Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1655/22.0T8BCL.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: RETRIBUIÇÃO
CARGO DE CHEFIA
HOSPITAL E.P.E.
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Resulta do artigo 23.º n.º 2 do DL n.º 177/2009, de 04 de Agosto, ao estabelecer que “o exercício de funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde é cumprido em comissão de serviço por três anos, renovável por iguais períodos, sendo a respectiva remuneração fixada em diploma próprio, o direito dos trabalhadores que exerçam essas funções de Direcção à respectiva remuneração, sendo que o seu quantum é que deverá ser fixado em diploma próprio.
II - Decorre dos art.s 35.º e 27.º n.º 9 da LOE 2013, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e das LOE de 2014, 2015, 2016 e 2017 que contêm normas semelhantes aquelas (cf. art.s 39.º/1 e 2 a) e 33.º/9 r) da Lei 83-C/2013, de 31.12, art.s 38.º/1 e 2 a) da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12 e art. 2.º/9 r) da Lei 75/2014 de 12.9, art. 18.º/1 da Lei 7-A/2016 de 30.3 e art. 19.º/1 da Lei 42/2016, de 28.12) que estava vedado à ré, um Hospital E.P.E, a prática de quaisquer atos que consubstanciassem valorizações remuneratórias da autora, médica vinculada a esse Hospital por contrato individual de trabalho desde 2009 e que foi nomeada para Directora do Serviço de Anestesiologia em 12.3.2013.
III – Para a fixação do quantum da remuneração devida pelo exercício dessas funções de Direcção (que não chegou a ser fixado por diploma próprio) é adequado recorrer-se, nos termos previstos no art. 272.º n.º 1 do CT, à prática da empresa/ré, isto é, ao valor que, entretanto, passou a pagar pelo exercício das referidas funções (10% sobre o valor da retribuição base).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: AA
Apelada: HOSPITAL ..., E.P.E ...

I – RELATÓRIO

AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra HOSPITAL ..., E.P.E ..., também nos autos melhor identificada, pedindo a condenação da ré a:

1. reconhecer que assiste direito à autora ao acréscimo remuneratório devido pelo exercício das funções de Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ..., no montante de 10% sobre o montante da retribuição base da autora enquanto profissional de saúde médica ao serviço do réu
2. reconhecer que este direito da autora a tal acréscimo é devido desde a data em que a mesma foi nomeada Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ... em 12 de março de 2013
3. a pagar à autora todas as quantias referentes a esse acréscimo remuneratório desde a data de 12 de março de 2013 e até 31 de março de 2019, num total de 31.930,45 € (trinta e um mil novecentos e trinta euros e quarenta e cinco cêntimos) acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados sobre a data em que era devido cada um desses acréscimos remuneratórios mensais e até integral e efetivo pagamento

A autora alega para tanto, e em síntese, que é uma profissional de saúde médica, com a especialidade de anestesiologia, achando-se inscrita na Ordem dos Médicos e sendo titular da cédula respectiva profissional.
Em 1 de janeiro de 2009 por contrato de trabalho escrito, denominado “contrato individual de trabalho sem termo no sector da saúde” a autora foi admitida ao serviço do réu para exercer as funções de médica da área profissional da sua especialidade, com a categoria profissional de Assistente Graduada.
Em 12 de março de 2013 a autora foi nomeada Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ... e em 13 de agosto de 2015 foi a autora reconduzida como Diretora de Serviço de Anestesiologia e foi também nomeada Diretora do Bloco Operatório.
Sucede que, nos termos do artigo 17º-A do Decreto-Lei nº 176/2009, de 4 de Agosto e do artigo 23º do Decreto-Lei nº 177/2009, de 4 de Agosto, ambos os diplomas alterados pelo Decreto-Lei n.º 266-D/2012, de 31 de dezembro, “os trabalhadores integrados (…), consoante o caso, na carreira médica ou na carreira especial médica, (…) podem exercer funções de direção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde, desde que sejam titulares das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado”
E tal tem, evidentemente, de ser remunerado acima daquilo que o profissional médico tem por remuneração base e, nesse sentido, o réu encontra-se, na atualidade, e desde o mês de julho de 2019, a pagar à autora um acréscimo de 10% sobre o vencimento base da mesma, referente ao exercício do cargo de Direção do serviço de Anestesiologia.
Na verdade em 4 de abril de 2019 a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., emitiu uma Circular Informativa, com o nº 5/2019/ACES, para todos os Serviços do SNS e onde transmitiu as seguintes orientações:
.. O exercício dos cargos enunciados no artigo 17º-A do Decreto-Lei nº 176/2009, de 4 de agosto, aditado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31 de dezembro, e no artigo 23º do Decreto-Lei nº 177/2009, de 4 de agosto faz-se, respetivamente, em contrato de comissão de serviço, nos termos do artigo 162º do Código do Trabalho e em comissão de serviço nos termos da Lei Geral do trabalho em Funções Públicas aprovada em anexo à Lei nº 35/2014, de 20 de junho;
.. os acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício das referidas funções são, na falta de regulamentação própria, calculados nos termos estatuídos pelo nº 1 do artigo 44º nº 3 do artigo 45º e artigo 61º, todos do Decreto-Lei nº 73/90, de 6 de março, e acrescem à remuneração base correspondente à categoria e posição remuneratória detidas pelo trabalhador médico.
A autora tem questionado o réu pelos pagamentos deste acréscimo mensal desde a data em que foi nomeada Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ... em 12 de março de 2013 e o mês de julho de 2019, quando começou a receber tal acréscimo, mas sem qualquer sucesso.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação entre elas.

