Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
431/18.0GBVLN.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: FURTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DESQUALIFICAÇÃO
PENA
ARTºS 203º
Nº 1 E 204º
Nº 1
AL. E)
DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Apesar de na enunciação da fundamentação fáctica da sentença criticada neste recurso apenas serem explicitadas as (duas) condenações em pena de multa proferidas em Portugal e não as (sete) condenações por tribunais espanhóis constantes do cadastro do arguido, na fundamentação da decisão sobre a medida concreta da pena em que o mesmo veio a ser condenado são ponderados, entre outros considerandos, os seus «inúmeros antecedentes criminais», «designadamente, da mesma natureza do ora sob julgamento».
II - Mesmo reconhecendo que a dita formulação da fundamentação fáctica, nessa vertente dos antecedentes criminais, não é autossuficiente, no sentido de facultar aos destinatários e a este Tribunal, por si só – sem a necessidade de consultar outros elementos –, o cabal alcance da decisão nela contida e, por isso, não acata a técnica mais comummente adoptada, o certo é que perpassa do segmento da fundamentação concernente à determinação da medida da pena que foram consideradas, indubitavelmente, as já referenciadas condenações a que o arguido foi submetido em Espanha.
III - Ora, mesmo sendo a fundamentação da decisão um princípio com assento constitucional – em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), dada a sua proeminência enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático –, só importa o vício da nulidade da decisão pela falta de fundamentação imposta pelo art. 374º do CPP, a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que a justificam, não a sua motivação deficiente, medíocre ou errada.
IV - O vício da nulidade por omissão de pronúncia (art. 379º, n.º 1, c) do CPP) prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, o que, de modo algum, se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos, quer da decisão, quer da divergência em que os sujeitos processuais fundam a sua posição na controvérsia, designadamente relativamente à qualificação jurídica dos factos em que aquela assentou.
V - Não é concebível o juiz como mero copista de informações e, sobremaneira, de juízos de valor contidos no teor literal dum qualquer relatório social, sem o “filtro” do julgamento incidente sobre ele, conjugadamente com todos os demais elementos probatórios aduzidos, pois a convicção formada para uma decisão sobre a matéria de facto estriba-se em toda a prova produzida e analisada em audiência.
VI - A agravação da punição da subtração prevista pela al. e) do art. 204º/1 do C. Penal («fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo …») pressupõe que o agente careça de desenvolver argúcia ou particular engenho e conhecimento adequados ao acesso que, precisamente, se encontrava obstaculizado «com fechadura ou qualquer outro dispositivo especialmente adequado à sua segurança», circunstância que, obviamente, não se preencheu neste caso em que o arguido, para aceder ao interior de uma caixa registadora e subtrair coisa nela contida, utilizou a chave que lá se encontrava, tendo cometido, pois, um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

No identificado processo, o arguido B. J. foi julgado e condenado por sentença proferida em 16/1/2020, como autor de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. e), do C. Penal, na pena de dezoito meses de prisão, com a respectiva execução suspensa por igual período, com regime de prova a acompanhar pela DGRSP e sob as condições de: - pagar ao ofendido a quantia de € 1.100, no prazo da suspensão; - frequentar as consultas médicas e continuar o tratamento médico de desintoxicação de estupefacientes que lhe está a ser ministrado; - empenhar-se activamente a procurar emprego ou uma actividade ocupacional, tendo em vista a criar condições económicas para o seu próprio sustento; - afastar-se de companhias ou locais conotados com o consumo ou tráfico de estupefacientes, como cafés, bares, discotecas.

Inconformado com essa decisão, o Ministério Público, interpôs recurso, cuja motivação rematou com as conclusões a seguir extractadas:

