Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
264/15.5T8MAC.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO
CONVERSÃO DO NEGÓCIO
CONTRATO-PROMESSA
FORMA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
VENDA DE COISA FUTURA
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA ALHEIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O negócio nulo por carecer da forma legal “pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade” (art.º 293º do CC).

II - Sendo inequívoco que o autor queria vender e o réu queria comprar, o fim por estes prosseguido permite supor que teriam querido comprometer-se na celebração desse negócio, isto é celebrar contrato promessa de compra e venda.

III - Por força do princípio da equiparação, os elementos essenciais do contrato-promessa de compra e venda são: a identidade dos sujeitos, a coisa a transmitir e o preço (artºs 410º e 874º do C. C.).

IV - Do documento junto aos autos, interpretado de acordo com o disposto no nº 2 do art.º 238º do CC, uma vez que conhecemos a vontade real das partes, resulta que autor e réu se quiseram obrigar, respectivamente, a vender e a comprar, coisa imóvel, pelo preço de €60.000, sendo metade desse valor entregue na data da sua celebração, como pagamento inicial, e o restante a ser pago no acto da escritura.

V - Assim, o contrato de compra e venda, nulo por falta de forma legal, pode ser convertido em contrato promessa de compra e venda, por a tanto não se oporem exigências de forma, visto que o documento escrito junto aos autos as satisfaz minimamente.

VI - O facto de o autor não ter legitimidade para vender o prédio ou parte indivisa dele, quinhoando apenas na herança indivisa, não acarreta “ipso facto” a nulidade do negócio, atento o disposto nos artºs 880º, 893º e 408º nº 2 do CC (coisa futura).

VII - Acresce que a disposição do art.º 892º do Código Civil (é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar) não é extensível ao contrato-promessa, sendo considerado válido o contrato-promessa de compra e venda de coisa alheia, pois “nada obsta a que o promitente se vincule a alienar uma coisa que não tem legitimidade ou capacidade para alienar, uma vez que sempre pode adquirir, entretanto, essa capacidade ou legitimidade”- Ac. do STJ de 23.9.2004 (04B2296).

VIII - Mesmo que a promessa de venda implicasse a divisão material e jurídica do prédio, nomeadamente por meio de “destaque”, e que tal divisão contrariasse norma legal imperativa, tal não invalidaria o contrato promessa, traduziria quando muito a impossibilidade objectiva do seu cumprimento, que é algo de que aqui não se cura, pois a obrigação que o autor pretende extinguir não é a que emana do contrato, mas da sua nulidade.

XIX - De qualquer forma não se pode afirmar que o objecto mediato de tal contrato, nesta hipótese configurada na sentença, seja física ou legalmente impossível ou contrário à lei, porquanto o art.º 1377º nº 3 do CC permite o fraccionamento de prédios rústicos em parcelas de área inferior à da unidade de cultura, quando se destinem a construção, propósito que o próprio réu manifestou.

XX - Não ocorre o invocado pressuposto da consignação em depósito (art.º 919º nº 1 al. a) do CPC), uma vez que a obrigação de restituição invocada pelo autor, decorreria da nulidade do negócio – art.º 289º nº 1 do CC – ou da ausência de causa justificativa para o recebimento da quantia, o que não se verifica.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES



I – RELATÓRIO

A intentou acção especial de consignação em depósito contra L, pedindo que se fixe um prazo para que o requerente consigne judicialmente a quantia de €30.000,00, após o que deverá ser citado o requerido para, querendo, contestar, seguindo-se os ulteriores termos e, a final, que se declare extintas todas e quaisquer obrigações que estiveram na base do recebimento da quantia de €30.000,00.

Para o efeito, alegou que existe um prédio rústico pertencente à herança aberta e indivisa por óbito de P e esposa A, da qual é herdeiro, sendo que alguns dos seus herdeiros acordaram na sua divisão, ficando uma parte para os herdeiros testamentários e a outra parte para os herdeiros legítimos.

Em seu nome, e de forma verbal, vendeu metade daquele prédio ao requerido pelo preço total de €60.000,00, recebendo logo a quantia de €30.000,00.

No entanto, os herdeiros testamentários vieram alegar que a partilha do prédio não estava feita e como não existe documento autêntico nem equivalente onde se materialize o acordo de todos os interessados sobre a partilha da referida herança, não pode prosseguir com a venda.

Alega que pretende livrar-se da referida quantia de €30.000,00, entregando-a ao requerido, já que a tem em seu poder, sem qualquer causa justificativa, sendo evidente concluir-se que, mais cedo ou mais tarde, deverá restituir-lha, dado que as nulidades de que enferma o negócio entre ambos estabelecido são demasiado evidentes.

Já propôs ao requerido essa entrega, mas este não se disponibilizou a recebê-la.

*

Fixou-se o prazo para o requerente consignar em depósito a quantia em causa.
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Citado, o requerido apresentou contestação, alegando que o requerente, por si e em representação dos seus sobrinhos, vendeu, ou, pelo menos, prometeu vender ao requerido metade indivisa do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, pelo preço de €60.000,00, tendo, nesse acto, recebido do requerido a quantia de €30.000,00, sendo o remanescente valor pago no acto da escritura.

O requerente, no entanto, interpelado sobre a celebração da escritura, dizia que faltavam algumas procurações dos herdeiros que representava e que dentro de pouco tempo poderia outorgar a competente escritura.

O requerente teve todo o tempo para finalizar a partilha do prédio, só não o fez porque não diligenciou nesse sentido, isto é, não promoveu, nem requereu a partilha amigável ou forçada embora o pudesse fazer.

O requerente era devedor de entregar o prédio e, por sua vez, o requerido era devedor da prestação em falta, estando, por isso, a usar indevidamente a consignação em depósito. Faz uma entrega de coisa diferente da que está obrigado.

Com esse fundamento, deduziu reconvenção peticionando a prolação de sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, declarando e reconhecendo o requerido como proprietário de metade indivisa do prédio rústico em causa por compra ao requerente e demais contitulares do direito de propriedade que são os herdeiros testamentários de M e P.

Em alternativa, peticionou a condenação do requerente a restituir ao requerido a quantia de €60.000,00, correspondente ao dobro da quantia entregue ao requerente, que classifica como sinal, acrescida de juros de mora desde a data do incumprimento do contrato até integral pagamento.

Em requerimento autónomo requerereu a intervenção dos herdeiros testamentários de M e P, alegando que permanecendo o prédio por partilhar entre todos os herdeiros, torna-se imperiosa a intervenção de todos para que o requerido possa recorrer à execução específica do contrato, de modo a obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.


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O requerente replicou, arguindo a inadmissibilidade da reconvenção.

Mais impugnou a matéria da contestação/reconvenção, nomeadamente, a celebração de um contrato promessa.

Pede a condenação do reconvinte em multa e indemnização, por litigar de má-fé.

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O requerido veio pugnar pela admissibilidade do pedido de intervenção, por estarmos perante um caso de litisconsórcio necessário. Mais defende que o documento subscrito pelo requerente consubstancia uma promessa unilateral de venda, válida, porque corresponde à real vontade das partes intervenientes.
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O pedido reconvencional não foi admitido, ficando prejudicado o conhecimento do pedido de intervenção de terceiros.

Designou-se data para realização de audiência prévia, por se ter entendido que estavam verificados os pressupostos para o conhecimento do mérito do pedido.

O requerido interpôs recurso do despacho que não admitiu o pedido reconvencional, recursoesse que não foi admitido.

Realizou-se audiência prévia, tendo-se nela, entre o mais, discutido as posições das partes e as várias soluções de facto e de direito plausíveis para o litígio.

*Proferiu-se saneador sentença em que se decidiu:

«A. julgar procedente a presente ação especial, e, consequentemente, em face da consignação em depósito da quantia de €30.000,00, declaramos extinta a obrigação a cargo do requerente de restituição ao requerido da referida quantia;
B. julgamos improcedente o pedido de condenação do requerido/reconvinte como litigante de má-fé.»

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Inconformado o requerido interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

I - O réu quando negociou com o autor a compra (de metade) do prédio que este identifica na declaração por si subscrita e assinada ficou convicto de estava a negociar a compra da terra com o seu legitimo proprietário.
II – Quando o réu preencheu, assinou e entregou o cheque nº , no valor de 30.000,00 euros, ao autor ficou convicto que estava a sinalizar a compra do prédio identificado na declaração subscrita pelo autor.
III – Autor, através da declaração por si subscrita e assinada na folha com a fotocópia do cheque, deu forma escrita ao contrato de venda.
IV – O réu ao preencher, assinar e entregar o cheque já referido ao autor ficou convicto que tinha sinalizado a compra do prédio identificado na declaração subscrita e assinada pelo autor.
V – A declaração subscrita e assinada pelo autor na folha com a fotocopia do cheque identificou, implicitamente o comprador (o emitente do cheque), identificou o prédio (rústico artigo 1º, sito nos Soares, freguesia de Lombo), identificou o valor da venda (60.000,00 euros) e referenciouque no ato da escritura (o que dá para antever que a escritura iria ser outorgada) seria pago a diferença do preço.
VI – Esta declaração corresponde a um documento escrito nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, 2 do Código Civil.
VII – Na compra e venda de prédios – bens imóveis – a lei exige para a sua validade a celebração da escritura pública ou a elaboração de documento particular autenticada – artigo 875º do Código Civil.
VIII – A declaração subscrita e assinada pelo autor foi entregue ao seu destinatário – o réu – pelo que, uma vez em seu poder e com o conhecimento dela – atinge a sua eficácia negocial – artigo 224º do Código Civil.
IX – A declaração subscrita e assinada pelo autor, uma vez em poder do seu destinatário e por ele aceite, deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes que teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso – artigo 239º do Código Civil – sendo presumível, em conformidade com a vontade quer do autor quer do réu que o documento então assinado obrigava ambas as partes.
X – A declaração subscrita e assinada na fotocópia do cheque, corresponde, embora de uma forma imperfeitamente expresso, a uma verdadeira promessa de compra e venda, obrigando-se o autor a vender a propriedade pelo preço de 60.000,00 euros facto, perfeitamente aceite pelo réu.
XI – O autor obrigou-se com o réu a vender-lhe a propriedade, perfeitamente identificada no documento escrito, pelo preço de 60.000,00 euros (aceita o réu que seja só metade).
XII – A obrigação que existia e existe entre autor e réu, na sequência desse negócio celebrado entre ambos, era escriturar-lhe o prédio.
XIII – Por sua vez o réu obrigou-se a comprar-lhe o prédio pelo preço de 60.000,00 euros.
XIV – O autor sabia e sabe que, na sequência do negócio que celebrou com o réu, não o querendo cumprir terá que lhe devolver o sinal em dobro.
XV – O documento subscrito pelo autor tem a forma escrita e corresponde à vontade real de ambas as partes – autor e réu.
XVI – Não querendo o autor cumprir o negócio que celebrou com o réu não pode recorrer à consignação em depósito como forma de extinguir a obrigação.
XVII – Os pressupostos da consignação em depósito, consignados no artigo 841º do Código Civil, no caso concreto não subsistem porque não se verifica a mora do credor (réu) alegada na alínea
b) do citado artigo e se há por parte do autor impossibilidade de efetuar a prestação devida, segundo ele alega, de entregar o prédio ou celebrar a escritura ou documento particular autenticado a culpa é única e exclusivamente sua.
XVIII – A atitude do autor em recorrer à consignação em depósito como forma astuta e temerária como forma de extinguir a obrigação que assumiu com o réu, revela um comportamento doloso.
XIX – Consequentemente o depósito feito não pode ter a sorte que a Mº Juíza lhe ditou – extinção a obrigação.
XX – Não pode a Mª Juíza, em sede de despacho saneador/sentença dar como assente factos que foram expressamente impugnados pelo réu e nenhuma prova foi produzida em sentido contrário.
XXI – Não pode a Mª Juíza validar factos constantes de articulado rejeitado sob pena de subversão das regras processuais, não obstante o disposto no artigo 5º do CPC.
XXII – Articulado rejeitado, uma vez transitada essa decisão, deve ser desentranhado dos autos e respetivos documentos, sob pena de inexistência de uma justa composição do litígio.
XXIII – Ou pelo menos não poderão os mesmos serem utilizados sob pena de se estar a criar uma instabilidade processual que colide com a igualdade das partes.
XXIV – Assim a Mª Juíza violou por errada interpretação as normas constantes dos artigos 841º do Código Civil e o mesmo sucedeu com as normas do mesmo diploma legal constantes dos artigos 410º, 2, 224º, 1, 238º e 239º, 220º, 289º e 236º e o mesmo sucedeu com a interpretação dada aos artigos 919º, 920º e 921º todos do CPC a que acresce finalmente e não menos importante a interpretação dada ao nº 4 do artigo 607º do CPC com a qual inquinou o saneador/sentença.
XXV – Assim impõe-se a revogação do saneador/sentença devendo ser considerado ineficaz o depósito como meio de extinção da obrigação.

*

Não foram apresentadas contra-alegações.
*

Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos mesmos termos em que fora na 1ª instância.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (art.º 608º nº2 do CPC).

As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.


III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Factos considerados provados na sentença recorrida:

1. - Encontra-se inscrito na matriz predial rústica, sob o art.º…, o prédio sito no local de Soares, da Freguesia do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros, descrito como um olival com 146 oliveiras [acordo das partes nos articulados e certidão matricial de fls. 39];

2. - Este prédio integra a herança ainda indivisa e aberta por óbito de P e esposa M [acordo das partes nos articulados e certidão matricial de fls. 39];

3. – No dia 8/4/1994, M outorgou testamento no Cartório Notarial de Macedo de Cavaleiros, no qual declarou:
- Legar no afilhado, P metade de uma casa de habitação, de rés-do-chão e primeiro andar, sita na aldeia do Lombo e inscrita na matriz sob o art.º…, e metade de uma casa destinada a lagar, sita na mesma aldeia do Lombo, com todo o seu equipamento;
- Instituir como herdeiros do remanescente de todos os seus bens:
a. …;
b. …;
c. …;
d. …;
e. …;
f. …;
g. …;
h. …;
i. …;
j. …;
k. … [cópia do testamento de fls. 57 a 59;63 e 64, cuja exactidão não foi posta em causa pelo requerente].

4. – No dia 8/4/1994, P outorgou testamento no Cartório Notarial de Macedo de Cavaleiros, no qual declarou:
- Legar no afilhado, P metade de uma casa de habitação, de rés-do-chão e primeiro andar, sita na aldeia do Lombo e inscrita na matriz sob o art.º…, e metade de uma casa destinada a lagar, sita na mesma aldeia do Lombo, com todo o seu equipamento;
- Instituir como herdeiros do remanescente de todos os seus bens, todos os seus irmãos e sobrinhos, herdando estes por estirpes [cópia do testamento de fls. 68 a 71, sendo certo também que o requerente não pôs em causa a exactidão do seu teor].
4. – São herdeiros de Porfírio da Ressurreição Carvalho:
a. …;
b. …;
c. …;
d. …;
e. …;
f. …
g. …;
h. …;
i. …Dias [cópia do testamento de fls. 68 a 71, documento de fls. 75 e 76 – comprovativo de participação de transmissões gratuitas – e posição do requerente, que não pôs em causa a posição do requerido quanto a este particular].

5. – O requerido subscreveu o cheque cuja cópia se encontra a fls. 38, emitido à ordem de Lídia Cesaltino Carvalho, em 28/3/2013, no valor de €30.000,00 [acordo das partes e cópia do cheque de fls. 38, cuja exactidão não foi posta em causa pelo requerente].

6. – O requerente, em 28/3/2013, declarou, por escrito, o seguinte: “Eu abaixo assinado António J. M. de Carvalho declaro ter recebido nesta data a importância de trinta mil euros (30.000,00) correspondente ao pagamento inicial referenciado prédio rústico no artigo n.º 15 (quinze) sito no Soares freguesia Lombo, ficando a diferença de trinta mil euros ser paga no ato da escritura” [acordo das partes e cópia da declaração de fls. 38, cuja exactidão não foi posta em causa pelo requerente que assume que recebeu o valor de €30.000,00 do requerido].

7. – O requerente realizou um acordo verbal com o requerido relativamente ao prédio identificado em 1., agindo em seu nome e em nome de seus irmãos e sobrinhos, designadamente, os identificados em 4., mas não dos herdeiros referidos em 3. [acordo das partes nos articulados].

8. – O requerido sabia que o prédio indicado em 1. pertencia à herança referida em 2. e que tinha sido acordado por alguns dos herdeiros testamentários e legítimos a divisão do referido prédio ao meio, ficando uma das partes para os herdeiros testamentários e a outra para os herdeiros legítimos [acordo das partes nos articulados].

9. – O requerido pretende a outorga de escritura de compra e venda relativa ao prédio indicado em 1. dos factos provados ou, em alternativa, que o requerente lhe pague a quantia de €60.000,00 [acordo das partes nos articulados, derivando, essencialmente, da posição do requerido assumida na contestação, salvaguardando-se que o requerido rejeita a alegação do requerente de que, antes da propositura da presente ação, lhe tivesse sido proposta a restituição da quantia de €30.000,00].


IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Nas conclusões XX a XXIII alega o apelante, que não poderia a Mmª juiz “a quo”, em sede de despacho saneador/sentença, dar como assentes factos que foram expressamente impugnados pelo réu sem nenhuma prova ter sido produzida em sentido contrário, assim como não poderia servir-se de factos constantes de articulado rejeitado, sob pena de subversão das regras processuais, não obstante o disposto no artigo 5º do CPC”.

Contudo, o apelante, nas conclusões deste recurso, não discrimina ou identifica, como lhe competia, quais são esses factos que não deveriam ter integrado o elenco dos factos provados.

Consequentemente tal questão não poderá por nós ser apreciada.

*

Como decorre dos factos acima transcritos e do teor dos articulados, nos pontos em que há acordo das partes, o autor vendeu verbalmente ao réu metade (indeterminada e indivisa) de um prédio, que é pertença da herança aberta por óbitos de Porfírio da Ressurreição Carvalho e esposa Maria Rosa.

Esta herança encontra-se por partilhar.

O autor é interessado na partilha de tal herança, porquanto é herdeiro testamentário de seu irmão P, o qual, além de legatário, havia sido instituído, por testamento da referida M, herdeiro, juntamente com outros, do remanescente da herança desta.

O réu sabia que o autor não era proprietário (no caso comproprietário) da metade (indivisa) do prédio que lhe vendeu verbalmente, mas, mesmo assim, celebraram o negócio, na convicção de que o autor actuaria em representação dos demais herdeiros seus irmãos e sobrinhos (art.º 3º da contestação), obtendo as respectivas procurações ou efectuaria a partilha, de forma a poder dispor desse direito.

No âmbito deste negócio celebrado pelas partes, o réu entregou ao autor a quantia de €30.000, por meio de cheque.

Na folha de papel onde se encontra fotocopiado tal cheque escreveu o autor:
- “Eu abaixo assinado A declaro ter recebido nesta data a importância de trinta mil euros (30.000) correspondente ao pagamento inicial referenciado prédio rústico artigo nº (quinze) sito no Soares freguesia Lombo, ficando a diferença de trinta mil euros ser paga no acto da escritura”.

O contrato de compra e venda de coisa imóvel só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado (art.º 875ª do CC).

No caso não existe escritura pública, nem documento particular autenticado, que titule o contrato de compra e venda que as partes afirmam ter celebrado e a forma consuetudinária ou conforme aos usos da terra, a que o apelante faz referência no art.º 8º das respectivas alegações, não tem acolhimento no nosso sistema jurídico.

Existe apenas um documento particular, traduzido no escrito acima reproduzido.

O negócio nulo por carecer da forma legal “pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade” (art.º 293º do CC).

Uma vez que é inequívoco que o autor queria vender e o réu queria comprar, o fim por estes prosseguido permite supor que teriam querido comprometer-se na celebração desse negócio, isto é celebrar contrato promessa de compra e venda.

Resta verificar se ocorrem “os requisitos essenciais de substância e de forma” do contrato promessa.

O contrato promessa relativo a coisa imóvel (nela se incluindo os direitos sobre imóveis – art.º 204º nº 1 al. d) do CC) carece, sob pena de invalidade, de ser celebrado por documento escrito (art.º 410º nº 2 do CC).

Impõe-se assim a interpretação do documento acima reproduzido, em ordem a determinar se o mesmo contém os indispensáveis – “requisitos essenciais de substância” – para poder operar a pretendida conversão do negócio.

A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, sendo que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (art.º 236º do CC).

Como o contrato promessa de compra e venda de coisa imóvel tem obrigatoriamente de ser celebrado por escrito, teremos de atender ao disposto no nº 1 do art.º 238º do CC, o qual estabelece que “nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”.

Contudo o nº 2 deste normativo diz-nos que “esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade”.

Poderá dizer-se que apenas o autor firmou esse escrito, pelo que a promessa não poderia ser bilateral.

Contudo estamos perante um documento composto, constando da folha desse escrito a reprodução fotográfica que contém a assinatura do promitente-comprador (aqui recorrente) e conhecemos a sua vontade real, tendo o mesmo assumido no articulado que apresentou em juízo, que por meio desse escrito quis comprar (no caso, se obrigou a comprar).

Por força do princípio da equiparação, os elementos essenciais do contrato-promessa de compra e venda são: a identidade dos sujeitos, a coisa a transmitir e o preço (artºs 410º e 874º do C. C.)Ac. do TRL de 7.11.1991 (0032506), Ac. do STJ de 22.4.2004 (04B971) entre outros..

Ora nós conhecemos a vontade real das partes.

Partes essas que estão minimamente identificadas no dito escrito.

Sabemos que o autor queria vender e o réu queria comprar.

Sabemos qual objecto do contrato, que, face à vontade real das partes, não correspondia ao direito de propriedade sobre o prédio mencionado no escrito, mas ao direito sobre metade desse prédio (não determinada e indivisa), que aí vem identificado.

Sabemos qual o preço (€60.000), metade pago quando tal escrito foi firmado e outra metade no acto da escritura, como consta dele consta.

O documento em causa, interpretado de acordo com o disposto no nº 2 do art.º 238º do CC, traduz um contrato promessa de compra e venda, de coisa imóvel, bilateral, porque ambas as partes se quiseram obrigar, pelo preço de €60.000, sendo metade desse valor entregue na data da sua celebração, como pagamento inicial, e o restante a ser pago no acto da escritura.

Cremos assim que o contrato de compra e venda, nulo por falta de forma legal, pode ser convertido em contrato promessa de compra e venda (bilateral) por a tanto não se oporem exigências de forma, visto que o documento escrito junto aos autos as satisfaz.

Mesmo que assim não se entenda o documento em questão sempre valeria enquanto promessa unilateral de venda.

No entanto, mesmo não sendo nulo por falta de forma, na sentença recorrida entendeu-se, que, “tivessem requerente e requerido celebrado uma compra e venda ou, antes, um contrato-promessa de compra e venda, sempre o primeiro careceria de legitimidade para representar a herança e dispor de um bem nela integrante”. Sublinhando que “caso estivéssemos perante um negócio de compra e venda, então estaríamos perante uma venda de coisa alheia, ineficaz em relação à herança e em relação aos demais herdeiros”.

Sucede que o próprio instituto da compra e venda admite a venda de bens futuros (art.º 880º nº 1 do CC). Sendo coisas futuras, nos termos do art.º 211º do CC “as que não estão em poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial”. Distinguindo-se perfeitamente o conceito de venda de coisa alheia do conceito de venda de coisa futura, pois, como ensina Raul Ventura, em “Contrato de compra e venda no Código Civil”, pags. 282 esegs. In http://www.oa.pt/upl/%7B16865038-1cf9-4dbd-8e5a-99fb85d06a0e%7D.pdf:
– «A venda de coisa de coisa futura exige uma certa intenção das partes: a consciente incidência do negócio sobre uma coisa que não é presente (…) mas pode vir a ser objecto do negócio e se espera que venha a ser. A simples possibilidade da existência futura da coisa não chega para caracterizar o negócio; a esperança de que venha a existir futuramente a coisa é um elemento positivo, que deve manifestar-se activamente na preparação da existência da coisa. Essa intenção ou atitude psicológica das partes que distingue a venda de coisa futura …da venda de bens alheios, em que as partes, no momento do contrato, não encararam a possibilidade e os efeitos para o alienante adquirir o poder de disposição sobre ela (art. 893º)»

Bem como admite que a venda de bens alheios fique sujeita ao regime da venda de bens futuros, se as partes os considerarem nesta qualidade.

Ora, não restam dúvidas que o autor sabia não poder dispor da coisa e igual conhecimento tinha o réu, ambos acreditando que tal viria a suceder no futuro e que o autor diligenciaria nesse sentido, pelo que, em nosso entender, o facto de o autor não ter legitimidade para vender o prédio ou parte indivisa dele, quinhoando apenas na herança indivisa, não acarreta “ipso facto” a nulidade do negócio, atento o disposto nos artºs 880º, 893º e 408º nº 2 do CC.

Acresce que a disposição do art.º 892º do Código Civil (é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar) não é extensível ao contrato-promessa, sendo considerado válido o contrato-promessa de compra e venda de coisa alheia.( Neste sentido o Ac. do STJ de 23.9.2004 (04B2296).)
“De facto, ao contrário do que acontece no caso de celebração dos chamados contratos com eficácia real (como a compra e venda - alínea a) do art. 879º) em que a propriedade ou outro direito real se transferem por mero efeito do contrato – não no sentido de que se transmitem imediatamente, mas de que dependem tão somente da sua celebração – nada obsta a que o promitente se vincule a alienar uma coisa que não tem legitimidade ou capacidade para alienar, uma vez que sempre pode adquirir, entretanto, essa capacidade ou legitimidade; todavia, e se o não fizer, posto que se comprometeu a fazê-lo, incorrerá na violação de um compromisso que assumira.
Em consequência, pode dizer-se que "a promessa (de compra e venda) será válida, visto que o promitente não aliena, apenas se obriga a alienar. A alienação é possível em si, embora não o seja para o promitente. Há, pois, mera impossibilidade subjectiva que não invalida o contrato-promessa. Ou o promitente vendedor vem a estar em condições de poder cumprir, por se ter, entretanto, tornado proprietário da coisa, e cumpre; ou tal não acontece. No primeiro caso não incorre em qualquer responsabilidade; no segundo torna-se responsável pelo incumprimento de um compromisso validamente assumido" ( Acórdão citado).

Ainda que, para nós, a circunstância do autor não poder dispor do prédio, nem de metade (indivisa) do prédio, que se comprometeu a vender ao réu, não afecte a validade do contrato promessa, na sentença recorrida entendeu-se que o mesmo padeceria de outra nulidade, afirmando-se:

– «Os dados constantes dos autos e as posições das partes nos respetivos articulados ainda nos permitem aventar um fundamento adicional de nulidade do contrato de compra e venda ou de um contrato-promessa de compra e venda sob parte do prédio. Esse fundamento relaciona-se com a própria inadmissibilidade legal do fracionamento do prédio rústico, posto que, de acordo com a própria tese do requerido e que resulta do teor da certidão matricial, o prédio teria, ao todo, 10.140 m2.Segundo as partes, o negócio versava sobre metade deste prédio, o que implicava o seu fracionamento. Estamos perante um olival. O prédio, por si só, tem área inferior à unidade mínima de cultura para a área de Bragança, de acordo com a Portaria nº 202/70, de 21 de Abril. Pelo que a sua divisão não tem qualquer viabilidade legal, tendo em conta o disposto no n.º1 do artigo 1376.º do Código Civil

Ora, apesar da alegação do autor em 6º e 7º da petição, contrária à versão trazida aos autos pelo réu no art.º 3º, o prédio não se encontra dividido, nem o autor alegou ter existido qualquer determinação da metade que diz ter vendido, pelo que tal metade tem de ser interpretada como correspondendo a um direito indiviso sobre o prédio.

Mesmo que a promessa de venda implicasse a divisão material e jurídica do prédio, nomeadamente por meio de “destaque” (como refere algures o réu apelante) e que tal divisão contrariasse norma legal imperativa, tal não invalidaria o contrato promessa, traduziria quando muito a impossibilidade objectiva do seu cumprimento, que é algo de que aqui não se cura, pois a obrigação que o autor pretende extinguir não é a que emana do contrato, mas da sua nulidade.

De qualquer forma não se pode afirmar que o objecto mediato de tal contrato, nesta hipótese configurada na sentença, seja física ou legalmente impossível ou contrário à lei, porquanto o art.º 1377º nº 3 do CC permite o fraccionamento de prédios rústicos em parcelas de área inferior à da unidade de cultura, quando se destinem a construção, propósito que o próprio réu manifestou no art.º 14º da contestação.

Acresce, que, à data da celebração do contrato, os actos de fraccionamento contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos, não eram nulos, mas sim anuláveis (redacção do art.º 1379º vigente antes da alteração introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto) e a anulabilidade não é do conhecimento oficioso, nem foi arguida e decretada previamente à requerida consignação em depósito da obrigação que dela resultaria.

Temos assim de concluir que não ocorre o invocado pressuposto da consignação em depósito (art.º 919º nº 1 al. a) do CPC), uma vez que a obrigação de restituição invocada pelo autor, decorreria da nulidade do negócio – art.º 289º nº 1 do CC – ou da ausência de causa justificativa para o recebimento da quantia, o que não se verifica.

A quantia foi recebida com vista ao pagamento parcial do preço da coisa imóvel prometida vender pelo autor/recorrido ao réu/recorrente e a obrigação que sobre o autor impende é a de celebrar o negócio prometido, nos termos atrás expostos para a promessa de venda de coisa futura, e não a de restituir a quantia que recebeu a título de princípio de pagamento do preço.

Pelo exposto, na procedência das conclusões do apelante impõe-se a revogação da sentença recorrida.


V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e julgando a acção improcedente.

Custas pelo apelante.


Guimarães, 23-02-2017

Eva Dulcínea Rebelo Almeida



António Beça Pereira



Maria Amália Santos