Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2714/08-2
Relator: ROSA TCHING
Descritores: ÁGUAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O uso e costume não constitui, de per si, título aquisitivo do direito às águas, dando o mesmo uso e costume apenas a medida do direito de cada utente, servindo de mero critério de repartição da água fruída em comum;
2. Para efeitos do que se estabelece no artigo 1391º do C.C., o facto de o proprietário abandonar determinada água, deixando-a seguir o seu curso natural e o aproveitamento pelos proprietários vizinhos da água assim abandonada, representam, em princípio, um acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente;
3. A ré aprofundou o poço que já existia no seu prédio, colocando 3 argolas e, ao fazê-lo, acabou por captar as escorrências ou escorredouros que, por isso, deixaram de atingir o prédio dos autores, assim prejudicando o uso que estes faziam de tais águas sobejas ou sobrantes; os autores, através do seu prédio, apenas poderiam arrogar-se da qualidade de meros utilizadores residuais do uso da água do dito “riacho”, título esse, no entanto, insuficiente para que, ao abrigo do disposto no artigo 1391º do C.C., tenham vencimento na pretensão de a ré “levantar as obras que realizou na sua propriedade, por forma a que o riacho de água, que ali passa, retome o seu curso normal”.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Diamantino T... e mulher Maria T... intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra Profetina O... , pedindo a condenação desta a levantar as obras que realizou na sua propriedade, por forma a que o riacho de água que ali passa retome o seu curso normal ou o curso utilizado nos últimos 40 anos, atravessando o caminho público do lado Norte e entrando no prédio dos autores; a pagar uma indemnização aos autores nunca inferior a 500,00 euros, por cada mês, até ao restabelecimento do curso normal do riacho.

A fundamentar o seu pedido, alegaram que são donos do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial, que há mais de 40 anos é abastecido por um riacho de água que atravessa toda a propriedade e segue o seu curso normal, correndo para prédios vizinhos ao seu. Porém, sem qualquer justificação, entre os meses de Junho e Setembro de 2005, a ré procedeu a obras dentro da sua propriedade, sita a Norte, relativamente ao prédio dos autores, de forma a desviar o curso normal do riacho de água que abastecia este, há mais de 40 anos.

A ré contestou, excepcionando a ineptidão da petição inicial e, bem assim, a sua ilegitimidade passiva, porquanto a água de que os autores se arrogam proprietários é sua e dos seus filhos. Defendeu-se, ainda, por impugnação, negando que o prédio dos autores tenha algum riacho.

Os autores responderam, mantendo a posição já anteriormente assumida.

Foi proferido despacho a convidar os autores a alegarem factos que consubstanciem o direito de que se arrogam, no que respeita à água do riacho em questão.
Em obediência a tal convite, foi apresentada petição inicial corrigida, na qual os autores, para além dos factos alegados na petição inicial, alegam que, por si e anteriores proprietários, há mais de 40 anos, utilizam a água do riacho diariamente para os seus gastos domésticos e rega do quintal.

Foi proferido despacho saneador, no qual se consideraram improcedentes as excepções de ineptidão da petição inicial e ilegitimidade da ré. Seleccionou-se a matéria de facto assente e a que devia constituir a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida sentença, na qual a acção foi julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.


