Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
937/19.3T8BGC-A.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- No requerimento em que solicita a realização de segunda perícia, o requerente tem de alegar: a) quais os concretos pontos do relatório pericial em relação aos quais discorda; e b) quais os concretos motivos da sua discordância em relação a cada um desses pontos, isto é, alegando motivos sérios, fundados e efetivos em relação a cada um dos pontos sobre os quais discorda, de molde a criar no espírito de um julgador médio um estado de dúvida ou de incerteza sobre se o relatório pericial realizado padecerá dos vícios que lhe são assacadas pelo requerente da segunda perícia e que poderão levar a um resultado pericial distinto daquele que foi alcançado na perícia já realizada.
2- O requerente da segunda perícia não tem de demonstrar a procedência das razões ou motivos que alega para fundamentar a sua discordância em relação a cada um dos pontos do relatório pericial sobre os quais dissente, nem o juiz pode apreciar o mérito desses fundamentos no despacho em que aprecia o pedido de segunda perícia, dado não possuir os conhecimentos técnicos, científicos e/ou artísticos necessários para realizar fundamentadamente essa apreciação de mérito.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, no seguinte:

I- RELATÓRIO

A. C. instaurou ação declarativa, com processo comum, contra Seguradoras …, S.A. (atualmente X Seguros, S.A.) pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 15.000,00 euros a título de compensação por danos morais sofridos em consequência do acidente de viação que sofreu em 11/08/2016, bem como as quantias que se viessem a apurar em ulterior incidente de liquidação por danos patrimoniais decorrentes do aumento de custos com o crédito à habitação e com o prémio de seguro de vida, decorrente da incapacidade de que ficou a padecer e, bem assim, a quantia que se viesse a apurar em ulterior incidente de liquidação, caso deixasse de poder exercer funções operacionais da PSP, em virtude das lesões de que ficou a padecer, tudo acrescido de juros de mora no dobro da taxa legal, por a Ré nunca lhe ter apresentado qualquer proposta de indemnização, nos termos do disposto no art. 38º, n.º 2, do DL. n.º 291/2007, de 21 de agosto.
A Ré contestou e, no requerimento de prova que apresentou nesse articulado, requereu, além do mais, a sujeição do Autor a perícia médico-legal colegial e, subsidiariamente, que essa perícia fosse realizada por perito a indicar pelo INML.
Por despacho proferido em 03/07/2020, deferiu-se a perícia médico-legal requerida pela Ré, fixou-se o objeto da perícia (o proposto pelas partes) e determinou-se que esta fosse realizada pelo INML.
Em 10/04/2021, o INML juntou aos autos relatório preliminar da perícia-médico legal que realizou, em que expende dever o Autor ser submetido a perícia médico-legal da especialidade de psiquiatria.
Por despacho de 24/05/2021, a 1ª Instância determinou que o Autor fosse submetido a perícia médico-legal de psiquiatria, a ser realizado pelo Gabinete Médico Legal de Alto Douro e Trás os Montes.
Realizada essa perícia, foi junto aos autos o respetivo relatório em 12/08/2021.
Nessa sequência, o INML prosseguiu com o exame pericial ao Autor antes iniciado e, em 07/12/2021, juntou aos autos o relatório final dessa perícia.
Notificado do teor desse relatório, a Ré X Seguros, S.A. requereu a submissão do Autor a segunda perícia, a ser realizada em termos colegiais, com intervenção de um perito nomeado pelo GML e dois outros indicados pelas partes; subsidiariamente, pediu que essa segunda perícia fosse realizada pelo INML, em moldes singulares, tendo para o efeito apresentado os seguintes fundamentos (procede-se à transcrição expressis verbis do requerimento apresentado pela Ré apenas quanto aos fundamentos por ela invocados que motivam o requerimento de realização da segunda perícia):
“A Ré não pode concordar com as conclusões do relatório pericial em apreço, já que nesse documento o Exº Sr. Perito, com todo o respeito, identificoue valorizou sequelas que não existem, ou não são relacionáveis com o acidente, tendo ainda sobrevalorizado as sequelas efetivamente existentes.
Senão vejamos:
No relatório pericial em apreço o Sr. Perito atribuiu ao autor um défice funcional permanente de 7,8 pontos, por aplicação dos códigos Md801, Md901 e Nb1203 da TNI.
Porém, salvo o devido respeito, essa desvalorização não tem reflexo nem no exame objetivo constante desse relatório pericial, nem na documentação clínica existente nos autos.

Efetivamente

a) Quanto à aplicação dos códigos Md801 e Md901
Estão em causa quanto a estes códigos da TNI, que justificaram uma desvalorização global de 4 pontos, alegadas sequelas ao nível da coluna.
Sucede, porém, que não está comprovado que o Autor, em consequência do acidente, tenha ficado portador de sequelas a esse nível.
Com efeito, na sequência do acidente o Autor recorreu ao Serviço de Urgência da Unidade Local de Saúde do Nordeste.
Submetido nesse hospital a exames radiológicos, não foi detetada qualquer lesão traumática ao nível da coluna vertebral do Autor, seja cervical, dorsal, lombar, ou zona do sacro (cfr. Doc. 2 junto com a PI).
Ademais, realizada ao Autor TAC da Coluna Lombo-Sagrada em 13/08/2020, não foi detetada qualquer lesão traumática ou, tão pouco, degenerativa da coluna (cfr. Doc. 4 junto com a PI).
Isto é, não só não foi diagnosticada qualquer lesão nova da coluna, como, tão pouco, se pode admitir um agravamento sintomatológico de patologia prévia de que o Autor já padecesse.
Face à total ausência de lesão osteoarticular, foi diagnosticada ao Autor uma mera contratura muscular (síndrome miofascial – cfr. Doc. 5 junto com a PI), o qual foi debelado com fisioterapia.
Ora, lendo-se o relatório pericial verifica-se que, atualmente, o Autor não apresenta, na realidade, qualquer sequela ao nível da coluna.
