Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
696/22.2T8PTL.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: COOPERATIVA
ADMISSÃO DE COOPERADOR
DECISÃO DO CONSELHO DE DIREÇÃO
RECURSO PARA A ASSEMBLEIA GERAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA AUTORA IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- O membro da cooperativa ou o candidato que pretenda impugnar a deliberação do Conselho de Administração da cooperativa sobre a admissão do novo membro tem que recorrer para a Assembleia Geral, nos termos do artigo 19º, nº 2, do Código Cooperativo; pode, depois, impugnar judicialmente a deliberação da Assembleia Geral sobre essa matéria.
.2- Quer os princípios específicos que regem as cooperativas, quer a forma como o Código Cooperativo regulou esta particular matéria exigem que a questão da admissão dos novos membros, porque de fulcral importância no âmbito cooperativo, onde as relações interpessoais e os princípios democráticos no seu funcionamento têm importância central, exigem que se permita que o conflito sobre a admissão de novos membros seja em primeiro lugar discutido no seu seio perante todo o coletivo de cooperadores e só depois judicialmente.
Decisão Texto Integral:
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

.I - Relatório

Recorrente e Autora: EMP01... LDA.”,
Recorridas e Rés:ADEGA COOPERATIVA DE EMP02... LIMITADA, 2ª AA e
3ª EMP03..., LDA
Apelação em ação declarativa com forma de processo comum
 
-- A Recorrente pediu que se profira sentença pela qual se venha a:
a) Anular-se, declarar-se nula ou ineficaz a admissão da 3ª Ré como cooperadora da 1ª Ré cooperativa, cancelando-se a respetiva inscrição como cooperadora;
b) Subsidiariamente em relação ao pedido formulado na alínea a), para o caso de a aquisição da qualidade de cooperadora ter resultado da transmissão de títulos de capital, anular-se, declarar-se nula ou ineficaz a autorização de transmissão de títulos de capital para a 3ª Ré cancelando-se a respetiva inscrição como cooperadora;
c) declarar-se que a 2ª Ré tinha conhecimento, aquando da admissão da 3ª Ré que a mesma desenvolvia atividade concorrente com a 1ª Ré, designadamente através da comercialização de vinho verde.
d) Subsidiariamente em relação ao pedido formulado na alínea c), para o caso de a aquisição da qualidade de cooperadora ter resultado da transmissão de títulos de capital, declarar-se que a 2ª Ré tinha conhecimento, aquando da autorização de transmissão de títulos de capital para a 3ª Ré que a mesma desenvolvia atividade concorrente com a 1ª Ré, designadamente através da comercialização de vinho verde;
e) declarar-se que a 2ª Ré tem conhecimento que a 3ª Ré continua a desenvolver, até à presente data, atividade concorrente com a 1ª Ré, designadamente através da comercialização de vinho verde sob a marca ..., sem que tenha tomado qualquer iniciativa disciplinar com vista ao sancionamento deste comportamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que a 2ª Ré desenvolve atividade de produção e comercialização de vinho em todas as suas fases, comercializando-o desde 2021, pretensão que nunca escondeu; estatutariamente não podia ser admitida como cooperadora, como ocorreu em 2020, porque exerce uma atividade concorrente com a que é exercida pela 1ª Ré Cooperativa.
-- Foram apresentadas contestações em que, além da impugnação dos factos, se defendeu que a Autora recorreu indevidamente a Tribunal, preterindo o recurso interno obrigatório a que, como cooperador está obrigado, nos termos do Código Cooperativo, para a Assembleia Geral da Ré, o que constitui uma exceção dilatória inominada que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conducente à absolvição da instância.
Foi proferido despacho que convidou as partes a pronunciarem-se sobre o conhecimento imediato do mérito com base na inexistência de decisão da Assembleia Geral da Ré sobre a questão objeto do pedido, que a Autora aproveitou, afirmando, em súmula, que não está em causa a admissão da 3ª Ré como cooperadora, mas a transmissão da posição da sócio, pelo que só será possível recorrer ao regime dos artigos 19º, nº 3 e 38º, alínea K), ambos do Código Cooperativo por via da aplicação analógica. Mais defendeu que o entendimento perfilhado no despacho conduz no caso concreto, à supressão dos direitos do cooperador, porque não teve conhecimento informação sobre a matéria, bem como invocou que nada na letra da Lei permite concluir que se esteja perante uma espécie de recurso hierárquico necessário.
Foi proferida sentença na qual se decidiu julgar-se a ação manifestamente improcedente, absolvendo-se os réus dos pedidos deduzidos em a) e b) e todos os réus da instância quanto aos demais pedidos formulados, por falta de interesse em agir.