«(…) 3- No que à matéria de facto diz respeito, afigura-se-nos que o ponto 10º e 11º não estão em conformidade com a prova produzida em audiência e discussão de julgamento.
4- No ponto 10 consta a seguinte factualidade dada como provada: “o arguido fez tratamento de desintoxicação no Estabelecimento Prisional de Braga, que continua em liberdade, tem bom comportamento no estabelecimento prisional.” Para além de incoerente e contraditório, não vislumbramos qual o meio de prova que sustenta tal factualidade.
5- Atento o relatório social elaborado pela DGRSP, apenas, se poderá dar como provado que o arguido, em contexto prisional, aceitou acompanhamento terapêutico às dependências. Fazer constar como facto provado que o arguido fez tratamento de desintoxicação será ir mais além do que resulta do referido relatório, pois, desconhecesse se o arguido efetivamente aderiu ao referido acompanhamento terapêutico e em que termos o fez, bem como se desconhece, por não se ter produzido prova, se em liberdade o arguido mantem esse acompanhamento.
6- Veja-se, pois, o teor do relatório social elaborado pela DGRSP, mais concretamente a fls.166, onde se pode ler o seguinte: “(…) B. J. deu entrada em situação de prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Braga, com aparente síndrome de abstinência. Logo que proposto, aceitou acompanhamento terapêutico às dependências, desenvolvido em contexto prisional pelo Projeto Homem. (…) Relativamente a esta problemática expressa, agora, motivação para sujeição a tratamento em contexto de internamento em Comunidade Terapêutica (…)”.
7- Assim, o ponto 10º, apenas, poderá refletir a seguinte factualidade: “O arguido, em contexto prisional, aceitou acompanhamento terapêutico às dependências, desenvolvido pelo Projeto Homem.”, por ser esta e não outra, a factualidade que resulta da prova produzida em audiência e julgamento.
8- Também, não vislumbramos, em que meio de prova o Tribunal quo se estriba para dar como provado que, o arguido tem bom comportamento no estabelecimento prisional.
9- Nem encontramos no segmento da fundamentação de facto qualquer explicação/menção, nem sustentabilidade no único meio de prova com credibilidade, no que a essa matéria diz respeito, pois, não resulta qualquer referência ao comportamento do arguido em meio prisional, no relatório social elaborado pela DGRSP, pelo que, ter-se-á que dar como não escrita essa factualidade.
10- Na sentença, mais concretamente no segmento da fundamentação de facto, dá-se como provado no ponto 11º o seguinte: “Tem o 9º ano de escolaridade, que concluiu em Estabelecimento Prisional, onde cumpriu pena de prisão”. De regresso ao relatório social realizado pela DGRSP, mais concretamente a fls.164, pode ler o seguinte: “Habilitado com o 4º ano, e ainda durante a frequência do 2º ciclo, por desinteresse perante a formação, o arguido iniciou a laborar numa padaria (…)”. No segmento da motivação da decisão de facto, não vislumbramos em que elementos de prova se alicerçou o Tribunal a quo para concluir que o arguido tem o 9º ano de escolaridade, pois, nada se refere a este respeito.
11- Nesta parte, não se vislumbra, qual o meio de prova considerado pelo Tribunal a quo para dar como provado este facto, quando, resulta, do relatório social realizado pela DGRSP, com base na informação facultada pelo próprio arguido, que o mesmo está habilitado com o 4º ano de escolaridade.
12- Assim, no ponto 11º, ter-se-á apenas que dar como provado que o arguido tem o 4º ano de escolaridade.
13- Na nossa modesta opinião, a sentença padece, ainda, da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º1 do Código de Processo Penal, por falta de fundamentação, pois, limitou-se, no que diz respeito aos antecedentes criminais do arguido, relevantes para a escolha e medida da pena, a fazer uma mera referência à existência de condenações em Espanha, onde cumpriu pena de prisão, não as elencando e concretizando.
14- Perpassa da leitura da sentença recorrida, que o tribunal a quo não ponderou, nem considerou os critérios legais para a determinação e escolha da pena.
15- Em primeira linha, a decisão não considera todas as condenações constantes no certificado do registo criminal do arguido, que são as seguintes: (…).
16- Resulta dos presentes autos, mais concretamente a fls. 182, que o arguido esteve em cumprimento de pena de prisão em Espanha, ininterruptamente, entre 10/12/2012 e 24/03/2018 (ou seja, 5 anos, 3 meses e 14 dias). Informação que o Tribunal a quo, também, não teve em consideração.
17- O Tribunal a quo, também, não considerou que o arguido, decorridos 4 meses e 24 dias, após ter sido colocado em liberdade, voltou a delinquir, praticando os factos, pelos quais, veio a ser condenado nos presentes autos, em tudo idênticos, quanto à sua natureza (crimes contra o património) e motivação (para fazer frente ao consumo de produto estupefaciente).
18- Ora, tal realidade permite-nos concluir que aquele tempo de reclusão não levou o arguido a refletir sobre a sua conduta, mantendo-se a mesma contrária ao direito.
19- Nesse sentido, a informação vertida no relatório social realizado pela DGRSP a fls.166, mais concretamente no seguinte segmento: “(…) apresenta alguns pensamentos legitimadores do seu percurso de vida e de minimização do processo, num discurso assente na atribuição de responsabilidade a terceiros e na prioridade em satisfazer as necessidades de consumo de estupefacientes. (…) Face à natureza dos factos pelos quais está acusado, ainda que verbalize reconhecimento da ilicitude e censurabilidade, o arguido manifesta ausência de interiorização das noções de ofendidos e danos encarando-os com alguma indiferença.
20- Porém, o Tribunal a quo, não levou em linha de conta esta realidade, no que à escolha da pena diz respeito.
21- Aqui chegados, teremos de concluir que em liberdade o arguido não irá aderir, sem quaisquer reservas, a um processo de socialização, pelo que, não se nos afigura, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para impedir que o mesmo volte a praticar crimes, atente-se, pois, ao período de reclusão que o mesmo já sofreu e a sua fraca resistência em voltar a delinquir, em concreto, 4 meses e 24 dias.
22- De salientar ainda o facto do arguido, como se refere no relatório social, manifestar uma ausência de interiorização das noções de ofendidos e danos, encarando-os com alguma indiferença.
23- Assim, tendo-se presente a personalidade do arguido (adversa ao direito), às condições da sua vida (incipientes hábitos de trabalho, instabilidade pessoal e no relacionamento familiar e pessoal), à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste (manifestando uma ausência de interiorização das noções de ofendido e de danos encarando-os com indiferença, bem como a o seu passado condicionado por hábitos de consumo de substâncias psicoativas), é possível concluir-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que, a pena de prisão, na sua execução, não poderá ficar suspensa.
24- Mais se dirá que, no caso em apreço, a pena de prisão dever-se-á fixar em 24 meses de prisão.
25- Aqui chegados, entendemos que a sentença recorrida, faz uma interpretação errada do normativo vertido no artigo 50º do Código Penal e viola o princípio da livre apreciação da prova, contido no artigo 127º do Código de Processo Penal.
26- Motivo pelo qual, se nos afigura que a mesma deverá ser substituída por outra que condene o arguido numa pena de 24 meses de prisão efetiva.»
*
O arguido respondeu ao recurso, salientando, em síntese, que: (i) são irrelevantes as objecções suscitadas no recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto, a qual é sustentada também nas declarações do arguido (não apenas no relatório social); (ii) como já arguira em sede de alegações finais na audiência, os factos provados vertidos nos pontos 3º e 4º enquadram-se no ilícito p. no art. 203º/1 (furto simples) e não no crime de furto qualificado p. no art. 204º/1/e) do C. Penal; (iii) a despeito de os seus antecedentes criminais (sobretudo, os registados em Espanha) não abonarem a seu favor, a sua confissão com arrependimento (do crime de furto simples) e os demais factos provados apontam para que não se deva negar ao arguido a oportunidade de mudar de vida em liberdade.

Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, secundando toda a argumentação vertida no recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2, do art. 417º do CPP, feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
*
II- Fundamentação

Sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, o âmbito dos recursos delimita-se pelas respectivas conclusões (art. 412º/1 do CPP), pelo que se suscitam as seguintes questões:

1) - Nulidades da sentença [art. 379º/1, a) e c) do CPP];
2) - Erro de julgamento sobre a matéria de facto inserta nos pontos 10º e 11º;
3) - Enquadramento jurídico dos factos;
4) - Medida da pena.

Importa apreciar e decidir a enunciadas questões, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos tidos por provados na decisão recorrida e a respectiva motivação (transcrição):

«1 - No dia 17 de setembro de 2018, cerca das 14H20, o arguido B. J., dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado “… Agrícola”, pertencente à “Cooperativa Agrícola dos Lavradores do Concelho de …”, sito na Rua …, n.º .., nesta cidade de …, com o propósito de se apoderar do dinheiro que aí encontrasse.
2 - Aí chegado, o arguido, perguntou ao empregado J. C., “se conhecia quem precisasse de gente para as vindimas”, ao que este respondeu que sabia mas esperasse um pouco, pois estava a atender um cliente.
3 - O arguido, aproveitando o momento em que, o referido empregado, saiu para o exterior daquele estabelecimento comercial para atender um cliente, aproximou-se de um balcão, onde estava uma das caixas registadoras, que abriu, utilizando para o efeito a chave que lá se encontrava e, retirou do seu interior cerca de € 700,00 (setecentos euros).
4 - De seguida, aproximou-se de um outro balcão, onde estava outra caixa registadora, que, também, abriu, fazendo uso da chave que lá se encontrava, de onde retirou a quantia de € 400,00 (quatrocentos euros).
5 - O arguido, saiu para o exterior, levou consigo aquela quantia em dinheiro, no total de € 1.100,00 (mil e cem euros), fazendo-a sua.
6 - O arguido agiu, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de se apoderar daquela quantia em dinheiro, apesar de saber que a mesma não lhe pertencia e que ao atuar da forma supra descrita, acedendo ao interior das mencionadas caixas registadoras, o fazia no desconhecimento e contra a vontade dos seus legítimos donos e responsáveis, o que quis e conseguiu.
7 - O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8 - O arguido esteve detido em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional de Braga até 22.12.2019, antes de detido era consumidor de estupefacientes, vivendo na rua e em casas abandonadas.
9 - Agora liberdade vive na residência da mãe e irmão menor em Monção.
10 - O arguido fez tratamento de desintoxicação no Estabelecimento Prisional de Braga, que continua em liberdade, tem bom comportamento no estabelecimento prisional.
11 - Tem o 9.º ano de escolaridade, que concluiu em Estabelecimento Prisional de Espanha, onde cumpriu pena de prisão.
12 - Do CRC do arguido B. J., de fls. 177 e ss. constam as seguintes condenações:

a) na pena de multa de 30 dias à taxa diária de 4,00€, pela prática em 20.05.2008, de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, p. e p. pelo art. 220.º do C.P., por decisão de 22.09.2008, no âmbito do P. 257/05 o TACMN
b) na pena de multa de 200 dias à taxa diária de 5,00€, o que a multa de 1.000,00 euros, pela prática em 16.09.2012, de um crime de furto, p. e p. pelo art. 203.º do C.P., por decisão de 31.10.2013.
c) foi condenado em Espanha, onde cumpriu pena de prisão.
13 - O arguido revela um passado condicionado pelos hábitos de consumo de substâncias psicoativas, que se refletiram negativamente no seu percurso de vida, com incipientes hábitos de trabalho, instabilidade pessoal, e no relacionamento familiar e social.
14 - A progenitora contínua disponível e empenhada em lhe proporcionar todo o apoio que estiver ao seu alcance, o qual está condicionado à sua vontade e determinação em mudar o seu anterior estilo de vida, designadamente, na área das dependências.
15 - Atentas as condições pessoais e antecedentes criminais, o arguido necessita de interiorizar o desvalor da conduta e disponibilizar-se para consolidar um efetivo processo de tratamento à problemática aditiva.

(…) Motivação da Decisão de Facto:

Os factos dados como provados foram assim considerados tendo em atenção a prova produzida e analisada em audiência de julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal (art.ºs 127.º e 355.º do Cód. de Proc. Penal). Designadamente:
Prova documental, auto de notícia, auto de visionamento e fotogramas de fls. 39 a 45, Relatório da DGRSP junto aos autos e Certificado do registo criminal do arguido de fls. 177 e ss.
O arguido prestou declarações, tendo admitido na sua totalidade a prática dos factos, designadamente encontrar-se no local da ocorrência dos factos, bem como que aí se deslocou, disse, para arranjar emprego, mostra-se arrependido, explicando tais factos por na altura ser consumidor habitual de estupefacientes heroína e cocaína.
Atenta a confissão que o arguido declarou integral e sem reservas, foi prescindida a restante prova como consta da acta.
Valoramos o seu depoimento para prova dos factos dados como provados constantes de 1) a 6), bem como quanto à sua situação económica e social.
Assim, da conjugação de todos estes meios de prova terá de concluir-se, forçosamente, por dar-se como assente a atuação do arguido tal como descrita no texto acusatório, incluindo os valores furtados.
A subjetividade presente no arguido retira-se do concreto desenrolar dos eventos, não se descortinando outro propósito que não o da deliberada apropriação dos bens pelo modo descrito e sendo a punibilidade de comportamentos desta natureza do geral conhecimento dos cidadãos, portanto, também, necessariamente, do arguido.
No que tange aos antecedentes criminais, foi considerado o teor do certificado de registo criminal que antecede, a fls. 173 e ss.».
*
III- O Direito.

1. Nulidades da sentença.

Segundo o Recorrente, a sentença padece da nulidade (por falta de fundamentação) prevista no arts. 379.º, n.º 1, a) e 374º, n.º 2 do CPPenal, uma vez que, quanto aos antecedentes criminais, não contém o elenco/concretização das condenações do arguido em Espanha (onde cumpriu pena de prisão), relevantes para a escolha e medida da pena.
Por sua vez, o arguido também assaca à decisão recorrida o vício da nulidade, que reputa de conhecimento oficioso, porquanto a sua conduta foi nela enquadrada no crime de furto qualificado p. no art. 204º/1/e) do C. Penal, e não no ilícito p. no art. 203º/1 (furto simples), como já sustentara na audiência, em sede de alegações finais, visando, segundo parece, uma putativa omissão de pronúncia prevista na al c) do dito art. 379.º/1.
Vejamos.
A fundamentação da sentença, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade, que é de conhecimento oficioso.
Para além da sua proeminência enquanto garantia integrante do Estado de direito democrático, no domínio do processo penal, uma fundamentação cuidada assume uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos e, complementarmente, também é essencial, desde logo, para garantir a possibilidade do exercício eficaz do direito ao recurso.
Aliás, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (1) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos (2). E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o acto decisório por excelência, o que conhece, a final, do objecto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente, o arguido mas também os demais sujeitos processuais ficam a saber se aquele foi absolvido ou condenado e, neste caso, qual a medida concreta da pena.
Assim é que, segundo o art. 379º, nº 1, al. a), do CPP, “é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 do n.º 3 do art. 374º”. Por sua vez, este normativo (art. 374º), sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença – relatório, fundamentação e dispositivo – e o seu nº 2, quanto à respectiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste, nomeadamente, a enumeração dos factos provados e não provados (3).
Mas, por outro lado, se, como se assinalou, todas as decisões devem ser sempre fundamentadas, também é consensual que só importa o esgrimido vício a ausência completa de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não a sua fundamentação deficiente, medíocre ou errada (4). É evidente que de nada releva, para este efeito, que se repute uma fundamentação de pouco convincente, ou mesmo, até, de indigente ou medíocre, a justificar merecida censura no plano da técnica jurídica exigível na fundamentação das decisões judiciais.
É certo que a Sra. Juíza, tendo informado (na motivação da decisão sobre os factos) que foi considerado o teor do certificado de registo criminal do arguido, na enunciação dos seus antecedentes criminais, apenas explicitou/concretizou as (duas) condenações em pena de multa proferidas em Portugal: uma (30 dias) pela prática em 20/05/2005 de um crime de burla para obtenção de alimentos, bebidas ou serviços, p. e p. pelo artigo 220º do CP, e outra (200 dias) pela prática em 16/09/2012 de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, nº1 do CP.

Ora, o Recorrente alegou, “em primeira linha”, que na decisão recorrida não foram consideradas as (sete) condenações por tribunais espanhóis, constantes do cadastro do arguido, nas seguintes penas:

- 2 anos de prisão, pela prática, em 19/04/2006, de três crimes de roubo com força nas coisas, p. e p. pelo artigo 238º do CP Espanhol e numa pena de 1 ano de prisão, pela prática, em 19/04/2006, de 2 crimes de agressões, p. e p. pelo artigo 147º e 148º do CP Espanhol, por decisão transitada em 22/01/2007, proferida no âmbito do Pº379/2006 pelo Jdo. Penal nº2 de Pontevedra, Espanha;
- 4 meses de multa, à taxa diária de 2 €, pela prática, em 05/08/2006, de um crime de roubo de uso de veículos, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 244º do CP Espanhol, por decisão transitada em 13/03/2008, proferida no âmbito do Pº289/2007 por Jdo. Penal nº2 de Pontevedra, Espanha;
- 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática, em 10/12/2005, de um crime de roubo com violência ou intimidação, p. e p. pelo artigo 242º do CP Espanhol, por decisão transitada em 23/09/2008, proferida no âmbito do Pº119/2008 por Jdo. Penal nº3 de Pontevedra, Espanha;
- 6 meses de prisão e 6 meses de inabilitação especial direito de sufrágio passivo, pela prática em 23/10/2012 de um crime de recetação, p. e p. pelo artigo 298º do CP Espanhol; - 2 anos de prisão e 2 anos de inabilitação especial direito de sufrágio passivo, pela prática, em 23/10/2012, de um crime de roubo com força em casa habitada ou local aberto ao público; - 1 ano de prisão e 1 ano de inabilitação especial direito sufrágio passivo, pela prática em 23/10/2012 de um crime de roubo com força em casa habitada ou local aberta ao público, p. e p. pelo artigo 241º do CP, por decisão transitada em 02/04/2014, proferida no âmbito do Pº67/2014 por Jdo. Penal nº2 de Pontevedra, Espanha;
- 6 meses de prisão e 6 meses de inabilitação especial direito sufrágio passivo, pela prática em 02/08/2013, de um crime de agressões, p. e p. pelo artigo 147º do CP Espanhol, por decisão transitada em 18/11/2014, proferida no âmbito do Pº315/2014 por Jdo. Penal nº1 de Pontevedra, Espanha;
- 16 meses de prisão e 16 meses de inabilitação especial direito sufrágio passivo, pela prática em 08/09/2012, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 234º do CP Espanhol, por decisão transitada em 27/09/2016, proferida no âmbito do Pº526/2016 por Aud. Provincial Seção nº5 de Vigo, Espanha;
- 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática em 30/10/2012, de um crime de roubo com força em casa habitada ou local aberto ao público, p. e p. pelo artigo 241º do CP Espanhol, por decisão em 19/07/2019, proferida no âmbito do Pº459/2019 por Aud. Pronvincial Seção nº2 de Pontevedra, Espanha;

Concretizando aquela sua imputação, o Recorrente também diz que «perpassa da leitura da sentença recorrida, que o tribunal a quo não ponderou, nem considerou os critérios legais para a determinação e escolha da pena», afirmação com que o mesmo logo denuncia que o que está em causa é a sua discordância, dum ponto de vista substancial, do juízo que a Julgadora formou sobre tal questão de direito, por considerar que o processo fornece elementos suficientes para a condenação do arguido numa pena de 24 meses de prisão efectiva, conferindo especial preponderância aos antecedentes criminais constituídos por aquelas condenações em Espanha.
Porém, ao invés, o que, realmente, perpassa do segmento da fundamentação concernente à determinação da medida da pena é que a Sra. Juíza considerou, indubitavelmente, as já referenciadas condenações a que o arguido foi submetido em Espanha, sob pena de ficarem completamente despidas de sentido as alusões aí feitas ao “historial de toxicodependência” e, sobretudo, às «várias condenações anteriores e posteriores, pela prática de crimes dolosos e, designadamente, da mesma natureza do ora sob julgamento», ou aos “inúmeros antecedentes criminais” de que o mesmo era possuidor, ponderações que, evidentemente, não se mostrariam justificadas apenas com as duas singelas condenações em multa proferidas por tribunais portugueses.
Mesmo admitindo que o juiz não é – ou melhor, não deve ser – um simples escriba, há que reconhecer que a criticada sentença, em tal conspecto, tem uma formulação que, não acatando a técnica mais comummente adoptada, não é autossuficiente, no sentido de facultar aos destinatários e a este Tribunal – por si só, ou seja, sem a necessidade de consultar outros elementos – o cabal alcance da decisão nela contida, nessa vertente dos “inúmeros antecedentes criminais” do arguido, com a explicitação das condenações deste em Espanha.
Mas, daí até se poder considerar preenchido o grave vício (formal) da nulidade da sentença por falta de fundamentação iria uma distância abismal. Com efeito, malgrado a técnica jurídica observada na decisão recorrida, esta permite ao arguido, ao Recorrente e a este Tribunal atingir que a alusão nela feita aos “inúmeros antecedentes criminais” abarca as (sete) condenações por tribunais espanhóis constantes do cadastro do arguido, bem como qual o sentido da sua repercussão naquela decisão.
Assim, não obstante a invocação da omissão da fundamentação, a razão da discordância do Recorrente tem, sim, a ver com outra questão realmente suscitada e relacionada com o erro de julgamento na apreciação do direito atinente à determinação da pena e que terá de ser adiante defrontada.
E o mesmo se aplica, com as necessárias adaptações, ao argumentado pelo arguido para exprobrar a decisão recorrida com o vício da nulidade, mas tendo em vista, tão-somente, a sua divergência relativamente à qualificação jurídica dos factos em que aquela assentou.
Nos termos do normativo contido no art. 379º, n.º 1, c) do CPP, a omissão de pronúncia ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, compreendida no objecto do processo (5).
Esse vício prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as «questões» submetidas à apreciação do tribunal, exceptuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra, verificando-se, pois, quando tenha ocorrido ausência de decisão. Mas a expressão «questões», de modo algum, se pode confundir com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que os sujeitos processuais fundam a sua posição na controvérsia, antes se prende, desde logo, com a pretensão punitiva do Estado ou com a de ressarcimento que os demandantes submetam à apreciação do tribunal e as respectivas causas invocadas.
Assim, o tema da ventilada nulidade terá de ser encarado na perspectiva da pretensão punitiva do Estado, nos termos em que a mesma fora, precisamente, delimitada pela acusação, relevantes para a determinação da responsabilidade penal do arguido, por crime de furto.
Como resulta do disposto nos arts. 368º, nº 2 e 369º, nº 2 do CPP, o tribunal deve decidir sobre todos os factos alegados pela acusação ou pela defesa e os que resultem da discussão da causa, desde que sejam relevantes para a resolução das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena. São esses os limites da descoberta da verdade e da boa decisão da causa, que constituem a finalidade primordial do julgamento penal. Por isso, como resulta daquela expressão (relevantes) e também do princípio geral da utilidade dos actos processuais, só estão abarcadas pelo dever de pronúncia os factos relevantes para a decisão, tendo em conta as suas diversas soluções plausíveis.
Ora, o arguido, numa patente confusão de conceitos, limita-se a expor a sua discordância em relação à pronúncia que, afinal, diz inexistir, assim demonstrando, com a sua própria argumentação, a falta de fundamento da sua objecção nesta vertente.
No caso, a par do dispositivo da sentença, retira-se com toda a perspicuidade da sua fundamentação quanto subtracção cometida pelo ora arguente, que houve pronúncia expressa, ou seja, que o Tribunal decidiu considerar como qualificado o furto e, nessa decorrência, o arguido foi condenado pela sua autoria.
Não há a mais pequena dúvida de que a decisão contém pronúncia expressa sobre essa qualificação, improcedendo, assim, a invocação do vício de omissão de pronúncia.

Portanto, à luz do exposto, improcede a arguição das nulidades.

2. Matéria de facto inserta nos pontos 10º e 11º.

O Recorrente sustenta que em 1ª instância se fez uma incorrecta valoração da prova produzida em audiência sobre tal matéria de facto, com a qual a sentença recorrida não estaria em conformidade.

Corporizando essa sua perspectiva, alega que a decisão recorrida foi além do que resulta do relatório social elaborado pela DGRSP, uma vez que deste não consta que:

- o arguido efectivamente aderiu e em que termos ao tratamento terapêutico para desintoxicação, bem como que, em liberdade, o mantém (dele apenas se retira que aceitou em contexto prisional esse acompanhamento e expressa, agora, motivação para sujeição a tratamento em contexto de internamento em comunidade terapêutica);
- o arguido tem bom comportamento no estabelecimento prisional;
- o arguido tem o 9º ano de escolaridade, que concluiu no Estabelecimento Prisional, onde cumpriu pena de prisão (dele apenas se colhe que, habilitado com o 4º ano, durante a frequência do 2º ciclo, por desinteresse perante a formação, iniciou a laborar numa padaria).
O recorrente pretende, pois, que a decisão proferida sobre tais pontos factuais seja alterada, de modo a reproduzir o teor literal do referido relatório social.

Contudo, esta pretensão recursiva é fruto de inexplicáveis equívocos:
Desde logo, o de conceber o juiz como mero copista de informações e, sobremaneira, de juízos de valor contidos no teor dum qualquer relatório, sem o “filtro” do julgamento incidente sobre ele, conjugadamente com todos os demais elementos probatórios aduzidos.
Depois, o de não atentar a que a convicção formada para a decisão proferida sobre a matéria de facto estribou-se, como consta da respectiva motivação, em toda a prova produzida e analisada em audiência – documentos, relatório da DGRSP, CRC do arguido e declarações por este prestadas, tendo estas sido valoradas para a aquisição de todos os factos provados e não apenas os imputados na acusação (perante a sua confissão integral e sem reservas dos factos pelo mesmo).
Aliás, afigura-se-nos perfeitamente normal a ilação de que o arguido tenha tido bom comportamento em contexto prisional, obtida à luz da experiência quer de toda a prova produzida quer de outros factos provados, não parecendo necessário que nos debrucemos, sequer, sobre a evocação da florentina “distinção” entre «o arguido aceitou fazer tratamento de desintoxicação em contexto prisional» e «fez tratamento no Estabelecimento Prisional».
Como tal, a decisão alvejada, no que se reporte a aspectos substanciais, não pode ser alterada porque, na invocação do suposto erro de julgamento, o recorrente não cumpriu os ónus de especificação previstos no art. 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Quanto ao demais, é certo que as alterações pretendidas até nem contenderiam com os aludidos requisitos impostos para a impugnação da decisão porque, no essencial e em boa verdade, redundam em propostas de meras rectificações de lapsos formais de escrita quanto à redacção oferecida a parte dos aludidos itens factuais, mas que a leitura de todo o texto da sentença patenteia e permite suprir.
Assim é quanto à continuação do tratamento de desintoxicação em liberdade – aliás, posta como condição para a suspensão da execução da pena – sobre a qual o que mais interessa – em prol do próprio arguido e não só – é que o mesmo mantenha a motivação que expressou ter para sujeição a tratamento em contexto de internamento em comunidade terapêutica, a que no recurso se faz referência. E o mesmo se deve dizer sobre a questão de o arguido ter concluído, ou apenas frequentado, o 9.º ano de escolaridade, de minudente relevância, sendo certo, no entanto, que tal frequência é apta a indiciar a motivação do mesmo para mudar o seu comportamento pregresso.
Estamos, em qualquer dos casos, perante especiosidades ou rigorismos formais com manifesta insignificância, cuja solução por um Tribunal de recurso, dada a sua desproporcionalidade face aos escassos meios postos ao dispor da administração da justiça, é de penosa assimilação, ainda que se insira na lata complacência que tem sido concedida à exacerbada litigância que grassa nos nossos tribunais.

3. Enquadramento jurídico dos factos.

Como vimos, o arguido defendeu que, ao contrário da pronúncia expressa na sentença, a sua conduta se enquadra, não no crime de furto qualificado p. no art. 204º/1/e) do C. Penal, mas no ilícito p. no art. 203º/1 (furto simples).
Entendeu o Tribunal “a quo” que, tendo o arguido aberto as caixas registadoras utilizando para o efeito a chave que nelas se encontrava para cometer a subtracção, tanto bastaria para preencher a circunstância qualificativa do crime de furto, prevista na e) do art. 204.º/1 do C. Penal.
Nos termos de tal preceito, é punido agravadamente quem furtar coisa móvel fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança.
Todavia, salvo o devido respeito, neste ponto, a razão está do lado do arguido.

Com efeito, perfilhamos a interpretação em que se estribou o acórdão da R. Évora citado pelo arguido (proferido em 8/05/2018, no p. 8/17.7GBNIS.E1, citando, nomeadamente, Miguez Garcia, em “O Direito Penal Passo a Passo”, II, 2015, 2.ª ed., p. 80):

«A agravação da punição desta conduta tem a ver com a peculiar perigosidade representada pela perseverança do agente que, não obstante a coisa estar fechada dentro de um engenho particularmente dificultoso de abrir, ainda assim não se intimida e tem a argúcia e o particular engenho e conhecimento de conseguir aceder ao seu interior.
Ora nenhum conhecimento especial ou particular engenho é necessário para aceder à gaveta de uma máquina registadora que tem a chave na fechadura; ou para abrir um cofre que, apesar de ter um sofisticado sistema electrónico de segurança, está com o mesmo desligado e tem a porta apenas encostada.
Nestes casos, é evidente que desaparece a razão da agravação da punição

No mesmo sentido, para além do Comentador citado pelo arguido (P. Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, pp 635 e ss, anotação 15), o Prof. Faria Costa, também anota o normativo (no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, II,1999, p. 65) pelo seguinte modo:

«Fala-se – e bem, acrescente-se – em coisa fechada. De sorte que se uma coisa se encontra em gaveta ou cofre e se esses mesmos receptáculos de segurança se encontrarem abertos ou com chave na própria fechadura, bom é de ver que a coisa se não encontra fechada. Para que se preencha a circunstância-elemento, necessário é que o agente desenvolva uma conduta adequada à abertura precisamente daquilo que se encontrava fechado com fechadura ou qualquer outro dispositivo especialmente adequado à sua segurança. Digamo-lo ainda de maneira talvez mais cortante: não basta, para que se preencha um furto qualificado baseado nesta alínea, que as coisas estejam dentro de gaveta, cofre ou outro receptáculo e o agente delas se aproprie. É imprescindível que tais coisas estejam ali fechadas».

Como tal, a subtracção cometida pelo arguido apenas integra, adequadamente, a tipicidade do crime de furto simples, previsto pelo art. 203º/1 do C. Penal, punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

4. A pena.

Em conformidade com o enquadramento jurídico ora estabelecido para o comportamento do arguido, a suscitada questão da medida concreta da pena terá, pois, de ser ponderada dentro da indicada moldura àquele aplicável em abstracto.
O Recorrente, pressupondo uma diferente moldura (pena de prisão até cinco anos ou pena de multa até 600 dias), entende que ao arguido deveria ser imposta uma pena de 24 meses de prisão efectiva, face aos elementos fornecidos pelo processo, entre os quais atribui especial preponderância aos antecedentes criminais constituídos pelas referidas condenações em Espanha.
No que respeita à questão da medida concreta das penas, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
A protecção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial. Por seu lado, a culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Em consonância com estes princípios, dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Assim, prevenção – geral e especial – e culpa são os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, a realização in casu das finalidades da pena, e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (6).
Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar (7).
Por seu turno, o n.º 2 do citado art. 71º acrescenta que na determinação concreta da pena há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
A panóplia de circunstâncias e critérios estabelecidos pelo art. 71º do C. Penal têm a função de fornecer ao julgador módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (8).

No caso, deve ter-se em conta o grau de ilicitude da actuação delitual, salientando-se a moderada gravidade objectiva da conduta do arguido, o grau de dolo do mesmo, a desconsideração que ostentou pela propriedade alheia, assumindo, por isso, um relativo relevo as exigências de prevenção geral.
Também as razões de prevenção especial são reforçadas pelo significativo rol de antecedentes criminais, indicativo de a personalidade do arguido evidenciar, até ao presente, dificuldade em se estruturar de acordo com o normal padrão de vivência social.
Ademais, o arguido, ao praticar os factos em apreço decorridos apenas 5 meses e 24 dias depois de ter cumprido uma pena de mais de 5 anos prisão em Espanha, também revelou insensibilidade ético-jurídica, alheando-se da autocrítica que tal pena lhe imporia e sujeitando-se, por isso, a pesado juízo de censura.
Mas também não pode olvidar-se que o passado disruptivo do arguido foi condicionado pelos hábitos de consumo de substâncias psicoativas, que se reflectiram negativamente no seu percurso de vida, nos incipientes hábitos de trabalho, instabilidade pessoal, e no relacionamento familiar e social e daí que, antes de detido, sendo consumidor de estupefacientes, vivesse na rua e em casas abandonadas.

Ora, os factos provados indicam, com alguma segurança, que o arguido iniciou um processo de ruptura com esse seu passado:

- Iniciou tratamento de desintoxicação e mostra motivação para o continuar em contexto de internamento em comunidade terapêutica e, em liberdade, vive agora na residência da mãe, que continua disponível e empenhada em o apoiar.
- Ainda que, na pendência do processo, não tenha, claramente, assumido a necessidade – evidente perante o seu atribulado percurso – de interiorizar o desvalor da conduta e de se disponibilizar para consolidar um efectivo processo de tratamento à problemática aditiva, o certo é que, no âmbito da audiência, confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados, o que, por certo, exprime a assunção, por fim, do sentido autocrítico e da real disponibilidade para uma autoanálise e reflexão crítica, indispensáveis para fundear um muito relevante prognóstico positivo quanto à evolução da sua iniciada mudança, em que constitui um marco assinalável o abandono do consumo de estupefacientes.

