Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5527/16.0T8BRG.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
DECISÃO POR DESPACHO JUDICIAL
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
ARTº 64 DO RGCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Decorre do artº 64º do RGCO que a possibilidade de a decisão ser proferida por simples despacho está dependente da verificação cumulativa dos requisitos de, por um lado, o juiz considerar desnecessária a realização de audiência de julgamento e, por outro, não haver oposição do Mº Pº e do arguido.

II) A avaliação sobre a desnecessidade da audiência não é discricionária, correspondendo antes ao exercício de um poder vinculado do juiz, estando dependente de não existirem questões prévias ou exceções que obstem ao conhecimento de mérito.

III) Com efeito, as situações em que o juiz pode decidir por despacho são aquelas em que a decisão não dependa da realização de diligências de prova, pois, caso contrário, terá de ter lugar audiência de julgamento, onde as mesmas venham a ser produzidas e analisadas.

I) Só assim se dará cumprimento ao preceituado no artº 32º, nº 10 da CRP, segundo o qual "Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa", direito de defesa este que inclui o direito de exercer o contraditório de forma real e efetiva.

V) Constitui manifestação implícita de oposição a que o recurso de impugnação judicial seja decidido por despacho a circunstância de o arguido ter impugnado a matéria de facto e indicado prova. Assim, em caso de silêncio do arguido face à notificação que lhe foi feita para, querendo, declarar se se opunha a essa forma de decisão, sem cominação de que a ausência de resposta seria entendida como não oposição, não pode o juiz decidir a causa por despacho, sob pena de violação do princípio do contraditório decorrente das garantias de defesa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de contraordenação com o n.º 9154256XX, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), por decisão de 12-06-2015, aplicou ao arguido, N. D., a sanção acessória de inibição de conduzir, especialmente atenuada nos termos do art. 140º do Código da Estrada, pelo período de 30 dias, pela prática da contraordenação prevista e punida pelos arts. 27º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, 138º e 146º, al. i), todos do referido código, tendo o arguido procedido ao pagamento voluntário da coima pelo seu valor mínimo (€ 300).
2. Não se conformando com tal decisão administrativa, o arguido impugnou-a judicialmente, dando origem aos presentes autos com o n.º 5527/16.0T8BRG, tendo o recurso sido julgado improcedente, com a consequente manutenção daquela decisão nos seus precisos termos, por despacho datado de 24-03-2017.
3. Mais uma vez inconformado, o arguido veio interpor o presente recurso, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição[1]):

