Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
435/22.8T8VNF.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO (PEAP)
RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DAS REGRAS PROCEDIMENTAIS
ART.º 222.º - A DO CIRE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O processo especial para acordo de pagamento, regulado nos arts 222º-A a 222-J do CIRE, assume uma natureza predominantemente extrajudicial, máxime na fase das negociações, mas estão previstos momentos de intervenção judicial, e a liberdade e a autonomia dos intervenientes podem sofrer limitações, mormente ao abrigo dos arts 215º e 216º, aplicáveis por remissão do nº5 do art. 222º -F do CIRE.
II. O juiz deve recusar a homologação do acordo de pagamento aprovado pelos credores quando os factos constantes do processo permitam concluir inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência actual e não iminente, pois, nesse caso, verifica-se uma violação não negligenciável da norma do art. 222ºA que define os pressupostos que legitimam o recurso a este processo.
III. A omissão no acordo de pagamento da situação reditícia do devedor e dos meios que serão afetos à satisfação dos créditos reconhecidos constitui uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Secção Cível  do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

Em 19.1.2022, AA, nascido em .../.../1966, residente na Rua ..., ..., ..., ..., ..., propôs este Processo Especial para Acordo de Pagamento ( PEAP) pedindo que fosse promovida a sua tramitação.
   
Alegou, em síntese, que é divorciado e actualmente vive sozinho; desenvolve actividade  no sector  do  transporte de passageiros, trabalhando por conta de outrem no transporte diário de passageiros, em veículo de terceiros ; anteriormente foi chefe de sala em restaurantes e vendedor de artigos para importação e exportação; foi vítima de um despedimento ilícito e ficou largos  sem trabalho, vendo-se obrigado a pedir ajuda a familiares e amigos, a quem deve avultadas quantias; as responsabilidades assumidas implicaram o seu descalabro económico; consegue sobreviver com as suas poupanças e a ajuda de familiares, tentando liquidar, com  muita dificuldade, parte do seu passivo; não se encontra na sua óptica numa situação de insolvência, mas  a sua  real  situação económica  afigura-se muito difícil; não consegue obter crédito junta da banca e tem dificuldades sérias  em cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas e vincendas  estando em situação de solvência iminente;  está convencido que em breve conseguirá emprego  e que os seus rendimentos lhe permitirão pagar aos seus credores desde que estes aceitem que o pagamento seja negociado globalmente e  feito de forma faseada, sendo viável a  sua recuperação económico-financeira.
 
Terminou indicando como administrador judicial provisório o Dr. BB e comunicou que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação, nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do art.222º- C do CIRE , na redação actualizada pela Lei 79/2017 de 30.6.2017.
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Foi proferido despacho inicial que nomeou administrador judicial provisório (doravante AJP) e ordenou a citação dos credores identificados e demais interessados para que reclamassem eventuais créditos .
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Em 21.02.2022,  o AJP apresentou a  lista provisória de créditos, que foi publicitada no portal Citius, onde constam  12 credores, ascendendo o total de créditos reclamados a €143.034,64.  Com excepção do crédito do credor Banco 1..., no valor  € 36.258,41, garantido por hipoteca e do crédito do Centro Distrital ..., no valor de € 1.298,43, privilegiado, todos os demais  créditos foram reclamados e relacionados como comuns.
 Em 28.2.2022, a credora CC, que reclama um crédito proveniente de rendas,  no valor total de € 11.556,45, sendo € 6.019,34 de capital e €5.537,11 de juros, que foi objecto de execução, impugnou os  créditos reclamados pelos seguintes credores: DD , no valor de €22.000,00; EE, no valor de € 14.000,00; FF, no valor de € 18.000,0 e GG, no valor de € 9.000,00, alegando a falta de documentação comprovativa da sua existência e pedindo, a final  o seu  não reconhecimento ou, subsidiariamente, que os créditos das 3 primeiras sejam  classificados  como subordinados.
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Por despacho de 7.7.2022, considerando-se que não foi feita prova da alegada inexistência, foram reconhecidos todos os créditos, mas os  reclamados por DD e EE, irmãs do  devedor, foram classificados como subordinados.
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O requerente apresentou  em 30.5.2022, a versão final do acordo de pagamentos, inserta de fls 11 a 16  deste apenso de recurso, que se dá aqui por integralmente reproduzido, onde se lê , nomeadamente:

“II. FINALIDADE DO ACORDO DE PAGAMENTO

A finalidade deste Acordo de Pagamento é apresentar um conjunto de medidas cuja aprovação pelos credores, e subsequente concretização, permita assegurar a sua estabilização económico-financeira, com a reestruturação da componente financeira do passivo e implementação de medidas objetivas de consolidação e planificação de pagamento aos credores por parte dos Requerentes.

III- O REQUERENTE E PERSPECTIVAS

O Requerente é divorciado e vive sozinho.
O Requerente trabalha por conta de outrem no ramo de transporte de passageiros.
Anteriormente, o requerente exerceu outras atividades, como chefe de salaem restaurantes e vendedor de artigos para importação e exportação. Todavia, o requerente foi alvo de um despedimento ilícito, tendo ficado vários anos sem trabalho. Durante esse período, o requerente viu-se obrigado a pedir ajuda a familiares e amigos para a sua sobrevivência e também para fazer face a despesas com a sua saúde.
Mais recentemente, e por força da situação pandémica do Covid-19, as dificuldades económicas do requerente agravaram-se.
Por conseguinte, e com todas as responsabilidades acumuladas, está o Requerente com francas dificuldades em cumprir pontualmente as suas obrigações.
Não obstante os esforços encetados pelo Requerente, este atravessa uma situação de debilidade económica.
Todavia, o requerente acredita que existe viabilidade de se recuperar mediante a aprovação de um Acordo de Pagamento.