Ora, todos estes aspectos têm um peso significativo, impositivo de alguma moderação da pena a aplicar e nunca, portanto, do pretendido agravamento da pena fixada em 1ª instância – situada, aliás, no patamar médio da respectiva moldura –, para além da sua repercussão na decisão de suspensão da execução de tal pena – igualmente adversada pelo Recorrente – que também deve ser ponderada. É o que agora faremos, conforme impõe o art. 50º do C. Penal.
Para tal, importa averiguar se a prognose de ressocialização é favorável. Na verdade, a execução da pena de prisão aplicada deve ser suspensa se, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste o Tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Com efeito, a prognose de ressocialização tem por parâmetros a ideia de que, por um lado, a reclusão constitui a última ratio da política criminal, mas, por outro, a de que a comunidade persegue a garantia, a protecção e a promoção dos direitos das pessoas, sem o sentido de missão socializadora através de métodos de coacção próprios do controlo social.
O que significa que deve negar-se a possibilidade de suspensão se os factos provados justificarem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de reinserção que a sociedade lhe oferece, ou seja, se o juiz não estiver convicto desse prognóstico (favorável). Como realça F. Dias (9), o que está em causa não é qualquer certeza, mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, devendo o tribunal estar disposto a correr um certo risco fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Só havendo sérias razões para duvidar da capacidade do arguido de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, é que o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada.
É, pois, ponto assente que, à semelhança do que acontece com a escolha entre a pena de prisão e a pena alternativa de multa, também a substituição daquela por qualquer das penas de substituição, nomeadamente a suspensão da sua execução, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, sendo, pois, o da prevenção o único critério a atender e não o da culpa, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção de bens jurídicos.
O pressuposto material da decisão de suspender a execução da pena é a existência de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.
Para decidir sobre a suspensão da execução da pena, o tribunal começará, pois, por um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente, decidindo depois em conformidade com o que resultar dessa previsão, só devendo suspender a pena quando concluir, face aos apontados elementos, reportados ao momento da decisão, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
O que, segundo tudo indica e conforme já resulta do que dissemos, sucede com o arguido, que, como se viu, a par da sua postura na audiência, com a inerente interiorização do desvalor da conduta pela qual vai condenado, beneficia de uma evolução por ele encetada, muito positiva a que não podemos ser insensíveis, e os elementos positivos de que dispõe quanto ao enquadramento social e familiar, não obstante o seu passado na delinquência.
Tudo circunstâncias cujo significativo peso já realçámos, mas não está vedada a reavaliação ou reconsideração da factualidade apurada e tida em conta, oportunamente, para efeito da medida da pena, com vista, agora, a averiguar dos pressupostos e finalidades da suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido.
Por assim ser, o arguido oferece algumas garantias de prosseguir, em liberdade, um processo ao nível da sua normal inserção, ou seja, de que possui agora motivação para perfilhar um estilo de vida consentâneo com as normas sociais, bem como para, definitivamente, se desvincular da prática de crimes e da dependência de tóxicos.
Afigura-se-nos, pois, estar afiançado, no fundamental, que o arguido dispõe das condições pessoais essenciais ao êxito do seu processo de reinserção social. A factualidade apurada é de molde a poder confiar ser a sua conduta ora em apreço, tal como as demais (delinquentes) que a antecederam, um incidente do passado e afirmar que a sua personalidade permite fundear o vaticínio de que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão realizem de forma adequada as finalidades da punição.
Dito de outro modo, perante esta factualidade, é possível concluir que há fundamento para acompanhar o juízo favorável quanto ao comportamento futuro do arguido formulado pela Sra. Juíza em 1ª instância. Um juízo arriscado, mas que vale a pena assumir, em nome do princípio da ressocialização do condenado, que também integra os fins das penas.
Na verdade, interromper a actual situação em que o arguido se encontra seria quebrar um percurso que o arguido começou a trilhar, seria frustrar as vias abertas pelo novo rumo que o próprio arguido escolheu.
A suspensão da pena é sempre uma aposta do tribunal, no sentido em que nunca há certezas sobre o comportamento futuro do condenado. Mas a suspensão não deverá ser negada quando o risco não seja excessivo, desde que não temerário. É o que se afigura acontecer no caso dos autos.
Acresce que, tendo o Tribunal recorrido beneficiado, naquela aposta, da imediação e oralidade, a intervenção deste Tribunal, no âmbito do recurso, na cognoscibilidade da concretização da escolha e do quantum da pena e no controlo da sua proporcionalidade tem de ser autolimitada e necessariamente parcimoniosa: ainda que o cumprimento do dever de fundamentação da determinação concreta da pena pelo tribunal recorrido vise, precisamente, facultar o controlo dessa determinação, uma vez que nesta sejam observados os critérios que lhe subjazem, há uma margem de actuação do julgador que não deve ser fiscalizada.
Como se defende no Acórdão do STJ de 12-07-2018 (10), pode sindicar-se a decisão, quer quanto à desconsideração ou errada aplicação pelo tribunal dos princípios gerais de determinação da medida da pena, à correcção das operações nela efectuadas, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos factores relevantes, quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como à forma de actuação dos fins das penas no quadro de prevenção. Mas já não a exacta determinação da pena que, em concreto, se cinja àqueles parâmetros, ressalvados os casos de patente violação das regras da experiência ou de desproporção dessa quantificação.

O recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar, como também já se sustentou no acórdão da RE de 22/04/2014 (11):

«A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.».

Assim sendo, este Tribunal de recurso apenas deveria intervir na medida concreta da pena, modificando-a, se detectasse incorrecções ou distorções no seu processo de aplicação, na interpretação e aplicação das normas constitucionais e legais que a regem, como já se acentuou. Ora, o Tribunal recorrido observou correctamente todos os parâmetros estabelecidos na lei e não se detecta qualquer distorção na determinação da medida da pena feita.
Por conseguinte, contrariamente ao alegado no recorrente, não merece censura a decisão recorrida, neste segmento.
*
Decisão:

Nos termos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, alterar oficiosamente o enquadramento jurídico dos factos provados nos termos sobreditos e, consequentemente:

a) condenar o arguido B. J. como autor de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do C. Penal;
b) manter no demais a decisão recorrida.

Sem tributação.
Guimarães, 11/5/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1 O art. 97º, nº 5, do CPPenal, consagra o princípio geral sobre a fundamentação dos actos decisórios, estatuindo que estes são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Este princípio geral é reiterado relativamente a alguns particulares e específicos actos que afectam ou podem afectar os direitos dos arguidos.
2 Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova».
3 Para além de «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), «a fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito».
4 Nada tem a ver com esse vício a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada, pois não são razões de fundo as que lhe subjazem, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
5 É certo que o arguido não recorreu, apenas arguiu o vício em questão na resposta ao recurso. Porém, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça veio a consolidar-se no sentido de as nulidades de sentença deverem ser oficiosamente conhecidas, perante o que passou a dispor o nº 2 do citado artigo 379º, a partir da redacção conferida pela Lei nº 59/98, de 25/08 («As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso …»): a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do nº 2, «não pode deixar de significar que o Tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las (…) aliás nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo», como explica o Exmo. Conselheiro Oliveira Mendes (in Código de Processo Penal Comentado, p. 1133).
6 Figueiredo Dias In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas - Editorial Notícias, 214 e ss.
7 Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 227 e ss..
8 Cfr. acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173.
9 Direito Penal Português, p. 344.
10 Proc. nº 116/15.9JACBR.C1.S1, Relatado pelo Conselheiro Raúl Borges.
11 Proc. nº 291/13.7GEPTM.E1, relatado por Ana Barata Brito.