Notificada para o efeito, a ré apresentou contestação para, em suma, e além de impugnar alguma matéria alegada pela autora, alegar que a autora não tem razão no que peticiona:
A nomeação para o cargo de Director de Serviço não é uma atribuição por direito próprio, no sentido de ser exigível, como também não pode ser imposta pelo CA.
No art. 35º da Lei do Orçamento de Estado para 2013 foi proibida a prática de quaisquer atos que consubstanciassem valorizações remuneratórias dos titulares de cargos e demais pessoal nessa Lei identificado.
Ou seja, naquela data da nomeação da Autora (12.03.2013) estava proibida qualquer valorização remuneratória, pelo que a pretensão da Autora é desde logo ilegal.
Além de que os pressupostos da pretendida valorização remuneratória, erradamente alegados na causa de pedir, não existiam, nem existem.
Na verdade, ainda hoje não existe legislação habilitante ou que reconheça tal direito, por razões não imputáveis ao Hospital, que, como os demais Hospitais do SNS, reclamaram junto da Tutela, sem sucesso, uma orientação legal.
Face à reclamação de alguns profissionais e depois de recebida a Circular Informativa n.º 5/2019 da ACSS, de 4 de Abril de 2019, na sequência da comunicação interna nº 371/SGRH datada de 29/05/2019, é que o Conselho de Administração deste Hospital deliberou manter em funções os Diretores de Serviços até que se proceda à nomeação nos termos do nº 3 do art. 28º do Dec. Lei nº 18/2017 de 10 de Fevereiro e deliberou ainda em 27.06.2019 considerar “o direito aos acréscimos remuneratórios desde a data da entrada em vigor da Circular Informativa n.º 5/2019 ACSS”.
Ou seja, apesar daquela circular informativa não ser imperativa, nem sequer ter suporte em diploma legal, que vigorasse naquela data, no uso de competências próprias, o Conselho de Administração deliberou aplicar aquela circular com efeitos desde Abril de 2019.
Porém, aquela “circular informativa” não manda aplicar tal orientação com efeitos retroativos desde data anterior, muito menos o poderia mandar fazer por ausência de legislação habilitante.