Revitalização vs Insolvência/Liquidação

O aqui requerente é proprietário dos seguintes bens:
- ½ de fração autónoma designada pelas letras "CR" do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o n.º ...39/...-"CR", e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o art.º ...76º;
Deste modo e pese embora a situação económica difícil do Requerente, até à presente data, não se encontra em situação de insolvência.
Sendo convicção profunda do Requerente de que, através da aprovação de do presente Acordo de Pagamento, alcançará os meios necessários  para fazer face às suas responsabilidades.

IV- MEDIDA PROPOSTA

Acordo de Pagamento deve indicar claramente as alterações dele decorrente para as posições jurídicas dos credores dos Requerentes, porquanto, temos por bem propor:

A) Estado - Autoridade Tributária e Aduaneira

- Nos termos do estatuído nos nºs. 3, 4, 5 e 6 do art.º 196º do CPPT e do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16/03, os valores em dívida vencerão juros à taxa anual que vier a ser estipulada pela AT, após análise que efectuarão à renúncia dos credores privados e garantias prestadas;
- Nos termos previstos na legislação acima referida, concretamente o n.º 5 do artigo 196.º do CPPT, a quantia exequenda, custas e juros de mora não perdoados, serão liquidados em regime prestacional, concretamente até 30 prestações, não podendo nenhuma delas ser inferior a 01 unidade de conta;
- A primeira prestação vence-se no mês seguinte à data da sentença homologatória do Acordo de Pagamento;
- Manutenção das garantias existentes nos termos do n.º 13, do art.º 199.º do CPPT;
- Para os efeitos previstos no n.º 1 do art.º 17.º-E do CIRE, a extinção dos processos fiscais só se dará nos termos do CPPT;
 
 B) Estado - Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social

- Pagamento, em sede de execução fiscal, da totalidade da dívida reconhecida no PER, através de acordo prestacional em 30 prestações mensais e sucessivas;
- A primeira prestação vence-se no mês seguinte à data da sentença homologatória do Acordo de Pagamento;
- Dispensa de constituição de garantia ao abrigo do artigo 199º nº 13 do CPPT;
- Nos termos da legislação em vigor são devidos juros vencidos e vincendos calculados de acordo com a taxa de juros de mora aplicáveis às dívidas ao Estado e outras entidades públicas;
- As ações executivas pendentes para cobrança de dívida à Segurança Social não são extintas mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do plano de revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos;

C) Créditos Garantidos

- Cumprimento dos dois contratos de mútuo com constituição de hipoteca nas condições contratuais previstas;
- Manutenção das garantias constituídas;

D) Créditos Comuns

- Período de carência de capital de 12 meses, iniciados após trânsito em julgado da sentença de homologação do Acordo de Pagamento;
- Pagamento de 100% do capital em dívida em 84 prestações  mensais iguais e sucessiva, sendo a última prestação no valor de 40% do capital;
- A primeira prestação terá vencimento no último dia do mês que decorrer o termo do período de carência que é de 12 meses;
- Perdão de juros de mora, juros vencidos e vincendos;

Credores Não Identificados no Processo:

Eventuais credores que venham a reclamar e serem reconhecidos judicialmente, créditos anteriores à data da entrada da petição inicial do presente processo em Tribunal, ficarão sujeitos às exatas condições previstas no presente Acordo de Pagamento, consoante a natureza e características do crédito e/ou credor.”
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Em 9.6.2022, a credora  CC votou desfavoravelmente  o plano e  pronunciou-se pela não homologação do acordo, nos seguintes termos:
Quanto a uma eventual homologação do Plano, no pressuposto de este merecer a aprovação dos credores, expor e requerer a V.Exa :

