Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3475/21.0T87VNF-A.G1-A
Relator: JOSÉ FERNANDO CARDOSO AMARAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIETÁRIAS
DEVOLUÇÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Tendo sido requerida – após a sentença que decidiu suspender provisoriamente deliberações sociais, e entre elas a que, em assembleia geral, nomeara novos Presidente e Vogal do CA –, em nome da Sociedade (anónima) demandada, através de advogado constituído nos autos por essa nova administração, a restituição dos livros de actas (do respectivo Conselho e da Assembleia Geral) bem como dos títulos (acções nominativas) representativos do seu capital social, mas das quais aquele novo Presidente era dono pleno de 5% e radiciário dos restantes 95%, sendo destes usufrutuários o anterior Presidente e a Vogal do CA (sua esposa) – livros e títulos que o novo Presidente detinha e entregara para prova ao Tribunal por ordem deste –, entendendo o juiz respectivo que eles já não são necessários nos autos e concordando ambas as partes que os livros devem ser entregues à Sociedade (à qual pertencem e que deles carece para o exercício da sua actividade), é correcta a decisão, tomada à luz do artº 442º, do CCP, face ao litígio (entre os anteriores à deliberação objecto da providência cautelar e os nomeados naquela mas com eficácia suspensa por força da sentença proferida sobre quem titula os cargos do CA), que mandou entregar os livros ao secretário da sociedade (artº 446º-B, nº 1, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais) e os títulos onerados com usufruto aos respectivos usufrutuários e os outros ao seu dono (tendo em conta o regime legal respectivo e a oneração a que estavam sujeitos aqueles).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO [[1]]

Nos autos de Providência Cautelar pendentes no Tribunal de Comércio de ... instaurados por AA e BB a O..., SA, foi proferida sentença, em 20-04-2022, julgando-a procedente (salvo na parte relativa à mudança de sede) e decretando a suspensão das (demais) deliberações tomadas na assembleia geral de 16-03-2021.  

Com a respectiva petição inicial, os requerentes, entre outras provas, haviam requerido “se digne ordenar ao Requerido CC e à Requerida Sociedade que procedam à junção aos autos de fotocópia integral da totalidade das ações representativas do capital da sociedade (inclusive as oneradas com o usufruto a favor dos seus pais, aqui Requerentes), do livro de actas de assembleia geral, do livro de actas do conselho de administração, tudo ao abrigo do disposto no art. 429.º do CPC, por serem documentos necessários à prova da factualidade em causa nos autos, nomeadamente o histórico do relacionamento entre os accionistas, no âmbito das assembleias gerais, e entre os administradores, bem como a situação relativa ao direito de usufruto e seu exercício.”

Por despacho de 04-02-2022, o Tribunal determinou: “Notifique a Requerida para, em 10 dias, juntar fotocópias das acções representativas do capital social da sociedade e, a título devolutivo, o livro de actas da assembleia geral e o livro do Conselho de Administração”.

Notificada, nesse dia e novamente em 18-02-2022, para tal, a requerida O..., SA, pela mão do seu então Mandatário forense, juntou aos autos os aludidos documentos (os dois livros de actas e os títulos, originais), o que foi admitido.

Terminada a audiência de discussão e julgamento, a dita Sociedade, por requerimento de 18-05-2022, solicitou ao Tribunal “que ordene a entrega dos livros de atas, bem como dos títulos de ações representativas do capital da empresa no dia de hoje, ao Mandatário ora subscritor, que se encontra no Tribunal…”.

Por despacho proferido no mesmo dia (18-05-2022), sobre o aludido requerimento, ordenou-se a notificação dos requerentes “para, até à próxima sexta feira, se pronunciarem quanto à devolução dos livros de actas e dos títulos à Requerida.”

Pronunciaram-se eles em longo requerimento (20-05-2022), justificando a sua discordância e oposição à requerida entrega. Tal “investida” (segundo expressão da Sociedade) mereceu subsequente réplica desta (23-05-2022).

Então, por despacho de 27-05-2022, com a referência Citius, ...94, exarou-se:

“Decidindo:
Os livros de actas serão entregues ao secretário da sociedade, caso este os requeira (artigo 446.º B, n.º 1, al. c) do CSC).
Logo, indefere-se o pedido apresentado pela Requerida.
No que diz respeito aos títulos, autorizo a sua entrega aos usufrutuários, no que diz respeito aos títulos que estão onerados com usufruto e caso o peçam e ao titular pleno dos outros, caso o solicite.
Notifique.”.

Nessa sequência, em requerimento de 30-05-2022, os requerentes apresentaram-se a “declarar que pretendem que os aludidos títulos lhes sejam devolvidos e que os mesmos sejam entregues ao seu Mandatário”.

Seguiu-se-lhe despacho de 01-06-2022, referência Citius ...15, do seguinte teor: “Fotocopie integralmente os livros de actas e dos títulos. Autorizo a entrega dos títulos aos il. Mandatários, caso seja solicitado.” – actos que a Secretaria cumpriu.

Em 14-06-2022, a requerida Sociedade, tendo pago mais tarde a multa validante da falta de apresentação do comprovativo da Taxa devida pelo acto, interpôs recurso dos dois despachos – de 27-05-2022 referência Citius ...94 [[2]] e de 01-06-2022, referência Citius ...15 –, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal a quo errou na sua apreciação quando proferiu os despachos datados de (i) 27.05.2022; e (ii) 01.06.2022, com as referências (i) ...31 e (ii) ...15, respetivamente, através dos (i) ordenou a entrega dos livros de atas ao secretário da sociedade, se requeridos, e a entrega dos títulos onerados com usufruto aos usufrutuários e os restantes ao seu titular pleno e (ii) autorizou essa mesma entrega aos Mandatários dos Requerentes;
2. Os aqui Recorridos apresentaram providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, requerendo, em sede de prova, que a Recorrente procedesse à junção do livro de atas de assembleia geral e do livro de atas do conselho de administração;
3. O Tribunal a quo ordenou, a título devolutivo, a entrega dos livros de atas e dos títulos para análise dos mesmos, o que foi exemplarmente cumprido em sede de audiência de julgamento, tendo a Recorrente procedido a tal entrega, em formato original, para que pudessem ser analisados pela contraparte, bem como pelo Tribunal, sendo desde logo os mesmos fotocopiados de forma integral por ordem do Tribunal;
4. Mais, os Recorridos haviam requerido cópia, e não os originais, logo, a pretensão nunca poderia ser “apreender” tais documentos, uma vez que, para o efeito, teriam pedido os originais, o que não sucedeu;
5. Analisados os mencionados documentos e proferida sentença, a Recorrente requereu a devolução dos livros de atas e dos títulos, nos termos do artigo 442.º do CPC, tendo o Tribunal a quo convidado os Recorridos a pronunciarem-se quanto à mencionada devolução;
6. A devolução requerida não carecia de contraditório, uma vez que já tinha sido proferida sentença e, portanto, não haveria qualquer decisão de mérito pendente que carecesse de pronúncia;
7. O art. 3.º, n.º 3 do CPC determina que o contraditório será observado ao longo do processo, o que não se verifica, uma vez que já tivera sido proferida decisão;
8. O art. 3.º, n.º 3 do CPC determina ainda que o princípio do contraditório deverá ser observado, exceto em “caso de manifesta desnecessidade”, que é o que se verifica in casu;
9. Os mencionados documentos pertencem à empresa Recorrente e fazem falta para o exercício da sua atividade;
10. A ação apresentada é uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, não tendo sido requerida nem determinada a apreensão dos documentos;
11. A Recorrente cumpriu o despacho que ordenou a junção dos documentos para consulta, pelo que, finda a aludida consulta, o despacho encontra-se extinto, não podendo ser proferida decisão em sentido contrário, ordenando-se a apreensão/confisco de documentos em processo não destinado a tal e ordenando a apreensão na sequência de pedido de consulta, violando assim, em absoluto, a confiança das partes no poder judicial;
12. Devem os despachos proferidos pelo Tribunal a quo datados de 27.05.2022 e de 01.06.2022 ser revogados e substituídos por outros que ordenem a devolução dos livros de atas e entrega dos títulos à sociedade Recorrente, à pessoa do Sr. CC, por ser o seu legítimo titular.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, serem revogados os despachos recorridos datados de 27.05.2022 e de 01.06.2022, que deverão ser substituídos por outros, que ordenem a devolução dos livros de atas e entrega dos títulos à sociedade Recorrente,
Assim farão V. Exas., como sempre, verdadeira e sã JUSTIÇA!”.

Os requerentes responderam, concluindo assim as suas contra-alegações:

“A. O presente recurso vem interposto dos Despachos proferidos a 27 de Maio de 2022 e a 1 de Junho de 2022 (ref.ªs CITIUS ...94 e ...15, respetivamente).
B. Apesar da referida delimitação, verifica-se que a Recorrente se pronuncia e coloca em causa o despacho proferido a 18 de Maio de 2022 (ref.ª CITIUS ...07), pelo que, não tendo a Recorrente manifestado a sua vontade de recorrer do referido Despacho, todos os argumentos aduzidos sobre este Despacho devem ter-se por não escritos.
C. Caso assim não entenda, sempre deverá considerar-se o alegado quanto a este Despacho totalmente intempestivo, dado que o prazo para interposição do respetivo recurso terminou a 7 de junho de 2021 (cf. art. 644.º, n.º 2, al. g) do CPC) e as alegações a que ora se responde foram apresentadas em juízo a 14 de junho de 2021.
D. Para uma correta apreciação do caso que nos ocupa nos presentes autos importa ter em consideração a relação material subjacente: nomeadamente da relação entre CC, a sociedade Recorrente e os Recorridos.
E. A factualidade subjacente a relação material foi dada como provada pelo Tribunal a quo, por sentença proferida a 21.04.2022, e de onde resultou indiciariamente provado, em suma, que CC urdiu um estratagema para se apoderar da sociedade Recorrente antes da morte dos pais, tendo em vista a dissipação e liquidação do património da sociedade Recorrente, em benefício próprio e em detrimento da sociedade (cf. factos aa) a qq) e ss), iii) a rrr), uuu) e vvv), da sentença).
F. Analisadas as alegações apresentadas pela Recorrente, verifica-se que não é esta que pretende recuperar a posse dos livros de atas e dos títulos representativos do capital social da sociedade, mas sim CC, em clara e total desconsideração pelo princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades. É notório que CC substitui a vontade da sociedade pela sua própria vontade, sem que sequer seja seu representante legal.
G. Com efeito, de entre as deliberações cuja execução foi judicialmente suspensa encontra-se a deliberação de nomeação de órgãos sociais, nomeadamente a nomeação de CC como Presidente do Conselho de Administração, e tal decisão apenas se verificou atento o preenchimento de todos os pressupostos de que depende o decretamento de uma providência cautelar.
H. Assim sendo, dado o preenchimento do pressuposto de periculum in mora, entregar os elementos solicitados à “Recorrente” seria esvaziar de utilidade prática a sentença proferida, seria entregar ao “Administrador” cuja nomeação foi suspensa documentos que não lhe pertencem e se relacionam com a atividade da sociedade Recorrente, perante a qual isso constituiria um perigo evidente.
I. Por outro lado, no presente momento, apenas os Recorridos podem representar e vincular a sociedade Recorrente (cf. art. 391.º, n.º 5 do CSC), o que apenas reforça o entendimento de que a posse de quaisquer documentos relacionados com a sociedade Recorrente não compete a CC.
J. Os Recorridos desconhecem igualmente qual a intenção subjacente ao pedido de entrega dos referidos documentos dado que, após a junção do livro de atas da Assembleia Geral, os Recorridos (i) depararam-se com uma ata manifesta e deliberadamente falsa e (ii) com várias atas que contêm informações igualmente falsas, tudo em detrimento da sociedade Recorrente e dos Recorridos.
K. Atento os comportamentos evidenciados por CC, e que foram reconhecidos pelo Tribunal a quo, os Recorridos depreendem que a entrega dos documentos colocará em risco os interesses da sociedade Recorrente e dos seus sócios/usufrutuários.
L. O Tribunal a quo determinou a entrega dos livros de atas ao secretário da sociedade14 Recorrente pelo que, estando já determinada a sua devolução à sociedade – única e legitima titular do livro, e não a CC, que não detêm qualquer poder de representação ou vinculação desta –, as alegações de recurso apresentadas quanto a esta decisão carecem de qualquer sentido e fundamento.
M. Aliás, mesmo que o Tribunal não tivesse determinado a sua entrega ao secretário da sociedade, no que não se concede, sempre deveria (e teria) determinado a sua entrega aos atuais membros do Conselho de Administração, os Recorridos, e nunca a CC.
N. Os títulos de ações onerados com usufruto a favor dos Recorridos pertencem aos Recorridos e devem estar na sua posse, e não na posse da sociedade ou de CC.
O. Os títulos constitutivos do usufruto detêm uma importância crucial na regulação dos direitos e deveres dos usufrutários, porquanto nestes pode ser inscrita a sua ampliação ou derrogação, e em nada relevam para o dia-a-dia e para a atividade da sociedade.
P. Atenta a importância do título – que é constitutivo do usufruto dos Recorridos – e atenta a existência de fundamentos objetivos e concretos que levem a suspeitar das intenções que movem CC, não poderia, em momento algum, equacionar-se a sua entrega a este último.
14 Uma vez mais, não confundir com secretário da Mesa da Assembleia Geral.
Q. CC não é titular dos documentos cuja entrega peticiona (mesmo que por interposta pessoa “coletiva”) e, tanto assim é, que em momento algum das suas alegações a justifica ou indica por que motivos pretende recuperar os documentos que se encontravam indevidamente na sua posse.
R. Os Recorridos podem solicitar a entrega dos títulos de ações onerados com usufruto ao seus Mandatários, que detêm poderes de representação para o efeito.
V. PEDIDO

TERMOS EM QUE:

A) DEVERÃO TER-SE POR NÃO ESCRITOS OS ARGUMENTOS VERTIDOS QUANTO AO DESPACHO PROFERIDO A 18 DE MAIO DE 2022 (REF.ª CITIUS ...07), OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, DEVERÁ CONSIDERA-SE O ALEGADO QUANTO A ESTE DESPACHO INTEMPESTIVO PORQUE APRESENTADO FORA DE PRAZO;
E
B) DEVERÁ NEGAR-SE PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA RECORRENTE E, CONSEQUENTEMENTE, JULGAR-SE TOTALMENTE IMPROCEDENTE O RECURSO APRESENTADO E CONFIRMAR-SE AS DOUTAS DECISÕES RECORRIDAS,
FAZENDO-SE, ASSIM, JUSTIÇA!”.

Este recurso foi admitido, conjuntamente com outros, por despacho de 11-07-2022 proferido nos autos principais, igualmente como de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.

Na Relação, após despacho do Relator de 04-01-2023 (saneando os diversos recursos e ouvindo as partes quanto ao processamento deste), por despacho de 07-02-2023, determinou-se a respectiva separação, autuação e apensação.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

Também assim o entende pacificamente a jurisprudência: “o objecto do recurso é composto apenas pela matéria constante das conclusões do recorrente na alegação de recurso, das conclusões do recorrido na ampliação do recurso e das questões de conhecimento oficioso” [[3]].

O ponto de partida do recurso, por princípio, é sempre a própria decisão recorrida.

Com efeito, no nosso modelo (de reponderação e não de reexame da causa), por meio daquele reapreciam-se questões já julgadas na instância inferior e visa-se alterar o decidido, se e na medida em que afectado por invalidade ou por erro de julgamento.

As que, apesar de invocadas, aí não tenham sido apreciadas permanecerão fora do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem [[4]]. Tal como as que sejam suscitadas como novidade. [[5]]

Ora, na situação aqui em apreço, deve começar por esclarecer-se que, embora em algumas das conclusões, a apelante conteste que o seu requerimento de entrega dos livros e dos títulos não carecia de contraditório por, alegadamente, já estar decidida a providência e não ser manifestamente necessário observar o disposto no artº 3º, nº 3, CPC, o certo é que não é o despacho em que foi ordenada a notificação da parte contrária para se pronunciar (ou seja, o de 18-05-2022) que ela impugnou.

Com efeito, muito clara e concretamente, ela diz, e rediz, que recorre, tão só, dos despachos de 27-05-2022 e de 01-06-2022.

Daí, portanto, resulta que não há lugar ao conhecimento de qualquer questão específica relativa ao aludido despacho. [[6]]

De resto, note-se, mesmo que porventura se considerassem os argumentos tecidos em torno daquele princípio como enquadrados na impugnação dos dois despachos subsequentes, esses sim questionados, não mereceria acolhimento a tese de que era manifestamente desnecessário garantir a sua observância.

Bastaria, com efeito, pensar-se que, tendo os livros e os títulos sido juntos como meios de prova na sequência de solicitação dos requerentes da providência já decidida mas estando a respectiva sentença final, então, pendente de recurso e podendo em eventual apelação dela ser questionada, por qualquer das partes, a decisão da matéria de facto, sempre havia lugar ao exercício do contraditório, nos termos do artº 3º, nº 3, CPC, quanto mais não fosse para se pronunciarem sobre a conveniência de eles serem ou não mantidos para aquele efeito.

Logo daí se extrai, portanto, que não se trata de caso de “manifesta desnecessidade”, situação, aliás, que, no contexto do processo que se reclama de equitativo muito raramente se verificará, tanto mais que o normal é as partes velarem incessantemente, batendo-se às vezes até em excesso, por que o mesmo seja escrupulosamente garantido em vez de negado, sendo certo, ainda, que, no caso, nenhum prejuízo resultou da audição facultada uma vez que os argumentos no ensejo produzidos pelos apelados resultam das circunstâncias emergentes dos autos, são estritamente de direito e sempre teriam de ser ponderados pelo Tribunal, nenhuma “influência” relevante advindo da referida pronúncia.

Sendo assim, como é, estando as partes de acordo que os livros e títulos respeitam à Sociedade apelante e que devem ser devolvidos, importa decidir se:

a) Devem ser entregues, “à pessoa do Sr. CC”.
b) Para o efeito, devem revogar-se os dois despachos recorridos e substituir-se por outros em conformidade.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam os acima relatados, emergentes dos autos.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Como resultou da sentença proferida no processo principal, eram Presidente e Vogal do CA da Sociedade apelante os aqui apelados e requerentes da providência cautelar AA e BB.

A deliberação tomada na assembleia de 16-03-2021 em que CC foi nomeado Presidente e, sua esposa DD, Vogal do referido CA, foi suspensa pela referida decisão.

De resto, nos termos do nº 3, do artº 381º, CPC, por efeito da citação e até ali, não era lícito à sociedade executar a deliberação impugnada – o que significa que CC já não podia e continua a não poder invocar os poderes de presidente então nomeado, tudo continuando como dantes (sendo certo que ele já era o Presidente da Mesa da Assembleia Geral – facto q).

Os livros de actas (da assembleia geral e do conselho de administração) são obviamente da sociedade e os títulos (acções) representam participações no seu capital social, pertencendo 5% plenamente ao referido CC e, quanto aos restantes 95%, pertencendo-lhe a raiz e, o usufruto, aos requerentes da providência, os ora apelados.

Nesses títulos consta o averbamento do usufruto a favor dos requeridos nos termos definidos por lei e pela escritura de doação – facto p) da sentença.

Conforme também resulta desta, “CC tem na sua posse [[7]] a totalidade das acções representativas do capital da sociedade (inclusive as oneradas com o usufruto a favor dos requerentes) e tem na sua posse o livro de actas de assembleia geral e o livro de catas do conselho de administração” – facto rr)

Ora, nos termos dos nºs 1 e 2, do artº 429º, do CPC, quando se pretenda fazer uso de documentos em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento a parte identifica quanto possível os documentos e especifica os factos que com eles pretende provar. Se estes tiverem interesse para a decisão da causa, é ordenada a notificação.

Abrigando-se em tal norma, os requerentes pediram a notificação da Sociedade [[8]] e de CC [[9]] para juntarem fotocópias da totalidade dos títulos (acções) representativas do capital social e dos livros de actas (da assembleia geral e do conselho de administração).

Alegaram que se trata de “documentos necessários à prova da factualidade em causa nos autos, nomeadamente o histórico do relacionamento entre os accionistas, no âmbito das assembleias gerais, e entre os administradores, bem como a situação relativa ao direito de usufruto e seu exercício”.

Tendo tal requerimento sido deferido e feita a notificação, a Sociedade juntou os livros e os títulos (originais).

Volta a recordar-se, devendo ter-se presente, que, sendo os aqui apelados usufrutuários de 95% das acções e, até à Assembleia Geral de 16-03-2021, respectivamente, Presidente e Vogal do seu CA, era na sua casa de habitação que funcionava a sede daquela mas que, por deliberação na dita reunião tomada – esta e outras impugnadas no processo principal –, além de CC, até então apenas Presidente da Mesa da AG, titular da raiz de 95% de acções e dono em pleno dos restantes (5%), ter sido eleito (na prática, ter-se auto-elegido) como Presidente e sua esposa como Vogal do referido Conselho, foi mudada  a sede para o seu próprio domicílio.

Tal explica a razão pela qual ele detinha os livros e títulos. Além de ter pedido o livro de actas do CA ao contabilista (factos q) e r) da sentença), também mudou a sede para sua casa, assim assumindo, a partir da impugnada assembleia geral e até à suspensão, o controlo efectivo da vida societária. Era ele, portanto, quem, de facto, tinha acesso a tais instrumentos. Foi naturalmente em função disso que, não deixando eles de estar na posse da Sociedade (a recorrente diz mesmo “na posse de CC) [[10]], foi notificado para os entregar e providenciou pela sua entrega.

Por isso, quando a Sociedade apelante, terminada a audiência de julgamento (e proferida até, em 20-04-2022, a sentença, de que viria a ser interposto recurso em 25-05-2022), requereu (em 18-05-2022) a entrega dos livros e dos títulos, o cenário com que se deparou e  perante o qual se questionou o Tribunal a quo, tendo julgado procedente a providência e declarado a suspensão das deliberações (incluindo, portanto, a nomeação como Presidente do CA de CC) e não havendo dúvidas a quem pertencem os livros e os títulos considerados então desnecessários no processo, foi o de os devolver a este, na “posse” do qual tinham estado e que os entregara, apesar de ter acabado de anular a deliberação que o nomeara, ou aos anteriores requerentes que, assim, subsistiam como Presidente e como Vogal do CA.