Prosseguindo os autos - e após as partes terem-se podido pronunciar após notificação do despacho no qual constava, designadamente: Estando em causa uma questão de direito, deverá ser conhecido, desde já, o mérito da acção, nenhuma das partes se tendo oposto à anunciada tomada de decião - foi proferido saneador - sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a ré do pedido.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a autora interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1) A autora / recorrente é uma profissional de saúde médica, com a especialidade de anestesiologia, achando-se inscrita na Ordem dos Médicos e sendo titular da cédula profissional nº ...90
2) Em 12 de março de 2013 a autora foi nomeada Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ..., acumulando estas suas novas atribuições, com as suas funções para as quais, desde 1 de janeiro de 2009, mediante contrato individual de trabalho sem termo no sector da saúde havia sido admitida ao serviço do réu / hospital para exercer, sob a sua autoridade e direção, as funções de médica da área profissional de Anestesiologia, com a categoria profissional de Assistente Graduada, segundo a deontologia profissional própria e de acordo com os objetivos a definir pelo Hospital
3) Em 13 de agosto de 2015 foi a autora reconduzida como Diretora de Serviço de Anestesiologia e foi também nomeada Diretora do Bloco Operatório e em 8 de maio de 2020 foi novamente reconduzida no cargo de Diretora de Serviço de Anestesiologia onde, ainda hoje, se mantém;
4) O DL 177/2009, de 4 de agosto, nos números 1 e 2 do seu artigo 23º, prevê que:
1. Os trabalhadores integrados na carreira médica podem exercer funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde, desde que sejam titulares das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado.
2. Sem prejuízo do disposto em lei especial, e de acordo com a organização interna e conveniência de serviço, o exercício de funções de direção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde é cumprido em comissão de serviço por três anos, renovável por iguais períodos, sendo a respectiva remuneração fixada em diploma próprio…”
5) O que, certamente, levou muitos profissionais qualificados, cumprindo os requisitos do número 1 daquele artigo 23º, a concorrerem e a assumirem funções naqueles termos, como foi o caso da autora / recorrente, desde 12 de março de 2013
6) Na expetativa MAIS QUE LEGITIMA de, evidentemente conforma legislado, ser remunerada por aquele exercício
7) Como nunca o foi até julho de 2019, altura em que o réu começou a pagar aquele acréscimo, mercê da Circular Informativa da ACSS (Administração Central do Sistema de Saúde), a autora veio requerer lhe sejam pagos todos os seus direitos vencidos desde a data em que assumiu aquelas funções referentes ao exercício do cargo de Direção do serviço de Anestesiologia (12 de março de 2013) até lhe ter começado a receber (julho de 2019)
8) O Mmº Juiz de primeira instância ao não condenar no peticionado, baseando-se numa falta de legislação a fixar essa remuneração, não cumpriu as suas funções de Juiz interpretando a lei e integrando as possíveis lacunas da mesma
9) Não pode é a autora / recorrente, ser espoliada de um direito que adquiriu, que lhe foi conferido por lei (nº 2 do artigo 23º do DL 177/2009 de 4 de agosto) de receber uma remuneração pelas suas funções
10) Ao decidir como decidiu violou a sentença proferida o constante no artigo 10º do Código Civil, bem com o constante no artigo 59º nº 1 aliena a) e número 2 da Constituição da República Portuguesa”

O recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso, pois, e em suma:
“1-A douta sentença apreciou corretamente os factos alegados pelas partes, os documentos juntos não impugnados e efetuou uma correta interpretação e aplicação da lei aplicável.
2-Não merece, assim, qualquer censura, pelo que deverá o Recurso improceder totalmente por não se mostrarem violadas quaisquer disposições legais.”

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a única questão que cumpre apreciar:
A autora tem direito a um acréscimo remuneratório pelo exercício das funções de Directora de Serviço, desde a data em que foi nomeada, em 12 de março de 2013, e o mês de julho de 2019 ?

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão da causa são os que assim constam da decisão recorrida (pois que não houve recurso da matéria de facto nem se vislumbra fundamento para alterar oficiosamente a decisão proferida sobre essa matéria):