É deste saneador-sentença que a exequente apela, formulando, para tanto, as seguintes
conclusões:

“1ª – A sentença recorrida dá por adquirido que, por força do disposto no número 3 do artigo 19º do CC, quando esteja em causa a decisão de admissão, recusa ou transmissão de posição de cooperador, é necessário interpor previamente recurso para a assembleia geral, para, só depois, ser possível recorrer à via judicial.
2ª – Este preceito limita-se a estipular que a “decisão sobre requerimento de admissão é suscetível de recurso para a primeira Assembleia Geral subsequente”, pelo que a letra da Lei não permite concluir que se esteja perante uma espécie de recurso hierárquico necessário.
3ª – é entendimento unânime do Supremo Tribunal de Justiça, ainda que a propósito do art.º 412º do CSC, que “o princípio geral da admissibilidade do recurso a juízo para defender os seus direitos, integrado no direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos estabelecido no artigo 20º da Constituição da República portuguesa exige a admissão de recurso directo à via judicial neste tipo de situações.
4ª – Também a doutrina perfilha a tese da admissibilidade “do recurso directo ao Tribunal para pedir a declaração de nulidade ou anulação de deliberação do conselho de administração independentemente dos recursos previstos no artigo 412º ou em simultâneo com estes.
5ª – Na presente ação está em causa a transmissão da posição e não a admissão de um cooperador, tendo a sentença recorrida considerado que o regime aplicável a estas situações é idêntico.
5ª – Analisando regime constante do Código Cooperativo verifica-se que assim não acontece.
6ª – Assim, o nº 2 do art.º 19º do CC estabelece que “a admissão é decidida e comunicada ao candidato no prazo fixado nos estatutos, ou supletivamente no prazo máximo de 180 dias, devendo a decisão, em caso de recusa, ser fundamentada”.
7ª – Diversamente, o nº 2 do art.º 86º determina nos casos de transmissão, que a recusa ou concessão de autorização ser comunicada ao cooperador, no prazo máximo de 60 dias a contar do pedido, sob pena de essa transmissão se tornar válida e eficaz. 8ª – Há, assim, uma manifesta diferença de regimes no que toca ao prazo de resposta do conselho de administração – 180 e 60 dias respectivamente - e às consequências do seu silêncio, uma vez que no caso de transmissão é possível que a autorização seja concedida de forma tácita por via do silêncio do conselho de administração.
9ª – Para além disso, a recusa tem que ser fundamentada no caso da admissão, o que não é exigido no caso da transmissão.
10ª - Por outro lado, o número 3 do art.º 19º do CC apenas estabelece a susceptibilidade do recurso nos casos de admissão e já não de transmissão de posição.
11ª - Coerentemente com este regime a alínea k) do art.º 38º atribui à assembleia geral a competência para “funcionar como instância de recurso, quanto à admissão ou recusa de novos membros”, não prevendo tal competência para os casos de transmissão ou recusa de transmissão.
12ª - Esta diferença de regimes não surge por acaso ou por esquecimento do legislador que alterou substancialmente, nos termos expostos nas conclusões 6ª a 11ª, o regime de admissão e transmissão de posição que estava previsto no código anterior (Lei nº 1/96, de 7 de Setembro), tendo mantido o regime que estabelecia a possibilidade de recurso apenas nos casos de admissão ou recusa da mesma.
13ª – O recurso à aplicação analógica da norma da alínea K) do art.º 38º está vedado atento o seu carácter excepcional e a interpretação extensiva da mesma “pressupõe que dada a hipótese, não estando compreendida na letra da lei, o está todavia no seu espírito, o que é expressamente excluído pela forma desenvolvida e autonomizada como o actual Código passou a tratar as situações de admissão e transmissão de posição.
14ª – Mesmo admitindo que o art.º 19º, nº 3 do Código Cooperativo fosse aplicável aos casos de transmissão da posição, a verdade é que este preceito determina que o recurso deve ser interposto para a primeira assembleia geral subsequente. 15ª – Tendo transmissão da posição sido autorizada em reunião da administração da Apelada adega realizada em 4 de novembro de 2020, assembleia subsequente realizou-se no dia 26 de Junho de 2021, tendo por objeto, entre outras coisas, a aprovação do plano de atividades para 2021 e do relatório e contas relativos a
15ª – Destes dois documentos apenas o relatório fez referência a que “durante o ano de 2020 verificou-se a admissão de três novos associados” sendo totalmente omissos sobre a ocorrência de qualquer transmissão de títulos de capital, nomeadamente para a Ré EMP03....
16ª – Para que um cooperador possa interpor recurso é indispensável que, antes da realização da assembleia subsequente, tenha conhecimento da existência da transmissão.
17ª – De outro modo, estaria encontrada a forma de o conselho administração admitir cooperadores de forma ilegal, inviabilizando qualquer hipótese de reacção por parte dos demais cooperadores, pelo que nunca o regime da alínea K) do art.º 19º poderia ter aplicação no caso concreto.
18ª – Na sentença recorrida refere-se que a Apelante poderia ter suscitado a convocação da assembleia, “se necessário também pela via judicial”.
19ª – O nº do art.º 651º do Código de Processo Civil permite às partes juntar documentos com as alegações quando a junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
20ª – Ora, se a sentença recorrida tivesse avaliado a matéria em discussão com um mínimo de profundidade as questões a seguir enunciadas teriam sido apreciadas com o concomitante reflexo na decisão proferida.
21ª – O número 3 do artigo 23º dos estatutos da Apelada Adega estabelece que a Assembleia Geral extraordinária reunirá quando convocada a requerimento de pelo menos 5% dos cooperadores, acontecendo que o número de cooperadores em 31 de Dezembro de 2020 e 2021 era, respetivamente, de 2.200 e de 2.129, enquanto o número de cooperadores que não entregavam uvas há mais de três anos era, respetivamente, de 1088 (49,45%) e 1073 (50,39%).
22ª – Nos termos da alínea b) do nº 2 do art.º 17º dos estatutos da Apelada Adega esta cooperadores deviam ter sido excluídos, o que não aconteceu pelo que continuam a integrar a adega;
 23ª – Através deste expediente os cooperadores que quisessem convocar uma assembleia em 2021 teriam que recolher 107 assinaturas em vez de 53, o que ilustra a distorção do funcionamento democrático da instituição.
24ª – Em 13 de Dezembro de 2022 a Apelante interpôs recurso para a assembleia geral não tendo o mesmo sido admitido com fundamento no facto de esta matéria não constar da convocatória;
23ª – Posteriormente, em 7 de Fevereiro de 2022, interpôs novamente o recurso, solicitando que esta matéria fosse incluída na ordem de trabalhos o que não aconteceu.
24ª – Um dos pontos do recurso era o fornecimento da listagem de cooperadores e respetivas moradas com vista à convocação de uma assembleia geral extraordinária, já que sem tal listagem de dos cooperadores e respetivas moradas, não se consegue tomar qualquer iniciativa a este nível.
25ª – Só o recurso à via judicial permitirá obstar aos actos e omissões que impedem e embaraçam o exercício dos direitos da Apelante.”
As Rés responderam.

A 1ª Ré concluiu as suas alegações com as seguintes
conclusões:
“A. Vem a Recorrente interpor recurso de uma Sentença proferida pelo Juízo Local Cível ... que julgou improcedentes os pedidos formulados pela Autora, aqui Apelante, contra todos os Réus, por impossibilidade legal de impugnação directa, por via judicial, de uma deliberação do Conselho de Administração da aqui Apelada, decretando igualmente, e em consequência, a falta de interesse em agir da Apelante. B. Sendo a Douta Sentença recorrida exclusivamente fundamentada em matéria de Direito, deveriam as conclusões da Apelante indicar as normas jurídicas por aquela alegadamente violadas, ou o sentido em que, no entender da Apelante, as normas que fundamentaram a decisão recorrida deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, nos termos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
O que, notoriamente, não sucedeu.
C. Ao dissertar, nas suas alegações de recurso sobre uma invocada “omissão da informação sobre a ocorrência da transmissão da posição para a Ré EMP03...”, bem como sobre “O argumento referido na sentença de que a Apelante poderia ter requerido judicialmente a convocação da assembleia geral” pretende a Apelante trazer para este Tribunal de Recurso questões novas, não alegadas nem referenciadas de algum modo, directo ou indirecto, na sua Petição Inicial, assim subtraídas às regras do contraditório e da prova.
O que lhe está legalmente vedado fazer.
D. Veio a Apelante juntar às suas Alegações de recurso seis documentos. Sendo a junção de documentos em sede de recurso regulada, com expressa definição da sua natureza excepcional, no artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, e não se verificando, no caso vertente, qualquer circunstância justificativa da excepcionalidade prevista na Lei, a única consequência legal a retirar, em aplicação do disposto no artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, será a desconsideração de toda a prova documental oferecida pela Apelante nas suas Alegações.
E. Contrariamente ao que a Apelante pretende alegar, a vinculação da sociedade “EMP03..., Lda” na Apelada como cooperadora foi feita por via de “admissão”, nos termos dos artigos 19.º, n.º 1, e 86.º, n.ºs 1 a 3 do Código Cooperativo.
F. Esta admissão foi, nos termos legais – artigo 86.º do Código Cooperativo-,feita por via da transmissão e aquisição de títulos de capital.
G. A transmissão de títulos de capital e a admissão do novo cooperador foi devidamente autorizada pelo órgão de administração da Apelada, EMP02..., conforme estipulado nos n.ºs. 1 e 2 do 86.º do Código Cooperativo.
H. A eventual oposição da Apelante a esta deliberação tomada pela Apelada deveria, nos termos do artigo 38.º, alínea k), do Código Cooperativo, ser interposta para a Assembleia Geral da Apelada.
I. Só da eventual decisão da Assembleia Geral, desfavorável à Apelante, poderia ser apresentado recurso para os Tribunais Judiciais, como expressamente se encontra previsto no n.º 6 do artigo 32.º do Código Cooperativo.
J. Pelo que o recurso da Apelante aos Tribunais Judiciais para questionar uma deliberação, tomada no exercício dos poderes que a Lei lhe atribui, pelo Conselho de Administração da aqui Apelada, é assim manifestamente inadmissível, e como tal foi correctamente julgado pelo Tribunal a quo.
TERMOS EM QUE: Deve o presente recurso ser considerado improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida, a qual, consequentemente, não deverá ser revogada.”