Decidiu entregar os livros ao secretário da Sociedade e os títulos, em parte aos usufrutuários AA e BB e a outra parte ao filho CC (os 5% de que é titular pleno) – ficando nos autos fotocópia cuja extracção ordenou à Secretaria.

Ora, o despacho respectivo (o de 27-05-2022) não contém qualquer fundamentação explicitante do juízo empreendido pela Mª Juíza a quo para assim ter decidido. Por sua vez, o de 01-06-2022, apenas complementa aquele com a ordem de extracção das fotocópias e a autorização de entrega aos mandatários, também nada mais justificando, como seria devido.

Não tendo, todavia, sido arguida tal falta, apesar de se desconheceram as razões por que se orientou aquele, nem por isso podemos deixar de apreciar o mérito da decisão, como, mesmo que elas constassem ali expostas, sempre teríamos de fazer, por se tratar de questão meramente de direito (artº 665º, CPC).

E fazendo-o, desde já adiantamos que a solução está certa. Importa é salientar os fundamentos dela, que não permitem acolher a pretensão recursiva.

A Sociedade – impulsionada pelo referido CC, que deixou de ser parte no processo mas cujos mandatários são comuns – enfatiza ser “surpresa”, “surreal”, “inusitada” e “estranha” a decisão, argumenta que se tratou de um retorno ao “confisco” apesar de não ter sido sequer decretada a “apreensão” daqueles elementos (que considera exorbitar o objecto do processo), observa que a entrega foi feita a título devolutivo, sublinha que eles lhe pertencem e os tinha na sua posse (ora refere, confundindo, a dela própria ora a da pessoa de CC), que foi violada a confiança das partes no poder judicial e, enfim, que fazem falta para o exercício societário.

Conclui que, nos termos dos nºs 3 e 4, do artº 442º, CPC, lhe deviam ser restituídos “imediatamente” os livros e títulos.

Ao invés, os recorridos, defendem que – face ao decidido na sentença –  CC não é representante legal da sociedade, antes se mantendo eles como Administradores (por renovação) e aquele apenas como Presidente da Mesa da AG, enfatizando a sua conduta emergente da factualidade ali vertida.

Acrescentam que é da competência do Secretário da Sociedade guardar os livros e que, quanto aos títulos objecto de usufruto, devem estes estar na posse dos usufrutuários – motivo porque entendem que o despacho deve ser confirmado nos seus exactos termos.

De acordo com o artº 442º, nº 3, do CPC, os documentos não podem ser retirados senão depois de passada em julgado a decisão que põe termos à causa, salvo se o respectivo possuidor justificar a necessidade de restituição antecipada, devendo ficar, neste caso, cópia integral no processo.

Ora, relativamente aos livros, considerando que os mesmos pertencem à Sociedade (não aos acionista nem aos membros dos órgãos societários), dada a sua natureza e aptidão utilitária e havendo parcial consenso de que são necessários à sua vida e devem ser entregues, considera-se correcta a solução adoptada, tendo em conta a situação presente (dos autos e dela), ponderando-se também que foi salvaguardada a preservação no processo da cópia e, sobretudo, que, nos termos da alínea c), do nº 1, do artº 446º-B, do CSC, compete ao seu secretário  o especial encargo de “conservar, guardar e manter em ordem os livros e folhas de actas, as listas de presenças, o livro de registo de acções, bem como o expediente a eles relativo”.

O facto de eles, então, se encontrarem na “posse” de CC e de ter sido este, em razão da situação descrita, a promover a entrega, não afasta aquela realidade: eles não lhe pertencem e as circunstâncias em que os entregou, além de alteradas, não legitimam que ao mesmo sejam devolvidos – até por aquilo que, entretanto, foi decidido por sentença e pelos fundamentos dela constantes.

Nem lhe permitem acalentar a expectativa de que tendo a entrega sido determinada e feita a título devolutivo, é ele que tem direito a recebê-los.