Efetivamente, regista-se no exame objetivo que o Autor não apresenta rigidez do pescoço, que a mobilidade a esse nível está conservada e ainda que não tem atrofia muscular.
A única menção que se encontra no relatório a patologia associada à zona cervical é uma contratura dos músculos para vertebrais, algo que não se pode assumir ser permanente, nem associável ao sinistro.
Ademais, de acordo com o exame objetivo constante do relatório pericial, não há menção a qualquer alteração ao nível da ráquis.
Ou seja, no que releva, tudo indica que foram revertidas as lesões que o Autor sofreu ao nível da coluna, sendo que a situação atual do demandante não justifica a atribuição de desvalorização permanente por sequelas da ráquis (códigos Md801 e Md901).
Assim, em face do estado atual e objetivo do Autor, discorda a Ré da atribuição da desvalorização pelos códigos Md 801 e Md901.
Constituindo este o primeiro erro que, com todo o respeito, se deteta no relatório pericial e justifica a realização de uma segunda perícia.

b) Sequelas ao nível psiquiátrico

Foi, ainda, atribuída a desvalorização de 4 pontos por “Outras perturbações psíquicas não especificadas, como por exemplo, estados fóbicos, estados obsessivos, quadros psicóticos, desde que estabelecido um nexo de causalidade com o acontecimento traumático podem ser objeto de valorização pericial”.
Ora, salvo o muito e devido respeito, não está devidamente fundamentada a atribuição desta sequela.
Efetivamente, o código da TNI em causa destina-se a desvalorizar perturbações psíquicas que possam estar relacionadas com um acontecimento traumático.
Para que se possa estabelecer o nexo de causalidade entre sequelas psiquiátricas e um determinado evento traumático é necessário que este tenha assumido gravidade suficiente para gerar aquelas alterações psíquicas, seja pela violência de que se caracterizou, seja pelo prolongado período de tratamento que as respetivas lesões tenham exigido.
No caso concreto, as lesões decorrentes do acidente não assumiram, objetivamente, gravidade suficiente para justificar o surgimento de alterações psíquicas.
Efetivamente, em resultado do acidente o Autor não sofreu qualquer lesão traumática que tenha sido objetivamente constatada, tendo-se, apenas, queixado de dores, não associadas a qualquer efetiva alteração anatómica.
O Autor não sofreu qualquer internamento hospitalar, nem teve de se submeter a cirurgia.
Os tratamentos consistiram em fisioterapia.
Obteve a consolidação médico-legal das lesões ao fim de 8 meses após o acidente.
Ademais, as sequelas reconhecidas ao Autor no relatório pericial – cuja existência não se reconhece – consistem em dores residuais ao nível da coluna, as quais são moderadas.
Neste contexto e salvo o muito e devido respeito, não se pode estabelecer qualquer relação direta entre as queixas – e não são mais do que isso – que o Autor apresenta ao nível psiquiátrico e o acidente.
Com efeito, a escassa gravidade das sequelas decorrentes do acidente, bem como a circunstância de a cura ter sido obtida ao fim de um lapso de tempo relativamente curto, sem necessidade de realização de tratamentos especialmente incómodos e demorados, não permite, do ponto de vista médico-legal, reconhecer nexo de causalidade entre aquele evento e as queixas do Autor ao nível psiquiátrico.
Sendo de referir, também, que, ao atribuir-se uma desvalorização por psiquiatria ao Autor, não se teve em conta que as queixas que apresenta encontram mais adequada justificação no stresse inerente à sua profissão de polícia.
Veja-se, a este propósito, que o próprio Autor reconhece na pág. 4 do relatório pericial que “já era um bocado nervoso”.
Por outro lado, o próprio quadro psíquico descrito no relatório da especialidade de psiquiatria não é de molde a caracterizar um estado patológico que justifique a atribuição de qualquer desvalorização.
Sendo, também, de salientar que, afinal, está em causa um alegado quadro reativo à dor, o qual, por um lado, não tem real justificação em face da escassa gravidade das sequelas e, por outro, corresponde, na prática, à dupla desvalorização da mesma alegada sequela (as dores nas costas).
Por estas razões, discorda a Ré da atribuição da incapacidade de 4 pontos por aplicação do código Nb1203 da TNI.
Este corresponde ao segundo erro do relatório, cuja correção se pretende em sede de segunda perícia.
Em face do exposto, a requerente discorda das conclusões do relatório pericial, por entender que o mesmo enferma de erros, contradições e insuficiências que só através de segunda perícia poderão ser debeladas”.

O Autor opôs-se à realização da segunda-perícia requerida pela Ré, sustentando que os argumentos aduzidos por esta para sustentar aquele pedido são falaciosos e que, em todo o caso, a ser realizada a segunda perícia, esta teria de ser realizada em moldes singulares, por perito de medicina legal.
Por despacho proferido em 25/03/2022, a 1ª Instância indeferiu a realização da segunda perícia requerida pela Ré e determinou que o senhor perito completasse, esclarecesse e/ou fundamentasse, por escrito, o relatório que apresentou quanto à valorização das sequelas psiquiátricas, constando esse despacho do seguinte teor:
“Veio a R. requerer a realização de segunda perícia, alegando, grosso modo, que não concorda com as conclusões do relatório pericial, porquanto o Sr. Perito identificou e valorizou sequelas que não existem, ou não são relacionáveis com o acidente, tendo ainda sobrevalorizado as sequelas efetivamente existentes. Estabelece o nº 2 do art. 485º CPC que as partes podem formular reclamações se entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, esclarecendo o seu nº 4 que o juiz pode, mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente que o perito complete, esclareça ou fundamente, por escrito, o relatório apresentado.
Nos termos do art. 487º, nº 3, do CPC, a segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.
