento da maioria prevista no artº 12 da dita lei.
Em face do que precede, e atendendo a que a disposição invocada é aplicável aos processos de inventário pendentes (artº 11 da dita lei), Requer a V.Exª se digne ordenar a remessa do inventário para o tribunal da Comarca ... (artº 12 nº 4)».
A cabeça de casal foi notificada do requerimento apresentado pelas interessadas CC e EE, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 13.º, n.º 1 da Lei n.º 117/19, nada tendo dito.
Em 22-04-2022, o Senhor Notário proferiu o seguinte despacho:
«Por requerimentos de 30-03-2022, vieram as interessadas CC e EE, requerer, nos termos do n.º 4 do artigo 12º da Lei 117/2019 de 13 de Setembro, que o presente de inventário seja remetido ao Tribunal Judicial ....
Notificada a cabeça de casal, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da referida Lei 117/2019, nada disse.
Destarte, uma vez reunidos os pressupostos a que se referem o n.º 3 do artigo 12º e o n.º 1 do artigo 13º da Lei 117/2019, de 13 de Setembro, por ter sido requerida a remessa do processo por duas interessadas diretos na partilha e sem oposição da cabeça de casal, defiro o requerido e, determino a remessa do presente processo de inventário para o Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível, após liquidação da conta de custas do processo a que se refere o artigo 14.º da referida Lei 117/2019».

A cabeça de casal e as interessadas CC e EE foram notificadas do teor do despacho do Senhor Notário, que ordenou a remessa dos autos para o tribunal (ref.ªs ...49 e ...50, de 22-04-2022).
Elaborada a conta e efetuado o pagamento da correspondente responsabilidade, foram os autos foram remetidos para tramitação judicial ao Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível, em 15-09-2022.

Os autos foram distribuídos ao Juízo Local Cível ... - Juiz ... - o qual, por despacho proferido em 26-10-2022, determinou a devolução do processo ao Cartório Notarial, nos seguintes termos:
«(…)
Os presentes autos de inventários foram remetidos a este Juízo com fundamento no disposto no artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
O requerimento do pedido de remessa foi apresentado pelas filhas do de cujus.
Ora, estabelece o artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que: «A remessa do processo para o Tribunal competente também pode ser requerida, em qualquer circunstância, por interessado ou interessados diretos que representem, isolado ou conjuntamente, mais de metade da herança».
Compulsados os autos de inventário constata-se que são herdeiras do inventariado BB, a cabeça de casal/requerente do processo de inventário e cônjuge do de cujos AA, bem como as filhas do de cujos CC e EE.
Pelo que, de acordo com o disposto nos artigos 2156.º; 2157.º; 2159.º, n.º 1 e 2139.º, n.º 1 do Código Civil, cada uma das herdeiras tem direito por conta da legítima a 1/3 de 2/3, o que corresponde a cada uma a 2/9 da herança.
Por sua vez, resulta que o de cujos por testamento, terá legado por conta da sua quota disponível os bens identificados a fls. 8v a 10 dos autos.
A herança do inventariado é composta por uma universalidade de bens que integram irão integrar, a posteriori a quota disponível e indisponível.
Se as interessadas representam 4/9 da herança, conforme admitem as mesmas por requerimento por si apresentado (2/9 + 2/9), a cabeça de casal representa, pois 5/9 da herança (correspondente a 2/9 (quota indisponível) + 1/3 da quota disponível)), assumindo, esta última a qualidade de herdeira legitimária e simultaneamente de legatária.
Ora, disposto no artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, refere-se a interessados ou interessados diretos, pelo que, ainda que se admitisse a possibilidade de desassociação das duas qualidades da cabeça de casal como pretendem as interessadas (posição com a qual não se concorda), a cabeça de casal sempre seria considerada interessada para efeitos do citado normativo e, como tal, sempre se teria de considerar que a mesma representa a quota disponível da herança.
(No sentido de que o legatário é interessado na herança o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.10.2010, processo n.º 2235/07.6YXLSB-A.L1-1, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.02.2010, processo n.º 199-D/1982.L1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt.)
Inexiste fundamento de remessa do inventário notarial para o Tribunal por não se verificar os pressupostos do disposto no artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, devendo os mesmos continuar a ser tramitados no cartório notarial.
Pelo exposto, o Tribunal:
- Não recebe o presente inventário;
- Determina a oportuna devolução do processo ao Cartório Notarial respetivo.
*
Custas pelas interessadas/requerentes da remessa.
*
Notifique e devolva e dê a competente baixa.
(…)».
Deste último despacho interpuseram recurso as interessadas CC e EE, pugnando no sentido da revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que mande prosseguir o processo.