Inconformados com esta sentença, os autores recorreram para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.Através da sentença, foi julgada improcedente a acção e a ré absolvida do pedido.
2.Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a decisão proferida merecerá reparo, pelas razões de facto e de direito que se irão enunciar.
3.Conforme se alcança da fundamentação da sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
a)Há mais de 40 anos que o prédio dos autores é atravessado por um riacho de água que segue para outros prédios vizinhos.
b)O riacho de água entra na propriedade de dos autores pelo caminho público do lado norte.
c)Há cerca de um ano e meio, a ré procedeu a obras dentro do seu prédio.
d)A partir das obras referidas no ponto 7, a água do riacho deixou de poder ser utilizada pelos autores.
e)A referida água sempre foi utilizada pelos autores e demais proprietários, para rega do quintal.
f)A água, na zona dos prédios dos prédios dos autores e ré, é abundante para abastecer as propriedades dos autores, dos vizinhos e da ré.
4.Os autores têm direito à utilização da água, nos termos do disposto no artigo 1400º do C.C. como, aliás, o tribunal a quo reconheceu na sentença recorrida.
5.Ao não considerar existir nexo de causalidade entre a realização das obras no prédio da ré e a falta de água no dos autores, embora admitindo a sua contemporaneidade, mas concluindo pela mera coincidência dos acontecimentos, desrespeitou a matéria dada como provada nos quesitos 6 e 7 da base instrutória, a sua sequência e complementaridade.
6.Ao valorizar, em sede de julgamento, uma mera hipótese de falta de chuva, para justificar a falta de água no prédio dos autores, o tribunal a quo, mais uma vez, desrespeitou a matéria dada como provada no quesito 9 da base instrutória.
7.Assim, com a decisão recorrida foram violados os artigos 1400º do C.C., e o artigo 668º, nº 1, alínea c), do C.P.C.
8.Por tudo quanto se expôs, entende-se que o presente recurso deverá obter provimento, sem desprimor pela sentença proferida pelo tribunal a quo.

A recorrida apresentou contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
1.Os autores são proprietários do prédio urbano sito no lugar de Fontela, freguesia de Cantelães, descrito na Conservatória do registo Predial, sob o número 00332/Cantelães – alínea A), da matéria assente.
2.O prédio referido no ponto 1, confronta do Norte, Sul e Poente com caminho público e de Nascente com Francisco M... – resposta ao número 1 da base instrutória.
3.Há mais de 40 anos que o prédio dos autores é atravessado por um riacho de água que segue para outros prédios vizinhos – resposta ao número 2 da base instrutória.
4.O riacho de água entra na propriedade de dos autores pelo caminho público do lado norte – resposta ao número 3 da base instrutória.
5.A ré é proprietária de um prédio sito a Norte, relativamente ao prédio dos autores – resposta ao número 4 da base instrutória.
6.O referido riacho atravessa o prédio da ré e depois atravessa o caminho público- resposta ao número 5 da base instrutória.
7.Há cerca de um ano e meio, a ré procedeu a obras dentro do seu prédio – resposta ao número 6 da base instrutória.
8.A partir das obras referidas no ponto 7, a água do riacho deixou de poder ser utilizada pelos autores – resposta ao número 7 da base instrutória.
9.A referida água sempre foi utilizada pelos autores e demais proprietários, para rega do quintal – resposta ao número 8 da base instrutória.
10.A água, na zona dos prédios dos prédios dos autores e ré, é abundante para abastecer as propriedades dos autores, dos vizinhos e da ré – resposta ao número 9 da base instrutória.


São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C. P. Civil.
As questões a decidir consistem em saber se se verifica a nulidade da sentença prevista no artigo 668º, nº 1, alíneas c) do C. P. Civil; se o direito aplicável está conforme aos factos que se consideraram provados.

I.O artigo 668º, nº 1, alínea c), do C. P. Civil, estabelece que a sentença é nula, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Verifica-se esta nulidade, sempre que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente.
Na alínea c), do artigo 668º, «a contradição não é apenas aparente, é real; o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto». Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 141.
Esta nulidade só se verifica quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir a resultado oposto do que vem expresso na sentença. Assim, sempre que houver um raciocínio típico entre as premissas de facto, donde o julgador partiu, para a decisão de direito, não existe a falada nulidade. O que poderá haver é erro de julgamento. Rodrigues Bastos, Notas, Volume III, edição 1969, pág. 246.
Os autores referem que das respostas aos números 6 e 7 da base instrutória, nunca se poderia concluir pela inexistência de causalidade entre ambos.
De facto, na sentença afirma-se que «não resultou provado que tais obras foram efectuadas, de forma a desviar o curso normal da água (…). Com efeito, resultou que, desde as obras, a água diminuiu e depois desapareceu mas, apesar do seu desaparecimento ser coincidente com a realização das obras no prédio da ré, não podemos afirmar, com certeza e rigor que são exigidos, que tal desaparecimento da água foi originado pelas obras levadas a cabo pela ré no seu prédio (é que, em sede de julgamento, foi levantada a hipótese de tal desaparecimento da água ter sido resultante da falta de chuva dos últimos tempos)».
Não vemos que exista qualquer contradição entre os dois números da base instrutória e a aquela afirmação que é feita na fundamentação da sentença e, para além disso, como iremos ver, a existência ou inexistência de nexo de causalidade entre a obra levada a cabo pela ré e o desaparecimento da água é juridicamente irrelevante.

Mas, os autores também encontram contradição entre a referida afirmação de que, «em sede de julgamento, foi levantada a hipótese de tal desaparecimento da água ter sido resultante da falta de chuva dos últimos tempos» e a matéria de facto provada no número 9 da base instrutória, ou seja, que a água, na zona dos prédios dos autores e da ré é abundante para abastecer as propriedades daqueles e dos vizinhos.
Também aqui não existe qualquer contradição, pois, em abstracto, é perfeitamente possível que aquilo a que os autores chamam “riacho” pudesse desaparecer, em virtude “da falta de chuvas dos últimos anos” e, apesar disso, a zona onde se situam os prédios daqueles, da ré e dos vizinhos, continuar a ser abundante em água, proveniente doutras origens, porventura, menos dependentes da variação pluvial.
Não ocorre, pois, a nulidade da sentença invocada pelos recorrentes.

II. Vejamos, agora, se a solução jurídica que foi dada pela sentença se adequa aos factos provados.
Das respostas aos números 2, 3, 4, 5, 6 e 7 da base instrutória, resultou provado que, há mais de 40 anos que o prédio dos autores é atravessado por um riacho de água que segue para outros prédios vizinhos; esse riacho de água entra na propriedade de dos autores pelo caminho público do lado norte; há cerca de um ano e meio, a ré procedeu a obras dentro do seu prédio; a partir das obras referidas no ponto 7, a água do riacho deixou de poder ser utilizada pelos autores.
Os recorrentes e, de certa forma, também a sentença, buscam a solução jurídica da questão no artigo 1400º do C. Civil, que regula os costumes na divisão de águas, estabelecendo o seguinte:
1. As águas fruídas em comum que, por costume seguido há mais de vinte anos, estiverem divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser aproveitadas por essa forma, sem nova divisão.
2. A obrigatoriedade do costume impõe-se também aos co-utentes que não sejam donos da água, sem prejuízo dos direitos do proprietário, que pode a todo o tempo desviá-la ou reivindicá-la, se estiver a ser aproveitada por quem não tem nem adquiriu direito a ela.
Decorrido o prazo de vinte anos durante o qual as águas estiveram divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição, o costume assume força juridicamente vinculativa entre os co-utentes da água.
Corresponde aquela disposição ao artigo 101º do Anteprojecto de Pires de Lima. O nº 1 teve como fonte o artigo 133º da Lei das Águas; o nº 2 é novo. Cfr. Pires de Lima e A. Varela, C. Civil Anotado, Volume III, pág. 338.
O costume nela referido «não é o costume local ou o uso geral da terra, não é o direito consuetudinário referido na Lei da Boa Razão de 18 de Agosto de 1767, nem a posse antiga ou prescrição.
Trata-se, sim, de usos e costumes de facto, do modo ou praxe pelos quais nas diversas localidades os co-utentes se aproveitam das águas para a irrigação, força motriz ou outros fins». Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, vol. II, pág. 124.
O uso e costume «não era propriamente um título aquisitivo do direito às águas. O uso e costume dava apenas a medida do direito de cada utente, servindo de mero critério de repartição da água fruída em comum. Era, nesse aspecto, uma situação de facto que a lei, verificados certos pressupostos, convertia numa relação juridicamente vinculativa.
O uso e costume, assim entendido, não atribui, de per si, no entanto, direitos de propriedade sobre a água, ou simples direitos exclusivos à sua utilização. Ele tem como função apenas determinar a medida do direito de cada utente sobre águas apropriadas em