Ora, a R. discorda das conclusões do relatório pericial, concretamente com a atribuição de 7,8 pontos por défice funcional permanente, por entender que o A., em consequência do acidente, não ficou portador de sequelas ao nível da coluna, tendo-lhe sido diagnosticada apenas contratura muscular que foi debelada com tratamentos de fisioterapia, discordando, por isso, em face do estado atual e objetivo do A., da atribuição da desvalorização pelos códigos Md801 e Md901; e discorda da desvalorização de 4 pontos atribuída pelo Sr. Perito por “Outras perturbações psíquicas não especificadas, como por exemplo, estados fóbicos, estados obsessivos, quadros psicóticos, desde que estabelecido um nexo de causalidade com o acontecimento traumático podem ser objeto de valorização pericial”, por não estar fundamentada a existência de tal sequela, alertando para o facto de o código da TNI em causa se destinar a desvalorizar perturbações psíquicas que possam estar relacionadas com um acontecimento traumático, não parecendo ser o caso presente, porquanto do acidente resultaram para o A. apenas queixas de dores, não associadas a qualquer efetiva alteração anatómica, não tendo aquele sido submetido a qualquer internamento hospitalar ou intervenção cirúrgica, limitando-se a realizar tratamentos de fisioterapia, tendo obtido a consolidação médico-legal das lesões ao fim de 8 meses após o acidente.
Ora:
Considerando que as perícias médico-legais têm um regime especial, constante da Lei nº 45/2004, de 19/8, que constitui lei especial e que prevalece sobre as normas gerais do CPC (o que, de resto, o art. 467º/3 CPC expressamente consagra, ao preceituar que “as perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta”);
Considerando que a R. não invoca propriamente qualquer obscuridade ou contradição, mas tão somente a sua discordância quanto à valoração atribuída pelo Sr. Perito no âmbito da autonomia técnica dos serviços de medicina legal (art. 5º/4 do Regime: “No exercício das suas funções periciais, os médicos e outros técnicos especialistas em medicina legal gozam de autonomia e são responsáveis pelas perícias, relatórios e pareceres por si realizados”);
Considerando que não se vislumbra qualquer inexatidão no resultado da perícia que se imponha corrigir através de uma segunda perícia (cf. art. 487º/3 CPC);
É de indeferir a realização de uma segunda perícia médico-legal peticionada pela R..
Todavia, concede-se razão à R. no que toca à existência de insuficiência/deficiência no relatório pericial e falta de fundamentação das suas conclusões, no que respeita à avaliação do défice funcional permanente, tendo em conta as lesões e sequelas alegadamente resultantes do acidente (no pressuposto de não ter sido detetada qualquer lesão traumática ao nível da coluna, tão pouco degenerativa da coluna), e à consideração de sequelas psíquicas relevantes, como perturbações psíquicas justificativas de uma desvalorização significativa, face à natureza do acidente sofrido pelo A., lesões sofridas e tratamentos feitos.
Por todo o exposto:
i) indefiro ao pedido de realização de uma segunda perícia; e,
ii) fazendo uso da faculdade prevista no art. 485º, nº 4, do CPC, determino se notifique o Sr. Perito para, no prazo de dez dias, completar, esclarecer e/ou fundamentar, por escrito, o relatório apresentado em face das questões colocadas pela R. e supra enunciadas.
Para melhor esclarecimento, remeta cópia do requerimento da R. de 18/1/2022 e da resposta do A. de 21/1/2022”.

Inconformada com o assim decidido, a Ré X, S.A. interpôs o presente recurso de apelação em que formulou as conclusões que se seguem:

I- A Ré, de forma fundada, manifestou as razões da sua discordância quanto ao relatório pericial.
II- E, como tal, nos termos do disposto no artigo 487º n.º 1 do CPC, impunha-se que o julgador, ao invés de indeferir essadiligênciaeapenas ordenar anotificaçãodo perito para prestar esclarecimentos quanto a uma das questões nas quais incide a discordância da Ré, tivesse antes deferido a realização de uma segunda perícia, conforme requerido pela recorrente.
III- O disposto na Lei 45/2004 não afasta o regime geral previsto no CPC, a não ser na parteemque as disposições daqueleprimeiro normativoseoponhamàs desteúltimo, aqui por aplicação do critério da especialidade (“lex specialis derogat legi X”).
IV- Nenhuma disposição da Lei 45/2004 pode ser entendida no sentido de afastar a aplicação às perícias médico-legais das regras previstas no CPC, nomeadamente as que regulamentam a segunda perícia.
V- Neste contexto, não pode entender-se – o que seria, de resto, uma novidade no panorama da jurisprudência nacional – que não seja aplicável às perícias médico-legais a regra do artigo 487.º do CPC, que prevê a possibilidade de as partes requererem uma segunda perícia.
VI- Logo, não poderia o julgador afastar a realização da segunda perícia com o fundamento de que existe um regime especial para as perícias médico-legais, na medida em que este último não afasta a possibilidade de ser feito um segundo exame, nos termos previsto no artigo 487.º do CPC.
VII- O reconhecimento da autonomia técnica dos peritos não é mais do que o corolário do facto de uma perícia médico-legal ser, para todos os efeitos, um ato de cariz científico, no qual os peritos devem agir de forma livre e não vinculada.
VIII- Aquela autonomia não visa atribuir aos relatórios das perícias médico-legais a condição de verdades absolutas, que apenas podem ser submetidas a uma apreciação formal, no sentido de se encontrar alguma contradição ou obscuridade.
IX- Assim, apesar da autonomia dos peritos que intervêm nas perícias médico-legais, nenhuma norma legal afasta a possibilidade de uma das partes discordando das conclusões da primeira perícia, requer e ver deferida a realização de uma segunda perícia, como no caso foi pedido.
X- E o deferimento dessa segunda perícia não dependerá da invocação pela parte de qualquer obscuridade ou contradição do relatório (a qual, aliás, seria fundamento de uma reclamação e não de um pedido de segunda perícia), mas, nos termos do disposto no artigo 487.º do CPC, das razões da sua discordância quanto ao resultado da perícia, como, no caso, a Ré fez.
XI- Face ao exposto, não poderia, também por esta razão, ser indeferida a realização da segunda perícia.