Terminam as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«i. O douto despacho recorrido contrariou frontalmente um despacho anterior do sr. Notário, prolatados ambos sob a mesma questão, ou seja revogou-o “ex-officio”, ao determinar a remessa do inventário em sentido contrário.
ii. Certo é que o despacho do sr. Notário, depois de ouvir as partes, ter ordenado o pagamento da taxa de justiça e de honorários, e de cumprir a tramitação ordenada por lei, não pode ser revogado sem existir uma reclamação ou recurso dos interessados.
iii. Fazendo caso julgado formal, pois a decisão ocorreu no âmbito da competência do sr. Notário (artº 17 nº 1 RJPI), esta impõe-se incontestavelmente dentro do processo, devendo pois ser respeitada (artº 82 RJPI, artº 620, 625 CPC).
iv. Por outro lado, entende-se que o douto despacho não interpretou a lei (artº 12 nº 3 Lei 117/19), na medida em que os requerentes da herança, segundo o espírito da lei, devem representar mais de metade do número de cabeças (interessados directos) e não mais de metade das quotas da herança, pois antes da partilha não se podem conhecer exactamente.
v. E assim, segundo o preceito, o que há a contar é o número de cabeças correspondentes a interessados directos, e no caso em que haja o direito de representação (estirpe) será contada uma só cabeça.
vi. A douta decisão violou o caso julgado, contrariando uma decisão transitada em julgado, e ainda por erro de interpretação não aplicou adequadamente o preceito do artº 12 nº 3 da Lei 117/19 de 13/19.
Nestes termos e nos mais doutamente supridos, deve a aliás douta decisão ser revogada e substituída por douto acórdão que mande prosseguir o processo, assim se fazendo a costumada justiça».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC -, o objeto do presente recurso circunscreve-se a saber:
A) se a decisão recorrida violou o caso julgado formal decorrente da decisão do Notário que determinou a remessa do presente processo de inventário para o Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível, após liquidação da conta de custas do processo;
B) em caso negativo, se estão verificados os pressupostos para a remessa do inventário notarial para o Tribunal, conforme requerida pelas interessadas, ora recorrentes.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências ou incidências processuais a considerar na decisão deste recurso são as que já constam do relatório enunciado em I supra, que se dão aqui por integralmente reproduzidas, por estarem devidamente documentadas nos autos.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso
As recorrentes insurgem-se contra o despacho judicial que determinou a devolução do processo ao Cartório Notarial remetente, começando por sustentar que a decisão recorrida contrariou frontalmente a decisão anterior do Notário, que considerou verificados os pressupostos legais para a requerida remessa do processo notarial para o Tribunal, depois de ouvir as partes e de cumprir a tramitação determinada por lei, revogando-a sem qualquer reclamação ou recurso e após o respetivo trânsito em julgado.
Alegam, em suma, que o despacho do Notário não é de mero expediente e ocorreu no âmbito da respetiva competência, impondo-se incontestavelmente dentro do processo, com força de caso julgado formal, não podendo ser contrariada por outra decisão posterior em sentido contrário, visto que ambas foram prolatadas sobre a mesma questão.
Vejamos se lhes assiste razão sobre esta questão.
Nos termos do artigo 580.º, n.º 2 do CPC, a exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Neste enquadramento, o caso julgado «é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão (despacho, sentença ou acórdão) decorrente do seu trânsito em julgado (…)», traduzindo-se «na inadmissibilidade da substituição ou modificação por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto (…)»[1]. Deste modo, a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele logo que transitada em julgado, nos termos fixados nos artigos 580.º e 581.º do CPC.
Nos termos do disposto no artigo 628.º do CPC, a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
Contudo, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, conforme decorre do disposto no artigo 620.º, n.º 1 do CPC, do que resulta que os despachos que incidam sobre a relação processual e que se mostrem transitados em julgado, têm força obrigatória dentro do processo, impedindo o tribunal de apreciar novamente tal questão.
Se tal suceder, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, tal como decorre do disposto no artigo 625.º, n.º 2 do CPC, que manda aplicar às sentenças e aos despachos que versem sobre questões processuais a cominação prevista no n.º 1 do mesmo preceito para as decisões de mérito.
Tal como referem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre[2], a propósito das sentenças e dos despachos previstos no citado artigo 620.º, n.º 1 do CPC, os mesmos «limitam, uma vez transitados em julgado (art. 628), a sua força obrigatória ao processo, sendo nele inadmissível - e, por isso ineficaz (art. 625-2) - decisão posterior sobre a mesma questão que delas tenha sido objecto».