1. Dispõe o nº2 do artº 195º do CIRE que “o plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, realizadas ou ainda a executar, econtém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz”, destacando a alínea b) desse nº 2 que deverá o plano conter “A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor”.
2. Sucede que o Plano apresentado nada esclarece como é que o devedor vai conseguir pagar o que o mesmo diz dever, se é através da venda do único activo  que relaciona, se é através da sua força de trabalho, quando nem sequer  diz quanto vale esse activo, e nem sequer quanto aufere de vencimento.
3. O que sabemos de certo é que o activo relacionado ia ser vendido no processo executivo à comproprietária dessa fracção, aqui também credora, pela melhor proposta apresentada ao fim de mais de 10 anos, e que foi de €50.000,00pela mão da Reclamante (cfr. doc. ... e ...), pelo que, esse bem é manifestamente insuficiente para liquidar todo o passivo do devedor; e quanto à força de trabalho, malgrado o devedor apenas refira que é trabalhador por conta de outrem no ramo de transportes de passageiros, não diz o valor do seu vencimento, apenas se sabendo que o mesmo deve ser tão baixo que justificou a concessão de benefício do apoio judiciário nos presentes autos (cfr. requerimento do devedor de 16/02/2022).
4. Neste conspecto, não se vê como pode ter o devedor dado cumprimento ao que a citada norma legal determina, limitando-se a dizer laconicamente que “o presente Acordo                   de Pagamento visa,                            essencialmente,                conceder               ao Requerente a possibilidade de gerar a riqueza necessária para fazer face às obrigações que responsavelmente assumiu”.
5. Gerar riqueza como e a partir de quê? não se entende como é que o devedor irá gerar riqueza quando se encontra desde 2012 sem pagar uma única prestação no empréstimo contraído para aquisição do imóvel no qual detém a metade indivisa acima referida (cfr. reclamação de créditos de HH) e quando falhou sucessivos acordos de pagamento celebrados com a ora Reclamante ao longo de mais de 15 anos (cfr. reclamação de créditos), em que nesse prazo apenas conseguiu pagar €400, tudo isto numa altura que, supostamente, estaria de boa saúde financeira.
6. Basta fazer contas para se perceber que o devedor não tem forma de convencer da exequibilidade do Plano que apresenta, e daí ser o mesmo tão vago nos seus termos, dado que se o mesmo se propõe pagar o que diz dever (€143 034,64 -valor que não se reconhece) em 84 prestações, sendo a última de 40%, com uma carência de um ano, isto quer dizer que a 84ª prestação seria de €57.213,85, e cada uma das restantes 83 seriam de €1.033,98 cada uma.
7. Ora, do Plano apresentado não resulta minimamente demonstrado que a situação “situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor” satisfazer  tão elevado encargo, sendo essa demonstração essencial na economia do artº 195º do CIRE. 
8. Dispõe o artº 215º do CIRE que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação”.
9. Conforme foi entendimento seguido no acórdão da Relação de Coimbra, tirado no processo nº 4066/20.9T8CBR-B.C1, a 10/12/2020, “uma das regras relativas ao conteúdo do plano a que o mesmo deve obedecer, consta da al. b) do 2 do artigo 195º CIRE, segundo a qual o plano de insolvência deve indicar as medidas necessárias à sua execução e todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente a indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos e quais, uma vez que, no caso em apreço, os rendimentos mensais são largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano.”
10. E por isso sumaria esse mesmo acórdão que: “Sendo os rendimentos mensais dos devedores largamente inferiores ao valor das prestações previstas no plano de pagamento aprovado, a ausência de indicação sobre como serão obtidos os meios de satisfação dos credores, se através da liquidação de algum bem, se à custa de rendimentos suplementares e quais, constituirá violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano (art. 215º CIRE).”
11. Uma última nota, apenas para dizer que o Plano de recuperação do devedor deve ter um propósito sério, e não servir outras finalidades que não seja a sua efectiva recuperação, o que não sucede no presente caso em que o fim visado foi obstar  à venda do único activo do devedor em processo executivo, ao cabo de quase 20 anos, estando o mesmo já adjudicado, e literalmente tentar “limpar” 20 anos de juros devidos à Reclamante, tirando da cartola amigos e familiares como alegados credores para ajudarem nesse propósito, quando até então nunca ninguém ouvira falar dos mesmos.
Nessa medida, e pelo exposto, é nosso entendimento que ainda que venha a obter aprovação, o Plano não deverá ser homologado.
Juntou cópia  de despachos do processo executivo relativos à venda  da metade indivisa da fracção autónoma pertencente ao aqui, designadamente do que determinou a venda  pelo preço de € 50.000,00 proposta apresentada pela exequente CC e de requerimento do encarregado da venda datado de 11.1.2022,  referindo que a  comproprietária HH  pretendia exercer o direito de preferência por aquele preço e requerendo a emissão da competente certidão para celebrar a escritura.
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Em 13.7.2022, foi proferida a seguinte
Decisão:
 “Refª ...67: o senhor Administrador Judicial Provisório veio juntar aos autos
o resultado da votação de acordo com a decisão proferida quanto à natureza subordinada dos créditos de II (crédito n.º 1) e EE (crédito n.º 7).
Constata-se que se apresentaram a votar 99,90% do total de credores relacionados com direito de voto. Destes, votaram favoravelmente um total de 47,62% dos votos emitidos, correspondentes a créditos não subordinados (sendo que a percentagem dos créditos subordinados ascende a 25,19%).
Assim, nos termos do disposto no art. 222º-F, nº 3 als. a) e b) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, considera-se que foi aprovado o acordo de pagamentos.
Notifique.
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A credora JJ veio pugnar pela não homologação do plano, em virtude de o mesmo nada esclarecer quanto ao modo como o devedor vai conseguir pagar o que o mesmo diz dever, se é através da venda do único activo que relaciona, se é através da sua força de trabalho, quando nem sequer diz quanto vale esse activo, e nem sequer quanto aufere de vencimento.
Cumpre apreciar.
O art.º 194,1 CIRE estatui que o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
Pode ler-se no acórdão da Relação de Guimarães, de 4-3-13, disponível em www.dgsi.pt, , que “Importando, é certo, a violação do princípio da igualdade em sede de plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, uma violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis ao seu conteúdo, razão porque, impõe-se então ao tribunal, no caso de inexistir o consentimento do lesado, recusar a sua homologação ( cfr. artº s 192º e 215º), a verdade é que tal princípio apenas se reconduz à necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário.
Destarte, na sequência do referido em IV, e em face do disposto no artº 194º,nº1, do CIRE, nada impede a que o plano possa estabelecer diferenciações entre os credores do devedor a revitalizar, desde que “justificadas por razões objectivas”.
Vejamos o que se encontra previsto no presente plano.
( teor do acordo de pagamento- ponto IV)
Temos por certo que o Estado, segurança social e os credores garantidos são tratados de forma diferente e, mesmo, beneficiados, porém, tais benefícios decorrem do regime próprio dos seus créditos.
Quanto à forma de execução do acordo, relembremos que o presente processo é um processo de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, em que se privilegia o controlo pelos credores, restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual. Não nos cabe, pois, forçar convicções quanto à probabilidade do cumprimento do Acordo, mas apenas aferir se existem circunstâncias claramente demonstradas nos autos que impeçam a homologação. E essas circunstâncias não nos parece que existam.
