Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
615/11.1TAVCT.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
ASSISTENTE
FACTOS
DOLO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/28/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.
II) O juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
III) O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I-RELATÓRIO
No processo nº615/11.1TAVCT do 2ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, a assistente Joana V... veio interpor recurso do despacho do Mmo.Juiz, constante fls.220 a 222, que rejeitou liminarmente o requerimento para abertura da instrução que apresentara.
Inconformada com a decisão, a assistente interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
A) Vai mal o douto despacho a quo ao considerar a abertura de instrução legalmente inadmissível nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do CPP
B) O Requerimento de Abertura de Instrução, formulado pela assistente, tem duas partes: uma (constituída pelos pontos 1, 2 e 3) em que são expostas as razões de discordância relativamente à decisão de não acusar; a outra (constituída pelo ponto 4) em que o assistente narra os factos que integram o crime conforme supra transcrito no artigo 10.º das presentes alegações de recurso
C) Alegar tal como alegou a Assistente ora recorrente nos artigos 17.º a 35.º do seu Requerimento de Abertura de Instrução, consubstancia um quadro factual que contem a narração, sintética, dos factos que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena em respeito pelos valores essenciais no processo penal, como a delimitação inequívoca do objecto do processo penal ou a definição da extensão do caso julgado.
D) O requerimento para abertura de instrução define o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação
E) Ao nível do tipo subjectivo terá de se considerar que o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pela Assistente ora recorrente não impossibilita a delimitação do objecto do processo, nem a compreensão por parte dos arguidos da actividade criminosa que lhes é imputada.
F) O despacho a quo ao considerar que a instrução é inadmissível padece de erro nos pressupostos de facto e viola o preceituado nos artigos 68.º n.º 3 alínea b) e 287.º n.os 1 alínea b), 2 e 3
G) A não admissão por inexequibilidade nos termos do n.º 3 do artigo 287.º do CPP do Requerimento de Abertura de Instrução do assistente viola o estatuto processual, bem como a garantia de acesso ao direito do ofendido/assistente ofendendo os direitos ínsitos nos artigos 20.º e 32.º n.os 4 e 7 da CRP
SEM CONCEDER,
H) Tendo em consideração que se trata de um Requerimento de Abertura de Instrução que permite a delimitação do objecto do processo para efeitos de delimitação temática, e a compreensão por parte dos arguidos da actividade criminosa que lhes é imputada para efeitos de exercício das garantias de defesa – Caso se considerasse que o Requerimento de Abertura de Instrução padece de deficiências sempre teria o Juiz de Instrução Criminal, no âmbito dos seus poderes de investigação autónoma estabelecidos pelo n.º 4 do artigo 288.º do CPP de notificar o Assistente para proceder ao esclarecimento dos elementos alegadamente dúbios [sob pena de se violar o Estatuto do Ofendido/ Assistente tal como delimitado pelos artigos 20.º e 32.º n.º 7 da Constituição da Republica Portuguesa e 68.º e seguintes do CPP].
O Ministério Público na 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.240 a 243].
Admitido o recurso e fixado o seu efeito, foram os autos remetidos ao Tribunal da Relação.
Nesta instância, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que se pronunciou no sentido de que o recurso não merece provimento [fls.267 a 268].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
É do seguinte teor o despacho recorrido:
“I - A presente instrução foi requerida pela assistente Joana V... que não se conformou com o douto despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público após ter denunciado e apresentado queixa contra “C..., Lda” e Duarte C..., imputando-lhe factos susceptíveis de, na sua óptica, integrarem a prática de crime.

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II - O Tribunal é competente.
O Ministério Público dispõe de legitimidade.
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III - A presente instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento - art. 286, n.º 1, CPP.
A instrução não constitui uma mera repetição do inquérito, nem uma antecipação do julgamento, mas sim e apenas uma instância de controle judicial da verificação da existência ou inexistência de indícios suficientes da prática de um crime.
A instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação - art.- 287, n.º 1, b) CPP.
O requerimento de abertura de instrução deve conter, nos termos do n.º 2 do art. 287, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283, n.º 3, alíneas b) e c).
O requerimento de abertura de instrução deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; bem como as disposições legais aplicáveis.
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IV - A estrutura acusatória do processo criminal, imposta a nível constitucional, implica que o conhecimento do Tribunal esteja limitado pelo objecto processual.
O objecto processual penal começa por ser inicialmente delimitado, ainda que com grande flexibilidade, pela denúncia.