«CONCLUSÕES
A. Na sequência do Auto de Contraordenação n.º 915425696 instaurado contra o ora Recorrente, foi este, por decisão administrativa, condenado no pagamento de uma coima no montante de € 300,00 (trezentos euros), e para além desta, foi ainda aplicada uma sanção acessória de inibição de condução pelo período de 30 dias.
B. O Recorrente apresentou Impugnação Judicial da referida decisão administrativa, da qual consta, designadamente, que “O Impugnante não aceita, por não corresponder à verdade, que circulasse à velocidade de 97 Km/h, correspondente à velocidade de 103 Km/h registada pelo Radar Multanova 6FD, Modelo Muvr n.º 1131, aprovado por Despacho da ANSR n.º 1863/2014, de 2 de Janeiro e Despacho de Aprovação e Modelo do IPQ n.º 111.20.12.3.09, de 31 de Maio de 2012”.
C. Do mesmo articulado constam igualmente outras referências factuais, as quais permitem evidenciar que o Recorrente não colocou em perigo os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora, que é um cidadão exemplar, cumpridor da lei e dos compromissos que assume, zeloso dos seus deveres cívicos e com reputação granjeada entre os seus colegas, amigos, vizinhos e familiares, que a sanção acessória de inibição de condução implicaria graves prejuízos, quer para o Recorrente, quer para terceiros, etc..
D. A par de outras diligências de prova, o Recorrente peticionou que fosse ouvida como testemunha C. R., com domicílio profissional na Rua (…).
Sucede que,
E. Mediante Despacho datado de 1 de Março de 2017, foi o Recorrente notificado para, querendo, deduzir oposição a que a Impugnação Judicial apresentada fosse decidida por mero Despacho, nos termos do artigo 64.º, n.º 3, do RGCO.
F. Note-se que o referido Despacho não revela os motivos da suposta desnecessidade da audiência de julgamento e da produção de prova apresentada pelo Recorrente, nem impõe qualquer cominação à ausência de resposta…
G. Conforme resulta dos autos, o ora Recorrente não se pronunciou relativamente ao Despacho supra referido.
H. Assim sendo, e salvo o devido respeito, está ferida de nulidade a Decisão proferida, que julgou improcedente a Impugnação Judicial da decisão administrativa apresentada nos autos sem realização de audiência contraditória – cfr., por todos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09.09.2015, Processo n.º 666/14.4T8AGD.P, disponível em www.dgsi.pt.
I. Com efeito, “não podia o julgador, sem ofensa do contraditório e das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho, já porque pelo mesmo foram negados os factos e apresentada prova testemunhal”.
J. A não realização da audiência de julgamento, nas circunstâncias acabadas de indicar, constitui a nulidade prevenida na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que designe data para a realização do julgamento.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente Recurso, e em consequência deve revogar-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, com as consequências legais.
Ao julgardes assim, Venerandos Juízes Desembargadores, estareis, uma vez mais a fazer
JUSTIÇA!»
4. Na sua contra motivação, a Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância concluiu que (transcrição):
I. Nos termos do artigo 64º nº 2 do RGCO o Juiz decide por despacho o caso quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.
II. No presente caso e conforme resulta de fls. 43, o recorrente foi notificado do douto despacho de fls. 42 e com cópia do mesmo, o qual refere expressamente e, entre o mais, o seguinte:“ (…) Não se afigura necessária a realização da audiência de julgamento. Notifique o MP e recorrente para, querendo, deduzirem oposição a que o recurso seja decidido por despacho (artigo 64.º, n.º 3 do diploma citado).” No ofício supra referido, refere-se o seguinte: Fica notificado na qualidade de Mandatário nos termos e para os efeitos a seguir mencionados; De todo o conteúdo do despacho, cuja fotocópia este acompanha e para no prazo de 10 dias declarar, querendo, se opõe a que o Meritíssimo Juiz decida por despacho sem necessidade de julgamento, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 2 do DL n.º 433/82, de 27/10.”
III. Conforme resulta do compulso dos autos, o arguido não apresentou nenhuma declaração escrita e expressa de oposição a que a decisão fosse proferida por despacho pelo que inexiste a nulidade invocada pelo arguido sendo o despacho proferido válido.
IV. Mesmo que no recurso de impugnação judicial o arguido tenha apresentado requerimento de produção de prova testemunhal, esse facto, não foi acompanhado de expressa manifestação de oposição de eventual decisão por mero despacho.
V. Assim sendo, nos termos legais e salvo melhor entendimento, nada impede que se proceda à notificação nos termos do artigo 64º nº 2 do RGCO quando o Tribunal é do entendimento que os autos já possuem elementos que lhe permitem decidir sem necessidade de ser produzida audiência de julgamento.
VI. Com efeito, não se encontra prevista na lei que a indicação de prova no requerimento de impugnação judicial de decisão em processo de contraordenação deva ser considerada como oposição à decisão por despacho, sendo de referir que esse entendimento esvaziaria de sentido prático o artigo 64º, nº 1 e 2 do RGCO já que por regra é indicada prova testemunhal e as situações que aí poderiam ser enquadradas seriam residuais.
VII. Tendo o arguido sido notificado para esse efeito deveria ter manifestado no prazo concedido para esse efeito, de 10 dias, oposição à decisão por mero despacho o que não foi feito, pelo que quer a notificação efetuada quer a decisão proferida por despacho pela Mmº Juiz a quo não padecem de qualquer vício ou de nulidade.
Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.»
5. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento, porquanto embora a questão não seja consensual na jurisprudência, é de perfilhar o entendimento de que tendo o arguido sido notificado da intenção do juiz de decidir a causa por despacho, por entender não ser necessária a audiência de julgamento, e para, querendo, deduzir oposição a tal, nada dizendo, tem de interpretar-se o seu silêncio como aceitação tácita da decisão da causa por despacho, não se podendo, assim, aceitar, atento o princípio da lealdade processual que deve nortear a conduta dos sujeitos processuais, que o arguido, que não se opôs, no momento próprio, tendo-lhe sido dada oportunidade para tal, a que a decisão fosse proferida por despacho, venha, após a sua prolação, arguir a nulidade da não realização da audiência de julgamento e invocar a violação do princípio do contraditório.
6. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu a esse parecer, alegando que a jurisprudência de todos os Tribunais da Relação aponta no sentido de situações como a dos presentes autos integrarem a nulidade prevista na al. d) do n.º 2 do art. 120º do Código de Processo Penal, não se podendo retirar outra conclusão quanto ao valor do silêncio que não seja a de que tal constituiu uma não aceitação tácita da decisão da causa por despacho, porquanto o arguido negou os facto de que vinha acusado, apresentou prova testemunhal na sua defesa e, ainda, o despacho proferido não deixa antever, minimamente, os motivos da irrelevância da prova arrolada.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação, sem prejuízo de outras questões de conhecimento oficioso[2] e com a limitação imposta pelo art. 75º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCO), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, do qual decorre que o recurso apenas pode versar sobre matéria de direito, salvo a existência dos vícios previstos no art. 410º do Código de Processo Penal.
Analisadas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão a apreciar consiste em saber se a decisão recorrida é nula por ter decidido o recurso de impugnação judicial por despacho nos termos do art. 64º, n.º 2, do RGCO sem o assentimento expresso do arguido, quando este impugnou os factos imputados e indicou prova.