XII- A realização de uma segunda perícia depende, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 487.º do CPC, da alegação fundada das razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
XIII- É o facto de o julgador não dispor dos conhecimentos técnicos que permitem avaliar os erros do relatório pericial que o deferimento da segunda perícia não está, nem pode estar, dependente de uma análise do mérito das razões invocadas pela parte, devendo antes limitar-se à avaliação objetiva sobre se foi ou não fundamentada a discordância.
XIV- No caso, a Ré, no seu requerimento de realização de segunda perícia, expôs, de formafundadaeexaustiva, as razões dasua discordânciaquanto ao relatóriopericial.
XV- Por outro lado, não existem razões sérias – nem o Tribunal as invoca – para se concluir que a pretensão da Ré de realização de segunda perícia seja meramente dilatória.
XVI- Assim, não poderia o julgador ter deixado de considerar fundadas as razões de discordância quanto ao relatório pericial que a Ré apresentou, em todas as questões suscitadas.
XVII- Logo, impunha-se o deferimento da realização da segunda perícia, com o mesmo objeto da primeira.
XVIII- Consequentemente, impõe-se que seja revogado o douto despacho sob censura e, em sua substituição, seja proferida decisão que admita a realização de uma segunda perícia, nos moldes que se considerar adequados.
XIX- A douta decisão sob censura violoua norma do artigo 487.º n.º 1do CPC e fez menos boa interpretação das regras da Lei 45/2004.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto despacho sob censura e decidindo-se antes, nos moldes acima apontados, como é de inteira e liminar JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo esta Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão que se encontra submetida à apreciação do tribunal ad quem resume-se em saber se o despacho recorrido, em que a 1ª Instância indeferiu a sujeição do apelado (Autor) a segunda perícia, padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe revogar esse despacho e determinar a realização dessa diligência probatória.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para apreciar a questão decidenda são os que constam do relatório supra elaborado.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A 1ª Instância indeferiu a pretensão da apelante (Ré) em submeter o apelado (Autor) a segunda perícia com os seguintes argumentos: a) a Lei n.º 45/2004, de 19/08, constitui lei especial e, como tal, prevalece sobre as normas gerais do CPC, e nela determina-se que as perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamente e não se encontra prevista nesse diploma a realização de segunda perícia; b) a apelante não invoca qualquer obscuridade ou contradição em relação ao relatório pericial referente à perícia médico-legal a que se submeteu o Autor, mas apenas a sua discordância quanto à valoração técnica feita pelo perito; c) o perito, no exercício dos serviços de medicina legal, goza de autonomia técnica e não se vislumbra qualquer inexatidão no resultado da perícia realizada que se imponha corrigir através de uma segunda perícia.
Dissente a apelante de todos esses argumentos, imputando-lhes erro de direito, pelo que urge verificar se lhe assiste razão.
O fundamento para a lei prever a prova pericial e lhe reconhecer autonomia em relação aos demais meios de prova que estatui reside na circunstância de existirem factos cuja perceção e/ou apreciação reclama conhecimentos especiais, seja de natureza científica, técnica ou artística que os julgadores não possuem, ou quando se trate de factos, relativos a pessoas, que não devam ser objeto de inspeção judicial (art. 388º do CC).
Quando existam factos controvertidos dessa natureza, qualquer das partes pode requerer a realização de prova pericial, ou essa diligência de prova pode ser determinada oficiosamente pelo juiz (art. 467º, n.º 1, 1ª parte, do CPC).
A prova pericial é requisitada pelo tribunal a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, é realizada por um único perito, nomeado pelo juiz de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa (art. 467º, n.º 1, 2ª parte, do mesmo Código).
A perícia é realizada, por norma, por um único perito, apenas podendo ser realizada por mais de um perito, até ao número de três, funcionando em moldes colegiais ou interdisciplinares, nas situações taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 468º.
Contudo, tratando-se de perícia médico-legal, como é o caso da perícia a que se submeteu o apelado (Autor) no âmbito dos presentes autos, essa perícia é realizada pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta (n.º 3, do art. 467º do CPC).
Esse diploma é a Lei n.º 45/20004, de 19/08, onde se estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, e cujos arts. 2º, n.º 1 e 21º, n.º 1 impõem que as perícias médico-legais sejam, obrigatoriamente, realizadas nas delegações e nos gabinetes médico-legais e forenses do INML, por um único perito.
Note-se que, segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, “a obrigatoriedade da realização das perícias médico-legais no IML não constitui restrição dos direitos processuais das partes, porquanto esta instituição tem autonomia técnico-científica, estando numa posição de equidistância perante as partes, sendo que os seus peritos garantem um padrão de elevada qualidade científica. Os direitos das partes são assegurados na precisa medida em que os peritos estão obrigados a fundamentar as suas respostas e conclusões, podendo ser requerida a prestação de esclarecimentos pelas partes, sendo estes meios processuais idóneos a aquilatar o iter seguido pelo perito e a permitir o cabal exercício do contraditório, assistindo ainda à parte o direito de se fazer assistir de técnico, nos termos do art. 50º” (1).
Uma vez realizada a perícia e notificado o respetivo relatório às partes, nos termos do n.º 1 do art. 487º do CPC, qualquer delas pode requerer que se proceda a segunda perícia, alegando as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
Essa segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (n.º 3 do art. 487º do CPC).
A segunda perícia não é, assim, “uma instância de recurso”, destinando-se antes a averiguar os mesmos factos que foram objeto da primeira perícia que se realizou perante a alegação por qualquer das partes de fundadas razões que motivam o pedido de realização da segunda perícia, isto é, de razões concretas, sérias e objetivas que levem a criar no espírito do julgador a fundada suspeita de que a primeira perícia padece de eventuais inexatidões, que importa suprir.
Daí que a segunda perícia vise “fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo a factos que foram objeto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial” (2).