“1. A autora é uma profissional de saúde médica, com a especialidade de anestesiologia, achando-se inscrita na Ordem dos Médicos e sendo titular da cédula profissional nº ...90
2. Em 1 de janeiro de 2009 por contrato de trabalho escrito, denominado “contrato individual de trabalho sem termo no sector da saúde” a autora foi admitida ao serviço do réu para exercer, sob a sua autoridade e direção, as funções de médica da área profissional de Anestesiologia, com a categoria profissional de Assistente Graduada, segundo a deontologia profissional própria e de acordo com os objetivos a definir pelo Hospital;
3. E mediante a retribuição mensal ilíquida de 4.404,17 € (quatro mil quatrocentos e quatro euros e dezassete cêntimos), sendo que tal retribuição na atualidade é de 4.457,14 € (quatro mil quatrocentos e cinquenta e sete euros e catorze cêntimos);
4. Em 12 de março de 2013 a autora foi nomeada Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ...
5. Em 13 de agosto de 2015 foi a autora reconduzida como Diretora de Serviço de Anestesiologia e foi também nomeada Diretora do Bloco Operatório
6. Em 8 de maio de 2020 a autora foi novamente reconduzida no cargo de Diretora de Serviço de Anestesiologia onde, ainda hoje, se mantém;
7. O réu encontra-se, na atualidade, e desde o mês de julho de 2019, a pagar à autora um acréscimo de 10% sobre o vencimento base da mesma, referente ao exercício do cargo de Direção do serviço de Anestesiologia, no montante mensal atual de 445,71 € (quatrocentos e quarenta e cinco euros e setenta e um cêntimos)
8. Em 4 de abril de 2019 a Administração Central do Sistema de Saúde, I.P., emitiu uma Circular Informativa, com o nº 5/2019/ACES, para todos os Serviços do SNS e onde transmitiu as seguintes orientações:
a) O exercício dos cargos enunciados no artigo 17º-A do Decreto-Lei nº 176/2009, de 4 de agosto, aditado pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 266-D/2012, de 31 de dezembro, e no artigo 23º do Decreto-Lei nº 177/2009, de 4 de agosto faz-se, respetivamente, em contrato de comissão de serviço, nos termos do artigo 162º do Código do Trabalho e em comissão de serviço nos termos da Lei Geral do trabalho em Funções Públicas aprovada em anexo à Lei nº 35/2014, de 20 de junho;
b) os acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício das referidas funções são, na falta de regulamentação própria, calculados nos termos estatuídos pelo nº 1 do artigo 44º nº 3 do artigo 45º e artigo 61º, todos do Decreto- Lei nº 73/90, de 6 de março, e acrescem à remuneração base correspondente à categoria e posição remuneratória detidas pelo trabalhador médico;”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se nos termos seguintes:

“Fixada a matéria de facto cumpre dizer que as partes, nos seus articulados, fizeram já referência às normas jurídicas aplicáveis ao caso dos autos.
Assim, e nos termos do artigo 23º, n.º 1 e 2 do DL 177/2009, de 04 de Agosto:
1. Os trabalhadores integrados na carreira médica podem exercer funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde, desde que sejam titulares das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado.
2. Sem prejuízo do disposto em lei especial, e de acordo com a organização interna e conveniência de serviço, o exercício de funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde é cumprido em comissão de serviço por três anos, renovável por iguais períodos, sendo a respectiva remuneração fixada em diploma próprio.”
Ora, e conforme as partes reconhecem nos seus articulados, não existe legislação a fixar a remuneração para aqueles que exerçam funções de direcção ou chefia de serviços do SNS.
A referida circular nada mais é do que uma forma de procurar uma solução que permita a fixação de uma remuneração pelo exercício de funções de chefia, mas sem que exista, de facto, legislação que fixe essa remuneração.
Assim, entendemos não existir obrigação para a ré de remunerar a autora, pelo facto desta exercer funções de chefia, pelo que a acção não pode, assim, proceder.”

Vejamos.

O artigo 23.º do DL n.º 177/2009, de 04 de Agosto, trazido à colacção pelas partes e cuja aplicabilidade ao caso é efectivamente de aceitar, dispõe:

“Direcção e chefia
1 - Os trabalhadores integrados na carreira médica podem exercer funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde, desde que sejam titulares das categorias de assistente graduado sénior ou, em casos devidamente fundamentados, de assistente graduado.
2 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, e de acordo com a organização interna e conveniência de serviço, o exercício de funções de direcção, chefia, ou coordenação de departamentos, serviços ou unidades funcionais do Serviço Nacional de Saúde é cumprido em comissão de serviço por três anos, renovável por iguais períodos, sendo a respectiva remuneração fixada em diploma próprio.
3 - O exercício das funções referidas nos números anteriores não impede a manutenção da actividade de prestação de cuidados de saúde por parte dos médicos, mas prevalece sobre a mesma.” (sublinhámos)

Decorre do artigo citado que os trabalhadores integrados na carreira médica que exerçam funções de direcção têm direito a uma remuneração, à “respectiva remuneração”. Esta é uma asserção que face à redacção da norma se afigura inequívoca.
Não se diz que diploma próprio poderá prever a remuneração por aquele exercício de funções (ou algo semelhante), afirma-se (sendo) a existência de remuneração.
 O seu quantum é que deverá ser fixado em diploma próprio.

Ora, tratando-se de norma que, embora não inserida no CT, é reguladora (também) de contrato de trabalho, só poderia ser afastada por cláusula do contrato de trabalho que estabelecesse condições mais favoráveis para o trabalhador – art. 3.º/4 do CT.

Como é consabido, a doutrina e a jurisprudência há muito que, na terminologia associada à retribuição, distinguem (nomeadamente) entre retribuição ou remuneração em sentido estrito e remuneração em sentido amplo.

E a citada norma também sobre esse prisma terminológico utiliza o termo “remuneração” com propriedade.

Com efeito, retribuição ou remuneração em sentido estrito consiste na prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho (cf. art. 258.º/1 do CT), enquanto a remuneração em sentido amplo engloba o conjunto das vantagens patrimoniais atribuídas ao trabalhador em razão do seu contrato de trabalho, que podem ou não decorrer da actividade por ele desenvolvida.

O que está aqui em causa é um acréscimo na remuneração, um suplemento remuneratório, que é devido por força de à autora terem sido atribuídas funções de Direcção.

De facto, não se pode olvidar que estas funções de direcção (e ainda que não estejam especificadas, tal é do senso comum), a acrescer  às funções já compreendidas no seu posto de trabalho, de anestesiologista, revelam, quando comparadas com as funções exercidas por trabalhadores colocados em postos de trabalho caracterizados por idênticas carreira e categoria,  uma onerosidade acrescida, sendo que as particulares exigências da prestação do trabalho que decorrem para a autora por via do exercício destas funções acrescidas deverão reflectir-se  também num incremento da sua remuneração, o que, aliás, resulta também da aplicação do princípio da igualdade salarial, que na sua plenitude impõe que no tratamento de cada situação se atenda não só às semelhanças com as demais situações comparáveis mas também às suas diferenciações.

E se é verdade que um suplemento desta natureza poderá deixar de ser atribuído (sem que isso viole o princípio da irredutibilidade da retribuição) se desaparecerem os motivos objectivos que justificaram a sua atribuição, é igualmente certo que, no caso e como decorre da matéria de facto, tais motivos não desapareceram.

É despiciendo, pois, que a Circular Informativa aludida nos autos não tenha carácter imperativo, nem preveja a aplicação retroactiva das orientações que contém, afigurando-se também perfeitamente inócuo a alegação da ré de que a nomeação para o cargo de Director de Serviço não é uma atribuição por direito próprio, no sentido de ser exigível pelo trabalhador, como também não pode ser imposta pelo CA.

Sucede, porém, que a ré alega que por força de várias normas de Leis do Orçamento de Estado – v.g. art. art. 35º da Lei do Orçamento de Estado para 2013 - foi proibida a prática de quaisquer atos que consubstanciassem valorizações remuneratórias dos titulares de cargos de trabalhadores da administração pública nessas leis identificados, como é o caso da ora autora.

Afigura-se que neste ponto a ré tem razão.

Efectivamente o art. 35.º da LOE 2013, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, estabelecia:

“1 - É vedada a prática de quaisquer atos que consubstanciem valorizações remuneratórias dos titulares dos cargos e demais pessoal identificado no n.º 9 do artigo 27.º
2 - O disposto no número anterior abrange as valorizações e outros acréscimos remuneratórios, designadamente os resultantes dos seguintes atos:
a) Alterações de posicionamento remuneratório, progressões, promoções, nomeações ou graduações em categoria ou posto superiores aos detidos;
b) (…)”
23 - O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas legais ou convencionais, especiais ou excecionais, em contrário, não podendo ser afastado ou modificado pelas mesmas.”
Na al. r) do n.º 9 do art. 27.º acima aludidos estão abrangidos os trabalhadores das “entidades publicas empresariais”, como é o caso da ora ré.

Ora, decorrendo a remuneração aqui em questão da nomeação da autora, em 12 de Março de 2013, para Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ..., parece-nos claro que tal valorização remuneratória afrontaria directamente o previsto nesta Lei 66-B/2012, ou seja e como diz a ré, a acontecer seria ilegal.