Posteriormente, o objecto processual será definitivamente delimitado pela acusação ou, em caso de arquivamento, pelo requerimento de abertura de instrução (Vide, por todos, ISASCA, Frederico - Alteração substancial dos factos e sua relevância no processa penal português, Coimbra, 1992, pp. 174 e ss.).
A instrução é, assim, concebida pela lei adjectiva como uma instância de controlo e não como uma instância de investigação.
O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação em sentido material (Vide Ac. RP 5.5.93, CJ III, 243; RC 24.11.93, CJ V, 61; RE 14.4.95, CJ I, 280; RL 20.5.97, CJ III, 143).

O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do Ministério Público.
O requerimento de abertura de instrução formulada pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo Ministério Público) que, dada a divergência com a posição assumida pelo Ministério Público vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial (Vide MARQUES DA SILVA, Germano - Do processa penal preliminar, p. 264).
Se o assistente requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre o qual recairá a actividade do juiz de instrução, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz fica sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados (Vide SOUTO MOURA - Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, p. 120; Ac RP 19.2.97, BMJ 472, p. 585).
Em virtude do princípio da vinculação temática, a partir da abertura da instrução, só é possível alterar ou ampliar o objecto processual através do instituto jurídico da alteração dos factos, segundo o qual, em sede de instrução, apenas é admitida uma alteração não substancial dos factos enunciados no requerimento de abertura de instrução, estando completamente afastada a possibilidade duma alteração substancial desses factos – art. 303 CPP.
A confirmar tudo o que se vem dizendo, a lei adjectiva prescreve, no art. 309, n.º 1, que "a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura de instrução".

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V - Analisando o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que o mesmo está longe de constituir uma acusação alternativa susceptível de ser integralmente confirmada em sede de pronúncia e ulteriormente submetida a julgamento.

A assistente impugna o despacho de arquivamento e a respectiva fundamentação, a analisar alguns meios de prova produzida, referindo a necessidade de averiguar alguns pontos da matéria de facto e chamando a atenção para outros que não foram considerados, sem indicar os factos concretos que deverão figurar, de forma coerente e unitária, de uma eventual decisão instrutória de pronúncia.
Em lado algum se vislumbra a dita “acusação” com as limitações de descrição temporal, espacial e nominativa à mesma inerentes.
Na verdade, não se vislumbra factualmente a autoria da falsificação e, em especial, a intenção com a qual o arguido determinou a sua acção, agiu de determinado modo (elementos subjectivo).
Conforme decidiu o Ac TRC, Desemb. Jorge Jacob, de 30 de Setembro de 2009, p. 910/08.7TAVIS.C1, in www.dgsi.pt, “… são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Tanto assim que, como afirma Figueiredo Dias … “também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado.” Ou seja:
- Os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos …
- Os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronuncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).”
Conforme já referido a assistente, no seu douto requerimento de abertura de instrução, não contemplou na narração dos factos a totalidade daqueles elementos.
Assim, sem uma acusação alternativa não se pode abrir a fase processual da instrução (Vide Ac RE 13.1.98., BMJ 473, 586; Ac RP 23.05.01, p. n.º 0110362, 362/01, 1ª secção, in CJ ano XXVI, t III, pág 238; Ac RP 13.06.0l, p. n.º 0110352, 352/01, 1ª secção; Ac TC 27/2001, Proc. n.º 189/00, in DR II série, n.º 70 de 23 de Março de 2001, pág. 5265; Ac RP 04.04.01, p. n.º 0110047, 047/01, 1ª secção; Ac RG de22 /11/04, proferido no âmbito do P. n.º 157/03.9PBVCT deste 2º Juízo Criminal; Acórdão do STJ n.º 7/2005 (DR I-A, de 4 de Novembro de 2005).

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VI - Pelas razões expostas, importa concluir que o requerimento de abertura de instrução em apreciação é nulo e este vício processual, à semelhança do que sucede com a nulidade da acusação, na fase preliminar do julgamento, é de conhecimento oficioso e determina a rejeição liminar do requerimento de abertura de instrução por a lei não admitir instrução sem objecto processual.
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VII - Porquanto, em função do expendido, julgo nulo o requerimento de abertura de instrução e rejeito-o liminarmente.
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Custas do incidente pela assistente, com taxa de justiça fixada no mínimo legal.
Notifique.
Registe e deposite.
Oportunamente, arquivem.”
Transcreve-se ainda parcialmente o requerimento de abertura da instrução quanto ao ponto IV, referente à questão dos indícios suficientes e da decisão a proferir, porque relevante para apreciação do recurso:
17.
A Assistente, desde Fevereiro de 2009 e designadamente à data dos factos, exercia funções nos Serviços Financeiros da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, EPE (doravante designada de ULSAM), como responsável pela gestão de contas a pagar a fornecedores.
18.
No exercício da suas funções, e tendo por base os contratos de factoring que a C..., Lda. tinha com a Caixa Geral de Depósitos, era função da Assistente proceder à confirmação das facturas a pagar, assinando e carimbando os pedidos de confirmação.
19.

Nos contratos de factoring, existem duas formas para que se proceda à confirmação das facturas para o respectivo pagamento:
o cliente (fornecedor) entrega as facturas nos serviços financeiros da ULSAM, e estes passam uma declaração a confirmar as facturas, declaração essa com o carimbo da ULSAM aposto e assinadas (rubricadas) pela Dra. Joana V... – “modelo” nunca adoptado pela ULSAM.
ou, o cliente entrega a factura na Caixa Geral de Depósitos, que a remete para a Caixa Leasing e Factoring, SA, enviando esta entidade um fax para os serviços da ULSAM para que confirmem a mesma, confirmação essa feita com a aposição do carimbo da ULSAM e assinatura (rubrica) da Dra. Joana V... – “modelo” adoptado pela ULSAM.
20.
Sucede que, no dia 20 de Setembro de 2010, a Dra. Joana V..., ora Assistente, na sequência de um contacto efectuado pelo balcão da CGD sito em Viana do Castelo (Avenida), foi confrontada com um fax – já junto aos autos com a queixa-crime -, alegadamente emitido pela Caixa Leasing e Factoring, SA.
21.
O referido fax tinha por base as facturas de uma sociedade comercial “C..., Lda.”, com quem a ULSAM tinha relacionamento comercial.
22.
No âmbito da relação comercial existente entre as partes, era habitual a C..., Lda. apresentar no balcão da CGD uma lista com as facturas já vencidas sobre a ULSAM,
23.
sendo essa mesma lista enviada para a ULSAM para confirmação, nos moldes supra referidos, e dessa forma o banco adiantava o dinheiro devido pela facturas.
24.
Nessa sequência e no dia supra referido a entidade bancária contactou a Dra. Joana V... para que esta efectuasse a confirmação de umas alegadas facturas para que as mesmas pudessem ser pagas,
25
já que, ainda que alegadamente estivessem rubricadas pela Dra. Joana V..., a verdade é que o carimbo que nesse fax se encontrava aposto, para confirmação de facturas, era um carimbo da própria Dra. Joana V... e não da ULSAM, como normalmente sucedia, bem como o normal não era a C..., Lda. apresentar a lista de facturas em divida já carimbada e rubricada.
26.
Face à estranheza que a situação lhe causou, a Dr.ª Joana V... pediu à Caixa Geral de Depósitos que lhe fosse enviado por fax o documento que aquela havia recebido.
27.
Ora, quando a Dra. Joana V... vê o fax, facturas nele inclusas, e respectiva rubrica e carimbo, de imediato verifica que a rubrica e carimbo apostos nesse fax não eram os seus.
28.
Ou seja, nem a rubrica aposta nesse fax tinha sido aposta por si e pelo seu próprio punho,
29.
Nem mesmo o carimbo aposto no fax era o seu, conforme se pode contactar de acordo com o Doc. n.º 2 junto com a queixa-crime,
30.
Sendo certo que, o carimbo a apor na carta (fax) de confirmação de factoring costuma ser o da ULSAM,
31.
Motivo pelo qual, como se disse, levou à confirmação telefónica por parte da CGD junto da Dra. Joana V... se as facturas deveriam considerar-se confirmadas ou não,
32.
Sendo a única razão pela qual tais facturas não foram pagas, pois de imediato, se cancelou o pagamento de todas as facturas pendentes.
33.
Isto porque, não só a rubrica e carimbo apostos naquele fax que elencava diversas facturas, são falsos,
34.
Como também, algumas das facturas, a saber n.º 1310, 1322 e 1342 que estavam inclusas nessa elencagem, não correspondiam a quaisquer serviços que tivessem sido prestados pela C..., Lda. à ULSAM.
35.
Pelo que, não só não eram devidas, como também não existiam.
36.
Por tudo o supra exposto, pode-se retirar as seguintes conclusões: a rubrica e carimbo aposto naquele fax, são falsos; houve uma clara intenção de se obter um beneficio ilegítimo; a beneficiária desta falsificação, caso as facturas tivessem sido pagas, seria a C..., Lda.
37.
A C..., Lda. teria manifestas vantagens na falsificação das facturas ora em questão,
38.
pois com a confirmação das facturas a instituição bancária pagaria à C..., Lda, ainda que tais facturas e consequente dívida não existisse,
39.
sendo que, após esta situação, e quando o arguido Duarte foi às instalações da ULSAM e sendo confrontado com a referida situação, acabou por dar a entender que tinha sido ele a falsificar a assinatura e carimbo.
40.
razão pela qual, por tudo o exposto, mostram-se os autos suficientemente indiciados da prática de um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. b), c) e d) do Código Penal, por parte da C..., Lda. (artigo 11.º, n.º 2, do CPenal) e pelo arguido Duarte.

Apreciação
De harmonia com o disposto no nº 1 do art. 412.º do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só cabendo ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo daquelas que cumpra conhecer oficiosamente.
Nestes autos, são as seguintes as questões suscitadas:
1-o requerimento para abertura da instrução cumpre os requisitos exigidos pelo art.287.º n.º1 al.b) e n.º2 do C.P.Penal?
2-o despacho recorrido viola o disposto nos arts.20.º e 32.º n.º4 e 7 da CRP?
3-caso se entenda que o RAI padece de insuficiências, devia a recorrente ter sido convidada a aperfeiçoá-lo?
*
1ªquestão
O art. 286.º n.º1 do C.P.Penal dispõe que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Por sua vez, o art. 287.º n.º1 do C.P.Penal estabelece, na parte que ora importa: «A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) (...)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.(…)»
E o n.º2 do mesmo artigo prevê que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º. (…)»
Sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, ao respectivo requerimento, por força da parte final do citado art.287.º n.º2, é aplicável o disposto no art. 283.º, n.º 2, alíneas b) e c), ambos do C.P.Penal, o que significa que tem de conter, sob pena de nulidade:
- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
- a indicação das disposições legais aplicáveis.
Daí que a falta das exigências previstas na 2ª parte do art. 287.º, torna nulo o requerimento para abertura da instrução (art. 287.º, n.º 2 segunda parte, 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 118.º, n.º1, todos do .P.Penal).
Estabelecendo o n.º2 do art. 287.º do C. P. Penal que ao requerimento do assistente é aplicável o disposto no art. 283.º, n.º3, als. b) e c) e sendo esta norma aplicável ao requerimento de abertura de instrução, este deve conter uma verdadeira acusação, já que tal requerimento fixa o objecto do processo, delimitando a actividade investigatória do juiz de instrução.
Esta exigência de que o requerimento do assistente para abertura da instrução conforme uma acusação decorre da estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo art. 32.ºn.º5 da CRP, impondo que o objecto do processo seja fixado com rigor em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução.
Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido nos arts.303.º n.º3 e 309.º n.º1, ambos do C.P.Penal, que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para abertura da instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no n.º1 desse art.303.º.
O entendimento de que o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência, salientando-se, entre muitos, Ac.R.Guimarães de 14/2/2005, in Colectânea de Jurisprudência, 2005, Tomo I, pag.299/300, Ac.R.Évora de 3/12/2009, in www.dgsi.pt/jtre, Ac.R.P. de 20/1/2010, in www.dgsi.pt/jtrp, Ac.STJ de 25/10/2006 e 12/3/2009, in www.dgsi.pt/jstj.
No caso dos autos, a assistente, ora recorrente, pretendia que os arguidos “Casa Viana – Planos, Projectos e Construções, Lda.” e Duarte C... fossem pronunciados por um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art.256.º n.º1 al.b), c) e d) e 11.º n.º2, ambos do C.Penal, conforme consta do requerimento para abertura da instrução, pelo que lhe cabia a narração dos factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos desse tipo legal.
Analisado o RAI, a assistente impugna o despacho de arquivamento, explanando a situação já descrita na queixa que apresentou e daí extrai as conclusões que verte no ponto 37 [a) a rubrica e carimbo aposto naquele fax, são falsos; b) houve uma clara intenção de se obter um benefício ilegítimo; c) a beneficiária desta falsificação, caso as facturas tivessem sido pagas, seria a C..., Lda.], no ponto 38 faz uma mera suposição [A C..., Lda.”teria manifestas vantagens na falsificação das facturas], e no ponto 40 uma afirmação inócua que não integra um verdadeiro facto [quando o arguido Duarte foi às instalações da ULSAM e sendo confrontado com a referida situação, acabou por dar a entender que tinha sido ele a falsificar a assinatura e carimbo].
Não há, porém, uma descrição precisa e completa dos factos que a assistente pretende vertidos no despacho de pronúncia em termos de configurar uma acusação, sendo que não cabe ao juiz compor ele próprio uma acusação, respigando aqui um segmento de frase e outro além; acresce que do RAI não consta o autor material da falsificação [o ponto 40 do RAI, como supra aludido nada traduz, pois é irrelevante afirmar que o arguido deu a antender que tinha sido quem falsificou a assinatura e o carimbo] nem relativamente a este os elementos subjectivos da infracção.
«São precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito), que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira.(…) Num crime doloso – só esse interessa tratar aqui – da acusação ou da pronuncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso), e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).» – Ac.R.Coimbra de 30/9/2009, proc. 910/08.7TAVIS, relatado pelo Desembargador Jorge Jacob, disponível in www.dgsi.pt e citado na decisão recorrida
Não contendo o requerimento da assistente a descrição dos necessários elementos objectivos e subjectivos do crime de falsificação de documento que imputa aos arguidos, os factos narrados não integram qualquer ilícito criminal e como tal nunca poderia ser proferido despacho de pronúncia.
Acresce que o juiz não pode substituir-se ao assistente, colocando por iniciativa própria os factos em falta referentes aos elementos objectivos e subjectivos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal e do direito de defesa do arguido.
Por outro lado, contrariamente ao pretendido pela assistente, não se pode inferir da materialidade objectiva, o elemento dolo, pois tal traduzir-se-ia numa presunção de iure do dolo, o que é inadmissível. Uma coisa é a alegação dos factos (no caso concreto relativos aos elementos subjectivos) e outra, diferente, é a respectiva prova. O facto do dolo poder ser provado com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da experiência comum, não significa que se possa dispensar a respectiva alegação.
Em conclusão, bem andou o Mmo.Juiz ao rejeitar o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente.
2ªquestão
Entende a recorrente que a não admissão do RAI nos termos decididos no despacho recorrido viola a garantia de acesso ao direito consagrado no art.20.º da CRP assim como as garantias do processo criminal consagradas no art.32.º n.º4 e 7 da CRP.
A exigência de que o RAI formulado pelo assistente configure uma acusação, com a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis não se traduz num mero formalismo, decorrendo antes da necessidade da delimitação inquívoca do objecto do processo face à estrutura acusatória do processo penal consagrada no art.32.º n.º5 da CRP.
O direito da assistente aceder à justiça e de intervir no processo em momento algum foi posto em causa, inserindo-se a oportunidade de requerer a abertura de instrução face ao arquivamento do inquérito e de recorrer para a 2ª instância da decisão que lhe indeferiu esse requerimento, nesses direitos. Se o requerimento para abertura da instrução foi indeferido é apenas imputável à assistente, representada por advogado [art.70.º nº1 do C.P.Penal], que não deu cumprimento às exigências legais.
Assim sendo, também soçobra este fundamento do recurso.
3ªquestão
Sustenta a recorrente que sempre o Mmo.Juiz a quo, caso entendesse que a narração dos factos era insuficiente, deveria convidá-la a aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução.
Mais uma vez não assiste razão à recorrente.
Com efeito, de acordo com a jurisprudência fixada no Ac. nº 7/2005 do STJ, DR, I-Série A, de 4/11/2005 «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287º, nº 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
E nem se diga que o acórdão de fixação de jurisprudência não é aplicável ao caso em apreço, pois o mesmo apenas se refere à ausência total da narração de factos e, no caso, apenas há uma insuficiente narração.
A jurisprudência fixada pelo Ac. nº7/2005, tem por base o entendimento, aliás já anteriormente assumido pelo Tribunal Constitucional [v., entre outros, Ac.TC nº27/2001, de 30/1/2001, nº358/2004, de 19/5/2004 e nº389/2005, de 14/7/2005, in www.tribunalconstitucional.pt], que o convite ao aperfeiçoamento contendia com o princípio constitucional das «garantias de defesa do arguido», consagrado no art.32.º n.º1 da CRP
Com efeito, a apresentação do requerimento da assistente para abertura da instrução para além do prazo estabelecido no art.287.º do C.P.Penal violaria as garantias de defesa do arguido, pois «o estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução – prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido», in Ac.TC nº27/2001, supra citado.
Sendo este o motivo fulcral que justifica não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento, a jurisprudência do Ac.nº7/2005 é aplicável não só aos casos em que há total omissão da narração dos factos, como quando a omissão é parcial, uma vez que a questão de fundo é a mesma: o convite ao aperfeiçoamento contende com o princípio constitucional das «garantias de defesa do arguido».
Improcedem, pois, todos os fundamentos do recurso.
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III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários)

Guimarães, 28/5/2012