Com efeito, no domínio do direito processual civil impera o princípio da intangibilidade do caso julgado, sendo que a força vinculativa do caso julgado «só pode ser afastada nos casos excecionais em que a imposição do caso julgado acarreta uma compressão intolerável, ou excessiva, de direitos com particular proteção constitucional e em que, constatado determinado circunstancialismo e ante o preceituado no art. 18º, nº 2 da CRP, o próprio legislador ordinário previu a possibilidade de não vigorar o princípio da intangibilidade do caso julgado, tal como acontece nos casos de admissão do recurso extraordinário de revisão previsto no art. 696º do CPC.
(…)
É que se assim não fosse, estar-se-ia a permitir que uma decisão posterior pudesse contrariar o sentido de uma decisão anterior ou repetir o conteúdo de uma outra decisão anterior, com manifesto prejuízo para a certeza e segurança das relações jurídicas»[3].
Por outro lado, «[a]purar do desrespeito do caso julgado duma decisão impõe se aprecie do respectivo objecto - a contraditoriedade entre decisões, traduzindo um desrespeito da decisão posterior pela decisão anterior, supõe (pressuposto nuclear necessário) que tenham por objecto a mesma questão (a identidade de objectos), pois que os efeitos processuais do trânsito em julgado, aportando valor de imutabilidade ao decidido, circunscrevem-se a esse objecto (a proibição de reapreciação e a vinculação ao apreciado reportam-se à questão já decidida, protegendo a continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos)»[4].
Neste domínio, o caso julgado abrange, além da parte dispositiva propriamente dita, igualmente a decisão de questões conexas com aquela, impondo que se tenha em conta a resolução das questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares que constituam pressuposto da decisão proferida.
No caso vertente, está em causa um inventário instaurado na vigência da Lei n.º 23/2013, de 05-03, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário (RJPI), tendo sido instaurado em 16-03-2015 perante o Senhor Notário do Cartório Notarial ..., visando pôr termo ao acervo hereditário deixado por óbito de BB, falecido em .../.../2015.
Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do RJPI, vigente à data da instauração do inventário em referência, competia aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efetuar o processamento dos atos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra.
Por outro lado, de acordo com o n.º 4 do citado artigo 3.º do RJPI, ao Notário compete dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra[5][1], sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns (n.º 4 do citado artigo 3.º do RJPI), e da competência do juiz para intervir nas situações específicas aí expressamente previstas (cf. artigo 66.º, n.º 1 do RJPI) e nas decisões dos recursos (cf. os artigos 16.º, n.º 4, 57.º, n.º 4, e 76.º do RJPI[6]) e das impugnações dos atos do notário que não sejam de mero expediente.
Assim, são atos da competência do Notário, entre todos os outros (dos quais apenas se ressalva a sentença homologatória da partilha e as questões incidentais a que se refere o artigo 26.º-A do RJPI), decidir dos incidentes (artigo 14.º) e outras questões incidentais (v.g. decisão sobre a arguição de nulidade de citações e/ou notificações (cf. artigo 6.º), decidir das oposições e impugnações (artigo 31.º, n.º 3), decidir das reclamações contra a relação de bens (artigo 35.º, n.º 3), marcar e presidir à conferência preparatória e marcar e presidir à conferência de interessados (artigos 47.º, n.º 1 e 49.º), determinar o adiamento daquelas conferências  (artigos 47.º, n.º 5 e 49.º), decidir do modo como deve ser organizada a partilha (artigo 57.º, n.º 2), notificar os interessados para impulso do processo (artigo 19.º, n.º1), praticar oficiosamente os atos em falta (artigo 19.º, n.º 2)[7].
 Deste modo, no âmbito do RJPI, a coexistência de competências decisórias entre Juiz e Notário não significa nem comporta sobreposição, estando a intervenção do Juiz ao nível decisório circunscrita à prolação da decisão homologatória da partilha (para lá das questões incidentais a que se refere o artigo 26.º-A do RJPI), sendo que toda a demais tramitação processual (determinação de atos, presidência de diligências e competência decisória) é da exclusiva competência do Notário.
O RJPI foi revogado pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, que aprovou o novo regime do processo de inventário, regime este aplicável apenas aos processos iniciados a partir da data da sua entrada em vigor, bem como aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º, prevendo no artigo 12.º as situações em que inventários pendentes nos cartórios notariais são remetidos aos tribunais judiciais e no artigo 13.º o respetivo procedimento de remessa.
Assim, de acordo com o n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 117/2019, de 13-09, a remessa do processo para o tribunal competente também pode ser requerida, em qualquer circunstância, por interessado ou interessados diretos que representem, isolada ou conjuntamente, mais de metade da herança.

Por seu turno, o artigo 13.º do mesmo diploma - Procedimento da remessa -, prevê o seguinte:

1 - O notário, ouvidos os demais interessados, defere o requerimento apresentado por interessado com legitimidade e determina a remessa do processo ao tribunal, no estado em que se encontrar, sempre que se verifiquem os pressupostos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo anterior.
2 - No prazo de 15 dias, contados do despacho a que se refere o número anterior, podem os interessados deduzir as impugnações contra decisões proferidas pelo notário, que pretendessem impugnar nos termos do n.º 2 do artigo 76.º do regime jurídico do processo de inventário.
3 - É aplicável à tramitação subsequente do processo remetido a juízo nos termos dos números anteriores o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil
4 - O juiz, ouvidas as partes e apreciadas as impugnações deduzidas ao abrigo do n.º 2, determina, com base nos poderes de gestão processual e de adequação formal, a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea para conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial.

No caso em apreciação, as ora apelantes, fazendo uso do regime transitório previsto no artigo 12.º, n.º 3 da Lei n.º 117/2019, de 13-09, requereram a remessa do inventário para o Tribunal da Comarca ..., o que, após observância do contraditório previsto no citado artigo 13.º, n.º 1 do mesmo diploma, e sem que tenha sido deduzida qualquer oposição por parte da interessada/cabeça de casal, veio a ser deferido pelo Senhor Notário, por despacho proferido em 22-04-2022, nos termos enunciados supra.
Mais se verifica que a cabeça de casal e as interessadas CC e EE foram notificadas do teor do despacho do Senhor Notário, que ordenou a remessa dos autos para o Tribunal, e não o impugnaram por meio de recurso, pelo que foi elaborada a conta, após o que, efetuado o pagamento da correspondente responsabilidade, foram os autos foram remetidos para tramitação judicial ao Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível, em 15-09-2022.
Ora, o despacho que determinou a remessa dos autos para o Tribunal, por estarem verificados os respetivos pressupostos a que se referem o n.º 3 do artigo 12.º e o n.º 1 do artigo 13.º da Lei 117/2019, de 13-09, configura indiscutivelmente uma decisão sobre uma questão concreta da relação processual que é da competência exclusiva do Notário, nos termos do artigo 13.º, n.º 1 da Lei n.º 117/2019.
Por outro lado, trata-se de decisão imediata e autonomamente recorrível, seja nos termos do artigo 644.º, n.º 2, al. h) do CPC e 76.º, n.º 2 do RJPI, quer por via da disposição transitória do artigo 13.º, n.º 2 da Lei n.º 117/2019, de 13-09.
Mais se verifica que a decisão do Notário, em referência, não foi impugnada por qualquer interessado, designadamente pela cabeça de casal, em momento subsequente à sua prolação.
Como tal, não tendo sido interposto recurso da decisão do Notário que determinou a remessa dos autos para o tribunal, a mesma transitou em julgado, ficando precludida a possibilidade da sua reapreciação, por força da verificação do caso julgado formal, nos termos aplicáveis do disposto no artigo 620.º, n.º 1 do CPC.

