Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
197/12.7GDGMR.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Após a revisão do Código Penal de 2007, passou a ser unívoco de que pode bastar um só comportamento para a condenação por crime de violência doméstica, não sendo necessária a reiteração de comportamentos.
II – Nesses casos, há a prática do crime de violência doméstica e não a de crimes de ofensa à integridade física, injúria, ameaça ou sequestro, quando em face do comportamento demonstrado, globalmente considerado, for possível formular o juízo de que o agente demonstrou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do tribunal da Relação de Guimarães

I)

Relatório

No processo comum supra referido do 3º Juízo Criminal de Guimarães, por Sentença de 18.03.2013, foi para além do mais, decidido:

Condenar o arguido Fernando C... pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.° 152.°, n.° 1, al. a) do Código Penal, na pena de 14 (catorze) meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo mesmo período, com a condição, no prazo de 10 meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, entregar à Delegação de Braga da APAV a quantia de € 750,00, devendo comprovar no processo e naquele prazo tal entrega;

Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante Anabela C... e, em consequência, condenou-se o arguido/demandado a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais sofridos, acrescida dos juros desde a data da notificação do pedido, à taxa legal.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, concluindo na sua motivação: (transcrição)

1. Versa o presente recurso sobre matéria de facto e de direito e vem interposto da douta sentença que condenou o arguido Fernando C... como autor de um crime de violência doméstica, de que foi vítima Anabela C..., na pena de 14 meses de prisão, cuja execução se suspende pelo mesmo período, com a condição de, no prazo de 10 meses a contar no trânsito em julgado da decisão recorrida, entregar à Delegação de Braga da APAV a quantia de € 750,00, devendo comprovar no processo e naquele prazo tal entrega.

2. O recorrente discorda totalmente da decisão proferida pelo Tribunal a quo, no que respeita aos factos dados como provados e não provados, que não se adequam à prova produzida, e ainda no que respeita à motivação de facto.

3. O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, designadamente o exame médico legal e a certidão do assento de casamento, conjugado e analisado com a prova produzida em audiência; Contudo, da análise de toda a prova produzida em audiência de julgamento logo se constata a sua fragilidade e inconsistência, reveladoras de que o Tribunal a quo não apreciou crítica e racionalmente as provas, de acordo com as regras da experiência, da lógica e do senso comum.

4. Saliente-se o facto de o tribunal a quo, na formação da sua convicção, ter dado especial relevância às declarações prestadas pela ofendida e pela única testemunha por si arrolada Maria S... (tia da ofendida), que a nada assistiu, denota uma postura claramente tendenciosa e contexto inflacionado, o que obrigava a uma criteriosa análise dos demais meios de prova (objetivos), por forma a tentar captar, de entre os relatos emotivos e tendenciosos da ofendida e da testemunha Maria S..., aquilo que, com a segurança que se impõe, pôde dar-se como assente.

5. O tribunal a quo deu como provado que o arguido ofendeu e agrediu a ofendida com base no depoimento da mesma e da testemunha Maria S..., mas da transcrição do depoimento de tal testemunha não consta em momento algum a afirmação desse facto, pelo que tal configura, salvo melhor, uma situação de erro manifesto no julgamento da matéria de facto, pois apesar da testemunha Maria S... afirmar que o arguido agrediu a ofendida, a mesma soube de tal facto apenas por o mesmo lhe ter sido relatado pela ofendida, o que consubstancia uma valoração de meio de prova proibido (art 129º e 130° do CPP).

6. Sempre deveria ser aplicado o princípio in dubio pro reo, enquanto correlato processual do princípio da presunção da inocência do arguido, gozando o arguido da presunção de inocência (artigo 32° n°2, da Constituição da República Portuguesa), toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.

7. No que aos factos desfavoráveis ao arguido tange, a dúvida insanável deve induzir a dar como não provado o facto sobre o qual recai; se o facto duvidoso, porque duvidoso, nunca poderá ser considerado como provado, deverá lançar-se mão do princípio in dubio pro reo em sede de fundamentação de direito, para assim se lograr obter o resultado ínsito naquele princípio.

8. Os factos provados, mesmo mantendo-se inalterados, são suficientes para a condenação do arguido por um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152 n° 1 al. b) do Código Penal.