E as LOE de 2014, 2015, 2016 e 2017 contêm normas semelhantes aquelas (cf. art.s 39.º/1 e 2 a) e 33.º/9 r) da Lei 83-C/2013, de 31.12, art.s 38.º/1 e 2 a) da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12 e art. 2.º/9 r) da Lei 75/2014 de 12.9, art. 18.º/1 da Lei 7-A/2016 de 30.3 e art. 19.º/1 da Lei 42/2016, de 28.12).

Só com a LOE para 2018 – Lei n.º 114/2017, de 29.12 -, e por via do seu art. 18.º/1, al. b), a valorização remuneratória que vimos abordando passou a ser possível, mas com efeitos apenas a partir do dia 01.01.2018.

Temos, então, que apurar do seu valor.

Com efeito, com referência a este período nunca chegou a ser fixado o valor da remuneração.

A autora pretende que corresponda a um acréscimo de 10% sobre o vencimento base (tendo em consonância liquidado o valor de 1.321,26 € relativos aos meses de Janeiro, Fevereiro e Março de 2019 e o valor de 5.285,04 € relativos aos meses de Janeiro a Dezembro de 2018).
A ré – tendo pugnado nada dever à autora - não tomou posição sobre este aspecto em concreto.

Ora o artigo 272.º do CT estabelece:
“Determinação judicial do valor da retribuição
1 – Compete ao tribunal, tendo em conta a prática da empresa e os usos do sector ou locais, determinar o valor da retribuição quando as partes o não fizeram e ela não resulte de instrumento de regulamentação coletiva de trabalho aplicável.
(…)”

Não obstante estar em causa nesta acção um suplemento remuneratório que não integra a remuneração em sentido estrito ou retribuição, entendemos que a norma tem aqui aplicação pois que nenhuma razão existe para se subtrair à determinação judicial tais parcelas da remuneração, tanto mais que podem igualmente ter (também) origem na prática da empresa, nos usos ou em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho (donde não ser caso de recurso ao art. 10.º do CC).

Como decorre dos factos provados (sob o ponto 7.), a ré, para efeitos de pagamento da remuneração que aqui se discute, encontra-se a pagar à autora, desde Julho de 2019, 10% sobre o vencimento base da mesma, no montante mensal actual de € 445,71.

E como a própria ré trouxe à colação (art.s 8.º e 9.º da contestação) «(…) o Dec. Lei nº 73/90, de 6 de Março, nos termos do art. 44º, previa efetivamente atribuição do abono do acréscimo remuneratório para o exercício de funções de chefia. Porém, o mesmo Dec. Lei nº 73/90, de 6 de Março, foi revogado pela alínea a), do artigo 36º, do Dec. Lei nº 177/2009, prevendo este último diploma, no artigo 23º, que o exercício de funções de direção de serviço no SNS é cumprido em comissão de serviço por 3 anos, renovável por iguais períodos, “sendo a respetiva remuneração fixada em diploma próprio”».
Acrescentamos nós que esse artigo 44.º do DL 73/90 previa precisamente o acréscimo de 10% na remuneração do médico a quem sejam atribuídas funções de chefia.

Ante este circunstancialismo, afigura-se inteiramente adequado, que no ínterim entre uma situação e outra também o acréscimo remuneratório corresponda a 10% da retribuição, nos termos propugnados pela autora.

Ademais, no caso não temos factualidade que nos permita falar em “usos da empresa” (como não nos podemos valer de IRCT aplicável), mas podemos falar em prática da empresa, pois que é o valor que vem pagando.

Donde, e concluindo, tem a autora direito a haver, a título de acréscimos remuneratórios reportados aos anos de 2018 e 2019, a quantia (global) de € 6.606,30.          

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, condena-se a ré a:

- Reconhecer que à autora assiste direito ao acréscimo remuneratório devido pelo exercício das funções de Diretora do Serviço de Anestesiologia do Hospital de ..., no montante de 10% sobre o montante da retribuição base da autora, acréscimo esse que é devido desde a data de 01.01.2018 até 31.3.2019.
- Pagar à autora, a esse título, a quantia (global) de € 6.606,30 (seis mil, seiscentos e seis euros e trinta cêntimos) acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados sobre a data em que era devido cada um desses acréscimos remuneratórios mensais e até integral e efetivo pagamento.
Custas a cargo da recorrente e da recorrida na proporção do respwctivo decaimento.
Notifique.
Guimarães, 30 de Março de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor