Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
449/21.5T8VCT.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O do art. 1248.º, n.º 1, do Código Civil define a transacção como o “contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões”, acrescentando o n.º 2 que as “concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.
II - A transação efetuada no âmbito de um determinado processo judicial permite a intervenção de terceiros (alargamento subjectivo) e pode mesmo abarcar matéria que não integra o objeto da ação em causa, podendo, portanto, ir além do objecto do processo definido pelo pedido (alargamento objectivo).
III - Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se pretendem obter através da homologação judicial da transação.
IV - Desde que a transacção não enferme de nulidade, não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa.
Decisão Texto Integral:
I - Saneamento dos recursos

Os recursos foram admitidos na espécie, com o efeito e regime de subida adequados, nada obstando ao seu conhecimento.
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II - Decisão sumária.

Nos termos do art. 652.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, o juiz a quem o processo for distribuído fica a ser o relator, incumbindo-lhe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente, julgar sumariamente o objeto do recurso, nos termos previstos no artigo 656.º.
Neste último preceito prevê-se a possibilidade de decisão liminar do objeto do recurso “quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária”.
Segundo António Abrantes Geraldes (1), “(…) justifica-se a decisão individual quando a questão seja rodeada de simplicidade na resposta, perspectivada esta pelo confronto como ordenamento jurídico ou, em termos relativos, pela frequência com que a mesma questão tem sido decidida em determinado sentido”.
Ora, dada a simplicidade da questão a decidir – convergindo ambos os recorrentes no mesmo sentido da decisão –, os recursos em causa inserem-se claramente na hipótese legal referida, pelo que se usará da faculdade prevista no citado preceito, sendo dispensável a intervenção da conferência.
***
III. Relatório

D. R. intentou, no Juízo Local Cível de Guimarães - Juiz 1 - do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, acção declarativa sob a forma de processo comum, contra Município X, pedindo:

a) A condenação do Réu a restituir ao Autor, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida, o exemplar do livro de poemas Y e as 30 (trinta) ilustrações originais (desenho + pintura) da autoria do pintor F. T..

Subsidiariamente,
b) Para a hipótese das referidas obras não serem restituídas, no prazo indicado na alínea anterior, a condenação do no pagamento ao Autor da quantia de 15.000,00 €, equivalente ao valor das obras em causa.
c) A condenação do Réu no pagamento ao Autor da quantia de 5.000,00 €, a título de danos não patrimoniais.

Para tanto, alegou, em síntese, que:
O Autor dedica-se, entre outras actividades, à escrita literária, nomeadamente de poemas, tendo já diversos livros publicados.
Em janeiro de 2016, o Autor, a pedido do Réu, na pessoa da então Vereadora do Pelouro da Cultura, Educação e Turismo da Câmara Municipal X, entregou, pessoalmente, ao cuidado e guarda da referida Vereadora, nas instalações do Réu, os seguintes objectos culturais e artísticos, sua propriedade:
a) Um exemplar do livro de poemas Y, editado em 1988 pela Editora L., de Viana do Castelo, com prefácio do escritor M. C., retrato artístico do rosto do Autor pelo fotógrafo J. P., capa e arranjo gráfico do escultor M. R., edição esgotada há mais de vinte anos.
b) Trinta (30) quadros (desenho + pintura) em cartão (tamanho A3), da autoria do pintor F. T., leituras plásticas de cada um dos 30 poemas, incluídos no referido livro, quadros que lhe haviam sido oferecidos por este artista, em 2008.
O referido F. T., além de pintor, é também professor de Artes e Design, na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de … (…).
O Autor publicou, no blogue https://....blogspot.com, de que é autor, entre os dias 27-02 e 12-07-2015, cópias digitalizadas dos 30 poemas do livro Y, seguido cada um de fotografia da respectiva ilustração pelo pintor F. T..
As referidas obras (livro e quadros) foram entregues pelo Autor, pessoalmente e em mão, nas instalações do Réu, concretamente no Gabinete de Apoio da referida Vereadora.
O Autor correspondia, assim, ao convite do Réu, intermediado pela Srª Vereadora, que lhe havia proposto uma nova edição fac-similada do livro referido, pelo Município, integrando as 30 ilustrações pictóricas referidas.
Face ao longo silêncio por parte do Réu, o Autor, em 13 de Outubro de 2016, enviou para o Gabinete da Cultura do Município um e-mail, solicitando uma audiência, a fim de se “analisar, conforme oportunamente definido em audiência anterior, a possibilidade de a autarquia suportar a edição fac-similada do meu livro de poemas "Y (L., Viana do Castelo, 1988, esgotado), integrando, todavia, nesta reedição, 30 ilustrações (1 por cada poema) do pintor F. T.”.
O Autor e o pintor F. T. foram então informados de que não seria possível a edição fac-similada do livro “Y”, com as ilustrações do pintor, por parte do Município.
Ficou, todavia, acordado e assente que o Réu levaria a cabo uma 2ª edição normal (não fac-similada) do livro, mas incluindo as 30 ilustrações.
Ficou também acordado que a apresentação da nova edição do livro ocorreria no edifício dos antigos Paços do Concelho, e que, no mesmo dia, seria aberta ao público a exposição dos 30 quadros de F. T. que ilustram cada um dos 30 poemas.
Tais eventos – edição com apresentação do livro e abertura da exposição – deveriam ocorrer durante o ano de 2019, ano em que se comemorariam os 50 anos de escrita literária do Autor.
Esta última proposta da então Vereadora da Cultura e do Réu foi aceite pelo Autor e pelo pintor F. T.."
Como o Réu se recusou a cumprir aquele compromisso /acordo, em 29/06/2019 o Autor dirigiu "… à Sra. Vereadora novo e-mail, através do qual insistia e persistia, além do mais, no agendamento de uma reunião, a fim de que lhe fossem devolvidos o livro - único exemplar que o Autor possuía, limpo de anotações - e os 30 quadros originais da autoria do pintor F. T.."
Face ao incumprimento desta obrigação pelo Réu, o Autor deduziu um pedido principal (a restituição daqueles objectos) e um pedido subsidiário de indemnização (danos patrimoniais e não patrimoniais), caso aquele primeiro pedido não fosse cumprido, por facto imputável ao Réu.
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Citado, o Réu deduziu contestação, concluindo pela total improcedência da ação (fls. 39 a 43).
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Realizada tentativa de conciliação, não foi a mesma alcançada (fls. 48).
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Dispensada a audiência prévia, foi elaborado despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade da instância; procedeu-se de seguida à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (fls. 49).
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Designada data para audiência de julgamento, as partes requereram a suspensão da instância (fls. 51).
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De seguida as partes apresentaram requerimento no qual alegaram que chegaram a acordo quanto ao objeto do litigio nos termos da transação que juntaram, requerendo a sua homologação. (fls. 53 a 103).
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Datado de 19/01/2022, a Mm.ª Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho:
«Referência 3438923 e 3438950:
O teor da transação judicial constante dos artigos 2º a 10º extravasa o objeto da presente ação, tratando-se de matéria de facto completamente alheia aos presentes autos, podendo contudo, tal matéria ser objeto de um documento particular elaborado entre as partes.
Assim, deverão as partes reformular o termo de transação, cingindo-se ao objeto da presente ação, em 10 dias».
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Irresignados com esse despacho, quer o quer o autor, quer o Réu dele interpuseram, separadamente, recurso de apelação (fls. 104 a 114 e 116 a 122).

A terminar as respectivas alegações, o autor formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1 - No Termo da Transacção ora em causa, as partes entenderam que o modo mais justo, razoável e equilibrado de resolver este litígio, seria o de o Réu reassumir o compromisso de reedição do livro do Autor “Y”, em versão fac-similada com a inclusão dos 30 quadros do pintor F. T., sem os originais, porque não foi possível recuperá-los.
2 - A transacção efectuada visou conjugar estes dois interesses, o do Autor, de ver reeditada a sua obra pelo Réu, e este, o de eximir-se a uma eventual e sempre possível condenação por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes do incumprimento da restituição dos originais do livro e gravuras entregues para esse fim.
3 - Estes dois interesses estão claramente expressos pelas partes nos respectivos articulados e o termo de transacção visou dar satisfação àqueles objectivos, um do Autor e o outro do Réu.
4 - Pelo exposto, as cláusulas 2ª a 10ª do presente termo de transacção não extravasam a causa e os fundamentos deste litígio, antes lhe põe termo, de harmonia com as vontades expressas pelas partes, nos termos previstos nos artigos 1248º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil e 283º nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.
5 - Neste caso, o Autor abdicou da pretensão formulada de restituição do exemplar único do livro “Y” e das 30 ilustrações originais que lhe foram oferecidas pelo pintor F. T., a troco de o Réu proceder à sua reedição, em versão fac-similada e com a inclusão ex-novo daquelas ilustrações, conforme o que estava originalmente previsto entre as partes e consta dos respectivos articulados.
6 - Por sua vez, o Réu beneficiou da desistência pelo Autor do pedido de indemnização, no caso de não entrega do exemplar daquele livro e das 30 ilustrações, por facto àquele imputável.
7 - Ambas as partes cederam, mutuamente, nos seus interesses, fazendo-o no uso legítimo de um direito privado, na sua inteira disponibilidade e de harmonia com os factos alegados nos respectivos articulados.
8 - Por isso, e com todo o respeito, não é correcta - antes errada - a afirmação vertida no douto despacho em causa de que “as cláusulas enunciadas (2 a 10) deste termo de transacção efectuado são totalmente alheios os factos aqui em causa”.
9 - O presente Termo de Transacção, antes constitui in casu um modo prudente de resolver este conflito, conjugando os respectivos interesses e prevenindo o risco de uma decisão que, pelo menos para uma das partes, sempre seria desfavorável.
10 - As cláusulas expressas no termo de transacção constituem uma síntese das vontades expressas pelas partes nos seus articulados, que, pelo seu objecto e a sua natureza jurídica - direitos privados e disponíveis - não podem ser contrariadas, como acontece in casu com a recusa na sua homologação, conf. resulta do disposto no artigo 283º do Cód. Proc. Civil.
11 - Pelo exposto, o douto despacho recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 1248º e 1249º do Cód. Civil e 283º do Cód. Proc. Civil.