Com efeito, ainda que não esteja em causa uma decisão judicial, a decisão do Notário não deixa de se tornar definitiva se não for judicialmente impugnada por meio de reclamação ou de recurso no momento oportuno[8], adquirindo autoridade semelhante ao caso julgado formal[9].
Deste modo, estava o Tribunal a quo efetivamente impedido de apreciar novamente a questão da verificação dos pressupostos fáctico-jurídicos a que se referem o n.º 3 do artigo 12.º e o n.º 1 do artigo 13.º da Lei 117/2019, de 13-09, por se tratar de questão definitivamente resolvida no processo, sendo que a mesma não lhe foi suscitada em sede recursiva pelos interessados no referido inventário.
Em consequência, deve cumprir-se a decisão que passou em julgado em primeiro lugar, uma vez que estamos perante duas decisões de sentido oposto que incidiram sobre a mesma questão, o que importa a ineficácia da decisão recorrida, por violação do caso julgado, nos termos previstos nos artigos 620.º, n.º 1, e 625.º do CPC.
Procedem, assim, nesta parte, as conclusões da apelação.
A verificação da exceção invocada pelas recorrentes importa a procedência da apelação, ficando necessariamente prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada e acima enunciada uma vez que a mesma tem como pressuposto a possibilidade de reapreciação dos requisitos da remessa do processo notarial para o Tribunal.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for. 
Considerando que nenhuma das interessadas se manifestou a favor da decisão da 1.ª Instância, oficiosamente proferida, nem contra a anterior decisão do Notário, a qual não foi impugnada, a determinação da responsabilidade pelas custas da apelação apenas pode ser feita com base no critério do proveito retirado do processo, critério este que apenas pode ser apreciado no âmbito da decisão final[10].

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, atenta a sua ineficácia, por violação do caso julgado formal, mantendo-se a decisão do Notário que determinou a remessa do inventário notarial para o Tribunal.
Custas da apelação a cargo da(s) interessada(s) em função do decaimento a definir a final.
Guimarães, 09 de março de 2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Luísa Duarte Ramos (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Eva Almeida (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



[1] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, LEX, Lisboa, 1997, p. 567.
[2]  Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 753.
[3] Cf. o Ac. do STJ de 07-03-2019 (relatora: Maria Rosa Oliveira Tching), p. 749/17.9T8GRD.C1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac.  TRG de 18-03-2021 (relator: Ramos Lopes), p. 381/08.8TBPTL-I. G1, acessível em www.dgsi.pt.
[5]  Sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns (n.º 4 do citado artigo 3.º do RJPI), e da competência do juiz para intervir nas situações específicas aí expressamente previstas (cf. artigo 66.º, n.º 1 do RJPI).
[6] Nos termos do disposto no artigo 76.º do RJPI, com a epígrafe Regime dos recursos, da decisão homologatória da partilha cabe recurso, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o regime de recursos previsto no Código de Processo Civil (n.º 1); salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do Código de Processo Civil, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão de partilha (n.º 2).
[7] Cf. Carla Câmara/Carlos Castelo Branco/João Correia/Sérgio Castanheira, Regime Jurídico do Processo de Inventário - Anotado - 2017, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, pgs 28-29.
[8] Cf., por todos, o Ac. TRL de 06-12-2018 (relator: Pedro Martins), p. 71/16.8T8PTS.L1-2, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, cf., por todos, os Acs. TRG de 21-10-2021 (relatora: Anizabel Sousa Pereira), p. 2682/21.0T8GMR-G1; TRC de 10-12-2019 (relatora: Maria Catarina Gonçalves), p. 9335/18.5T8CBR.C1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, cf., o Ac. do STJ de 12-01-2021 (relator: Acácio das Neves), p. 6590/17.1T8FNC.L1. S1, acessível em www.dgsi.pt.