2. DA DECISÃO RECORRIDA

O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
«Em processo de contraordenação, a ANSR aplicou a :
N. D.,
uma coima tendo sido ainda aplicada sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, nos termos dos arts. 27° n° 2 al. a) 3°, 138° e 146° i) todos do Código da Estrada, na redação atual.
Inconformado com a decisão da autoridade administrativa, RECORRE pedindo a sua absolvição ou, se não for o caso, e apenas quanto à sanção acessória da inibição de condução, pedindo a sua não aplicação ou então a sua suspensão. Requereu várias diligências de prova que não vieram a ser apreciadas no despacho que recebeu o recurso, porém, o arguido também aceitou que a decisão fosse proferida sem audiência e por simples despacho. De qualquer forma, o certificado de verificação do radar consta de fls. 8.
*
Cumpre sumariamente apreciar, dada a simplicidade da questão.
O arguido, de forma confusa, de início negando a prática da infração, para depois, admitir que a terá praticado ao executar uma manobra de ultrapassagem, admite que excedeu o limite de velocidade previsto para o local.
E a velocidade que é medida pelo radar é a velocidade instantânea, porque outra não é pedida pelo artigo 27° do CE que preceitua: Sem prejuízo do disposto nos artigos 24.° e 25.° e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores não podem exceder as seguintes velocidades instantâneas (em quilómetros/hora).
Pelo que se comprova a infração cometida.
Quanto à não aplicação da sanção acessória, não pode ter tal pedido deferimento já que a as contraordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e (sempre, dizemos nós) com sanção acessória, preceitua o art. 138° do CE.
O arguido praticou contraordenação muito grave, nos termos do art. 146° i), por referência ao art. 27° n° 2 a) 3°, conduzindo excedendo em 47 Km/h o limite de 50 Km/h permitido para o local, uma localidade.
Pelo que não pode deixar de ser aplicada a sanção acessória nos termos constantes da decisão administrativa.
Quanto à possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória.
Também resulta do art. 141 ° n" 1 do CE que pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves.
Ao contrário do que sucedia anteriormente, apenas nas contraordenações graves é que se mostra legalmente admissível a figura da suspensão da execução da sanção acessória.
Como visto, tendo o arguido cometido infração muito grave, está posta de lado, por inadmissibilidade legal, a suspensão nos termos requeridos.
Pelo exposto, decidindo:
Julgo improcedente o recurso interposto por N. D., mantendo, consequentemente a decisão administrativa nos seus precisos termos.
Custas do recurso pelo arguido pelo mínimo legal- arts. 93° 3 e 94°3 do DL. 433/82 de 27/10.
Notifique o Ministério Público, o arguido e a autoridade administrativa.
Após trânsito, remeta certidão à ANSR para efeitos de averbamento no RIC.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Resulta dos autos que, no requerimento de impugnação judicial, o arguido impugnou a factualidade por cuja prática foi condenado administrativamente, traduzida em circular a uma velocidade de pelo menos 97 km/h, embora subsidiariamente, para a eventualidade de ser correta a velocidade indicada, tenha requerido a dispensa da sanção acessória ou, não estando reunidos os seus pressupostos, a suspensão da sua execução, mais requerendo a produção de prova (documental, por inspeção ao local e testemunhal).
Perante esse requerimento, o Exmo. Juiz, no despacho de recebimento do recurso de impugnação judicial, fez constar o seguinte segmento (transcrição):
«Não se afigura necessária a realização da audiência de julgamento.
Notifique MP e recorrente para, querendo, deduzirem oposição a que o recurso seja decidido por despacho (art. 64º, n.º 3, do diploma citado).»
A essa notificação o arguido não respondeu.
3.2 - O art. 64º do RGCO, sob a epígrafe "decisão por despacho judicial", dispõe que:
"1. O Juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.
2. O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério Público não se oponham.
(…)."
Resulta deste preceito legal que a possibilidade de a decisão ser proferida por simples despacho está dependente da verificação cumulativa dos requisitos de, por um lado, o juiz considerar desnecessária a realização de audiência de julgamento e, por outro lado, não haver oposição do Ministério Público e do arguido[3].
A avaliação sobre a desnecessidade da audiência não é discricionária, correspondendo antes ao exercício de um poder vinculado do juiz, estando dependente de não existirem questões de facto controvertidas ou de existirem questões prévias ou exceções que obstem ao conhecimento de mérito.
Com efeito, as situações em que o juiz pode decidir por despacho são aquelas em que a decisão não dependa da realização de diligências de prova, pois, caso contrário, terá de ter lugar audiência de julgamento, onde as mesmas venham a ser produzidas e analisadas.
Só assim se dará cumprimento ao preceituado no art. 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual "Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa", direito de defesa este que inclui o direito de exercer o contraditório de forma real e efetiva.
Ora, se o arguido impugna judicialmente os factos com base nos quais foi condenado pela autoridade administrativa, esse direito constitucionalmente consagrado apenas se poderá tornar efetivo com a realização de audiência de julgamento, na qual venham a ser produzidos os meios de prova por ele indicados.