9. Há maus tratos quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.

10. A situação dos autos não poderá nunca integrar o conceito de maus tratos, pelo que não houve qualquer propósito por parte do arguido de intimidar, punir ou sequer humilhar a ofendida; o mesmo queria tão só recuperar os documentos que a ofendida lhe havia tirado, comportamento que esta protagonizou inúmeras vezes com o propósito de irritar o arguido.

11. Atentos os factos dados como provados, verifica-se que a conduta do arguido se resumiu a insultos (sublinha-se que, apesar de ter resultado provado que o arguido agarrou-lhe o pescoço ao mesmo tempo que dizia vou-te matar, o certo é que não resultou - porque não vinha descrito o respetivo elemento subjetivo na acusação - que o mesmo tenha atuado como dolo), não assumindo gravidade tal que as possa fazer subsumir ao conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, pelo que deverá o arguido Fernando C... ser absolvido da prática do crime de violência doméstica e, consequentemente, absolvido do pagamento de quaisquer montantes à ofendida Anabela M....

12. É incompreensível a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever: entregar à Delegação de Braga da APAV a quantia de € 750,00.0 dever imposto pelo tribunal "a quo" é desproporcionado e injustificado.

13. O tribunal deve, impor uma condição/dever que seja compatível com a capacidade económica do Arguido, o que não sucede no caso sub judice, pois o Recorrente aufere a quantia de € 600,00 por mês e suporta sozinho a prestação do [Caixa de Texto]empréstimo contraído para aquisição da habitação, encontrando-se numa situação de clara insuficiência económica, pelo que, nunca o Recorrente poderá cumprir o pagamento da quantia de € 750,00 para evitar o cumprimento da pena de prisão!

14. Trata-se de uma obrigação pecuniária economicamente incomportável para o Recorrente, podendo mesmo, considerar tal imposição inconstitucional por violadora do artigo 182 n.° 2 da C.RP.

15. Além do mais, pese embora o dever previsto no artigo 51 nº 1 a) do C.P. vise a reparação do mal do crime (e nessa medida a tutela dos interesses do ofendido), não pode ser esquecido que ele não deixa de participar da natureza penal do instituto da suspensão. Na decisão não há apenas que atender aos interesses do ofendido, havendo também de ponderar se, no caso concreto, o dever é imposto pelas finalidades da punição visadas com a suspensão (artigo 50 n.° 1 C.P.). A primeira finalidade politico-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes. Não nos parece que essa finalidade seja melhor cumprida com a imposição ao arguido do pagamento de tal quantia.

16. O longuíssimo período de suspensão da pena já constitui, de per si, pena suficientemente pesada (a espada de Dâmocles penderá todos os dias sobre a cabeça do arguido)».

Termina requerendo a absolvição.

O Ministério Público quer junto do Tribunal recorrido, quer neste Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


***

O Tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:

O arguido é, desde 01 de Fevereiro de 1981, casado com Anabela C... encontrando-se em processo de divórcio;

No dia 29 de Maio de 2012, pelas 19h20m, na logradouro da residência do casal sita na Rua L..., nesta comarca, o arguido dirigiu-se à ofendida e chamou-lhe "Filha da puta, ladra, és uma podre";

A ofendida retirou ao arguido uns papéis e quando fugia caiu ao chão, nesse instante o arguido agarrou-lhe o pescoço por trás pretendendo esganá-la ao mesmo tempo que dizia "Vou-te matar";

Como consequência directa e necessária das agressões infligidas, Anabela M..., sofreu dores na região cervical, escoriação superficial no pescoço localizada na região anterior com 0,5 cm de maiores dimensões, o que lhe determinou 3 dias para a consolidação médico-legal, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional;

Com o comportamento supra descrito pretendeu e conseguiu o arguido molestar o corpo de Anabela M..., sua mulher, causando-lhe dor e as lesões supra descritas, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixou;

Pretendeu ainda o arguido com o seu comportamento humilhar a ofendida, assustando-a e diminuindo-a no respeito que lhe era devido;

Ao ouvir as palavras que lhe foram dirigidas pelo arguido, a ofendida ficou receosa, temendo que aquele viesse, num futuro próximo, a atentar contra a sua vida ou integridade física, tendo-se também sentido humilhada e envergonhada;

Ficou ainda psicologicamente fragilizada, tendo a médica que a acompanha aumentado a dosagem da medicação que tomava;

Sabia o arguido que as expressões que proferiu eram idóneas a causar na ofendida, como efectivamente causou, receio pela vida ou integridade física;

Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as apontadas condutas eram punidas e proibidas por lei;

O arguido vive na mesma casa com a esposa, pagando ao banco € 350,00 de prestação do empréstimo contraído para a sua aquisição;

Ganha € 600,00 por mês, tem a 4a classe e não tem antecedentes criminais.

Convicção do Tribunal

A convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos, nomeadamente o exame médico legal de fls. 9 a 11 e a certidão de assento de casamento de fls.67, conjugado e analisado criticamente com a prova produzida em audiência.

O arguido referiu que continua a viver na mesma casa com a ofendida, estando a correr processo de divórcio, fazendo vidas totalmente separadas, como já acontecia na data dos factos constantes da acusação, negando a prática dos factos que lhe são imputados. Referiu que a ofendida lhe tirou uns documentos que tinha no bolso e fugiu, tendo caído, já no exterior da habitação, tendo-lhe então tirado os documentos da mão e ido embora, referindo que não a insultou ou lhe tocou e que na altura não reparou se ela apresentava lesões.

A sua negação dos factos não mereceu credibilidade, atentas as lesões que a ofendida apresentava quando foi submetida a exame médico-legal, bem como o depoimento por esta prestado, que, de forma coerente, precisa, e tida por verdadeira, sendo patente a sua situação de fragilidade e dependência naquela relação.

Assim, a ofendida, que disse encontrar-se desempregada e que vive na mesma casa do arguido, não tendo quaisquer rendimentos, disse que este alterou o seu comportamento a partir do início de 2007, altura em que a ofendida ficou desempregada, passando a tratá-la mal, diminuindo-a e humilhando-a, dizendo que não estava para sustentar gandulas, a ela não sabia fazer nada, nem sequer sabia cozinhar ou fazer as compras. Confirmou a pendência da acção de divórcio e que de facto lhe tirou um papel do bolso da camisa e saiu para o quintal, tendo o arguido ido atrás dela, tendo a ofendida caído. O arguido então tirou-lhe o papel que tinha na mão e, no chão, agarrou-a pelo pescoço, tendo-lhe chamado puta, vaca e podre e que a matava, tendo-a depois largado e ido embora, trabalhar. Disse ter ficado com um pequeno arranhão no pescoço e tido dores, tendo sentido, vergonha, humilhação e receio de que o arguido a agredisse novamente, passando a fechar sempre a porta do quarto que utiliza, e tido dificuldades em dormir. Disse ainda que ninguém assistiu a tais factos e que teve necessidade de aumentar a medicação que já tomava para a depressão. Referiu ainda que o arguido ganha cerca de € 600,00 por mês, pois trabalha à noite, tendo, por tal motivo, um acréscimo de vencimento. Disse ainda que, devido às dificuldades financeiras que atravessa vai muitas vezes comer a casa de uma tia.

Prestou também depoimento a testemunha Maria S..., tia da ofendida, a depôs de forma totalmente convincente, referindo que não assistiu aos factos em causa, mas que a ofendida, depois de ter ido à GNR foi a sua casa e lhe relatou o ocorrido e que estava transtornada e demonstrando medo, queixando-se do pescoço e que se sentiu humilhado pelo que o arguido lhe fez, nomeadamente os insultos que lhe dirigiu, referindo que aumentou a medicação que tomava. Disse ainda que dá apoio à ofendida, dando-lhe muitas vezes de comer.

Fundou-se ainda o tribunal no CRC junto aos autos.


II)

Dado que as declarações prestadas oralmente em audiência se mostram documentadas, este Tribunal conhece de facto e de direito, nos termos dos artºs 364º, nº 1 e 428º, nºs 1 e 2 do C.P.P.

As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.).

Assim a divergência fundamental do arguido Fernando C... relativamente à decisão recorrida, assenta em alegado erro de julgamento, porquanto segundo refere a prova produzida em audiência de julgamento não deveria ter levado o Senhor juiz a quo a acolher a tese descrita na acusação.

Na perspectiva do recorrente a prova produzida em julgamento é frágil e inconsistente, sendo que o senhor juiz a quo não apreciou crítica e racionalmente as provas, de acordo com as regras da experiência, da lógica e do senso comum.

Salienta, por outro lado que o tribunal a quo atribuiu especial relevância, na formação da sua convicção às declarações prestadas pela ofendida e pela sua tia Maria S..., que a nada assistiu. A seu ver houve valoração de prova proibida, na medida em que a Maria S... se limitou a relatar o que que lhe foi contado pela ofendida.

Vejamos:

Nos termos do artº 127° do CPP "... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente" o que não se confunde com apreciação arbitrária da prova.

A apreciação em causa deve ser realizada de acordo com critérios lógicos e objectivos e determina uma convicção racional, objectivável e motivável.

Ora conforme, decorre da fundamentação constante da sentença recorrida, e que acima se deixou transcrita, para que dúvidas não haja, o Exmº Senhor Juiz a quo, que usufruiu das vantagens da imediação e da oralidade e a quem cabia aferir da credibilidade dos veículos transmissores dos factos, explicita os motivos porque atribuiu relevância aos elementos probatórios em que alicerçou a sua convicção (a negação dos factos por parte do arguido não mereceu credibilidade, atentas as lesões que a ofendida apresentava quando foi submetida a exame médico-legal, bem como o depoimento por esta prestado, que, de forma coerente, precisa, e tida por verdadeira, sendo patente a sua situação de fragilidade e dependência naquela relação), sendo certo que em nenhum caso se está perante prova tarifada, mas sim perante prova sujeita à livre apreciação do julgador, à luz das regras da experiência comum.

Ou seja, através da fundamentação constante da sentença recorrida fica-se perfeitamente ciente das razões que levaram o Mmº Juiz a quo a acolher a versão dada em audiência pela ofendida Anabela C... e a desconsiderar a versão relatada pelo arguido/recorrente.

Ou seja, nenhum erro patente de julgamento se detecta. O tribunal a quo avaliou a prova segundo a sua livre convicção, sem que tivessem sido violadas quaisquer regras da experiência comum ou sido utilizados meios de prova proibidos.

E nem se argumente como faz o recorrente que o Senhor juiz a quo valorou um meio de prova proibido ao dar relevância o testemunho da Maria S... nos termos em que o fez.

Nesta parte e para demonstrar a sem razão do arguido, limitar-nos-emos a transcrever o que se observou sobre esta matéria, no acórdão desta relação proferido no recurso n°1509/09.6PBBRG.G1, relatado pelo desembargador Fernando Monterroso:

"Nada na lei limita a valorização da prova testemunhal aos que têm «conhecimento directo» dós factos objecto do processo. A lei não circunscreve a prova testemunhal aos que assistiram à ocorrência desses factos. A prova há-de ser, toda ela, conjugada e relacionada. Pode uma testemunha não ter visto o homicida a efectuar o disparo, mas tê-lo visto a fugir momentos depois com a arma na mão. O seu depoimento conferirá credibilidade a outro que, embora de forma hesitante, afirme ter visto o homicídio a ser executado. Pode também a testemunha não ter visto uma agressão, mas ter escutado gritos enquanto ela era perpetrada; ou, simplesmente, ter constatado a existência de ferimentos na vítima e ouvido as queixas desta sobre quem lhe bateu. Pode, finalmente, ter ido em socorro, chamado por alguém que diz estar a ser agredido. O normal e o que dizem as regras da experiência (art. 127 do CPP) é as pessoas queixarem-se de quem efectivamente as agrediu, nomeadamente quando as queixas são feitas logo após os factos ou quando ainda são visíveis as sequelas da agressão.

Este tipo de depoimento não constitui "depoimento indirecto", de "ouvir dizer", proibido pelo art. 129 do CPP. Nestes casos a testemunha descreve o que "viu" e/ou "ouviu" (os ferimentos, os gritos...) e o que constatou pessoalmente (a reacção do queixoso quando instado a contar a causa dos ferimentos que apresentava). Quando se descrevem comportamentos humanos, é normal que se refira o que os intervenientes foram dizendo. De outro modo, a maior parte das vezes, a descrição ficaria incompleta, porque, tendo o ser humano o dom da fala, usa-o para justificar atitudes e reacções. O conhecimento que a testemunha transmite nesse tipo de depoimento é aquele que ela própria adquiriu através dos seus próprios sentidos, cabendo ao tribunal avaliar essa prova como contributo para a procedência ou não da acusação.

Como quer que seja, mesmo que se considerasse que nestes casos (na parte em que a testemunha conta o relato que a vítima fez dos factos), se está perante um depoimento indirecto, tal "depoimento indirecto" pode servir como meio de prova, se no julgamento a vítima for ouvida. A letra da norma do art. 129 n° 1 do CPP é clara neste sentido: se o juiz não chamar a depor a pessoa a quem a testemunha "ouviu dizer" é que "o depoimento produzido não pode (...) servir como meio de prova... ".

Estes autos permitem perceber bem a razão deste regime legal: não é indiferente para a credibilidade do que diz um queixoso, saber se ele apenas afirma determinado facto em juízo, ou se também o contou em momentos relevantes relacionados com o episódio sob julgamento (a ofendida prestou declarações).

Acrescentar-se-á, apenas, que havendo o depoimento da pessoa a quem a testemunha "ouviu dizer" se garante a observância dos princípios da imediação e do contraditório.

Improcede, pois, esta questão.

Por outro lado, não tinha o tribunal recorrido que lançar mão do princípio in dubio pro reo uma vez que não teve dúvidas de que o recorrente praticou a conduta delituosa que lhe vinha imputada na acusação. Decidiu em favor de uma versão dos factos, explicando e fundamentando tal opção.

Cumpre ainda sublinhar que o tribunal recorrido não alicerçou a sua convicção apenas nas declarações da ofendida Anabela C..., pois conforme decorre da fundamentação constante da sentença recorrida, a convicção foi também alicerçada no teor do testemunho da Maria S..., tia da ofendida (meio de prova válido, como acima vimos) e bem assim nos demais elementos probatórios documentais e periciais. E neste particular importa sublinhar que nada impede que o julgador se apoie exclusivamente em declarações da ofendida para sustentar a sua convicção (a prova da prática de um crime não tem necessariamente que resultar de um facto directamente apreendido pelas testemunhas, podendo sê-lo da conjugação de todos os factos). Mas, no caso, até não foi, como vimos.

Acresce que ouvida a prova que se encontra gravada, nenhumas dúvidas subsistem a este Tribunal de que a versão dos acontecimentos acolhida nos factos provados está em perfeita harmonia com a prova que foi produzida em julgamento. Com efeito, do testemunho da ofendida Anabela C... resulta inequivocamente que o arguido nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos autos, insultou e agrediu a sua mulher nos exactos termos dados como assentes. E o testemunho da Maria S... confirma que a ofendida em virtude do comportamento delituoso do seu marido ficou transtornada, nervosa e com medo do que futuramente lhe poderia acontecer.

Em suma, não basta contrapor à convicção adquirida pelo tribunal em sede probatória a convicção do próprio recorrente, maxime porque o tribunal é livre na apreciação da prova.

Ora, é preciso também não esquecer que o recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas antes constitui um mero remédio para corrigir erros patentes de julgamento sobre tal matéria.

Na verdade, como elucidativamente, se escreve no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 02a4324, relator Conselheiro Afonso Paiva,

"A admissibilidade da respectiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.

Assim, por exemplo:

a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;

b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram ) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado.

c) Apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas."

Perseguindo o saber vertido neste aresto, e tendo em conta tudo quanto acima se expôs, é manifesto que nenhum erro patente de julgamento se detecta em termos de impor a alteração da matéria de facto provada.

Em conclusão: da prova produzida nos autos devidamente conjugada entre si, pode concluir-se, de acordo com os critérios da experiência comum, da lógica do homem médio suposto na ordem jurídica e de bom senso, que face a tudo quanto acaba de ser exposto dúvidas não restam de que a matéria que foi dada como provada nenhuma censura nos merece e por essa razão se confirma integralmente.

Daí que apesar do esforço argumentativo do recorrente, o recurso não pode deixar de improceder nesta parte.

Do enquadramento jurídico-penal da apurada conduta

A questão suscitada é a de saber se os «factos provados», mesmo mantendo-se inalterados, são suficientes para a condenação do arguido por um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 al. b) do Código Penal.

Vejamos:

A revisão do Cod. Penal de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redacção do artigo 152 do Cod. Penal) bastava a prática de um só acto, ou se era necessária a “reiteração” de comportamentos. Actualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do nº 1 do art. 152 do Cod. Penal, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação.

Como, então, delimitar os casos de violência doméstica daqueles em que a acção apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro?

A solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos[Nota de Rodapé].

Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima. Uma mesma bofetada, dependendo das circunstâncias, pode ser só uma ofensa à integridade física ou um caso de maus tratos.

Ora no caso dos autos e ao contrário do invocado pelo recorrente é patente a existência de maus tratos.

Na verdade, o comportamento do arguido evidenciado nos factos provados é bem revelador do desprezo e da desconsideração que manifestou pela sua mulher. As agressões perpetradas produziram lesões e causaram dor à Anabela, sendo que o arguido se mostrou indiferente pelo estado em que a sua mulher ficou. Por outro lado ao proferir os insultos, nos termos em que o fez, quis o recorrente humilhar a sua mulher assustando-a e diminuindo-a no respeito que lhe era devido. É preciso, também, não esquecer as consequências que advieram para a Anabela como consequência da conduta do arguido: ficou receosa, temendo que o seu marido viesse, num futuro próximo, a atentar contra a sua vida ou integridade física, tendo-se também sentido humilhada e envergonhada; ficou ainda psicologicamente fragilizada, tendo a médica que a acompanha aumentado a dosagem da medicação que tomava. Trata-se assim de um comportamento especialmente humilhante, tendo em conta a situação de dependência económica em que a ofendida vivia (o arguido vive na mesma casa com o arguido).

Deve, pois, manter-se a condenação do arguido Fernando C... pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152 nº 1 al. a) do Cod. Penal.

Da condição da suspensão da execução da pena

Na perspectiva do recorrente a condição que lhe foi imposta na suspensão da execução da pena é desproporcionada e injustificada, face à sua capacidade económica.

Vejamos, então, se a condição de suspensão da pena (pagamento de 750 euros à Delegação de Braga da APAV, no prazo de 10 meses) é inadequada e desproporcional e, por isso, impossível de cumprir.

A suspensão da execução da pena pode ser simples ou com imposição de deveres (artº50º do C.P.).

A suspensão com imposição de deveres está regulada no artº51º do C.P., que dispõe:

A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

(…)

(…).

Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.

Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.

(…)”

No nº2 consagra-se o princípio da razoabilidade a que tem que obedecer a imposição de deveres[Nota de Rodapé]. Estes visam, essencialmente, um efeito reeducativo e pedagógico, e são impostos para reparar o mal do crime e facilitar a reintegração do condenado na sociedade contribuindo para que ele observe uma conduta correcta durante o período de suspensão, evitando-se, ao mesmo tempo, os danos causados pelo cumprimento de uma pena privativa de liberdade[Nota de Rodapé].

De acordo com o princípio da razoabilidade, o juiz não deverá impor ao condenado um dever que seja desde logo previsível que ele não pode cumprir, pois isso equivaleria a um adiar da execução da pena[Nota de Rodapé].

Tratando-se de contribuições monetárias, na ponderação da sua razoabilidade terá de ter-se em atenção a real capacidade económica do arguido, de modo a não frustrar desde logo o êxito da medida, mas sem esquecer que ela tem sempre que representar um sacrifício. Doutro modo, ficavam por atingir as finalidades da pena e da sua suspensão.

No caso, a imposição de tal dever justifica-se, pois como é sabido uma pena, qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente e no caso de pena suspensa muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada[Nota de Rodapé].

Mostra-se, pois, justificada a imposição do referido dever.

O montante fixado, face à situação económica do arguido, que se provou auferir 600 euros mensais, tendo um encargo com o banco no valor de 350 euros, no empréstimo contraído para a aquisição da casa de morada do casal, não se nos afigura exagerado já que, repete-se uma vez mais, não pode deixar de constituir e ser sentido por ele como um sacrifício.

De resto, se alguma alteração relevante ocorrer, futuramente, na sua vida que altere a situação económica, não deixará de ser tomada em consideração, desde que o tribunal dela tome conhecimento (artº51º nº3 do C.P.).

Em vista do exposto, não nos merece qualquer censura a concreta condição imposta ao recorrente, já que nenhuma circunstância aconselha ou impõe a aplicação de outra, sendo perfeitamente válidos e relevantes os pressupostos em que se estribou a mesma.

Face ao exposto se conclui que improcede sob todos os aspectos o recurso do arguido.

Em conclusão, não foram violadas quaisquer normas jurídicas, maxime as que são apontadas pelo recorrente nas suas motivações, não merecendo assim qualquer censura a decisão recorrida.


DECISÃO

Em conformidade com o exposto, os Juízes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Fixa-se em três Ucs a taxa de justiça devida pelo recorrente.