comum por outro título». P. de Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 338 e 339; e P. de Lima, RLJ, ano 96º, pág. 27.
No mesmo sentido, «é necessário provar o domínio na coisa comum», não sendo suficiente «o uso pelos senhores dos prédios inferiores depois do uso dos superiores, donde provém a água, para só por isso se poder dizer comum». Manuel de Sousa Lobão, Tratado Prático e Compendiário das Águas, parágrafo 207, citado por Pires de Lima e A. Varela, ob. cit.
Portanto, entende-se que o uso e costume não constitui, de per si, título aquisitivo do direito às águas, dando o mesmo uso e costume apenas a medida do direito de cada utente, servindo de mero critério de repartição da água fruída em comum.
Ora, de facto, o que se discute nos autos nada tem a ver com o que se estabelece no citado artigo 1400º do C.C., pois, não existe entre autores, ré e vizinhos, qualquer divisão de águas, nem qualquer utilização de águas em comum, sujeitas ao respectivo regime. O que os autores alegaram é manifestamente insuficiente, sendo certo que apenas se provou que, há mais de 40 anos que o prédio dos autores é atravessado por um riacho de água que segue para outros prédios vizinhos; que, há cerca de um ano e meio, a ré procedeu a obras dentro do seu prédio e, a partir delas, a água do riacho deixou de poder ser utilizada pelos autores.
Pelo contrário, pensamos que a situação concreta tem tudo a ver com o que se estabelece no artigo 1391º do C.C.
Na petição inicial, mesmo após o despacho de fls. 51, que convidou os autores «a alegarem factos em que se consubstancia o direito a que se arrogam», sempre foi utilizado o termo riacho (pequeno rio ou ribeiro, regato), para caracterizar a água que dizem utilizar há mais de 40 anos.
Porém, verificando melhor o que consta dos autos, constata-se que o termo riacho não é rigoroso e não retrata, com o mínimo de fidelidade, a natureza das águas em causa.
Na motivação da decisão sobre a matéria de facto refere-se o seguinte: «A primeira das referidas testemunhas (António S...) referiu ao tribunal que, há cerca de três anos, procedeu a obras de restauração na casa dos autores e, nessa ocasião, havia uma água que caía no quintal do prédio dos autores, a qual deixou de cair, quando a ré fez obras, há cerca de ano e meio, no seu prédio. O José B... confirmou que, há cerca de um ou dois anos atrás, numa época que estava calor, ajudou nas obras para refundar o poço que existe no prédio da ré porque o mesmo não tinha água, no qual foram colocadas 3 argolas, sendo que a testemunha ajudou a assentar as referidas manilhas. Tal depoimento foi confirmado pelo Artur Jorge, seu genro, que manuseou a retroescavadora que foi usada nas mesmas. Tal testemunha referiu que abriu buraco no poço de pedra que já existia, a fim de o alargar para meter as argolas e aí colocou 4/5 argolas.
Pese embora se tenha provado a realização das obras dentro do prédio da ré, não resultou provado que tais obras foram efectuadas, de forma a desviar o curso normal de água que abastece o prédio dos autores. Na verdade, com base no depoimento da testemunha António S..., que se mostrou a este respeito credível, resultou comprovado que, desde as obras, a água, primeiro deixou de correr para metade e depois deixou mesmo de correr, pelo que se deu como assente a matéria constante do número 7. Porém, não se comprovou que tais obras foram, de forma a desviar tal curso de água».
Daí que se considere razoável concluir que aquilo a que os recorrentes chamam riacho, no fundo, como refere a recorrida, mais não serão que “as escorrências que provêm do prédio que se situa a um nível superior para o prédio, imediatamente, a seguir àquele (o superior)”.
Ora, diz o artigo 1391º do C.C. que «os prédios para onde se derivam as águas vertentes de qualquer fonte ou nascente podem eventualmente aproveitá-las nesses prédios; mas a privação desse uso por efeito de novo aproveitamento que faça o proprietário da fonte ou nascente não constitui violação do direito».
A este respeito, Pires de Lima e Antunes Varela escrevem que «foi este direito à acqua profluens, conferido aos proprietários dos prédios inferiores, que levou o nosso legislador, dada a equivocidade da posse, a tomar medidas restritas em matéria de prescrição, quer no C. Civil de 1867 (artigos 438º e 439º), quer posteriormente a Lei das águas (artigo 99º), quer no novo Código Civil (artigo 1390º, nº 2). Código Civil Anotado, Volume III, págs. 310 e 311.
Por sua vez, Guilherme Moreira escreveu que «o direito à água que brota num prédio é compreendido que está no direito de propriedade, facultativo, podendo consequentemente ser exercido ou não pelo proprietário, sem que do seu não exercício resulte a perda desse direito. O facto pois de o proprietário abandonar essa água, deixando-a seguir o seu curso natural e o aproveitamento pelos proprietários vizinhos da água assim abandonada, representam, em princípio, um acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente, não constituindo o aproveitamento por terceiros, por mais largo que seja o prazo durante o qual ele se der, posse de que resulte ou possa resultar o direito à água. Para este efeito, necessário se torna que, pela posse, se crie uma situação de facto cuja subsistência seja incompatível com o direito de livre disposição que o proprietário do prédio tem sobre as nascentes que nele haja.
É preciso, por conseguinte, que haja uma situação de verdadeira captação e posse da água contra o proprietário da fonte ou nascente e não, como é normal, o simples exercício de uma factualidade de aproveitamento da acqua profluens, na sequência do direito de escoamento conferido ao dono do prédio superior». As Águas, Vol. II, nº 37.
O que aconteceu foi que a ré aprofundou o poço que já existia no seu prédio, colocando 3 argolas e, ao fazê-lo, acabou por captar as escorrências ou escorredouros que, por isso, deixaram de atingir o prédio dos autores, assim prejudicando o uso que estes faziam de tais águas sobejas ou sobrantes. Aliás, sempre se poderia considerar estranho que obras de tão pequena monta pudessem eliminar um riacho.
Os autores confundem, portanto, divisão de águas e utilização de águas em comum, sujeitas ao regime do citado artigo 1400º do C.C., com o direito ao uso das águas sobejas ou sobrantes previsto no artigo 1391º do mesmo diploma legal.
Assim, os autores, através do seu prédio, apenas poderiam arrogar-se da qualidade de meros utilizadores residuais do uso da água do dito “riacho”, título esse, no entanto, insuficiente para que, ao abrigo do disposto no artigo 1391º do C.C., tenham vencimento na pretensão de a ré “levantar as obras que realizou na sua propriedade, por forma a que o riacho de água, que ali passa, retome o seu curso normal (…)”. A ré/recorrida é a verdadeira detentora do direito de propriedade das águas em questão, limitando-se o direito dos autores/recorrentes à faculdade de aproveitamento das mesmas (direito à acqua profluens), todavia, sempre sem prejuízo dos direitos da dona da nascente.
Em resumo: o uso e costume não constitui, de per si, título aquisitivo do direito às águas, dando o mesmo uso e costume apenas a medida do direito de cada utente, servindo de mero critério de repartição da água fruída em comum; o que se discute nos autos nada tem a ver com o que se estabelece no citado artigo 1400º do C.C., pois, não existe entre autores, ré e vizinhos, qualquer divisão de águas, nem qualquer utilização de águas em comum, sujeitas ao respectivo regime; a situação concreta tem tudo a ver com o que se estabelece no artigo 1391º do C.C.; o facto de o proprietário abandonar essa água, deixando-a seguir o seu curso natural e o aproveitamento pelos proprietários vizinhos da água assim abandonada, representam, em princípio, um acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente; a ré aprofundou o poço que já existia no seu prédio, colocando 3 argolas e, ao fazê-lo, acabou por captar as escorrências ou escorredouros que, por isso, deixaram de atingir o prédio dos autores, assim prejudicando o uso que estes faziam de tais águas sobejas ou sobrantes; os autores, através do seu prédio, apenas poderiam arrogar-se da qualidade de meros utilizadores residuais do uso da água do dito “riacho”, título esse, no entanto, insuficiente para que, ao abrigo do disposto no artigo 1391º do C.C., tenham vencimento na pretensão de a ré “levantar as obras que realizou na sua propriedade, por forma a que o riacho de água, que ali passa, retome o seu curso normal”.

Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, embora com fundamentos diversos, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.