NESTES TERMOS
e mais de direito que V. Exªs melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo autor, em consequência, deve revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por uma outra que homologue por inteiro, todas as cláusulas deste termo de transacção, incluindo as vertidas de 2 a 10.
Como é de inteira JUSTIÇA!».
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O Réu rematou as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que igualmente se transcrevem):
«I. A transacção, contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, as quais podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (art. 1248º/1 e 2 do CC), desde que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos disponíveis, é sempre admissível (arts. 289º/1 do CPC e 1249º do CC, a contrario).
II. Estando em causa direitos que se encontram na disponibilidade das partes, isto é, em que “a vontade das partes é determinante no sentido da constituição e da extinção das relações jurídicas” e em quem, por isso mesmo, “a aquisição e perda dos direitos depende (…) da vontade dos adquirentes e perdentes”, as mesmas são perfeitamente livres de regular segundo a sua vontade e de acordo com o princípio da autonomia contratual as respectivas relações jurídicas.
III. Não existe qualquer espécie de impedimento legal à livre disposição dos direitos em discussão que obste à validade da transacção celebrada entre as partes, estando a mesma compreendida no objecto da acção.
IV. O teor do clausulado da transacção celebrada entre as partes diz respeito ao livro do Autor intitulado “Y”, que integra a causa de pedir da acção, é parte integrante do objecto do processo e dos próprios pedidos formulados a final, a cuja restituição ou indemnização em substituição o Autor se arrogava na p.i..
V. O que se verifica in casu, e nada há de extraordinário nisso, muito menos ilegal, é a situação típica e comum quando as partes optam pôr fim ao processo através da celebração de um contrato de transacção, em que existem concessões de ambas as partes e cujo conteúdo cabe na liberdade contratual das mesmas.
VI. A reedição do livro a que o R. Município se compromete e os moldes concretos em que a mesma deverá ser feita constitui a concessão efectuada pelo R., mais concretamente, na modalidade de uma obrigação de facere e, em contrapartida, o Autor compromete-se a desistir dos pedidos formulados na acção, sendo esta a sua concessão.
VII. Inexiste razão ou fundamento válido que impeça Autor e Réu de expressamente definir e acordar os termos da reedição da obra cuja restituição o Autor se arrogava na acção, ou que legalmente impeça o Tribunal de proceder à respectiva homologação, sendo essa a condição de pôr fim ao litígio.
VIII. Ainda que assim não fosse, e se entendesse que o teor do clausulado da transacção celebrada pelas partes extravasaria os direitos em discussão nos autos, tendo o legislador consagrado expressamente a possibilidade de as concessões objecto de transacção poderem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido, sempre a mesma teria de necessariamente considerar-se plenamente válida e consequentemente, ser objecto de homologação judicial, nos termos da lei, sem qualquer reserva.
IX. Constitui entendimento uniforme da jurisprudência nacional que a transacção judicial comporta quer o alargamento objectivo quer o alargamento subjectivo do pleito, e que pode a mesma operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados, não se podendo o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa.
X. É incontroverso, como igualmente entendem os nossos Tribunais, que o objecto da transacção não tem de coincidir necessariamente com os termos da acção proposta.
XI. O douto despacho recorrido desrespeitou o princípio da autonomia da vontade e o princípio da liberdade contratual, corolário daquele previsto no art. 405º do CC, maxime na vertente de liberdade conferida às partes de moldarem os termos do contrato, ao procurar sobrepôr a sua decisão à autonomia conferida por lei às partes de validamente dispor da sua esfera jurídica privada, tendo em conta que a transacção constitui um contrato de direito privado “pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões” (nº 1 do art. 1248º do CC) e em que a verdadeira fonte da solução do litígio é o acto de vontade do autor e não a sentença do juiz.
XIII. Na parte em que o douto despacho recorrido considerou que a matéria objecto da transacção, porque “completamente alheia aos autos”, podia “contudo (…) ser objecto de um documento particular elaborado entre as partes” incorre em notório erro de julgamento, na medida em que contradiz o que literalmente resulta do disposto no art. 290º/1 do CPC, que não estabelece qualquer outro requisito ou critério adicional quanto à forma que a mesma pode revestir.
XIV. Salvo o devido respeito, o douto despacho recorrido padece de notório erro de julgamento, tendo violado as disposições conjugadas dos arts. 405º, 1248º e 1249º (a contrario) do CC e arts. 284º, 289º/1 (a contrario) e 290º/1 e 3 do CPC.
PEDIDO:
TERMOS EM QUE, E NOS DO DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS., DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADO O DOUTO DESPACHO RECORRIDO, POR PADECER DE NOTÓRIO ERRO DE JULGAMENTO, SUBSTITUINDO-SE POR NOVA DECISÃO QUE PROCEDA À HOMOLOGAÇÃO DA TRANSACÇÃO CELEBRADA ENTRE AS PARTES, COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS,
COMO É, ALIÁS, DE INTEIRA
J U S T I Ç A.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Os recursos foram admitidos como de apelação, a subirem imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (fls. 124).
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IV. Delimitação do objeto dos recursos.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s) – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão a decidir nos presentes recursos unicamente respeita a saber se a transacção judicial devia ou não ter sido homologada.
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V. Fundamentos

VI. Fundamentação de facto.

As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são as que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos), a que acrescem os seguintes factos:
1. O Autor celebrou com o Réu Município X transacção judicial junta aos autos (referências 3438923 e 348950), com o seguinte teor:
"TRANSACÇÃO JUDICIAL
Autor: D. R., residente na Rua …, no. .., … esquerdo, desta cidade de (…) Viana do Castelo, contribuinte fiscal no. ……….
Réu: Município X, pessoa colectiva territorial no. ………, com sede no Passeio das ..., cidade e concelho de (…) Viana do Castelo, representado neste acto pelo seu Presidente da Câmara Municipal, J. L., casado, com domicílio profissional no referido Passeio das ....
Autor e Réu põem termo à presente lide (Acção de Processo Comum no. 449/21.5T8VCT, a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo - Juízo Local Cível de Viana do Castelo - Juiz 1), por meio de transacção, nos termos das cláusulas seguintes:

O Autor desiste dos pedidos formulados na acção.

O Réu obriga-se a patrocinar a reedição do livro de poemas do Autor intitulado "Y", o qual terá o formato de 150 x 230 mm e terá 96 páginas a que acrescerá a capa.

A impressão, no que se refere ao miolo, terá 4/4 cores + verniz geral offset sobre couche mate 150 grs. e a capa terá 4/0 cores sobre cartolina V/ B 350 grs., sendo que o acabamento do miolo será cosido a fio e a capa será plasticizada mate com badanas, brochado e colado.

A embalagem será feita em conjuntos em caixas de cartão canelado.

A tiragem será de 500 (quinhentos) exemplares, dos quais 200 (duzentos) serão cedidos gratuitamente ao Autor.

O conteúdo e a capa da obra obedecerão aos dois documentos em anexo, que contêm já a Arte Final e capa elaboradas por acordo entre Autor e Réu, anexos esses que passam a fazer parte da presente transacção.

O Réu assume os encargos pelos registos ISBN e Depósito Legal.

A produção/ impressão do livro propriamente dita será promovida pelo Município, mediante procedimento a adoptar no respeito pelas normas do Código dos Contratos Públicos através de ajuste directo dirigido a uma única entidade, que será a N., Artes Gráficas, S. A., pelos fundamentos que constarão da respectiva decisão de contratar.

O Réu obriga-se a fazer os seus melhores esforços no sentido de que todo o procedimento esteja concluído, no máximo, no prazo de três meses após o trânsito em julgado da douta sentença que vier a homologar a presente transacção.
10º
O Município reserva-se o direito de, após a produção da obra, e atento os encargos totais a que a mesma vier a dar causa, a fixar livremente o preço de venda, podendo, se assim o entender, optar pela sua oferta em alternativa à venda, sempre sem prejuízo dos 200 exemplares referidos na precedente cláusula quinta, que serão gratuitamente cedidos ao Autor, que lhes dará o destino que melhor entender, por corresponder o valor dos mesmos aos seus direitos autorais.
11º
As custas em dívida a juízo serão suportadas pelo Réu, prescindindo o Autor de custas de parte".
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VII. Fundamentação de direito.

Ambicionam ambos os recorrentes, através dos recursos deduzidos, a revogação do despacho que, considerando que o teor da transação judicial extravasa o objeto da presente ação, determinou a notificação das partes para reformularem o termo de transação, cingindo-o ao objeto da ação, de modo a obter a ser objeto de homologação judicial a transação celebrada.
Foi esta pretensão que foi julgada improcedente, a pretexto das cláusulas 2ª a 10ª extravasarem o objeto da presente ação e de cuja decisão vêm interpostos os presentes recursos.
Vejamos como decidir.
O art. 1248.º do Código Civil define a transacção como o “contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões” (n.º 1), acrescentando que as “concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido” (n.º 2).
Daqui resulta, desde logo, que a transacção é um contrato e, por isso mesmo, que se encontra sujeito à disciplina dos contratos, designadamente às suas disposições gerais (arts. 405.º a 409.º) e ao regime geral dos negócios jurídicos (arts. 217.º e segs.), incluindo as exigências de forma e consequências da respectiva inobservância (arts. 219.º e 220.º), bem como as regras de interpretação da declaração negocial (art. 236.º a 238.º, todos do Código Civil).
Servindo-nos do ensinamento de Pires de Lima e Antunes Varela (2) em anotação àquele artigo, elucidam os autores que o “fim do contrato é prevenir ou terminar um litígio. Admite, portanto, a lei que a transacção tenha lugar, não só estando a causa pendente, mas também antes da proposição da acção judicial; trata-se, neste caso, da transacção chamada preventiva ou extrajudicial, a que se refere o art. 1250.º. O que a lei não dispensa é uma controvérsia entre as partes (cfr. n.º 2), como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la. (…)”. Tendo por objecto “recíprocas concessões” (3), na transacção não “há desistência plena, nem reconhecimento pleno do direito” (4), nem o “ânimo de fixar ou determinar a situação jurídica anterior das partes(…); a ideia básica dos contraentes é a de concederem mutuamente e não a de fixarem rigidamente os termos reais da situação controvertida (...)”. As concessões recíprocas podem revelar-se sob dois aspectos: podem as partes transigir ou reduzir o direito controvertido, ou podem constituir, modificar ou extinguir um direito diverso do controvertido (5) (6). “É neste segundo sentido que deve ser interpretado o passo da lei segundo o qual as concessões podem envolver (como quem diz incluir) a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.
A este tipo de transação a doutrina dá o nome de novativa (7).
De facto, as concessões recíprocas das partes tanto podem incidir exclusivamente sobre o objeto do litígio (transação simples), como sobre direitos diversos do direito controvertido (transação complexa), ainda que acordadas com a finalidade de resolver – ou de prevenir – o litígio (8).
Para esse efeito, as partes têm ampla margem de estipulação dessas concessões, podendo não apenas reconhecer, constituir, modificar ou extinguir o direito em litígio, mas também determinar a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido, situação esta que origina uma grande atipicidade dos efeitos da transação, que ficam na disponibilidade das partes (9).
Na verdade, a transação efetuada no âmbito de um determinado processo judicial permite a intervenção de terceiros (alargamento subjectivo) e pode mesmo abarcar matéria que não integra o objeto da ação em causa, podendo, portanto, ir além do objecto do processo definido pelo pedido (alargamento objectivo) (10).
Verificados certos requisitos mínimos de validade, a transacção poderá operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados; e na verdade, desde que a transacção não enferme de nulidade – e é desde logo o que dispõe o art. 1249º do CC – não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa (11).
Com efeito, a necessidade de, através de transação, se obter uma composição global dos interesses em litígio exige, por vezes, que a mesma extravase o âmbito objetivo ou subjetivo da ação em que é exarada, passos que se podem mostrar necessários para alcançar a pacificação das relações e resolver globalmente os conflitos de interesses com pluralidade de sujeitos.
Ponto é que exista uma conexão objetiva ou subjetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se obtêm através da homologação judicial da transação (12).
As partes apenas não podem transigir sobre direitos que não lhes é licito dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios ilícios (art. 1249º do CC e art. 289º do CPC). Não será assim admitida transação sobre direitos em relação aos quais falte legitimidade ao disponente (13), coisas fora do comércio (art. 202º, n.º 2, do CC), direitos de personalidade e direitos familiares, bem como relativamente a questões relativas a negócios em contrariedade com a lei, a ordem ´publica ou os bens costumes (arts. 280º e 294º do CC) (14).
A transação é, assim, a formulação contratual de uma solução de compromisso para um determinado diferendo. Nelas as partes põem fim ao diferendo, conformando os seus interesses através de um consenso resultante de concessões e cedências mútuas. As cláusulas da transação não têm, pois, de estar em conformidade com a correta, verdadeira ou integral conformação jurídica dos factos reais que motivam o diferendo, já que toda a concessão ou cedência mútua pressupõe um afastamento dessa justa medida que o direito emprestaria a tais factos e às pretensões iniciais dos litigantes (15).
A sentença homologatória “não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transação, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. E uma vez transitada em julgado, como que corta, e definitivamente, o cordão umbilical que a ligava à transação de que nascera (16)
A transação judicial «substitui a incerteza sobre a questão controvertida pela segurança que para cada uma das partes resulta do reconhecimento dos seus direitos pela parte contrária, tal como ficam configurados depois da transação» (17) (18). E traduz-se num negócio bilateral de auto-composição do litígio, que subtrai ao tribunal o poder de decidir a causa mediante a aplicação do direito substantivo aos factos provados (19).

Em termos de direito adjetivo, relevam os seguintes normativos:
A instância extingue-se com a desistência, confissão ou transação (art. 277º, al. d) do CPC).
É lícito também às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa (art. 283.º, n.º 2, do CPC).
A confissão e a transação modificam o pedido ou fazem cessar a causa nos precisos termos em que se efetuem (art. 284.º do CPC).
Tal como quanto à confissão, a sentença homologatória da transação tem força de caso julgado material.
Não é permitida confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (art. 289.º, n.º 1 do CPC).

Nos termos do art. 290.º (“Como se realiza a confissão, desistência ou transação”):

“1 - A confissão, a desistência ou a transação podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo.
2 - O termo é tomado pela secretaria a simples pedido verbal dos interessados.
3 - Lavrado o termo ou junto o documento, examina-se se, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, a desistência ou a transação é válida, e, no caso afirmativo, assim é declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos.
4 - A transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz; em tal caso, limita-se este a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos”.

E, segundo o 291.º (“Nulidade e anulabilidade da confissão, desistência ou transação”):
“1 - A confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil.
2 - O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.
3 - Quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito”.

Como resulta dos normativos citados, a transação judicial para ser eficaz necessita, no entanto, de ser homologada por sentença, a qual apreciará a validade da mesma, e, em caso afirmativo, condenará e absolverá as partes nos seus precisos termos (arts. 290º, n.º 3 e 4 e 152º, n.º 2, ambos do CPC).
A função dessa sentença não é a de apreciar ou decidir as razões e argumentos das partes sobre a respetiva controvérsia substancial, mas apenas a de verificar/fiscalizar a regularidade e a validade do acordo, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nele intervieram.
Daí que, como de resto resulta do n.º 1 do art. 1248º do CC, se possa dizer que a fonte real da resolução do litígio não é nestes casos propriamente a sentença homologatória, mas o acto de vontade das partes, convergindo no sentido de celebrarem um contrato de transação, mediante recíprocas concessões.
Retomando o caso concreto, constata-se que, na sequência da transacção judicial apresentada com vista à sua homologação e extinção da causa, a Mm.ª Juíza recusou-se a homologá-la, aduzindo para o efeito que o “teor da transação judicial constante dos artigos 2º a 10º extravasa o objeto da presente ação, tratando-se de matéria de facto completamente alheia aos presentes autos, podendo contudo, tal matéria ser objeto de um documento particular elaborado entre as partes”, pelo que determinou às partes a reformulação “do termo de transação, cingindo-se ao objeto da presente ação”.
Com o devido respeito por tal entendimento, afigura-se-nos que o mesmo não pode subsistir.
Desde logo fica afastada a não homologação da transação por eventualmente estar em causa matéria versando sobre direitos indisponíveis, direitos de personalidade e direitos de família, tão pouco por se tratar de questões respeitante a negócios jurídicos contrários à lei, à ordem pública e aos bons costumes.
Quanto ao cerne do óbice constante da decisão recorrida – o “teor da transação judicial constante dos artigos 2º a 10º extravasa[r] o objeto da presente ação, tratando-se de matéria de facto completamente alheia aos presentes autos –, dir-se-á que, podendo a transacção envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido (n.º 2 do art. 1248.º do CC), temos por assente que pode ir além do objecto do processo definido pelo pedido.
E é precisamente por não ter atentado e respeitado este ponto que a decisão recorrida enferma de erro de julgamento.
No caso sub júdice, como bem aduzem as recorrentes, por referência ao clausulado da transacção celebrada entre as partes, «é manifesto que o mesmo diz respeito ao livro do Autor intitulado “Y”, que não só integra a causa de pedir da acção, sendo parte integrante do objecto do processo e dos próprios pedidos formulados a final, a cuja restituição ou indemnização em substituição o Autor se arrogava na p.i..»
Além de que a transacção celebrada, visando pôr termo ao presente processo que dividia as partes, traduz concessões de ambas as partes.
De um lado, o R. Município compromete-se a patrocinar a reedição do livro de poemas da autoria do autor nos termos concretos constantes das cláusulas 2ª a 10ª, o que traduz uma concessão daquele, na modalidade de uma obrigação de facere.
Em contrapartida, o Autor compromete-se a desistir dos pedidos formulados na acção [restituição do livro de poemas “Y” e as 30 ilustrações originais – desenho + pintura – da autoria do pintor F. T. e, subsidiariamente, uma indemnização de € 15.000,00 equivalente ao valor das obras em causa e ainda um pedido de indemnização de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais], sendo esta a sua concessão.
A transacção celebrada visou conjugar os dois interesses em confronto – o do Autor de ver reeditada a sua obra pelo Réu (se bem que, reconhece-se, não era este o objeto da ação) e este o de eximir-se a eventual e sempre possível condenação por danos patrimoniais e não patrimoniais –, decorrentes do eventual incumprimento da restituição dos originais entregues para esse fim.
Com a transacção celebrada o Autor e o Réu pretendem, por esta via, por termo ao litígio, evitando os riscos desfavoráveis que pudessem resultar da sentença a proferir, caso não houvesse o aludido acordo.
Ambas as partes cedem, mutuamente, nos seus interesses, fazendo-o no uso legítimo de um direito privado, na sua inteira disponibilidade, sendo de admitir que extravasaram do objeto da ação (em função dos factos alegados nos respectivos articulados e dos pedidos formulados).
Acresce que a transacção celebrada “constitui um modo prudente de resolver um conflito, conjugando os interesses das partes e prevenindo o risco de uma decisão que lhes poderia ser desfavorável”.
Se bem que tal traduza a constituição de direitos diversos do direito controvertido, inexiste qualquer óbice ou fundamento válido que impeça o Autor e o Réu de «expressamente definirem e acordarem os termos da reedição da obra cuja restituição o Autor se arrogava na acção, ou que legalmente impeça o Tribunal de proceder à respectiva homologação, sendo essa a condição de pôr fim ao litígio».
Na verdade, não obstante a matéria sobre a qual as partes acordaram seja alheia à factualidade em discussão nos autos e extravase o objeto da ação integrado pelo pedido e causa de pedir, certo é que, como já vimos, o n.º 2 do art. 1248º do CC permite expressamente a possibilidade de as concessões objecto de transacção poderem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido, pelo que a mesma teria, necessariamente, de considerar-se plenamente válida e, consequentemente, ser objecto de homologação judicial, nos termos da lei, sem qualquer reserva.
Versando as cláusulas 2ª a 10ª da transacção celebrada entre as partes sobre a obra do Autor (intitulado “Y”), que se encontra abrangido no objecto do processo e integra a causa de pedir e os pedidos formulados na p.i. – em que era pedida a restituição da dita obra e de 30 quadros ou, subsidiariamente, um pedido de indemnização caso aquele primeiro pedido não fosse cumprido –, demonstrada está igualmente a conexão objetiva entre o teor daquela transacção e o objeto da ação, em que, ao invés da restituição, o Réu se obriga a patrocinar a reedição da dita obra do autor, e este, em contrapartida, renuncia aos pedidos formulados na petição inicial.
Donde se conclui que o (comprovado) alargamento objectivo da ação derivado da transação judicial é perfeitamente legítimo, podendo a mesma operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados, não podendo o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa.
Sendo incontroverso que o objecto da transacção não terá de coincidir necessariamente com os termos da acção proposta e existindo uma conexão objetiva que justifique a ampliação dos efeitos que se pretendem obter através da transação judicial mostra-se preenchida a situação do n.º 2 do art. 1248º do CC.
Por fim, quanto à aventada hipótese das partes efetivarem uma transação extra-judicial, relembrar-se-á que, em termos de comparação entre os efeitos produzidos pela transação e pela sentença definitiva, a identidade não é plena e absoluta, porque há efeitos no caso julgado que não existem na transação (20).
Nesta conformidade, e sem mais considerações por desnecessárias, impõe-se a procedência das apelações e a consequente revogação do despacho recorrido.
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VIII. DECISÃO

Perante o exposto, e nos termos das disposições legais citadas, decide-se julgar procedentes os presentes recursos de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que homologue na íntegra a transação celebrada entre as partes.
Sem custas, por ambas as recorrentes terem tido vencimento nos recursos.
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Guimarães, 6 de abril de 2022