A 3ª Ré apresentou as seguintes
conclusões:
“A) Vem a Recorrente interpor recurso de uma Sentença proferida pelo Juízo Local Cível ... que julgou improcedentes os pedidos formulados pela Autora, aqui Apelante, contra todos os Réus, por impossibilidade legal de impugnação directa, por via judicial, de uma deliberação do Conselho de Administração da aqui Apelada, decretando igualmente, e em consequência, a falta de interesse em agir da Apelante.
B) sendo a Douta Sentença recorrida exclusivamente fundamentada em matéria de Direito, deveriam as conclusões da Apelante indicar as normas jurídicas por aquelas alegadamente violadas, ou o sentido em que, no entender da Apelante, as normas que fundamentaram a decisão recorrida deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, nos termos do disposto no artigo 639.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. O que, notoriamente, não sucedeu.
C) Ao dissertar, nas suas alegações de recurso sobre uma invocada “omissão da informação sobre a ocorrência da transmissão da posição para a Ré EMP03...”, bem como sobre “O argumento referido na sentença de que a Apelante poderia ter requerido judicialmente a convocação da assembleia geral” pretende a Apelante trazer para este Tribunal de Recurso questões novas, não alegadas nem referenciadas de algum modo, directo ou indirecto, na sua Petição Inicial, assim subtraídas às regras do contraditório e da prova. O que lhe está legalmente vedado fazer (!)
D) Veio a Apelante juntar às suas Alegações de recurso seis documentos. Sendo a junção de documentos em sede de recurso regulada, com expressa definição da sua natureza excecional, no artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, e não se verificando, no caso vertente, qualquer circunstância justificativa da excecionalidade prevista na Lei, a única consequência legal a retirar, em aplicação do disposto no artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, será a desconsideração de toda a prova documental oferecida pela Apelante nas suas Alegações.
E) Contrariamente ao que a Apelante pretende alegar, a vinculação da sociedade “EMP03..., Lda” na Cooperativa como cooperadora foi feita por via de “admissão”, nos termos dos artigos 19.º, n.º 1, e 86.º, n.ºs 1 a 3 do Código Cooperativo.
F) Esta admissão foi, nos termos legais – artigo 86.º do Código Cooperativo-, feita por via da transmissão e aquisição de títulos de capital, o que está expressamente previsto no Código Cooperativo e nos estatutos.
G) A eventual oposição da Apelante a esta deliberação tomada pela Cooperativa deveria, nos termos do artigo 38.º, alínea k), do Código Cooperativo, ser interposta para a Assembleia Geral da Cooperativa, o que não o fez.
H) Só da eventual decisão da Assembleia Geral, desfavorável à Apelante, poderia ser apresentado recurso para os Tribunais Judiciais, como expressamente se encontra previsto no n.º 6 do artigo 32.º do Código Cooperativo.
I) Pelo que o recurso da Apelante aos Tribunais Judiciais para questionar uma deliberação, tomada no exercício dos poderes que a Lei lhe atribui, pelo Conselho de Administração da Cooperativa, é assim manifestamente inadmissível, e como tal foi corretamente julgado pelo Tribunal a quo.

TERMOS EM QUE: Deve o presente recurso ser considerado improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida, a qual, consequentemente, não deverá ser revogada. Assim se faz INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Atento o teor das alegações e conclusões é a seguinte a questão a resolver:
1- Se é possível recorrer diretamente para os tribunais da decisão do Conselho de Direção de uma Cooperativa que admite um Cooperador (sendo desnecessário o recurso para a Assembleia Geral), nomeadamente por a lei não o exigir ou existirem situações em que esse recurso se mostra impossível.

III- Fundamentação de Facto
 
A matéria de facto é toda ela de natureza processual, tendo já sido supra descritos os factos processuais relevantes para a decisão.

IV -Fundamentação de Direito

1- O objeto da decisão impugnada
A Recorrente vem invocar que o que está em causa não é a admissão da 3ª Ré como cooperadora, mas a transmissão da posição de cooperador de BB para esta. No pedido que formulou pretende que se invalide a admissão da 3ª Ré como cooperadora por esta exercer atividade incompatível com essa qualidade ou que, pela mesma razão, que se cancele a sua inscrição como cooperadora e se invalide a autorização de transmissão de títulos de capital.
O artigo 86º do Código Cooperativo determina que “1 - Os títulos de capital só são transmissíveis mediante autorização do órgão de administração ou, se os estatutos da cooperativa o impuserem, da assembleia geral, sob condição de o adquirente ou sucessor já ser cooperador ou, reunindo as condições de admissão exigidas, solicitar a sua admissão.” (sublinhado nosso)
 Assim, tendo em conta que a 3ª Ré não era cooperadora, o que está em causa é a decisão sobre a sua admissão e não a simples transmissão de títulos de capital.
São questões diferentes, a admissão de um cooperador ou a transmissão de títulos de capital: nos termos como vem exposta a ação verifica-se circunstância que determinaria a inadmissibilidade da 3ª Ré ser cooperadora da 1ª Ré, e logo o que padece de vício é a decisão que a admitiu como cooperadora.
As cooperativas são organizações de natureza muito especifica, por a pessoa do cooperador e os vínculos pessoais entre este e a cooperativa ocuparem um papel primordial, dando-se mais relevo na letra da lei à participação na atividade cooperativizada que à participação financeira do sócio. Assim, a existência de títulos de capital em nome de alguém é uma condição necessária para a aquisição da qualidade de cooperador, mas não é suficiente.
Não está, pois, em causa a transmissão dos títulos de capital, mas a admissibilidade da 3ª Ré como cooperadora e a decisão sobre a sua admissão. A decisão, numa primeira linha, compete ao Conselho de Administração, nos termos do artigo 47º, alínea d), do Código Cooperativo. Mas a decisão sobre a impugnação dessa decisão cabe antes de mais à Assembleia Geral, como decorre, aliás, de forma inequívoca nos dizeres do artigo 38º, alínea k, do Código Cooperativo que explica que a Assembleia Geral funciona “como instância de recurso, quer quanto à admissão ou recusa de novos membros”.
Embora face ao anterior Código (existindo diferenças em pormenores do regime, algumas até salientadas pela Recorrente, mas mantendo-se os princípios fundamentais), veja-se o que se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto em 01/10/2011 no processo 4350/09.2TJVNF.P1: “I - Nos termos do art. 23° do Código Cooperativo a transmissão dos títulos de capital (que não sejam títulos de capital escriturais) depende sempre de prévia decisão dos órgãos da cooperativa, quer estejamos perante uma possível transmissão inter vivos, quer mortis causa. II - Essa autorização só pode ser concedida, quer ao adquirente numa transmissão inter vivos, quer aos herdeiros ou legatários no caso de sucessão mortis causa, sob a condição de qualquer deles já ser membro da cooperativa ou de, no caso de o não ser, pedir a respectiva admissão e vier a ser admitida, por os candidatos a cooperador reunirem as condições que para isso forem exigidas.”
Por aqui se não consegue dar razão à Recorrente, entendendo-se que há que aplicar a este casoo regime da admissão de cooperadores, sem recurso à analogia.
*
2- Se é possível recorrer diretamente para os tribunais da decisão do Conselho de Direção de uma Cooperativa que admite um Cooperador (sendo desnecessário o recurso prévio para a Assembleia Geral)
Para defender que o recurso a que alude o nº 3 do artigo 19º do Código Cooperativo (Lei n.º 119/2015) é meramente facultativo, a Recorrente pretende que se aplique a este caso a doutrina que foi suportada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2018, no processo 1148/16.5T8GRD.C1.S1, no sentido de que “A deliberação do conselho de administração de uma sociedade anónima é judicialmente sindicável, no que diz respeito à sua invalidade, sem necessidade de previamente a submeter ao controlo interno por reclamação para o próprio órgão ou para a assembleia geral.”
No entanto, a doutrina deste acórdão não tem aqui aplicação (nem sequer por analogia) face à diferente natureza das pessoas coletivas em disputa, a diferente natureza das questões em apreço e a falta de correspondência entre o teor das normas em questão.
Bastaria dizer que no regime cooperativo a questão da admissão de novos cooperadores tem um regime especificamente previsto, o que se não passava com a matéria em discussão no dito acórdão, mas deve-se concretizar um pouco mais.
Quanto á diferente natureza das pessoas coletivas (Cooperativas vs Sociedades Anónimas), são manifestos os diferentes interesses, normas e até princípios básicos que as regem.
Foquemo-nos nas especialidades das cooperativas que têm aqui mais relevo para verificar se há um verdadeiro interesse em que a decisão das questões relativas à admissão de cooperadores seja tratada em primeira linha pelo coletivo de cooperadores, no interior da própria cooperativa.
Juridicamente, há que salientar que nos termos do artigo 9.º do Código Cooperativo, para colmatar as suas lacunas, recorre-se em primeiro lugar à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, e só depois, verificando-se se não desrespeitam os princípios cooperativos, se pode apelar ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas.
Esta ressalva tem todo o interesse, por as cooperativas serem pessoas coletivas muito especiais que visam através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles (artigo 2º deste código), sujeitas a princípios de gestão muito próprios, relevando aqui o princípio da gestão democrática pelos membros, impondo a participação ativa de todos eles na formulação das suas políticas e na tomada de decisões, sendo não só direito, mas também dever dos cooperadores, participar nas assembleias gerais (artigo 3º, 2º princípio e artigo 22º, nº 2, alínea a), todos do Código Cooperativo).
Ora, este carregar nas relações interpessoais, de cooperação e entreajuda entre os seus membros, com o dever de participação nas assembleias gerais, é a representação da importância que o Código Cooperativo coloca na gestão dos interesses da cooperativa pelos seus órgãos e membros, com sujeição primordial aos princípios democráticos.
Só por isso não pode senão defender-se que neste tipo de pessoas coletivas quando os cooperadores pretendem fazer valer os seus direitos no que toca à decisão sobre a admissão de novos cooperadores devem primeiro procurar o funcionamento dos mecanismos democráticos internos à própria Cooperativa previstos para o efeito e só depois, quando tal não ocorre, é que podem recorrer à intervenção externa dos tribunais.
Quanto à diferente natureza das questões em apreço, há que ter em conta que a questão da admissão de cooperadores, face à sua especial importância, como vimos, tem no Código administrativo regulamentação especial que expressamente explica como pode agir quem se não conforme com a decisão da comissão.
O Código Cooperativo determina, no nº 1 do artigo 19º, que podem ser cooperadores, de uma cooperativa de 1.º grau, todas as pessoas que, preenchendo os requisitos e condições previstos no presente Código, na legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo e nos estatutos da cooperativa, o requeiram ao órgão de administração que as admita.
Impõe um prazo máximo supletivo, de 180 dias, no caso de os estatutos nada dizerem em contrário, para a tomada e comunicação da decisão ao candidato e esclarece que a decisão, em caso de recusa, deve ser fundamentada.
No nº 3 e 4 regula o modo e quem pode impugnar a decisão: “A decisão sobre o requerimento de admissão é suscetível de recurso para a primeira assembleia geral subsequente” e “Têm legitimidade para recorrer os membros da cooperativa e o candidato, podendo este assistir a essa assembleia geral e participar na discussão deste ponto da ordem de trabalhos, sem direito a voto.”
Com efeito, como vimos, é da competência da Assembleia Geral funcionar como instância de recurso, quer quanto à admissão ou recusa de novos membros, quer em relação às sanções aplicadas pelo órgão de administração (artigo 38º, alínea k), do Código Cooperativo).
E assim, encontrando-se regulado no Código Cooperativo a forma como deve, numa primeira linha, o membro da cooperativa ou o candidato impugnar a decisão sobre a admissão do novo cooperador, a mesma tem que ser seguida, sem possibilidade de recorrer diretamente aos tribunais da decisão não sindicada internamente, contra o processo legislado.
Com efeito, quando a lei afirma que “- A decisão sobre o requerimento de admissão é suscetível de recurso para a primeira assembleia geral subsequente”, está a estipular o modo como o candidato ou os cooperadores podem impugnar a decisão, tendo, aliás, em conta o modo democrático como se pretende que se reja a cooperativa, mediante a intervenção de todos os cooperadores.
Não se concorda, pois, com a ideia que “nada na letra da Lei permite concluir que se esteja perante uma espécie de recurso hierárquico necessário”, antes pelo contrário, esta norma diretamente afirma como se pode impugnar essa decisão.
Assim, não está em causa apreciar da suscetibilidade de impugnação judicial direta de uma qualquer deliberação do órgão de administração de uma sociedade anónima. Pretende-se, sim, apurar, se a lei permite que a decisão do órgão de administração de uma Cooperativa sobre a admissão de um novo cooperador pode ser impugnada nos tribunais independentemente da deliberação da assembleia geral da cooperativa sobre a matéria, enfim, sem se ouvirem para previamente os membros da cooperativa sobre a questão, impedindo-lhes a tomada da decisão sobre a impugnação em causa e a resolução da questão por via graciosa.
Caímos agora na discussão sobre a falta de correspondência entre o teor das normas em questão.
No artigo 19º, nº 3, do Cooperativo explicita-se como se pode impugnar a decisão sobre o requerimento de admissão afirmando-se diretamente que esta “é suscetível de recurso para a primeira assembleia geral subsequente.”
E, nos termos do artigo 32º, nº 6 do Código Cooperativo, “Das deliberações da assembleia geral cabe recurso para os tribunais.”
Por seu turno, no artigo 412º do Código das Sociedades Comerciais, (não obstante o proémio deste preceito, que dá voz ás doutrinas divergentes do critério seguido pelo acórdão em que a Recorrente se estriba) declara-se diretamente uma competência do próprio Conselho ou da Assembleia geral, afirmando-se quem tem legitimidade para a despoletar e o prazo para a exercer. Enfim, a forma como as normas estão construídas não são, em nada, semelhantes, podendo dizer-se que esta última norma não foi feliz caso pretendesse impor o procedimento a tomar por aquele que pretende arguir a invalidade de deliberações.
Enfim, quer os princípios específicos que regem as cooperativas, quer a forma como o Código Cooperativo regulou esta particular matéria, levam-nos a concluir, tal como a primeira instância, que o membro da cooperativa ou o candidato que pretenda impugnar a deliberação do conselho de administração da cooperativa sobre a admissão do novo membro tem de dela, de acordo com os estatutos e lei, recorrer para a assembleia geral, suscitando para o efeito a sua convocação, se necessário também pela via judicial.
Só pode recorrer para os tribunais judiciais, nessa matéria, da decisão da assembleia geral, visto que se encontra previsto que o modo para recorrer da decisão do conselho de administração é o recurso para a assembleia geral.
Entender-se que o que determina o artigo 19º, nºs 2 e 3, do Código Cooperativo, como a instituição de uma faculdade de impugnação da decisão para a Assembleia, a par da possibilidade da sua impugnação judicial, seria uma forma de desvirtuar o sistema cooperativo, por um lado, e por outro, permitir o recurso para o tribunal de decisões ainda não definitivas, por suscetíveis de recurso interno.
Enfim, a clareza do  Código Cooperativo quer no seu artigo 19º, nº 3, em estipular que “A decisão sobre o requerimento de admissão é suscetível de recurso para a primeira assembleia geral subsequente.” e bem assim das demais normas que o salientam: “Das deliberações da assembleia geral cabe recurso para os tribunais (artigo 32º, nº 6) e que a mesma funciona sempre como “instância de recurso, quer quanto à admissão ou recusa de novos membros, quer em relação às sanções aplicadas pelo órgão de administração” (artigo 38,º alínea K), sendo este funcionamento da sua “competência exclusiva”, mostra que no campo destas matérias o interessado tem que recorrer ao meio de defesa que a lei colocou em primeira linha à sua disposição e só após valer-se do direito de ação judicial contra atos que possa ser considerados praticadas pela Cooperativa de forma definitiva.

3- Da impossibilidade, no caso concreto, de recurso para a primeira assembleia geral subsequente
A Autora foi ouvida (e bem) na primeira instância sobre a necessidade de dar cumprimento ao disposto no artigo 19º, nº 3, do Código Cooperativo e, juntando documentos, veio invocar que o não podia ter recorrido à Assembleia Geral, visto que não teve conhecimento do caracter ilegal da admissão antes da assembleia geral subsequente (juntando documentos para o demonstrar).
Já em sede de recurso, vem acrescentar que tem dificuldade em obter a convocação de uma Assembleia Geral (embora não seja necessária a maioria que refere) e que teve dificuldades em que esta aceitasse a discussão da questão. Parece entender que todas estas eventualidades tornariam dispensável a sujeição da questão à Assembleia Geral, visto já ter decorrido a “Assembleia Geral subsequente” referida na lei.
No entanto, não se lhe pode dar razão: a assembleia subsequente em causa é a assembleia que se realiza imediatamente após a tomada da decisão ou, não tendo os membros conhecimento desta, nem possibilidade de delas tomar conhecimento utilizando uma diligência normal, a subsequente ao momento em que se encontravam à disposição do impugnante os meios suficientes e adequados para tomar conhecimento do ato e da sua ilegalidade. De outro modo estaria encontrada a forma de desvirtuar o sistema legal.
 A impossibilidade de colocar a questão à Assembleia Geral que se seguiu à decisão implica que tenha que ser levada á Assembleia Geral seguinte, não que se saltem passos no procedimento legal para a impugnação da decisão, dirigindo-se diretamente para os Tribunais, como se a lei não exigisse que a impugnação fosse efetuada para a assembleia geral e só a decisão desta impugnada no tribunal.
Veio agora a Recorrente invocar novos factos a acrescentar ao que já havia invocado anteriormente, o que como é bem-sabido é inadmissível.
No entanto, sempre se dirá que a eventual existência de impedimentos ilegais que estejam a dificultar o recurso para a Assembleia Geral, ou a aflorada dificuldade na sua convocação, não determinam que esta deixe de ter a exclusiva competência de apreciar numa primeira linha a impugnação da decisão, mas que se tenha pelos meios próprios que resolver os problemas do funcionamento desse órgão, nomeadamente, sendo disso caso, pelo meio previsto no artigo 1057º do Código de Processo Civil ou pelo recurso das decisões da Assembleia Geral.
Há que distinguir as águas: as dificuldades em conseguir a convocação da Assembleia Geral ou que esta cumpra as suas funções não se confunde com a impugnação da decisão de admissão de cooperante tomada, não pela Assembleia, mas pelo Conselho de Administração. É possível recorrer, como vimos, em primeira linha, das decisões (ou recusa em decidir) da Assembleia Geral, não da decisão do Conselho que admitiu um cooperante.
Este entendimento, de que a parte, se não teve a possibilidade de saber anteriormente da ilegalidade do ato, deve recorrer para a Assembleia Geral da Cooperativa seguinte ao do seu conhecimento ou convocar uma, mesmo que tenha no ínterim tido lugar a reunião da Assembleia Geral, resulta dos princípios gerais: como bem afirma a Recorrente, “De outro modo estaria encontrada a forma de o conselho de administração admitir cooperadores de forma ilegal, inviabilizando qualquer hipótese de reação por parte dos demais cooperadores. Bastaria escamotear a informação sobre tal matéria”.
Assim, carece de razão a Recorrente ao afirmar que estava dispensada de recorrer para a assembleia geral nos termos do artigo 19º, nº 3, do Código Cooperativo, por já se ter realizado uma Assembleia Geral no entretanto que não apreciou a questão ou não lograr obter a maioria necessária para convocar a Assembleia Geral.

V- Decisão

Por todo o exposto, julga -se a apelação improcedente e em consequência mantém-se a sentença proferida.
Custas da apelação pela apelante. (artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 29-02-2024

Sandra Melo
Elisabete Coelho de Moura Alves
José Manuel Flores