Sempre haveria que providenciar, requeresse-a a Sociedade ou não, pela restituição. Ela antecipou-se, mediante requerimento. Invocou a necessidade. As partes concordaram que podiam ser restituídos, já não faziam falta no processo. Tal necessidade e pertença são referidas àquela e não a qualquer dos protagonistas na contenda nem aos interesses de cada um.

Logo, sendo competente para os guardar o secretário da sociedade, ninguém melhor do que ele cuidará verticalmente de o fazer.

Do mesmo passo e relativamente aos títulos (acções nominativas, conforme facto f) da sentença), recordando-se o disposto nos artºs 1440º, 1445º e 1467º, do CC, 23º, 299º e 305º, do CSC, e 46º, 80º, 95º, 97º, 102º e 103, do CVM, tendo em conta que deles ficou cópia nos autos, que nenhuma das partes reclama a necessidade de nestes se manterem, que, especialmente, nos termos daqueles últimos dois artigos do CVM, o direito é neles inscrito e que por eles se regula, como resulta do artº 1445º, do CC, o respectivo exercício, considerando-se que não tem interesse a Sociedade em detê-los e muito menos o radiciário CC, e, enfim, concordando, que à falta de outro, deve ser esse o documento com que o usufrutuário mostra o seu direito e pelo qual regula o seu exercício [[11]], concluímos que é na sua posse que devem permanecer enquanto usufrutuários (tal como na daquele os relativos aos 5% de que é dono).

Daí que se mostre bem resolvida a divergência com a decidida entrega dos livros ao secretário da Sociedade, dos títulos onerados com usufruto aos usufrutuários AA e BB e dos restantes ao seu dono pleno CC.

Deverá, pelo exposto, improceder a apelação.

 V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam ambos os despachos recorridos.  
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Custas da apelação pela recorrente – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 02 de Março de 2023

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Maria João Marques Pinto de Matos
                 José Alberto Martins Moreira Dias


[1]Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
[2] Nas alegações e nas conclusões, a apelante menciona, repetidamente, a referência Citius ...31, manifestamente por lapso, pois que não há dúvida que se queria referir à ...94.
[3] Acórdão do STJ, de 10-11-2022, processo nº 815/20.3T8BGC-B.G1.S1 (Maria da Graça Trigo).
[4] Caso não seja arguida a nulidade com base em tal omissão de pronúncia e se não trate de matéria de conhecimento oficioso.
[5] Isto mesmo foi lembrado no Acórdão desta Relação de 07-10-2021, proferido no processo nº 886/19.5T8BRG.G1 (Vera Sottomayor).
[6] Sendo ele impugnável, nos termos da alínea g), do nº 2, do artº 644º, CPC (despacho proferido após decisão final da providência cautelar), há muito tinha expirado o prazo para o efeito quando foi interposto o recurso destes dois.
[7] Evidentemente, o facto – bem como o verbo ter,  conjugado no presente do indicativo – refere-se à mera detenção e reporta-se à data da sua pretérita alegação, pois, à data da sentença, os livros e títulos encontravam-se no Tribunal, conforme relato supra.
[8] Sociedade que processualmente é “parte contrária”, mas de cujo capital (95%) são usufrutuários, além de serem Presidente e Vogal do CA.
[9] Além de este, inicialmente, ter sido demandado como requerido na providência cautelar – mas, entretanto, absolvido da instância – e de, pela deliberação visada, ter sido nomeado Presidente (e, a esposa, Vogal), era ele quem, de facto, tinha em seu poder os livros e os títulos.
[10] Cfr. facto provado rr) da sentença já referido.
[11] No dizer de Barbosa de Magalhães, citado pelos recorridos e acessível na Internet, Usufruto de acções, de partes e de quotas sociais, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 12, nºs 1 e 2, 1952, página 54, “Se a lei não conceder esse direito [direito a um especial título representativo do usufruto], a posse da acção, quer nominativa, quer ao portador, pertence ao usufrutuário”.