Deste modo, compreende-se que, perante os resultados da primeira perícia, designadamente, as contradições entre as posições dos peritos quando ela tenha sido colegial ou perante dúvidas que surjam no espírito do julgador a propósito de eventuais inexatidões sobre o resultado alcançado na primeira, aquele possa, a todo o tempo, determinar oficiosamente a realização de segunda perícia com vista ao apuramento da verdade (art. 487º, n.º 2 do CPC). E também se compreende que, uma vez efetuada a segunda perícia, esta não invalide o resultado da primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal (art. 489º do CPC).
Conforme se ponderou no acórdão desta Relação de 04/10/2018 (3), relatado pelo aqui relator, antes da revisão operada pelos DL. n.ºs 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, o requerimento das partes solicitando a realização de segunda perícia não necessitava de ser motivado, não tendo o requerente de apontar quaisquer defeitos ou vícios ao relatório pericial que se realizou, nem o requerente tinha de apontar as razões porque julgava pouco satisfatório ou pouco convincente o resultado dessa primeira diligência probatória.
Com efeito, conforme expende Alberto do Reis, no âmbito do precedente regime processual, o que justificava o segundo arbitramento era “a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação doutros peritos os factos ou o valor dos bens que já foram apreciados. Parte-se da hipótese de que os primeiros viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque se não considera convincente o laudo obtido no primeiro arbitramento, é que se lança mão do segundo. Chamam-se outros peritos, mais numerosos e porventura mais qualificados, para examinarem os mesmos factos e os apreciarem tecnicamente” (4).
Em termos práticos, conferia-se à parte que ficasse insatisfeita com o resultado da primeira perícia a possibilidade de se socorrer de um segundo meio probatório (uma segunda perícia) de modo a suprir toda e qualquer dúvida, ainda que subjetiva, que pudesse pairar no seu espírito sobre a eventual inexatidão ou deficiência das perceções dos peritos ou das conclusões por eles extraídas, ou que pretendesse obter uma justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia já realizada. O juiz nunca podia rejeitar a realização da segunda perícia, nomeadamente, com fundamento no caráter impertinente ou dilatório desta.
Entendia-se que, uma vez reconhecida pelas partes a necessidade ou conveniência da realização dessa segunda diligência pericial, “não se devia tolher a nenhuma delas a faculdade de pretender corrigir, completar ou confirmar os resultados do primeiro arbitramento, por nunca se poder anunciar antecipadamente o efeito que este arbitramento exercerá a final no espírito dos julgadores” (5).
Acontece que, na sequência da reforma de 1995 e 1996 ao CPC, esse regime jurídico foi alterado e com ele deixaram de ser válidos os fundamentos aduzidos por Alberto dos Reis para justificar a realização imotivada da segunda perícia a requerimento das partes.
Na verdade, na sequência dessa revisão passou a exigir-se como condição do deferimento da segunda perícia que o requerente dessa diligência alegasse “fundadamente” as razões da sua discordância em relação ao relatório apresentado (art. 487º, n.º 1 do CPC).
Deste modo, contrariamente ao que acontecia no anterior regime processual, o requerente da segunda perícia não pode limitar-se a requerê-la, sendo-lhe exigido que justifique essa sua pretensão, explicitando os pontos concretos em relação aos quais manifesta a sua discordância em relação ao resultado atingido na perícia realizada e, depois, em relação a cada um desses pontos, apresente fundadas razões para essa discordância.
A segunda perícia deixou de ser, assim, configurada como um ato puramente discricionário das partes, em que bastava às mesmas requererem a realização dessa segunda diligência probatória para que o juiz a tivesse de deferir, e passou a ter como condição para o respetivo deferimento que: a) a parte indique os concretos pontos do relatório pericial sobre os quais dissente e, b) quais as concretas razões dessa sua discordância em relação a cada um desses pontos.
Note-se que, tal como se expende no Ac. do STJ de 25/11/2004 (6), a expressão adverbial “fundadamente” utilizada no n.º 1 do art. 487º significa que o requerente da segunda perícia tem de explicitar claramente, isto é, concreta e especificadamente, as razões da sua discordância em relação aos concretos pontos do relatório pericial sobre os quais discorda, não lhe bastando apresentar um simples requerimento solicitando a realização de segunda perícia, e depois terá de indicar fundados motivos para essa discordância.
Essa exigência decorre da necessidade do requerente ter de substanciar o requerimento com razões sérias e concludentes que justifiquem a realização da segunda perícia e que, caso se verifiquem, possam levar a um resultado pericial diverso (7) e tem dois objetivos: um de natureza processual, que visa impedir que essa diligência seja utilizada como um “expediente dilatório” ou de “chicana processual”; a segunda, de natureza substantiva, que exige que o requerente precise as razões da sua discordância em relação ao resultado da primeira perícia, discordâncias essas que não podem deixar de incidir sobre eventuais inexatidões (latu sensu), contradições ou insuficiências com relevância nas respetivas conclusões de que padeça a primeira perícia (8), em que o objetivo dessa discriminação é o de delimitar o âmbito sobre o qual incidirá a segunda perícia, uma vez que esta se destina naturalmente a corrigir as eventuais inexatidões de que padeçam os resultados explanados no relatório pericial relativo à primeira perícia.
Dentro desta lógica e conforme realça a doutrina e a jurisprudência, o requerente “deve especificar os pontos sobre que discorda do relatório da primeira perícia, por forma a delimitar o objeto da segunda e, de seguida deverá indicar os motivos pelos quais discorda desses pontos.
Esses motivos de dissonância têm de ser sérios e concludentes, por forma que, a verificarem-se, possam levar a um resultado pericial diverso.
Todavia, o requerente já não terá de demonstrar a procedência desses motivos/fundamentos, uma vez que a procedência ou improcedência dos mesmos dependerá necessariamente da realização da nova perícia (9).
Dito por outras palavras, “não cabe ao tribunal aprofundar o bem ou mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia” (10).
Mediante a imposição ao requerente da segunda perícia de ter de especificar os concretos pontos do relatório pericial em relação aos quais discorda e de ter de exteriorizar os concretos motivos que presidem a essa discordância em relação a cada um desses pontos, trata-se apenas de impor ao requerente que aduza razões objetivas, sérias e plausíveis capazes de fazerem nascer no espírito de um julgador médio um estado de dúvida sobre se o relatório da perícia já realizada não padecerá efetivamente das inexatidões, contradições e/ou insuficiências que o requerente lhe imputa e que poderão levar a um resultado pericial distinto daquele que foi alcançado na perícia já realizada, por forma a poder-se concluir, por um lado, que essa segunda perícia não consubstancia um expediente meramente dilatório e impertinente e, por outro, que existem efetivas, sérias e fundadas razões para se determinar a realização dessa segunda perícia – as indicadas pelo requerente (11).
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, verifica-se que a 1ª Instância indeferiu a segunda perícia requerida pela apelante com fundamento de que a perícia sobre que versam os autos é uma perícia médico-legal, cujo regime jurídico se encontra previsto na Lei n.º 45/2004, de 19/08, e que este diploma constitui lei especial em relação às normas gerais do CPC e que nesse regime especial não se encontra prevista a possibilidade das partes requererem a realização de segunda perícia e, bem assim, que os peritos do INML, no exercício dos serviços de medicina-legal gozam de autonomia técnica, mas antecipe-se, desde já, salvo o devido respeito e melhor opinião, esses fundamentos de recusa não convencem, mas antes apontam no sentido contrário ao propugnado pelo tribunal a quo.
Na verdade, sabendo-se que a lei especial derroga a lei geral, essa derrogação apenas acontece quanto aos específicos e concretos aspetos que são regulados pela lei especial, posto que quanto a tudo que essa lei especial não regula continua a valer o regime jurídico geral, isto é, no caso, o previsto no CPC.
Acresce dizer que, a circunstância do art. 5º, n.º 4, da Lei n.º 45/2004, de 19/08, reconhecer aos médicos e a outros técnicos especialistas em medicina legal, médicos ou outros técnicos contratados pelo INML, nos termos do disposto nos seus arts. 28º e 29º, médicos dos serviços de saúde e entidades técnicas referidas no art. 2º, n.ºs 4, autonomia técnica no exercício das funções periciais, apenas tem o sentido e o alcance de deixar bem vincada essa autonomia técnica perante o INML e as partes, sem que daqui se possa tirar qualquer ilação válida quanto à admissibilidade ou não de realização de segunda perícia.
É que, mesmo no âmbito de uma relação de trabalho subordinado, os médicos, advogados, e outros profissionais que exerçam atividades eminentemente científicas, técnicas ou artísticas gozam de autonomia técnica no exercício das suas funções, assim como gozam dessa autonomia técnica todos os especialistas a quem o tribunal se socorra para que exerçam funções como peritos.
Acresce dizer que, como bem nota a apelante, da circunstância de os peritos do INML gozarem de natural imparcialidade, idoneidade e competência técnica e da circunstância da atividade pericial médico-legal e de avaliação do dano corporal no âmbito do direito civil ser uma função eminentemente científica, tal não significa, nem pode significar, que os juízos científicos e técnicos emitidos pelos senhores peritos médicos sejam insindicáveis, como não o são efetivamente, nem o poderiam ser.
Com efeito, os juízos científicos, embora tendencialmente objetivos, nunca são absolutos, na medida em que o conhecimento científico e técnico não é definitivo, por se encontrar em permanente evolução, não existindo, aliás, um conhecimento científico e técnico que seja único, absoluto e permanente.
Depois, porque os conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos têm de ser aplicados ao caso concreto, podendo nessa aplicação não só ocorrerem várias perspetivas, como quem o aplica poderá incorrer em erro.
Ora, porque assim é, da circunstância de na Lei n.º 45/2004, de 19/08, nada se prever quanto à admissibilidade ou não de ser requerida pelas partes a realização de segunda perícia e do próprio juiz poder determinar oficiosamente a realização dessa diligência, apenas pode significar que, quanto a essa diligência probatória, valem as normas gerais contidas nos arts. 487º a 489º do CPC (regime geral), naturalmente com as especialidades que decorrem da lei especial, que é a Lei n.º 45/2004, porquanto, essas normas gerais, a propósito da segunda perícia, não foram derrogadas pela lei especial (12).
Depois, o que se acaba de concluir é a única interpretação que se mostra conforme ao elemento teleológico que preside à Lei n.º 45/2004, de 19/08, onde não foi manifesto propósito do legislador restringir os direitos processuais que reconhece às partes no âmbito do CPC, mas antes melhor salvaguardar esses direitos, ao sujeitar as perícias médico-legais a serviços médico-legais (o INML e respetivos Gabinetes), dotados de um quadro de profissionais independentes, idóneos e tecnicamente apetrechados, capazes de proporcionar às partes, se não relatórios periciais excelentes, pelo menos, de muito boa qualidade.
Finalmente, essa interpretação é a única que se mostra compatível com a circunstância de não existir um conhecimento técnico, científico ou artístico único, universal e definitivo e de poderem ocorrer erros na aplicação desses conhecimentos, os quais naturalmente têm de ser sindicados.
Destarte, não colhem os enunciados fundamentos de recusa da segunda perícia aduzidos pela 1ª Instância.
Passando aos últimos argumentos em que o tribunal a quo fundamentou a sua decisão de recusa da segunda perícia requerida pela apelante, basta a mera leitura do requerimento apresentado pela apelante para se constatar não ser certa a ilação extraída pela 1ª Instância quando conclui que, nesse requerimento, a apelante “não invoca qualquer obscuridade ou contradição” em relação ao relatório pericial referente à perícia realizada, “mas tão somente” manifesta a sua discordância “quanto à valoração” feita pelo Senhor perito.
Na verdade, que assim não é, resulta da circunstância de a apelante, naquele requerimento, quanto às sequelas ao nível da coluna sofridas pelo apelado (Autor), alegar “não estar comprovado que o Autor, em consequência do acidente, tenha ficado portador de sequelas a esse nível”, e justifica essa sua alegação do seguinte modo: “(…), na sequência do acidente o Autor recorreu ao Serviço de Urgência da Unidade Local de Saúde do Nordeste. Submetido nesse hospital a exames radiológicos, não foi detetada qualquer lesão traumática ao nível da coluna vertebral do Autor, seja cervical, dorsal, lombar, ou zona do sacro (cfr. Doc. 2 junto com a PI). Ademais, realizada ao Autor TAC da Coluna Lombo-Sagrada em 13/08/2020, não foi detetada qualquer lesão traumática ou, tão pouco, degenerativa da coluna (cfr. Doc. 4 junto com a PI)”, na sequência do que, conclui: “isto é, não só não foi diagnosticada qualquer lesão nova da coluna, como, tão pouco, se pode admitir um agravamento sintomatológico de patologia prévia de que o Autor já padecesse”.
Depois, a apelante continua: “Face à total ausência de lesão osteoarticular, foi diagnosticada ao Autor uma mera contratura muscular (síndrome miofascial – cfr. Doc. 5 junto com a PI), o qual foi debelado com fisioterapia”.
Ora, uma primeira questão se suscita a esta Relação: dos elementos clínicos invocados pela apelante pode ou não concluir-se que o apelado não sofreu qualquer lesão traumática ao nível da coluna cervical, dorsal, lombar ou zona do sacro? E, a não ter o apelado sofrido qualquer trauma a esse nível, será que o acidente não agravou eventuais patologias pré-existentes de que o Autor já padecia ao nível da coluna?
Segundo a apelante essas questões merecem resposta negativa, mas não foi essa a posição da Senhora perita médica do INML que subscreveu o relatório pericial relativo à primeira perícia médica a que se submeteu o Autor, tanto assim que lhe atribui uma incapacidade a esse título.
Depois, contrariamente ao propugnado pela 1ª Instância, partindo daqueles dados que se acabaram de enunciar, os quais, na perspetiva da apelante, são demonstrativos em como o apelado não sofreu quaisquer lesões ao nível da coluna cervical, dorsal, lombar ou zona do sacro e que também não sofreu qualquer agravamento de eventuais patologias pré-existentes ao acidente ao nível da coluna, a apelante aponta pretensas contradições entre esses elementos clínicos que antes enunciou e o teor do relatório pericial e os próprios termos desse relatório, ao escrever: “Ora, lendo-se o relatório pericial verifica-se que, atualmente, o Autor não apresenta, na realidade, qualquer sequela ao nível da coluna. Efetivamente, regista-se no exame objetivo que o Autor não apresenta rigidez do pescoço, que a mobilidade a esse nível está conservada e ainda que não tem atrofia muscular. A única menção que se encontra no relatório a patologia associada à zona cervical é uma contratura dos músculos para vertebrais, algo que não se pode assumir ser permanente, nem associável ao sinistro. Ademais, de acordo com o exame objetivo constante do relatório pericial, não há menção a qualquer alteração ao nível da ráquis. Ou seja, no que releva, tudo indica que foram revertidas as lesões que o Autor sofreu ao nível da coluna, sendo que a situação atual do demandante não justifica a atribuição de desvalorização permanente por sequelas da ráquis (códigos Md801 e Md901)”.
Passando ao segundo fundamento de discordância apresentado pela apelante em relação ao juízo pericial emitido pela Senhora perita no relatório pericial que elaborou – sequelas ao nível psiquiátrico -, a apelante fundamenta essa sua discordância alegando que, no relatório pericial, a Senhora perita atribuiu ao apelado 4 pontos por “Outras perturbações psíquicas não especificadas, como por exemplo, estados fóbicos, estados obsessivos, quadros psicóticos, desde que estabelecido um nexo de causalidade com o acontecimento traumático podem ser objeto de valorização pericial”, contudo, “não está devidamente fundamentada a atribuição desta sequela”.
Note-se que este concreto fundamento invocado pela apelante para requerer a segunda perícia foi, inclusivamente, aceite pela 1ª Instância, tanto assim que determinou que a Senhora perita médica completasse, esclarecesse e/ou fundamentasse o seu relatório “em face das questões colocadas pela” apelante.
De seguida, a apelante aduz as razões que, a seu ver, são incompatíveis com as sequelas psiquiátricas reconhecidos pelo Senhor perito médico (psiquiatra) ao apelado, alegando: “No caso concreto, as lesões decorrentes do acidente não assumiram, objetivamente, gravidade suficiente para justificar o surgimento de alterações psíquicas. Efetivamente, em resultado do acidente o Autor não sofreu qualquer lesão traumática que tenha sido objetivamente constada, tendo-se, apenas, queixado de dores, não associadas a qualquer efetiva alteração anatómica. O Autor não sofreu qualquer internamento hospitalar, nem teve de se submeter a cirurgia. Os tratamentos consistiram em fisioterapia. Obteve a consolidação médico-legal das lesões ao fim de 8 meses após o acidente. Ademais, as sequelas reconhecidas ao Autor no relatório pericial – cuja existência não se reconhece – consistem em dores residuais ao nível da coluna, as quais são moderadas. Neste contexto e salvo o muito e devido respeito, não se pode estabelecer qualquer relação direta entre as queixas – e não são mais do que isso – que o Autor apresenta ao nível psiquiátrico e o acidente. Com efeito, a escassa gravidade das sequelas decorrentes do acidente, bem como a circunstância de a cura ter sido obtida ao fim de um lapso de tempo relativamente curto, sem necessidade de realização de tratamentos especialmente incómodos e demorados, não permite, do ponto de vista médico-legal, reconhecer nexo de causalidade entre aquele evento e as queixas do Autor ao nível psiquiátrico. Sendo de referir, também, que, ao atribuir-se uma desvalorização por psiquiatria ao Autor, não se teve em conta que as queixas que apresenta encontram mais adequada justificação no stresse inerente à sua profissão de polícia. Veja-se, a este propósito, que o próprio Autor reconhece na pág. 4 do relatório pericial que “já era um bocado nervoso”. Por outro lado, o próprio quadro psíquico descrito no relatório da especialidade de psiquiatria não é de molde a caracterizar um estado patológico que justifique a atribuição de qualquer desvalorização. Sendo, também, de salientar que, afinal, está em causa um alegado quadro reativo à dor, o qual, por um lado, não tem real justificação em face da escassa gravidade das sequelas e, por outro, corresponde, na prática, à dupla desvalorização da mesma alegada sequela (as dores nas costas)”.
Conforme é bom de ver, os motivos aduzidos pela apelante para fundamentar o seu inconformismo em relação às sequelas reconhecidas pela senhora perita médica, quer ao nível da coluna, quer a nível psiquiátrico, mostram-se pertinentes, sérios e fundados, pelo menos, do ponto de vista de um leigo, ainda que instruído e experimentado, que é a posição que ocupa o julgador.
Com efeito, a fundada apreciação de tais fundamentos demandam conhecimentos médicos especializados, os quais não são detidos pelo julgador, assim como acontece com a generalidade das pessoas instruídas e experimentadas.
Porque assim é, salvo o devido respeito e melhor opinião, não se comunga da ilação extraída pela 1ª Instância segundo a qual: “não se vislumbra qualquer inexatidão no resultado da perícia que se imponha corrigir”.
Na verdade, demandando a apreciação da bondade de tais fundamentos conhecimentos médicos, os quais naturalmente não são detidos pelo julgador, não podia o excelentíssimo julgador, face a esses fundamentos, extrair outra ilação se não a que acabou por extrair, ou seja, face à ausência de conhecimentos científicos e técnico que lhe permitisse apreciar da bondade das críticas que a apelante assaca ao relatório pericial, concluir, como concluiu, não vislumbrar que esse relatório padeça de qualquer inexatidão que se imponha ser corrigida, sem que daí decorra que os fundamentos invocadas pela apelante e que merecem a sua crítica não sejam efetivamente fundados.
Logo, não cabe ao tribunal nesta fase, até porque não detém os conhecimentos científicos e técnicos necessários para fazer essa apreciação, julgar de mérito e, em consequência, decidir se os fundamentos e as razões invocadas pela apelante para requerer a segunda perícia têm ou não razão de ser, uma vez que apenas após chamados os técnicos habilitados com os conhecimentos necessários para realizarem essa apreciação, se poderá ou não concluir pelo bom fundamento desses motivos.
Ora, porque as razões aduzidos pela apelante em relação aos dois pontos do relatório pericial em relação aos quais dissente, se mostram fundadas, sérias e plausíveis, de modo a criarem no espírito de um julgador médio um estado de fundada dúvida sobre se o relatório pericial já realizado não padecerá efetivamente dos vícios que a apelante lhe imputa e que poderão levar a um resultado pericial distinto daquele que foi alcançado, impõe-se determinar a submissão do apelado (Autor) à segunda perícia requerida pela apelante, a fim de ver esclarecidas as questões suscitadas.
Resulta do exposto, procederem os fundamentos de recurso invocados pela apelante e, em consequência, impõe-se concluir pela procedência da presente apelação, revogando-se o despacho recorrido, que indeferiu a submissão do Autor (apelado) à segunda perícia requerida pela apelante e determinar a sujeição deste à segunda perícia requerida pela apelante.
*
Decisão:
Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar a presente apelação procedente e, em consequência:
- revogam o despacho recorrido que indeferiu a submissão do Autor (apelado) à segunda perícia requerida pela apelante e determinam a realização da segunda perícia requerida pela apelante.
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Custas da apelação pelo apelado (Autor), posto que apesar de não ter contra-alegado, opôs-se à realização da segunda perícia e, consequentemente, ficou vencido (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*
Guimarães, 03 de novembro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias - relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes - 1ª Adjunta
Rosália Cunha - 2ª Adjunta


1. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 554 e 555. No mesmo sentido Ac. RP. de 09/06/2009, Proc. 13492/05.2TBMAI-B.P1, in base da dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venha infra a citar sem menção em contrário.
2. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 521.
3. Ac. RG. de 04/10/2018, proc. 3621/17.9T8BRG-A.G1.
4. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. VI, Coimbra, 1987, págs. 297 e 298.
5. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 600.
6. Ac. do STJ de 25/11/2004, CJ/STJ, ano CII, t. 3º, pág.124; RG. de 12/07/2016, Proc. 2636/12.8TBVCT-A.G1; RC. de 08/07/2021, Proc. 2811/18.1T8VIS-C.C1; RE. de 13/09/2007, Proc. 1861/07-2, in base de dados DGSI.
7. No mesmo sentido Ac. RG. de 25/11/2004, Proc. 2258/14, in base de dados da DGSI.
8. Neste sentido Acs. RP. de 23/11/2006, Proc. 0636189; 97/10/2008, Proc. 0821979; RG. de 12/07/2016, Proc. 559/14.5TJVNF.G1, base de dados da DGSI.
9. Acs. RG. de 06/02/2014, Proc. 2847/05.2TBFAF-A.G1; 14/04/2016, Proc. 2258/14.9T8BRG-B.G1; 17/01/2003, Proc. 785/06.0TBVLN-A; RL de 28/09/2010, Proc. 7502/08-7. No mesmo sentido José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pág. 342.
10. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 567 e a múltipla jurisprudência aí citada. Ac. RG. de 06/02/2014, Proc. 2847/05.2TBFAF-A.G1, onde se lê que: “O juiz só poderá inferir a realização da segunda perícia por considerar a fundamentação insuficiente quando se mostrar, sem margem para dúvidas, que o pedido não se justifica”.
11. Ac. RG de 04/10/2018, já citado, por nós relatado; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, ob. cit., pág. 567.
12. Neste sentido, Ac. R.P. de 09/06/2009, Proc. 1349/05.2TBMAI-B.P1.