Alcides Rodrigues


1. Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, p. 255.
2. Cfr. Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 1986, pp. 856/857.
3. A transação pressupõe a reciprocidade das concessões: sacrifícios de ambas as partes, de uma a favor da outra, porquanto nenhuma delas surge como vencedor ou vencido. Essas concessões não têm de ser equivalentes, podendo, na transação, uma das partes «transigir» mais do que a outra. Efetivamente, o legislador limita-se a estabelecer a necessidade da reciprocidade das prestações. Faltando essa reciprocidade, não existe transação, mas antes desistência ou confissão.
4. Processualmente, a transacção situar-se-á a meio da desistência do pedido e da confissão (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, Coimbra Editora, p. 489 e ss.).
5. Por exemplo, discute-se sobre a propriedade de um prédio e uma das partes transige no reconhecimento deste direito mediante a constituição de um usufruto em seu beneficio sobre o mesmo ou sobre outro prédio ou mediante remissão de uma divida em que ela estava constituída (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 857).
6. No tocante à sua natureza jurídica, discute-se se a transação é declarativa ou translativa. A sua natureza depende de caso a caso. Parecendo dever entender-se que a transação é, em princípio, um acto declarativo (reconhece ou declara que, dos direitos discutidos, tais pertencem a uma e quais a outra), mas quando for complexa, isto é, quando além dos recíprocos reconhecimentos de direitos haja atribuição de direitos de uma parte à outra, então produzirá efeitos não só declarativos mas também trasnslativos.
7. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, p. 857, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, Contratos em Especial, 13ª ed., Almedina, 2019, p. 586. A. Santos Justo, Manual de Contratos Civis – Vertente Romana e Portuguesa, Petrony, p. 558.
8. Cfr. Ac. do STJ de 3/03/2020 (relatora Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 2056/14.0TBGMR-A.G2.S1, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:2056.14.0TBGMR.A.G2.S1/.
9. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, obra citada, p. 586.
10. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, p. 336. Como referem os citados autores, nem sequer se mostra necessário formalizar a intervenção de terceiros através do correspondente incidente ou recorrer às normas que admitem ou condicionam a alteração da causa de pedir.
11. Cfr. Ac. da RP de 17/06/97, BMJ, n.º 468, p. 481 e Ac. da RC de 13/11/2007 (relator Távora Vítor), in www.dgsi.pt.
12. Cfr. Ac. do STJ de 7/06/18 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
13. Por ex., no Ac. da RL de 30/10/2007 (relator Pedro Mourão), CJ, 2007, T. IV, pp. 132/133, considerou-se inadmissível a transacção numa ação destinada a obter a declaração de nulidade de um testamento, pois a extinção deste não se encontra na disponibilidade das partes.
14. Por ex., no Ac. da RC de 13/11/2007 (relator Távora Vítor), in www.dgsi.pt., considerou-se não poder ser objeto de homologação, sem prévio controlo administrativo, a transacção que implicasse a divisão de um prédio em lotes para fins de edificação urbana.
15. Cfr. Ac. da RP de 24 de Abril de 2014 (relator Aristides Rodrigues de Almeida), in www.dgsi.pt.
16. Cfr. Ac. do STJ de 4/11/93, in BMJ, n.º 431, pp 417/427, e Acs. do STJ de 13/11/2018 (relator Cabral Tavares) e de 25/03/2004 (relator Araújo de Barros), in www.dgsi.pt.
17. Cfr. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. IV, Rei dos Livros, 1995, p. 343.
18. Assim configurada, poderemos dizer que a existência de concessões recíprocas se constitui, afinal, como requisito constitutivo do contrato de transação, sendo deste modo deixados os termos da exigida reciprocidade à liberdade das partes e à avaliação que as mesmas façam da distribuição do risco do resultado do litígio [cfr. Ac. da RP de 20/09/2021 (relator Nelson Fernandes) in www.dgsi.pt.].
19. Cfr. Ac. da RP de 2/05/2016 (relatora Maria José Costa Pinto), in www.dgsi.pt.
20. Cfr. A. Santos Justo, Manual de Contratos Civis – Vertente Romana e Portuguesa, Petrony, pp. 562/563 (em particular nota 2733). Como se explicita no citado Ac. do STJ de 3/03/2020 (relatora Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 2056/14.0TBGMR-A.G2.S1, a sentença homologatória transitada em julgado permitirá, desde logo, a qualquer dos transigentes, confrontados com a propositura de uma nova ação judicial sobre o conflito que foi objeto da transação homologada, a defesa por meio da exceção de transação judicial homologada. É uma exceção que tem por fonte uma transação que pôs fim à contenda, e que visa obstar à repetição da mesma contenda. A circunstância de a transação judicial ser objeto de uma sentença homologatória, ulteriormente transitada em julgado, parece ser uma exceção dilatória de caso julgado (arts. 577.º, al. i), in fine, 580.º e 581.º, do CPC) ou, pelo menos, uma exceção que produz os mesmos efeitos que a exceção de caso julgado perante uma nova ação sobre o conflito objeto da transação homologada.