Nesse sentido se pronunciam António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral[4], ao referirem que «Consideramos assim, adquirido que a decisão do recurso da entidade administrativa apenas se pode efectuar através de despacho desde que, para além do juízo nesse sentido formulado pelo julgador e da não oposição do M.º P.º e do arguido, não exista prova cujos respectivos meios de produção apenas tenham a possibilidade de ser contraditados em sede de audiência de julgamento. Significa o exposto que apenas quando o juiz considera adquiridos os factos recolhidos em sede administrativa e que não existem outras provas a produzir é que deverá decidir através de despacho. (…)
Os casos em que o juiz deverá decidir por despacho terão de ser casos em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova.
Assim, poderá decidir-se por despacho sempre que for de julgar procedente alguma excepção, dilatória (…) ou peremptória (…), ou a questão que é objecto de recurso for apenas de direito ou, quando a questão que é objecto de recurso for de facto, o processo forneça todos os elementos necessários para o seu conhecimento.»
No entanto, o legislador não deixou ao exclusivo critério do juiz a realização ou não da audiência de julgamento. Com efeito, mesmo nos casos em que se lhe afigure desnecessária tal realização, exige-se ainda que os sujeitos processuais (Ministério Público e arguido) não se oponham a que o recurso seja decidido por simples despacho.
3.3 - A questão em apreço nos autos é a do valor a atribuir ao silêncio do arguido face à notificação que lhe foi feita para, querendo, declarar se se opunha à decisão por despacho, tendo ele, no recurso de impugnação judicial, impugnado a matéria de facto e indicado prova.
Como dá conta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, esta questão não é consensual na doutrina e na jurisprudência, existindo duas posições opostas.
Para uma posição, nessa situação, o juiz não pode decidir por despacho, por se dever entender que constitui manifestação implícita de oposição a essa forma de decisão o oferecimento de prova a ser produzida em audiência[5].
De acordo com o outro entendimento, a oposição exigida pelo n.º 2 do art. 64º do RGCO tem de ser expressa e inequívoca, não valendo como tal a circunstância de o arguido, no requerimento de impugnação judicial, ter indicado prova[6].
Em nossa opinião, é de aderir à primeira dessas posições, essencialmente com base na argumentação desenvolvida no acórdão desta Relação de 14-01-2008[7], segundo a qual, em suma, podendo, em termos gerais, a não oposição ser expressa ou meramente tácita, uma vez que do citado art. 64º, n.º 2, do RGCO não decorre que a não oposição tácita tem o mesmo valor da expressa, tal consequência terá de ser necessariamente comunicada ao arguido, ou seja, este deve ser notificado para declarar se se opõe ou não a que a decisão seja proferida por simples despacho, com a cominação de que o seu silêncio será entendido como não oposição. A necessidade dessa cominação será ainda maior nos casos em que o arguido, na impugnação judicial, negue os factos e indique elementos de prova, porquanto, independentemente da relevância da defesa, é normal que o arguido espere que o juiz apenas decida das questões colocadas na impugnação depois de produzir a prova que ofereceu, ou depois de lhe serem comunicadas as razões porque se considera a prova irrelevante.
Na verdade, se o arguido estrutura a sua defesa na impugnação dos factos integradores da contraordenação pela qual foi condenado em sede administrativa e indica meios de prova para sustentar tal defesa, não é expetável que perante a notificação para se pronunciar sobre a decisão ser proferida por simples despacho, se entenda que se não se opuser será proferida decisão que não atenda à impugnação deduzida, sob pena de violação do princípio da confiança derivado do direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, n.º 4, da Constituição.
Pelo exposto, entendemos que no caso vertente não podia o Exmo. Juiz a quo, sem violação do princípio do contraditório decorrente das garantias de defesa, constitucionalmente consagradas, extrair do silêncio do arguido uma não oposição à decisão por despacho, uma vez que pelo mesmo, no requerimento de impugnação judicial, já haviam sido impugnados os factos e indicados meios de prova a produzir e a analisar em audiência de julgamento, sendo certo que o despacho recorrido é completamente omisso quanto aos motivos de irrelevância dessa prova, e, por outro lado, os termos em que o arguido foi notificado para, querendo, deduzir oposição a que o recurso fosse decidido por despacho, sem conter a referida cominação, não dispensavam a necessidade de uma tomada de posição expressa no sentido de não se opor a essa forma de decisão.
A decisão por despacho nos casos em que não tiver sido validamente obtida a não oposição do arguido a tal forma de decisão traduz-se na verificação de um vício - violação do direito de defesa por preterição da realização da audiência de julgamento, enquanto diligência obrigatória e, por isso, essencial para a descoberta da verdade - que é suscetível de ser enquadrado na nulidade processual prevista no art. 120º, n.º 2, al. d), parte final, do Código de Processo Penal[8].
Nulidade essa que pode ser invocada pela via e no prazo do recurso, como decorre do disposto nos arts. 410º, nº 3, do Código de Processo Penal e 73º, n.º 1, al. e), do RGCO.
De acordo com o estabelecido no n.º 1, do art. 122º, do citado código, “as nulidades tornam inválido o ato em que se verificam, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar”.
Como tal, na procedência do recurso, haverá que declarar nulo o despacho recorrido, revogando-o, o qual deverá ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, N. D., revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento.
Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 11 de setembro de 2017


(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)

[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] - Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
[3] - Neste sentido vd. António Beça Pereira, in Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 7ª edição, Almedina, pág. 134, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contraordenações, Universidade Católica Editora, págs. 265-266.
[4] - In Notas ao Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas, 3ª edição, Almedina, págs. 228-230.
[5] - Neste sentido se pronunciam, na doutrina, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 5ª edição, 2009, Vislis Editores, pág. 550, e, na jurisprudência, entre outros, os acórdãos da RC de 15-05-2013 (processo n.º 5889/12.1T2ILH.C1) e de 07-10-2015 (processo n.º 790/14.3T9LRA.C1), da RE de 07-01-2016 (processo n.º 47/15.2T8CCH.E1), da RG de 02-05-2012 (processo n.º 3225/11.0TBGMR.G1), da RL de 07-03-2013 (processo n.º 589/12.1T2ILH.C1) e da RP de 25-10-2006 (processo n.º 0643695), de 17-09-2008 (processo n.º 0842397), de 04-02-2009 (processo n.º 0816413), de 15-04-2015 (processo n.º 9839/14.9T8PRT.P1) e de 09-09-2015 (processo n.º 666/14.4T8AGD.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] - Neste sentido, cf., entre outros, os acórdãos da RP de 17-10-2001 (processo n.º 0111027) e da RE de 11-10-2011 (processo n.º 272/11.5TBLGS.E1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] - Publicado na Coletânea de Jurisprudência, Ano XXXIII, Tomo I/2008, pág. 294-295.
[8] - Neste sentido, vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pág. 376, e, nomeadamente, os acórdãos da RC de 15-05-2013 e de 07-10-2015, da RE de 07-01-2016, da RG de 02-05-2012, da RL de 07-03-2013 e da RP de 04-02-2009 e de 09-09-2015, referidos nas notas 5 e 7.