Analisado o Acordo de Pagamentos apresentado, não verificamos a ocorrência de qualquer violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.
Deve, em consequência, ser homologado por sentença o Plano de Pagamentos apresentado pelo devedor AA e aprovado pelos credores.
Termos em que homologo por sentença o plano de pagamentos apresentado pelo devedor AA.
Custas pelo devedor, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficia – art. 222º-F, nº 9 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Fixo à acção o valor de € 30.000,01 – art. 301º do CIRE.
Registe, notifique e cumpra o disposto no art. 222º-F, nº 8 do CIRE.”
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Inconformada com esta decisão, a credora CC, interpôs o presente recurso de apelação, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem por objecto o douto despacho que homologou o plano apresentado pelo devedor, plano esse que, no entender da recorrente, deveria ver recusada oficiosamente a sua homologação por violação não negligenciável das normas aplicáveis ao mesmo, e bem assim por resultar dos autos que o devedor se encontra em situação de insolvência.
II. O nº2 do artº 195º do CIRE estatui que “o plano de insolvência deve indicar a sua finalidade, descreve as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e contém todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz”, destacando a alínea b) desse nº 2 que deverá o plano conter “A descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor”.
III. Sucede que o Plano apresentado nada esclarece como é que o devedor vai conseguir pagar o que o mesmo diz dever, se é através da venda do único activo que relaciona, se é através da sua força do seu trabalho, quando nem sequer diz quanto vale esse activo, e nem sequer quanto aufere de vencimento.
IV. O que o plano apresentado contém é uma declaração confessória de insolvência, citada na motivação, corroborada documentalmente pelo ofício da Segurança Social a conceder apoio judiciário para este processo e pela confissão de divida com acordo de pagamento, feita pelo devedor à sua irmã, juntos ao recurso.
V. Ao Tribunal a quo caberia aferir se foram cumpridas as regras procedimentais ou normas aplicáveis ao conteúdo do Plano, e nessa parte, como se acaba de demonstrar, houve regras que não foram observadas, sendo de importância capital aquilo que o plano justamente omitiu e que permitiria aos credores saber com o que é que o devedor vai pagar.
VI. Outrossim caberia ao Tribunal a quo aferir, face aos elementos de que dispunha, se o devedor se encontrava ou não em situação de insolvência, quando, a nosso ver, essa situação é evidente.
VII. Nesse sentido, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, tirado no processo nº 4066/20.9T8CBR-B.C1, a 10/12/2020 e o acórdão desta Relação, proferido a 28/05/2020, no processo 3753/18.6T8VNF.G2, ambos em www.dgsi.pt.
VIII. E por isso mesmo, nos termos do disposto no artº 215º do CIRE o Tribunal a quo deveria ter recusado oficiosamente a homologação do plano por violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, para além da situação de insolvência em que o devedor se encontra.
IX. Por último, evidenciam os autos um uso abusivo deste procedimento pelo devedor, que apenas o iniciou numa altura em que, ao fim de um processo executivo que se arrasta há 20 anos, iria ser ultimada a venda da metade indivisa de uma fracção detida em compropriedade – único activo que possui.
X. Ao decidir homologar o Plano, o Tribunal a quo violou o disposto no artº 215º do CIRE, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que recuse oficiosamente a homologação do acordo de pagamento aprovado.
Assim decidindo, farão, Vossas Excelências, Justiça.
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O devedor apresentou contra-alegações que rematou com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem por objeto APENAS o douto despacho que homologou o plano apresentado pelo devedor, na medida em que a recorrente não reagiu à decisão sobre a sua impugnação de créditos e esta transitou em julgado.
II. Pelo que a lista de credores a ter em atenção é a que foi provisoriamente aceite, com a precisão de que os credores identificados em 1) e 7) dispõem de créditos subordinados.
III. O nº2 do artº 195º do CIRE aplicável aos processos intentados ao abrigo do disposto nos artigo 222-A e seguintes deve ser interpretado de modo a ser compaginado com a natureza negocial e menos judicial que os PEAP possuem.
IV. O Acordo de Pagamentos apresentado resulta de uma negociação em que a recorrente participou e na qual lhe foi disponibilizada toda a informação sobre a situação patrimonial do recorrido, sendo que a recorrente nada alega em contrário.
V. O Acordo de Pagamentos esclarece que medidas o recorrido propõe para solver os seus créditos, nomeadamente estabelecendo um prazo de pagamentos não inferior a 11 anos e 2 meses, dos quais que extraem facilmente as obrigações (leia-se prestações) que o recorrido assumirá em cada momento.
VI. Nessa medida é inexigível que o Acordo de Pagamentos esclareça os meios como é vai conseguir pagar o que o mesmo diz dever, se é através da venda do único ativo que relaciona, se é através da sua força do seu trabalho, quando nem sequer diz quanto vale esse ativo, e nem sequer quanto aufere de vencimento, sob pena de assumir a natureza de uma carta de previsões e especulações e não de obrigações, como decorre da lei.
VII. Inexiste qualquer declaração confessória de insolvência atual, nos autos, tão só de insuficiência económica.
VIII. A concessão de apoio judiciário para este processo ainda que conjugada com outras alegações é insuficiente para demonstrar a situação de insolvência.
IX. Assim como o é a existência de incumprimentos anteriores para com a recorrida.
X. E o facto de 9 dos 12 credores não terem reclamado juros, conjuntamente com os seus créditos de capital, muito anteriores à entrada do presente processo, não demonstra qualquer situação de insolvência actual do requerido.
XI. Pelo que inexiste qualquer violação do disposto no artigo 215º do CIRE.
Acresce que
XII. Abusa de direito a recorrente que alega que «no presente caso em que o fim visado (no processo) é obstar à venda do único ativo do devedor em processo executivo, ao cabo de quase 20 anos, tendo o presente procedimento sido iniciado numa altura em que celebração da escritura de venda da metade indivisa do devedor em processo executivo se encontrava iminente», afirmando ainda que o recorrido se encontra em situação de insolvência atual.
XIII. Isto porque, em momento algum o recorrente alegou e provou a inexistência dos créditos admitidos e as dificuldades económicas invocadas pelo recorrente.
XIV. Nem provou a situação de insolvência que invoca
XV. E sabe que se, por absurdo, o recorrido estivesse de facto em situação de insolvência atual sempre lograria obstar à venda do imóvel, em sede de processo executivo, apresentando-se a Tribunal para pedir a sua declaração.
XVI. Sendo que sempre teria a possibilidade de solicitar a medida de exoneração do passivo restante, com as consequências que daí advinham para os credores que, com o PEAP, saem mais beneficiados no pagamento dos seus créditos.
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Termos em que se requer a V.ª Ex.ª que se dignem julgar improcedente o recurso a que se responde e, consequentemente, manter a decisão de homologação do Acordo de Pagamentos proferida com o que farão a acostumada JUSTIÇA
                                                           *
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado, e efeito meramente devolutivo, o que foi mantido neste Tribunal.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir

II. Delimitação  do objecto do recurso
   
Face ao disposto nos artºs  608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4 e 639º do CPCivil, o âmbito do recurso é  delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo  das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.
Assim,  no presente  caso, tendo em conta as conclusões  da recorrente  a questão  a decidir  consiste em  saber se  devia ter sido recusada oficiosamente a homologação do  plano de pagamento  apresentado pelo devedor em virtude da violação  não negligenciável  de regras procedimentais ou de normas aplicáveis ao seu conteúdo,  nos termos do art. 215º do CIRE.

III. Fundamentação de facto      

Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório supra e ainda aos seguintes, constantes  das peças processuais, juntas por certidão:
1. A  credora/ recorrente  CC  reclamou neste processo um  crédito no valor  de  total de € 11.556,45, sendo 6.019,34 de  capital e 5.537,11 de juros, que tem a sua origem numa sentença proferida  em 18.3.2002, que  condenou o devedor  AA , solidariamente, com KK, a pagar à A., a quantia de € 3.591.34 a título de rendas vencidas, bem como, as vincendas até entrega efectiva do  arrendado.
2. Tal sentença foi executada em 17.6.2002, correspondendo actualmente ao proc. executivo  1932/14.... no âmbito do qual foi penhorada em 22de julho de 2005 a metade indivisa pertencente ao devedor da fracção autónoma destinada à habitação designada pela letra ..., do prédio  urbano supra identificado,  que segundo a certidão inserta a fls 26,  tem o valor patrimonial de € 38.966,09.
3.  Nesse processo executivo foram celebrados  três acordos de pagamento com o executado, aqui devedor, que não  foram cumpridos.
4. Após avaliação da fracção, por despacho de 4.7.2011 foi determinada a venda da metade indivisa do mesmo pelo  preço mínimo de € 38.274,95.
 5. Por despacho de 17.12.2021, foi recusada a proposta da comproprietária LL, por ser de valor inferior ao mínimo legal, e aceite a proposta da exequente CC  no valor de €50.000,00, e ordenada a notificação da primeira para declarar se pretendia exercer o direito de preferência.
 6. Em 11.1.2022, o encarregado da venda solicitou no processo executivo a emissão de certidão para a celebração da escritura de compra e venda com a comproprietária que declarou pretender exercer o direito de preferência.
 7. O processo executivo foi suspenso por despacho de 27.1.2022,  nos termos do art. 222º-E, nº1 do CIRE em virtude do despacho liminar de admissão do presente processo especial para acordo de pagamento.
8.  HH, comproprietária da referida fracção reclamou nestes autos  um crédito  no valor de € 23.448,90,  alegando que viveu em união de facto com o aqui devedor de 2002 a 2012, tendo adquirido em comum a referida fracção autónoma destinada à habitação, com recurso a dois empréstimos bancários junto do Banco 1..., um no valor de  €50.000,00 e outro no valor de € 25.000,00.
9.O aqui devedor saiu de casa em 2012 e não voltou  a pagar qualquer prestação, sendo a reclamante que  desde então suportou sozinha todas as prestações de amortização dos empréstimos, seguros obrigatórios e condomínio, tendo direito  ao abrigo do direito de regresso à referida quantia de  €23.448,90.
10. O Banco 1... reclamou nestes autos um crédito no valor de € 36.258,41, que foi classificado como garantido, correspondendo ao remanescente em dívida dos empréstimos concedidos que beneficiam de hipoteca sobre a mesma fracção.

III. Fundamentação de direito 
     
De acordo com o  preâmbulo do Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de Junho,  as alterações então introduzidas ao CIRE (nomeadamente, o aditamento dos arts. 222.º-A a 222.º-J, pertinentes ao processo especial para acordo de pagamento   visaram  a credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçando a transparência e a credibilização do regime, desenhando-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciante.
   
Com efeito, até então, não estando previsto um processo especial de revitalização para pessoas singulares que não fossem comerciantes/empresários em nome individual, discutia-se se o PER se aplicaria, ou não, aos devedores que não fossem empresas .
   
A consagração do novo processo especial para acordo de pagamento (PEAP) pôs termo à questão, consistindo porém o mesmo, basicamente e tal como o PER, num regime pré-insolvencial para devedores não empresários, que tem a vantagem a possibilidade de o devedor obter um plano de recuperação sem ser declarado insolvente, mas também  comporta o risco de no final o devedor não conseguir evitar a declaração de insolvência.
      
O actual  regime  estabelecido nos arts. 222.º-A a 222.º-J do CIRE, já com as alterações introduzidas pela Lei 9/2022 de 11.9, que entrou em vigor em 11.4.2022, com aplicação aos processos pendentes, como é o caso dos presentes autos, mantém  no essencial o figurino anterior que  foi decalcado do regime do PER.
    
Assim, o «PEAP não é, na verdade, outra coisa senão “o PER dos não empresários”, configurando-se o seu regime como o regime do antigo PER deslocado para outra parte do Código» - cf. Ac. do STJ, de 04.07.2019, Proc. n.º 3774/17.6T8AVR.P1.S2  ( Relatora Catarina Serra) disponível in www. dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de outra proveniência.
Porém, o facto de ter como destinatários os devedores não empresários, determina  o elemento distintivo essencial entre o PER e o PEAP. No art. 222ºA não há qualquer referência à susceptibilidade de recuperação, prevista no art. 17º-A, nº1, nem se prevê a aprovação de qualquer plano de recuperação, mas apenas de um acordo de pagamento. Compreende-se que assim seja, já que os destinatários do PEAP não são «empresas cuja continuidade depende da possibilidade de economicamente serem recuperáveis»- cf. Ac. da RP, de 11.07.2018, Proc. n.º 2408/17.3T8STS.P1, Relatora Fátima Andrade.
Destarte,  estando assente, «pelo cotejo entre os preceitos que regem sobre o PER e o PEAP que o principal elemento que os distingue é o de que a ideia de recuperação do devedor está ausente do PEAP, basta atentarmos na respectiva tramitação subsequente para concluirmos que, no mais, as impressivas semelhanças devem levar a que, os demais princípios àquele processo especial aplicáveis, e cuja densificação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a efectuar, encontrem acolhimento neste»- cf. Ac. da RE, de 22.02.2018,  Proc. n.º 494/18.8T8STB-A.E1,  Relatora Albertina Pedroso.
Segundo o art. 222.º-A, n.º 1 do CIRE, «o processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento».
  E  precisando o que seja «situação económica difícil», o art. 222.º-B do CIRE,  diz que,   para «efeitos do presente processo», será aquela em que o devedor «enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito».
O CIRE não nos dá a noção de insolvência iminente, mas recorrendo à  definição de insolvência constante pelo art. 3.º, n.º 1 do CIRE, diremos que  a situação de insolvência meramente iminente  é  aquela em que o devedor ainda não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, pois se tal impossibilidade se verificar  já  está insolvente.
Assim, a iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento das obrigações vencidas em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, é previsível  fazendo um juízo de prognose que tal venha a acontecer a curso prazo,  dada a  insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível.
Porém, o PEAP não é meio idóneo para ultrapassar uma situação económica em que o devedor já atingiu um estádio de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, pelo que, não é possível ficcionar uma solvabilidade do requerente em face dos rendimentos e património que lhe são atribuídos» - cf. Ac. da RP, de 15.11.2018, Proc. n.º 118/18.3T8STS.P1, Relator Mário Fernandes.
Se tal se verificar,  não obstante o PEAP, tal como o PER, serem instrumentos de natureza essencialmente negocial, privatística existe  a «possibilidade do controlo jurisdicional da verificação de uma situação económica difícil ou de insolvência iminente - o que implica a exclusão de uma insolvência actual - no devedor que lança mão do PEAP», já que outro entendimento «tornaria praticamente inútil a proclamação da necessidade desses requisitos - pois então seriam sempre os credores quem maioritariamente sobre ele se pronunciariam ao aprovarem ou rejeitarem o acordo»- cf. Ac. da RC, de 13.11.2018, Proc. n.º 1535/17.1T8CBR.C2, Relator Freitas Neto.
Com efeito, o art. 222.º-F, n.º 2 do CIRE, dispõe que concluindo-se «as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância  do disposto no número anterior (aprovação unânime) o devedor remete-o ao tribunal, sendo de imediato publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do plano e correndo desde a publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações».

O n.º 3 do art. 222.º-F estipula que se considera «aprovado o acordo de pagamento que:

a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os nºs 3 e 4 do artigo 222.º-D, não se considerando as abstenções, recolha cumulativamente: i) o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos ii) o voto favorável de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem  os nºs 3 e 4 do art. 222º-D; ou
b) Recolha cumulativamente, não se considerando as abstenções: i) o voto favorável  de credores cujos créditos representem mais de 505 da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto,  contidos na lista de créditos a que se referem  os nºs 3 e 4 do art. 222º-D; ii) o voto favorável de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos a que se referem  os nºs 3 e 4 do art. 222º-D.
O n.º 4 do mesmo preceito dispõe que a «votação efetua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211.º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora um documento com o resultado da votação, que remete de imediato ao tribunal».
E  no n.º 5 do art. 222.º-F estabelece que, recebido pelo juiz o plano de pagamento aprovado pelos credores, este «decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º»
 
Artigo 215º - Não homologação oficiosa
« o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação».
 
