Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
679/12.0TAFAF.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: SUBTRAÇÃO DE MENOR
AUSÊNCIA DE QUEIXA
FALTA DE INQUÉRITO
NÃO PRONÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Para se apresentar queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental. Todavia, a lei não dispensa a existência de um acto formal em que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. Esse acto formal consiste em «dar conhecimemto do facto» ao Ministério Público ou a entidade com a obrigação legal de o transmitir àquele.
II) Por outro lado, a lei não impõe ao denunciante que qualifique criminalmente os factos, nem tão pouco que os delimite em pormenor. O denunciante pode até nem saber exatamente o que se passou. Isso é matéria para a investigação durante o inquérito. Essencial é que identifique o "episódio", ou episódios, a que se refere, de forma a que, no futuro, não haja dúvidas sobre aquilo de que efectivamente se queixou.
III) No caso dos autos, está em causa um crime de subtração de menor, que assume a natureza semi-pública, nos termos do artº 249º, nº 3, do CP, sendo certo que a denúncia foi apresentada antes do início da prática dos factos narrados no RAI.
IV) Não tendo havido queixa quanto aos factos pelos quais o assistente/recorrente acusou, não houve inquérito quanto a eles, nem podia ter havido instrução e, por maioria de razão, não poderá haver pronúncia.
IV) Por isso que o despacho de não pronúncia pela prática do referido ilícito de subtração de menor, proferido nos autos, é de manter.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No Processo 679/12.0TAFAF da Comarca de Braga (Braga – Inst. Central – 2ª Sec. Ins. Criminal) foi proferido despacho que decidiu (transcreve-se):
Não pronunciar, para julgamento a arguida Maria M., pela prática de um crime de subtração de menor p. e p. pelo art. 249 nº 1 al. c) do Cod. Penal.
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Deste despacho interpôs recurso o assistente, Manuel M., visando que seja decidida a pronúncia da arguida pela autoria do aludido crime de subtração de menor, por os autos conterem indícios suficientes da prática de tal crime.
Responderam, o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido e a arguida
O magistrado do MP suscita a questão prévia de, sendo o procedimento pelo crime em causa dependente de queixa, em nenhum momento o recorrente, até ao encerramento do inquérito, ter manifestado de forma expressa a vontade de que tivesse lugar o procedimento criminal.
No mais, ambos concluem pela inexistência de indícios da prática do crime.
Nesta instância a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido de se considerar a existência de intenção inequívoca por parte do assistente de procedimento criminal, devendo, no entanto, o recurso ser julgado improcedente, por não se mostrar suficientemente indiciada a prática do crime.
Observou-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O assistente Manuel M. recorre da decisão que não pronunciou a arguida Maria M. como autora de um crime de subtração de menor p. e p. pelo art. 249 nºs 1 als. a) e c) e 3 do Cod. Penal.
Trata-se de crime com natureza semi pública Nos termos do nº 3 do art. 249 do Cod. Penal “O procedimento criminal depende de queixa”.
e o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido suscita a questão prévia de não ter sido apresentada queixa pelo crime imputado.
Vejamos:
Dispõe o art. 49 nº 1 do CPP que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outra pessoa, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”. Nos termos do nº 2 do mesmo artigo considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
A norma é bem explícita. Para se apresentar a queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental. Mas, por outro lado, a lei não dispensa existência de um ato formal em que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. Esse ato formal consiste em «dar conhecimento do facto» ao Ministério Público ou a entidade com a obrigação legal de o transmitir àquele.
A lei não impõe ao denunciante que qualifique criminalmente os factos. Nem, tão pouco, que os delimite com pormenor. O denunciante pode até nem saber exatamente o que se passou. Isso é matéria para a investigação durante o inquérito. Mas é essencial é que identifique o “episódio”, ou episódios, a que se refere, de forma a que, no futuro, não haja dúvidas sobre aquilo de que efetivamente se queixou. O artigo 243 nº 1 als. a) e b) do CPP prescreve que o auto de notícia deve mencionar “os factos que constituem crime” e “o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido”. O «auto de notícia» relata factos presenciados pela autoridade que o elabora, ao contrário do que pode acontecer quanto ao denunciante. Daí que o artigo 246 nº 3 do CPP apenas disponha que “a denúncia contém, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do nº 1 do art. 243”.
Pois bem, no requerimento para a abertura de instrução (RAI), o recorrente delimita temporalmente, entre 6 de julho e 18 de julho de 2012, os factos que deverão ser objeto da pronúncia.
Na realidade, nesse requerimento, na parte em que narra os factos que imputa à arguida, alega que “no dia 6 de julho de 2012, o assistente foi, como habitualmente, recolher as suas filhas à residência da denunciada para que consigo passassem o fim-de-semana” (ponto 1). Tendo encontrado a casa fechada (ponto nº 2), “nos dias que se seguiram tentou, por inúmeras vezes, contactar telefonicamente a denunciada, sempre sem qualquer sucesso…” (facto nº 5). “Desconfiou que a denunciada pudesse ter abandonado o país na companhia das filhas” (nº 6), “suspeita que se confirmou no dia 18 de julho, quando, na sua caixa postal, recebeu a carta de citação (…) de uma ação de alteração da regulação das responsabilidades parentais” (nº 7). Nessa ação “a denunciada alega que pretende emigrar para França, na companhia das menores” (nº 8), mas, na verdade, “já havia abandonado Portugal, na companhia das menores” (nº 9). A denunciada, “ao vedar o convívio regular das menores com o pai desde 6 de julho de 2012 e, sobretudo, ao abandonar o país na companhia das crianças, violou (…) o regime estabelecido nas respetivas regulações…” (nº 14).
Em face dos factos acabados de ser transcritos, é claro que o objeto do crime imputado na pronúncia consiste em a arguida, a partir de 6 de julho de 2012 ter subtraído as menores do convívio do pai.
Pois bem, a denúncia destes autos foi apresentada em 16 de junho de 2012 (fls. 3). Isto é, antes do início da prática dos factos narrados no RAI.
Independentemente da questão de saber se os termos em que tal «denúncia» foi formulada poderem valer como «queixa» Na resposta ao recurso o magistrado do MP junto do tribunal defende que não pode valer como queixa porque nela o assistente “não manifestou vontade expressa no sentido de ser instaurado procedimento criminal, o certo é que, por maioria de razão, nessa data, não poderia abranger comportamentos que ainda não tinham ocorrido.
Na denúncia, o assistente comunicou na Esquadra … do … da PSP que “se dirigiu ao balcão da …, com a finalidade de impedir o embarque de duas menores, suas filhas, (…) estando estas acompanhadas por Maria C. (ex-mulher), mãe das menores (…). A sua ex mulher não possuía qualquer documento que lhe permitisse embarcar com as menores…” (fls. 3).
Ora, percorrendo-se o inquérito, constata-se que a investigação limitou-se ao episódio referido na denúncia. É uma conclusão que se extrai de todo o processado e do conteúdo do despacho de arquivamento de fls. 88, o qual, inequivocamente, se reporta exclusivamente ao episódio do dia 16-6-2012.
Trata-se de um episódio distinto do «pedaço de vida» referido nos factos do RAI, nos termos do qual (repete-se) o arguido só “vedou o convívio regular das menores com o pai desde 6 de julho de 2012”, em momento posterior aos factos da denúncia.
A terem existido ambos os comportamentos (o da denúncia e o do RAI), estaríamos perante a prática de dois crimes distintos (se, efetivamente, os factos dos dois episódios forem subsumíveis a algum tipo legal).
Como acima se disse, a investigação limitou-se ao episódio referido na denúncia, não tendo havido inquérito quanto aos factos narrados no RAI. “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” – art. 262 nº 1 do CPP. Nada disto ocorreu relativamente aos factos imputados no RAI.
Não houve inquérito, quanto aos factos imputados no RAI, nem podia ter havido, por não ter havido queixa quanto a tais factos. É que, relativamente a crimes cujo procedimento seja dependente de queixa, o Ministério Público só tem legitimidade para prom
over o inquérito quando o titular do direito de queixa lhe der conhecimento dos factos respetivos – cfr. o já referido art. 49 nº 1 do CPP.
Do mesmo modo, porque o sistema é harmonioso, não poderia ter havido acusação, ou instrução requerida pelo assistente, pelos factos que constam do RAI, sem, previamente, os mesmos terem sido objeto de «inquérito» (art. 262 nº 2 do CPP – “a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”). A falta de inquérito, quando obrigatório, é, aliás, fonte de nulidade insanável – art. 119 al. d) do CPP.
Em resumo, o assistente/recorrente “enxertou” num inquérito instaurado para a investigação de um comportamento concreto e específico, ocorrido em 16-6-2012, um requerimento para a abertura de instrução em que deduziu acusação por factos e crime de natureza semi-pública praticados em momento posterior (entre 6 de julho e 18 de julho de 2012) que não foram, nem podiam ter sido, investigados em inquérito, por, relativamente a eles, não ter sido apresentada queixa ou qualquer participação.
Não tendo havido queixa quanto aos factos pelos quais o assistente acusou, não houve inquérito quanto a eles, nem podia ter havido instrução. Igualmente, por maioria de razão, não poderá haver pronúncia.
O recurso improcede.
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DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso do assistente Manuel M..
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.