Artigo 216º -Não homologação a solicitação dos interessados
“1. O juiz recusa a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contando que o requerente demonstre em termos plausíveis que:
(…).”
Tais normas preveem dois distintos grupos de situações que poderão levar à recusa, uma por via oficiosa (artigo 215º) e outra unicamente a requerimento do devedor ou credor que haja manifestado nos autos a sua oposição anteriormente à aprovação do plano de insolvência (artigo 216º).
Ao remeter para o disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, respeitantes à aprovação do plano de recuperação no processo de insolvência, optou o legislador por submeter à análise judicial o plano aprovado pelos credores, no âmbito da qual deve o juiz, oficiosamente, sindicar o cumprimento das regras procedimentais e de conteúdo não negligenciáveis, bem como, avaliar o mérito da oposição que tenha sido apresentada por algum credor: o juiz assume um papel de garante da legalidade, no âmbito do qual lhe restará assegurar-se de que não se verifica nenhuma das situações fundamentadoras da rejeição do plano estabelecidas no artigo 215º e, por outro, analisar os pedidos de não homologação do plano, se os houver (artigo 216º).
Nas palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, pág. 781, «normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas aos modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.
Em todo o caso, uma vez que, segundo a solução que temos por melhor, tanto os vícios de carácter procedimental como os atinentes ao conteúdo têm um mesmo tipo de tratamento e de regime, a distinção perde interesse prático».
Quer os vícios  de carácter instrumental, quer os atinentes ao conteúdo  só relevam para efeitos de não homologação oficiosa do plano/ acordo de pagamento   quando  constituam uma “violação não negligenciável”. Quer isto dizer que não basta qualquer transgressão ou atropelo às regras e princípios aplicáveis, pois o vício negligenciável não é susceptível de conduzir à recusa da homologação do plano.
A lei não define o que sejam vícios não negligenciáveis, tem-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, diversamente se verificando quanto às infracções que afectem, tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido, sem deixar de atender, por razoável, o critério geral utilizado pela própria lei processual no art. 195.º do CPC-cf. Ac. da RL. de 12.12.2013, Proc. n.º 1908/12.6TYLSB-A.L1-7, Relatora Ana Resende.
Para Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, p.474 «Será violação não negligenciável de regras apenas aquela que importe uma lesão de grave de valores ou interesses juridicamente titulados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação».
Aqui chegados, analisemos o caso subjudice.
A recorrente defende  que a homologação do acordo de pagamento  devia ter sido oficiosamente recusada,  nos termos  do art. 215º ,  por  ocorrer  violação não negligenciável  das normas  aplicáveis,  nomeadamente  do art.195º, nº2 , pois o plano  não esclarece como é que o devedor vai  pagar  aos credores, se através do activo que relaciona, cujo valor não indica, se através da sua força de trabalho, sendo que também não indica qualquer vencimento e porque  resulta dos autos  que o devedor se encontra em situação de insolvência.
Na decisão recorrida, depois de se referir que o diferente tratamento dos créditos do Estado, da Segurança Social e do credor garantido  se  justifica pelo regime próprio destes créditos, assinalou-se o cariz marcadamente voluntário e extrajudicial  deste processo em que se privilegia o controlo pelos credores e concluiu-se  de forma genérica que não se verifica a ocorrência  de qualquer   violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo,  nada se dizendo de concreto sobre as questões suscitadas pela  credora, ora recorrente.
O recorrido  na sua resposta  sustenta, em síntese, que não se encontra insolvente e  que o Acordo de Pagamento identifica o único activo que lhe pertence, o qual,  embora tal não conste do acordo, pode ser vendido no decorrer do cumprimento do mesmo e que  as medidas propostas  para a resolução dos créditos constam do  Acordo, é “só fazer contas”,  devendo o  nº2 do art. 195º ser interpretado  de modo a ser compaginado  com a natureza   negocial e menos judicial do PEAP,  e  termina referindo que não existe  qualquer violação do art. 215º do CIRE, pugnando pela manutenção do decidido.
Na verdade,  o PEAP é um processo híbrido e concursal. Híbrido porque boa parte da sua tramitação é tendencialmente extrajudicial, maxime a fase das negociações, em que a intervenção do julgador é pontual em homenagem aos valores da celeridade, da informalidade e da eficácia (Ac. da RP, de 05.11.2018, Proc. n.º 805/18.6T8STS.P1, Relator Carlos Gil,); mas a intervenção judicial não deixa de ocorrer em momentos cruciais, cabendo precisamente ao juiz a nomeação do administrador judicial provisório (art. 222.º-C, n.º 4 do CIRE), a decisão das impugnações da lista provisória de créditos apresentada pelo administrador judicial provisório (art. 222.º-D, n.º 3 do CIRE), a decisão sobre a computação, no cálculo das maiorias necessárias à aprovação do plano, de créditos impugnados, e a decisão de homologação ou não homologação do acordo de pagamento (art. 222.º-F, n.º  3 e 5 do CIRE) .
A intervenção judicial é, assim, necessária para garantir ao processo a sua natureza concursal, ou seja, a vinculatividade do acordo de pagamento face a todos os credores do devedor, incluindo aqueles que não participaram nas negociações ou não tiveram qualquer intervenção no processo (art. 222º-F, n.º 8 do CIRE).
Vejamos pois se   controlo  jurisdicional   na fase da homologação  do   Acordo foi  adequadamente exercido.
Como já vimos, o pressuposto material  para o recurso do PEAP que decorre do art. 222ºA  é o devedor encontrar-se em situação  económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.
« Se o processo revelar inequivocamente que o devedor se encontra numa situação de insolvência atual, o juiz deve recusar oficiosamente a homologação do plano que, ainda assim, foi aprovado. Em tal situação estamos perante uma violação não negligenciável das regras procedimentais e da norma legal basilar (a que define em que situações é admitido o processo de revitalização) que permite a realização ou preenchimento do seu conteúdo.
Acresce que o uso ilegal e abusivo do procedimento implica a nulidade do negócio jurídico subjacente e, inclusivamente, a sua neutralização por excesso manifesto dos limites impostos pelo fim económico do direito, nos termos legalmente previstos, vejamos se  ocorre a violação  do art. 195º, nº2,  do CIRE, como sustenta a recorrente.»Ac. STJ de 3.11.2015, Proc. 1690/14.2.TJCBR.C1.S1, Relator José Rainho.
Analisando os elementos dos autos, desde já adiantamos, que se nos afigura, assistir razão à recorrente ao afirmar que o devedor se encontra em situação de insolvência não eminente mas actual.
No requerimento inicial, o Autor  alegou  que é divorciado e actualmente vive sozinho; desenvolve actividade  no sector  do  transporte de passageiros, trabalhando por conta de outrem no transporte diário de passageiros, em veículo de terceiros; anteriormente foi chefe de sala em restaurantes e vendedor de artigos para importação e exportação; foi vítima de um despedimento ilícito e ficou largos  sem trabalho, vendo-se obrigado a pedir ajuda a familiares e amigos, a quem deve avultadas quantias; as responsabilidades assumidas implicaram o seu descalabro económico; consegue sobreviver com as suas poupanças e a ajuda de familiares, tentando liquidar, com  muita dificuldade, parte do seu passivo; não se encontra na sua óptica numa situação de insolvência, mas  a sua  real  situação económica  afigura-se muito difícil; não consegue obter crédito junta da banca e tem dificuldades sérias  em cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas e vincendas  estando em situação de solvência iminente;  está convencido que em breve conseguirá emprego  e que os seus rendimentos lhe permitirão pagar aos seus credores desde que estes aceitem que o pagamento seja negociado globalmente e  feito de forma faseada, sendo viável a  sua recuperação económico-financeira.
De notar que esta descrição da situação profissional e económica do Autor é imprecisa e ambígua, pois começa por dizer que   trabalha por conta de outrem no transporte diário de passageiros, não indicando qualquer remuneração e, mais  adiante,  refere que está convencido que em breve conseguirá emprego e que os rendimentos lhe permitirão pagar aos credores.  Por outro lado, no requerimento de apoio judiciário que juntou com o requerimento inicial, o A.  não   mencionou qualquer actividade profissional, nem por conta própria, nem por conta de outrem, e também não indicou qualquer rendimento, pelo que temos de concluir que presentemente se encontra desempregado e sem  qualquer fonte de  rendimento, pois   no  Acordo de Pagamento  também  não é  indicado  qualquer provento.
O Acordo aprovado,  no  que concerne à  sua situação  profissional e económica do Autor/devedor repete o alegado na petição inicial, acrescentando apenas que o  requerente  é proprietário de metade indivisa de uma fracção autónoma.
E  face  às reclamações de créditos  apresentadas e aos documentos carreados para os autos, apurou-se que  as  dívidas do Autor ascendem a € 143.034,64, e  o mesmo há já largos anos  que não cumpre as suas obrigações, pois o crédito da ora recorrente foi reconhecido por sentença de 18.3.2002 e a  respectiva execução está pendente desde junho desse  mesmo ano, tendo aí sido penhorada a metade indivisa  da fracção  de que aquele  é comproprietário. Nessa execução o A. celebrou três acordos de pagamento que não foram cumpridos e a venda da sua quota-parte da fracção foi ordenada em 17.12.2021 pelo preço de € 50.000,00, tendo a comproprietária HH exercido o direito de preferência, estando a venda em vias de formalização quando deu entrada este processo, o que determinou  a suspensão  do processo.
Acresce que o A. também não pagava as prestações dos dois empréstimos  bancários contraídos  para a aquisição de tal fracção desde 2012, por isso, a comproprietária, sua ex-companheira que foi pagando integralmente tais encargos e reclamou nestes autos  a quantia de € 23.448,90. E ainda permanece em dívida ao Banco mutante (Banco 1...) que beneficia de hipoteca  a  quantia de €36.258,41 também aqui  reclamada.
Ante esta factualidade, resulta por demais óbvio que o Devedor se encontrava aquando da abertura do PER,   e continua a encontrar-se, em situação de insolvência atual, tal como esta é legalmente caracterizada nos art.s 3º nº 1 e 20º nº 1 alíneas a), b) do CIRE e não em simples situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.
É verdade que, como acima se evidenciou, os conceitos de situação económica difícil e de situação de insolvência meramente iminente são relativamente indeterminados e nem sempre claramente distinguíveis do conceito de insolvência atual. Porém, essa dificuldade de distinção não se coloca no caso vertente, pois que neste é inequívoco que o Devedor se encontra (e desde muito tempo antes da abertura do PER) em situação de insolvência. pois que, os factos revelam que não dispõe de quaisquer rendimentos e caiu em estado de impossibilidade absoluta de cumprimento das suas obrigações vencidas. O que indica com toda a clareza uma situação de incontornável impossibilidade de satisfação pontual da generalidade dos débitos que sobre ele recaem. E não é a circunstância de ser ter logrado obter a aprovação de um plano de recuperação que altera por si só e inelutavelmente tal efeito.
Assim, com base com base na violação do art. 222ºA que define o pressuposto material que legitima o recurso ao PEAP devia ter sido   recusada a homologação do Acordo de Pagamento.
Neste sentido de que o Tribunal deve recusar a homologação do acordo de pagamento aprovado   pelos credores quando   dos elementos dos autos resulta inequivocamente que o devedor   se encontra numa situação de insolvência actual e não iminente, veja-se, entre outros, o Ac. da RL de 23-03-2021, proc. 6468/20.1T8SNT.L1-1, Relatora Isabel Fonseca.
A recorrente invoca ainda a violação do art. 195º, nº2 do CIRE. Segundo este normativo, relativo ao plano de insolvência, mas aplicável subsidiariamente ao acordo de pagamento, nos termos do art. 222.º-F, n.º 5, do mesmo diploma, o plano/ acordo deve indicar a sua finalidade, descrever as medidas necessárias à sua execução, já realizadas ou ainda a executar, e conter todos os elementos relevantes para efeitos da sua aprovação pelos credores e homologação pelo juiz, nomeadamente: a descrição da situação patrimonial, financeira e reditícia do devedor e   a indicação   dos meios de satisfação  dos credores – alíneas a) e b).
Ora, atentando no Plano de Pagamento apresentado pelo devedor, supra descrito, verificamos que o mesmo no ponto IV, estabelece  o pagamento  em 30 prestações dos créditos do Estado e da Segurança Social,  o crédito garantido  mantém as condições contratuais e as garantias e relativamente aos créditos comuns   fixa um período de carência de 12 meses e prevê o pagamento do capital, com perda total dos juros vencidos e vincendos em 84 prestações mensais , iguais e sucessivas, sendo a última no valor de 40% do capital.   
Porém, o Devedor não indicou, em qualquer ponto do acordo, com que meios ou rendimentos pretende satisfazer as ditas prestações, como impõe o referido normativo.  
Na resposta ao recurso   veio dizer que o pagamento poderá ser efectuado com a venda da sua quota - parte na fracção autónoma. Ora, se a intenção era essa, tal tinha que ficar consignado no Acordo, pois constitui uma alteração significativa do crédito garantido em relação ao qual consta que   se mantêm as garantias constituídas.
Assim sendo,  não contendo o Acordo a  indicação da situação creditícia do devedor e  dos meios que serão afetos à satisfação dos créditos reconhecidos,  acordo de pagamento, consideramos que  essa omissão constitui igualmente violação não negligenciável  das normas  aplicáveis ao   seu conteúdo - Neste sentido decidiu o Ac. da RC de 10.12.2020, proc. 4066/20.9T8CBR-B.C1, Relatora, Maria João Areias.
Deste modo, também com este fundamento devia ter sido recusada a homologação do acordo de pagamento.
Terá, pois, de proceder a pretensão da credora / recorrente de ver recusada a homologação do  Acordo de Pagamento.
                                              
V. Decisão

Pelo exposto,  acordam os Juízes desta Secção Cível da Relação de Guimarães  em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando-se a decisão recorrida, decide-se rejeitar  a homologação do “ Acordo de Pagamento” apresentado  nos autos pelo Devedor, devendo  na 1ª instância ser observado o prescrito no nº6 do art. 222ºF do CIRE.
Custas pelo  Requerente/ apelado, sem prejuízo da decisão do apoio judiciário.
Notifique
Guimarães, 30 de março de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto : Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte