Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE DO EXEQUENTE LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ FACTOS CONCLUSIVOS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - É o propósito de esconjurar as execuções injustas que explica a opção do legislador em consagrar, nos arts. 858 e 866 do CPC, tipos de ilícito de natureza processual menos exigentes, no que tange ao elemento subjetivo, que o tipo de ilícito processual da litigância de má-fé do art. 542/1 do CPC. II - Os pressupostos de aplicação daqueles tipos especiais de responsabilidade processual não estão verificados nas situações em que o direito de crédito exequendo, incorporado no título, existe, mas em que vem a ser praticado, na sequência processual, um ato de agressão patrimonial ilegal, seja por ocorrer a destempo, seja por incidir sobre bens que não são suscetíveis de penhora ou que não respondem, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, seja ainda por infringir o princípio da proporcionalidade. III - Quanto a estas, na ponderação dos interesses antitéticos em jogo – de um lado, o favor creditoris, do outro, o favor debitoris –, o legislador entendeu não haver justificação para a elevação do patamar da responsabilidade do exequente, mantendo-a no quadro geral da litigância de má-fé. IV - O tipo legal da litigância de má-fé pressupõe, ao nível dos elementos subjetivos, que a parte tenha agido com dolo ou culpa grave. V - Mas se estiver em causa um comportamento enquadrável nos elementos objetivos da alínea d) do n.º 2 do art. 542, o tipo exige que o agente tenha atuado com uma intenção específica, o que vale por dizer que a descrição típica é inconciliável com uma atuação negligente, ainda que na sua forma mais acentuada. VI - Não pode, assim, afirmar-se a tipicidade da conduta do exequente que, em execução para entrega de coisa certa, baseada em sentença judicial, indicou bens do seu devedor à penhora sem que previamente tivesse providenciado pela conversão em execução para pagamento de quantia certa e tivesse procedido à liquidação desta, quando não ficou provado que procedeu desse modo dolosamente na prossecução de um objetivo ilegal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. 1).1. AA apresentou requerimento de oposição à penhora, por apenso à execução para entrega de coisa certa que contra si foi intentada por BB e CC, pedindo: O levantamento das penhoras realizadas sobre saldos de contas bancárias de que é titular, bem como da penhora do veículo automóvel de que é proprietária; A condenação dos exequentes como litigantes de má-fé, em custas e multa, no montante de 5 UC’s, e indemnização não inferior a € 3 000,00, “e ainda, nos termos previstos no art. 858 do CPC, a fixar em montante correspondente a 10% do valor da execução[,] a favor da executada.” (sic) Alegou, em síntese, que: os Requeridos (exequentes) não são “detentores de título executivo” (sic), uma vez que a sentença que ordenou a prossecução da execução ainda não transitou em julgado; estando em causa uma execução para entrega de coisa certa, não sendo esta encontrada, a penhora de bens apenas pode ser feita depois de requerida a conversão em execução para pagamento de quantia certa e de liquidada, através de incidente próprio, a obrigação e os prejuízos decorrentes do seu incumprimento; não foi o que ocorreu na execução, em que os Requeridos optaram por “ordenar” (sic) logo à agente de execução a realização da penhora, o que fizeram com o objetivo de causarem “graves danos à executada”; nessa sequência, a agente de execução designada procedeu às referidas penhoras, as quais são ilegais “por inexistência de título executivo para o efeito” (sic); para além do mais, tais penhoras, feitas para pagamento do montante de € 8 679,74, são excessivas, pois excedem o montante que os próprios exequentes atribuíram à execução (€ 5 000,01) e em que liquidaram as despesas previsíveis para cobrança do seu crédito (€ 500,00); os Requeridos “agiram, como agem, com manifesta má-fé”, de “forma temerária”, com “dolo intenso”, em clara violação do dever de probidade e das normas legais aplicáveis, com o objetivo, concretizado, de “desestabilizarem a situação da executada junto dos bancos, dos clientes e dos fornecedores” (sic); por outro lado, devido à penhora dos saldos bancários, a Requerente ficou privada dos meios necessários ao pagamento das suas contas; teve de pedir dinheiro emprestado a amigos e familiares; toda a situação provocou-lhe “grande desgosto e tristeza”, por ter sido apresentada como “má pagadora quando na verdade nada deve.” (sic) *** 1).2. Tendo sido determinado, através de despacho proferido nos autos principais, o levantamento das referidas penhoras, a Requerente foi notificada para informar se mantinha interesse no prosseguimento do incidente de oposição à penhora, tendo respondido afirmativamente.*** 1).3. Na sequência, os Requeridos, depois de notificados, vieram contestar dizendo, também em síntese, que: existe título executivo (a sentença judicial que condenou a Requerente a entregar-lhes os objetos identificados no requerimento executivo); apenas pode ser colocada em causa a tempestividade das penhoras realizadas, porque ainda não tinha sido feita a conversão da execução nem liquidado o valor dos objetos e do prejuízo resultante da sua não entrega; de qualquer modo, o art. 867 do CPC permite a penhora de bens do executado, na ação executiva para entrega de coisa certa, logo que requerida a conversão desta em execução para pagamento de quantia, como forma de evitar que o executado dissipe bens do seu património no hiato compreendido entre aquele momento e o trânsito em julgado da decisão de liquidação; os prejuízos alegados pela Requerente tiveram como única causa as penhoras, por cuja realização foi responsável a agente de execução designada.Concluíram pela improcedência do pedido de condenação como litigantes de má-fé e pela inaplicabilidade à situação do disposto no art. 858 do CPC. *** 1).3. Após a produção da prova indicada por Requerente e Requeridos, foi proferida sentença, datada de 13 de julho de 2024 (ref. Citius 191127792), em que se decidiu julgar “improcedente a presente oposição à penhora”, bem com o “pedido de condenação como litigante de má-fé” e de “condenação dos exequentes nos termos do disposto no art. 858 do CPC.”*** 2).1. Inconformada, a Requerente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):“I DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO: 1 - A oponente/apelante discorda do tratamento fáctico-jurídico dado pelo Tribunal a quo, pois no seu entender, as alíneas a) e c) da matéria de facto dada como não provada, foram incorretamente julgadas, pelo que tal factualidade deveria passar a constar da matéria de facto provada. 2- O processo de convicção, com o devido respeito, afigura-se-nos ilógico e irracional, violando as regras da experiência comum na apreciação da prova. 3- Contrariamente ao que consta da sentença recorrida, efetuadas as diligências para penhora em bens da executada, foram os exequentes que ordenaram a realização de penhoras desses mesmos bens e, informaram a Sra. Agente de Execução do risco de dissipação de bens! 4- O que aliás, resulta de forma clara e inequívoca, dos requerimentos dos exequentes juntos aos autos, que são idóneos a demonstrar tal factualidade, mas que não foram valorados corretamente. 5- Por requerimento (comunicado à Sra. Agente de Execução), datado de 09.09.2023, com a Ref.ª ...63 (atente-se que ainda não havia sido fixado o efeito do recurso, o que significa que ainda não havia título executivo. Estatui o art. 704º, nº1, do Cód. Proc. Civil que a sentença é título executivo apenas após o trânsito em julgado, “salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo.”), os exequentes ordenaram a penhora dos bens, designadamente, do veículo automóvel, todos os bens imóveis registados a favor da executada, eventuais créditos de IRS, bem como requereram que fosse notificado o Banco de Portugal para informar a existência de contas ou depósitos bancários e, em caso afirmativo, requereram a penhora dos respetivos saldos, alegando para o efeito, a máxima urgência, atento o risco de dissipação de bens. 6- Resulta provado que os exequentes influenciaram a conduta da agente de execução, quiseram que mesma procedesse de imediato às penhoras e que atuaram com dolo, de forma a entorpecer a ação da justiça e causar prejuízos à opoente, pondo até em causa o seu bom nome e credibilidade, pois, invocaram (inventaram), sem sustentação ou fundamento, a urgência nas penhoras com o risco de dissipação de bens. a) O que sabiam que tal não correspondia à verdade. b) Quando sabiam - resulta das diligências de penhora, que a opoente possuía para além do mais, um veículo automóvel e dois prédios urbanos, sendo um deles um estabelecimento comercial. c) Quando sabiam – tinham obrigação de saber – que ainda não existia título executivo – como atrás referido. d) Quando sabiam – tinham obrigação de saber – que estando em causa, como estava, uma execução para entrega de coisa certa e tendo sido requerida a sua conversão, teriam de previamente fazer liquidar o seu valor, caso a coisa não seja encontrada…como rege o artigo 867º do CPC. e) Sabiam os exequentes que em conformidade com o supra citado normativo legal, a penhora dos bens necessários para pagamento da quantia apurada pressupõe a prévia liquidação dessa mesma quantia (o que ainda não tinha ocorrido e ainda nem sequer ocorreu na presente data) e apesar de saberem solicitaram à Senhora AE que procedesse à penhora dos bens, com a maior urgência, alegando, falsamente, risco de dissipação de bens, tudo com o intuito de a influenciar, de a pressionar. f) Sabiam os exequentes que um dos bens era um estabelecimento comercial, que, como dispõe o artigo 751º, nº 3 do CPC, só é admissível a penhora desde que a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de 6 meses. Mesmo sabendo disso solicitaram à Senhora AE para proceder com a maior urgência à penhora do imóvel - estabelecimento comercial -; g) Não satisfeitos, no dia 21.09.2023, por requerimento com a Ref.ª ...91, vieram os exequentes requerer a conversão da execução para pagamento de quantia certa, insistindo com a ordem de penhora de bens, nomeadamente dos saldos das contas bancárias de que a executada era titular, quando é certo que ainda havia título executivo, pois estes ainda nem sequer tinham deduzido o respetivo incidente de liquidação, como lhes competia e quando já sabiam que a opoente possuía um veículo automóvel e dois prédios urbanos, sendo um deles um estabelecimento comercial. 7- Mesmo depois de advertidos por requerimento da executada, de 27.09.2023, com a Ref.ª ...46, que tal penhora era ilegal, a Sra. Agente de Execução, surpreendentemente, e notoriamente influenciada e pressionada pelos requerimentos (informações) dos exequentes, procedeu à penhora de saldos bancários, nomeadamente, da quantia de 50.000,00€. 8- Acresce que, por requerimento datado de 12.10.2023, com a Ref.ª ...63, a Sra. Agente de Execução, informa que pretende o auxílio da força pública para acompanhamento na diligência de entrega de coisa certa, sem apresentar qualquer justificação e/ou fundamento, designadamente, não invocou relutância ou recusa por parte da executada na entrega dos bens. 9- Todavia, nesta fase, ainda nem sequer havia feito qualquer diligência da entrega da coisa certa, ou seja, apesar de não saberem se a coisa ia ou não ser encontrada, a Sra. AE e os exequentes insistem, sabendo do erro, da ilegalidade que cometiam e dos prejuízos que iriam causar à executada… intenção é mais que patente…, na penhora de bens da executada…. veículo, imóvel, estabelecimento comercial e, mesmo sabendo do exagero, ainda indicaram à penhora as contas bancárias da executada … 10- É proferido despacho no dia 18.10.2023, com a Ref.ª ...79, em que o Tribunal ordena que a Sra. Agente de Execução seja notificada, para esclarecer se efetuou penhoras de saldos bancários e, em caso de resposta afirmativa, justificar o motivo de ter efetuado tal penhora. 11- Por requerimento datado de 23.10.2023, com a Ref.ª ...31, a Sra. Agente de Execução em resposta ao aludido despacho, vem informar para além do mais que, foi efetuada uma tentativa de efetivação de entrega da coisa nos termos do art. 861º do CPC no dia 17.10.2023, que se traduziu numa diligência negativa, uma vez que a executada não entregou qualquer bem, pelo que, só a partir da data de 17.10.2023, é que se podia até iniciar o incidente de liquidação, tal como decorre da lei. 12- Sendo certo que só no dia 02.11.2023 é que os exequentes dão entrada do incidente de liquidação, fixando a quantia exequenda em €9.815,02. 13- No dia 04.11.2023, o Tribunal profere o despacho com a Ref.ª ...58, em que ordena o levantamento das penhoras efetuadas pela Sra. Agente de Execução, tendo os exequentes respondido que se tratava de uma decisão surpresa, o que evidencia de modo claro que os exequentes tinham o propósito de que as penhoras permanecessem em vigor – mesmo sabendo que eram ilegais – com a intenção clara de prejudicar à executada. 14- Do supra exposto, dúvidas não subsistem de que, contrariamente às declarações prestadas, a Sra. Agente de Execução realizou as penhoras cumprindo ordens dos exequentes. 15- Não respeitou de imediato o doutamente ordenado pelo Tribunal – levantamento das penhoras por serem ilegais – por ter indicações dos exequentes que o douto despacho havia sido objeto de reclamação… 16- Ora, traduzindo-se a penhora num “ato de agressão” ao património do devedor, o legislador tem a preocupação de procurar assegurar que a mesma é limitada apenas àquilo que é necessário para garantir a satisfação do direito do exequente e custas do processo. 17- Daí que na execução para entrega de coisa certa, quando a coisa não é encontrada, a lei preveja a dedução do incidente de liquidação, para saber em concreto o valor da quantia exequenda. 18- Sendo certo que, a penhora de 50.000,00€, veio a revelar-se manifestamente excessiva em virtude da liquidação que até os exequentes vieram a peticionar (cerca de 10.000.00€) e que a executada contestou. 19- Não podemos olvidar que, a Sra. Agente de Execução foi indicada pelos exequentes no seu requerimento executivo, pelo que, se não houver cautela parcimónia e sobriedade nas relações entre os exequentes e o agente de execução por si designado, há o risco de, inadvertidamente, o agente de execução poder converter-se numa espécie de porta-estandarte de certos exequentes, implicando um tratamento discriminatório entre exequentes e executada, como resulta claramente demonstrado in casu, atentas as condutas preconizadas por ambos. 20- Como tal o facto dado como não provado na alínea a), deve passar a constar dos factos dados como PROVADOS. 21- É inegável que, os exequentes litigaram com manifesta má-fé, pois apesar de cientes de que não tinham razão, litigaram e deduziram pretensão conscientemente infundada. 22- Visaram entorpecer a ação da justiça, pois, bem sabendo (tinham e têm a obrigação de saber) que a ordem de penhora era ilegal, usaram meios dilatórios, com o intuito de apenas protelar o trânsito em julgado do despacho de fls., e de causar e avolumar os prejuízos à executada. 23- Fizeram dos meios processuais um uso manifestamente reprovável e praticaram omissão grave do dever de cooperação. 24- Os exequentes tinham a obrigação de prever (de saber) a necessidade de fazer liquidar o valor da coisa – pois tal decorre do regime legal aplicável, mormente, do art. 867º do CPC e, uma vez que quem requer a conversão da execução para pagamento de quantia certa não pode apartar-se da hipótese de o Tribunal convidar (pois não obriga, apenas decide) a parte, caso assim pretenda, a dar cumprimento ao estatuído na lei. 25- De notar que a executada invocou a ilegalidade da penhora realizada através de requerimento datado de 16.10.2023, Ref.ª ...10, sob o qual recaiu o despacho datado de 18.10.2023, com a Ref.ª ...04, que convidou a Sra. Agente de Execução a pronunciar-se acerca do requerimento da executada e justificar o motivo de ter efetuado tal penhora. 26- Sendo certo que, se os exequentes não tomaram posição quanto ao alegado pela executada, foi porque não quiseram, pois o ilustre mandatário dos exequentes foi notificado (por transmissão eletrónica entre mandatários), requerimento remetido via citius em 27.09.2023 e requerimento remetido via citius em 16.10.2023. 27- Os elementos constantes dos autos permitem-nos assim, concluir que os exequentes excederam os limites impostos pela boa-fé. 28- Pelo que, a factualidade dada como não provada na alínea c), deve passar a constar da factualidade dada como PROVADA. ii. DO DIREITO: Da Litigância de má-fé 29- A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implica, como consequência direta e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, que julgue procedente o pedido de condenação dos exequentes como litigantes de má-fé, bem como a condenação dos exequentes nos termos do disposto no art. 858º do CPC. 30- Como é consabido, o instituto da litigância de má-fé, previsto nos artigos 542º e seguintes, do C.P.C., constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso dos deveres de cooperação e de boa-fé (ou probidade) processual (arts. 7º e 8º, do CPC); 31- A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, em face do constatado uso que tenha feito dos mecanismos jurídicos postos ao seu dispor, com o vincado intuito de moralizar a atividade judiciária, sendo que, tanto pode revestir um caracter substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável). 32- Nestas duas modalidades está sempre em causa “um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais” com uma das finalidades aludidas no nº 2 do artigo 542º do C.P.C., circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto “às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais”; 33- Na verdade, encontrando a proibição da litigância de má-fé o seu fundamento num princípio de natureza puramente processual, que é o princípio da cooperação consignado no artigo 7º e seguintes do CPC, não estão em causa violações de posições de direito substantivo, mas sim e apenas ofensa a posições ou deveres processuais, com vista a prosseguir e acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, em ordem a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça; 34- Transpondo estes princípios para o caso concreto, não temos dúvidas que, os exequentes litigaram com manifesta má-fé, pois apesar de cientes de que não tinham razão, litigaram e deduziram pretensão conscientemente infundada. 35- Convém realçar que, foram os exequentes que ordenaram a penhora dos bens, designadamente, do veículo automóvel, todos os bens imóveis registados a favor da executada, eventuais créditos de IRS, bem como requereram que fosse notificado o Banco de Portugal para informar a existência de contas ou depósitos bancários e, em caso afirmativo, requereram a penhora dos respetivos saldos, alegando para o efeito, a máxima urgência, atento o risco de dissipação de bens, quando é certo que, ainda nem sequer havia sido fixado o efeito do recurso, o que significa que ainda não havia título executivo (ver requerimento datado de 09.09.2023, com a Ref.ª ...63). 36- Resulta provado que os exequentes influenciaram a conduta da agente de execução, quiseram que mesma procedesse de imediato às penhoras e que atuaram com dolo, de forma a entorpecer a ação da justiça e causar prejuízos à opoente, pondo até em causa o seu bom nome e credibilidade, pois, invocaram (inventaram), sem sustentação ou fundamento, a urgência nas penhoras com o risco de dissipação de bens. a) O que sabiam que tal não correspondia à verdade. h) Quando sabiam - resulta das diligências de penhora, que a opoente possuía para além do mais, um veículo automóvel e dois prédios urbanos, sendo um deles um estabelecimento comercial. i) Quando sabiam – tinham obrigação de saber – que ainda não existia título executivo – como atrás referido. j) Quando sabiam – tinham obrigação de saber – que estando em causa, como estava, uma execução para entrega de coisa certa e tendo sido requerida a sua conversão, teriam de previamente fazer liquidar o seu valor, caso a coisa não seja encontrada…como rege o artigo 867º do CPC. k) Sabiam os exequentes que em conformidade com o supra citado normativo legal, a penhora dos bens necessários para pagamento da quantia apurada pressupõe a prévia liquidação dessa mesma quantia (o que ainda não tinha ocorrido e ainda nem sequer ocorreu na presente data) e apesar de saberem solicitaram à Senhora AE que procedesse à penhora dos bens, com a maior urgência, alegando, falsamente, risco de dissipação de bens, tudo com o intuito de a influenciar, de a pressionar. Sabiam os exequentes que um dos bens era um estabelecimento comercial, que, como dispõe o artigo 751º, nº 3 do CPC, só é admissível a penhora desde que a penhora de outros bens presumivelmente não permita a satisfação integral do credor no prazo de 6 meses. Mesmo sabendo disso solicitaram à Senhora AE para proceder com a maior urgência à penhora do imóvel - estabelecimento comercial -; m) Não satisfeitos, no dia 21.09.2023, por requerimento com a Ref.ª ...91, vieram os exequentes requerer a conversão da execução para pagamento de quantia certa, insistindo com a ordem de penhora de bens, nomeadamente dos saldos das contas bancárias de que a executada era titular, quando é certo que ainda havia título executivo, pois estes ainda nem sequer tinham deduzido o respetivo incidente de liquidação, como lhes competia e quando já sabiam que a opoente possuía um veículo automóvel e dois prédios urbanos, sendo um deles um estabelecimento comercial. 37- E, insistiram com tal conduta, pois apesar de advertidos pela executada de que tal penhora era ilegal, insistiram com a penhora dos saldos bancários, requerimento ao qual a Sra. Agente de Execução veio a dar cumprimento, penhorando a quantia de 50.000,00€ (penhora essa que se veio a revelar manifestamente excessiva), quando ainda nem sequer sabia o quantitativo, pois os exequentes ainda não tinham procedido ao incidente de liquidação. 38- Para além de que, quando foram notificados da ordem de levantamento de penhora dada pelo Tribunal, os exequentes vieram alegar a “decisão surpresa”, apenas com o intuito de manter as penhoras que bem sabiam ser ilegais e, causar ainda mais prejuízos à executada. 39- Os exequentes visaram entorpecer a ação da justiça, pois, bem sabendo (tinham e têm a obrigação de saber) que a ordem de penhora era ilegal, usaram meios dilatórios, com o intuito de apenas protelar o trânsito em julgado do despacho de fls. , e de causar e avolumar os prejuízos à executada. 40- Ou seja, fizeram dos meios processuais um uso manifestamente reprovável e praticaram omissão grave do dever de cooperação. 41- Segundo o dever de boa-fé processual estabelecido no art. 8º do CPC, as partes têm a obrigação de, conscientemente, não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências dilatórias. 42- Os exequentes tinham a obrigação de prever (de saber!...) a necessidade de fazer liquidar o valor da coisa – pois tal decorre do regime legal aplicável, mormente, do art. 867º do CPC e, uma vez que quem requer a conversão da execução para pagamento de quantia certa não pode apartar-se da hipótese de o Tribunal convidar (pois não obriga, apenas decide) a parte, caso assim pretenda, a dar cumprimento ao estatuído na lei. 43- Aliás, a executada invocou a ilegalidade da penhora realizada através de requerimento datado de 16.10.2023, Ref.ª ...10, sob o qual recaiu o despacho datado de 18.10.2023, com a Ref.ª ...04, que convidou a Sra. Agente de Execução a pronunciar-se acerca do requerimento da executada e justificar o motivo de ter efetuado tal penhora. 44- Ou seja, se os exequentes não tomaram posição quanto ao alegado pela executada, foi porque não quiseram, pois o ilustre mandatário dos exequentes foi notificado (por transmissão eletrónica entre mandatários), requerimento remetido via citius em 27.09.2023 e requerimento remetido via citius em 16.10.2023. 45- Deste modo, cada um dos exequentes “não agiu com os deveres de cuidado e de indagação que sobre si impediam”, tendo, portanto, “atuado com negligência grave ou negligência grosseira ou culpa lata” (vide, Ac. da RL de 21.11.2019, in processo nº 329/14.0TBFUN-B.L1-6, acessível in www.dgsi.pt). 46- Pelo que, os exequentes não podem deixar de ser, condenados como litigantes de má-fé. b) Da aplicação do art. 858º do CPC 47- Sendo a execução considerada injusta, a lei prevê a possibilidade de o exequente ser responsabilizado pelos danos causados ao executado. De facto, apurando-se que o executado "foi vítima de uma perseguição injusta" ou de que foi promovida contra ele uma "execução infundada” o exequente, enquanto "autor da perseguição", deve indemnizá-lo pelas perdas e danos causados". 48- O artigo 858.º do CPC estatui que se a oposição à execução vier a proceder, o exequente, sem prejuízo da eventual responsabilidade criminal, responde pelos danos culposamente causados ao executado, se não tiver atuado com a prudência normal; 49- A responsabilidade do exequente prevista no artigo 858º do CPC depende da verificação cumulativa de três requisitos: 1) que a penhora tenha sido efetuada sem a citação prévia do executado, por imposição legal ou a requerimento do exequente; 2) que o executado haja deduzido oposição à execução, imputando ao exequente uma conduta dolosa, ou com negligência grosseira tendente a causar-lhe danos ou prevendo a possibilidade desse resultado; 3) que o juiz não só acolha os fundamentos invocados na oposição, como além disso reconheça que o exequente agiu sem a prudência normal exigível. 50- No caso dos presentes autos, entendeu o Tribunal recorrido que falta um dos requisitos de natureza processual, ou seja, o executado tinha de deduzir, de forma procedente, oposição à execução, quando no caso estamos perante oposição à penhora. 51- Salvo o devido respeito por melhor e superior entendimento, consideramos que o art. 858º do CPC deve ser aplicado nos presentes autos. 52- Note-se que, não está em causa aplicar a norma do art. 858º do CPC por analogia a situações nele não contempladas, antes está em causa, a montante da aplicação dessa norma, ter como análoga, a aplicação desse mesmo regime, quando se apura que o executado foi alvo de uma penhora infundada e ilegal, o que é algo diferente. 53- Cumpre referir que, no caso em apreço, estamos perante uma execução para entrega de coisa certa, que segue a forma de processo única, o que significa que, caso a coisa não seja entregue/encontrada, deve ser deduzido incidente de liquidação. 54- In casu, os exequentes intentaram execução para entrega de coisa certa, com fixação de prazo para entrega da coisa, em 15.12.2020, com a Ref.ª ...62. 55- A executada deduziu embargos, informando que já havia procedido à entrega dos bens, por requerimento datado de 12.07.2021, com a Ref,ª ...84. 56- Foi realizada a audiência e discussão de julgamento, e proferida sentença datada de 07.07.2023, com a Ref.ª ...81, que julgou não cumprida a obrigação exequenda, ordenando o prosseguimento da execução 57- Desta sentença a executada recorreu no dia 01.09.2023, com a Ref.ª ...08, sendo certo que, os exequentes, sem aguardarem pelo trânsito em julgado da sentença, ordenaram de imediato a penhora de bens. 58- Tendo sido efetuada a penhora de saldos bancários, nomeadamente da quantia de 50.000,00€, sem que os exequentes tivessem deduzido incidente de liquidação. 59- Ora, neste circunstancialismo específico e anómalo, executada não foi notificada nos termos e para os efeitos dos arts. 626º e 856º do CPC. 60- Isto é, a executada não teve oportunidade de deduzir oposição à execução, pois tendo os exequentes ordenado uma penhora que era ilegal (sem deduzirem incidente de liquidação), a executada deduziu oposição a essa mesma penhora. 61- Face ao exposto, cremos que, a executada não pode ser prejudicada, pelo facto de não ter deduzido oposição à execução, quando se trata de uma lacuna que só beneficia aqueles que cometem ilegalidades, como é o caso dos exequentes. 62- Pelo que, devem os exequentes ser condenados nos termos do art. 858º do CPC. 63- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 7º, 8º, 542º, 543º e 858º todos do CPC. 64- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, julgue procedente o pedido de condenação dos exequentes como litigantes de má-fé, bem como a condenação dos exequentes nos termos do art. 858º do CPC.” *** 2).2. Os Requeridos (daqui em diante, Recorridos) responderam, pugnando pela improcedência do recurso.*** 2).3. O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.*** 2).4. Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.*** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC[1]). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3). Tendo isto presente, as questões que se colocam nas conclusões formuladas pela Recorrente podem ser sintetizadas nos seguintes termos, de acordo com a ordem lógica do seu conhecimento: 1.ª Erro no julgamento da matéria quanto aos enunciados de facto dos pontos a) e c) do rol dos factos que na sentença recorrida foram considerados como não provados, impondo-se que os mesmos sejam considerados como provados; Independentemente da resposta à questão anterior, 2.ª Erro de interpretação (ut art. 639/2, b)) da norma jurídica constante do art. 858 por se ter entendido que está excluído do seu âmbito de aplicação a situação de facto em que o exequente numa execução para entrega de coisa certa requer a penhora de bens do executado sem que previamente tenha providenciado pela liquidação do valor da coisa e do prejuízo resultante da sua não entrega; 3.ª Erro de interpretação das normas jurídicas dos arts. 7.º, 8.º, 542 e 543, por se ter entendido que a conduta descrita não integra litigância de má-fé por parte do exequente; 4.ª Em caso de resposta afirmativa às questões anteriores, determinação, em substituição do Tribunal a quo (art. 665/2), das sanções a aplicar aos Recorridos e apuramento e quantificação da indemnização devida à Recorrente. *** III.1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida, começando pelos enunciados de facto que nela foram considerados como provados (transcrição): “1. Os presentes autos estão apensos à ação de processo executivo n.º 6341/20...., intentada a 09.12.2020, em que CC e BB designados como exequentes, reclamam a entrega por AA da máquina da loiça, forno, exaustor, placa a gás e esquentador anteriormente ali colocados e por si retirados. 2. No âmbito do Apenso de oposição à execução mediante embargos de executado - Apenso A, as partes acordaram, entre o mais, “As partes acordam em fixar o prazo da entrega dos objetos em questão nos presentes autos para o dia 26 de junho do corrente ano, pelas 17:00 horas, na morada dos exequentes/embargados. 3. “2. Os exequentes/embargados prescindem da instalação por parte da executada dos ditos objetos”. 4. Por decisão proferida em 2023-07-09, após a executada ter afirmado que havia cumprido a transação celebrada, o tribunal julgou não cumprida a obrigação exequenda e, nessa medida, ordenou o prosseguimento da execução. 5. No dia 07.08.2023, após ter efetuado pesquisas, a Sr. agente de execução informou que entende que “estão reunidos os pressupostos para converter a presente execução nos termos do art. 867º. Desta forma requerer seja feita a liquidação para que seja efetuada penhora dos bens necessários para o pagamento da quantia apurada”, notificando os exequentes para o termino da Fase 1. 6. Em 2023.09.01, a executada apresentou requerimento de interposição de recurso. 7. Em 2023.09.09, os exequentes indicaram à penhora um veículo automóvel, bens imóveis registado em nome da executada, eventuais créditos de IRS e saldos de depósitos bancários. 8. Em 2023-09-21, vieram os exequentes requerer que o tribunal proceda à liquidação, para que seja efetuada a penhora de bens necessários para o pagamento da quantia apurada. 9. Veio a executada, em 2023-09-27, opor-se a tal conversão. 10. Em 2023.10.08, a Sr. agente de execução requereu autorização para intervenção da força pública de segurança. 11. Na mesma data, procedeu à penhora de depósitos bancários, indicando como valor a penhorar € 50.000,00. 12. Por despacho de 11.10.2023, o tribunal admitiu o recurso, fixando-lhe efeito devolutivo, ordenou-se a notificação dos exequentes para darem cumprimento, querendo ao legalmente previsto, dando início ao incidente de liquidação, notificando ainda a Sr. agente de execução para esclarecer a diligência que pretende encetar para a qual necessita do auxílio da força pública. 13. Em 2023.10.16, veio a executada alegar que as penhoras realizadas nos autos eram ilegais. 14. Por despacho de 2023-10-18, o tribunal ordenou “Notifique a Sr. agente de execução para, no prazo de 5 dias, tomar posição em face do requerimento apresentado pelos executados, esclarecer se efetuou penhoras de saldos bancários dos executados e, em caso de resposta afirmativa, justificar o motivo de ter efetuado tal penhora”. 15. Em 2023-10-23, veio a Sr. agente de execução requerer “seja efetuada a liquidação do valor e do prejuízo resultante da falta de entrega, nos termos do artigo 867º, do Código de Processo Civil, uma vez que a coisa objeto da entrega não for encontrada”. 16. Em 2023-10-08, a Sr. agente de execução procedeu à penhora de um bem imóvel da executada a favor da execução apensa. 17. Em 2023-10-23, juntou aos autos auto de penhora, no qual consta a penhora do saldo de cinco depósitos bancários, no valor de € 7679,74 e um veículo automóvel, no valor de € 1000,00. 18. Em 2023-11-02, vieram os exequentes intentar o incidente de liquidação. 19. Por despacho de 04-11-2023, o tribunal ordenou “Uma vez que compete ao exequente fazer liquidar o valor da coisa que não é encontrada e do seu prejuízo, nos termos do disposto no artigo 867º, nº 1, do CPC, liquidação essa que é tramitada como um incidente, deve o exequente, caso assim o pretenda, dar cumprimento ao estatuído na lei, ordenando-se, assim, o levantamento das penhoras que foram efetuadas pela Sr. agente de execução, uma vez que não se encontra tramitado o incidente de liquidação, não podendo a Sr. agente de execução decidir a conversão da execução nos termos do disposto no artigo 867º, do CPC, efetuar penhoras, sem se encontrar liquidado o valor, não podendo a Sr. agente de execução repercutir sobre as partes os encargos decorrentes das penhoras e seus levantamentos”. 20. Os exequentes vieram arguir a nulidade do despacho, alegando que a decisão constante do despacho de 04.11.2023, se trata de uma decisão surpresa. 21. Conforme resulta do despacho de 2023-12-07, o tribunal indeferiu a arguida nulidade, constando ainda do despacho “In casu, a Sr. agente de execução, que também foi notificada do despacho, decidiu proceder à conversão da execução, nos termos do disposto no artigo 867º do CPC, efetuando penhoras, mesmo tendo sido notificada pelo tribunal que competia aos exequentes intentar o respetivo incidente, incidente esse que posteriormente foi intentado pelos exequentes. Deste modo, tratando-se de uma penhora manifestamente ilegal, e contrária ao que já tinha sido ordenado previamente pelo tribunal, ordenou-se o levantamento da penhora realizada pela Sr. agente de execução, ao abrigo do princípio da gestão processual (…)”. 22. Em 2023-12-13, a Sr. agente de execução procedeu ao levantamento das penhoras dos depósitos bancários, do bem imóvel e do veículo automóvel. 23. A opoente ficou privada de imediato de diversas quantias que foram penhoradas por vários dias. 24. A opoente pediu dinheiro emprestado a familiares. 25. A opoente sentiu desgosto e tristeza.” *** 2) Na mesma sentença, foram considerados como não provados os seguintes enunciados (transcrição):“a) A Agente de Execução realizou a penhora cumprindo ordens do exequente. b) O nome bancário da opoente ficou prejudicado, atentas as penhoras realizadas. c) Os exequentes, com as suas condutas, pretenderam, dolosamente, entorpecer a ação da justiça e causar prejuízos à opoente, pondo até em causa o seu bom nome e credibilidade.” *** (…)*** 1).2.1. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo a Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador. Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator: (…) *** 1).2.3. Isto posto, a Recorrente coloca em causa a decisão do Tribunal a quo de considerar como não provados os enunciados que ficaram a constar das alíneas a) e c) da fundamentação de facto.Não havendo obstáculo ao conhecimento, vejamos em detalhe se esta impugnação merece provimento. α – alínea a): “A Agente de Execução realizou a penhora cumprindo ordens do exequente.” Sustenta a Recorrente que os requerimentos formulados pelos Recorridos nos autos de execução, nos dias 9 de setembro (ref. ...57) e 21 de setembro de 2023 (ref. ...04), apresentados como documentos 2 e 3 com o requerimento de oposição à penhora, impõem decisão diversa da que ficou plasmada na sentença recorrida, na medida em que deles resulta que os Recorridos “influenciaram a conduta da agente de execução” (conclusão 6) que, assim, contrariamente ao que afirmou em sede de audiência de produção de prova, “realizou as penhoras cumprindo ordens” daqueles (conclusão 9). Acrescenta, nas alegações, que “a força probatória dos requerimentos” não foi, portanto, devidamente valorada pelo Tribunal a quo. Quid inde? Não há muito a dizer, tão evidentes que são os equívocos em que incorre a Recorrente e a fragilidade da tese que apresenta a este Tribunal de recurso. O primeiro desses equívocos reside no teor do enunciado em questão, ostensivamente conclusivo e, por isso, totalmente imprestável para integrar, qua tale, a fundamentação de facto do ato decisório, cujo cerne reside, precisamente, na alegação de que a agente de execução, ao efetuar as penhoras, se limitou a atuar a vontade dos Recorridos, em cumprimento de um suposto dever de obediência, de tal modo que, em rigor, foram estes os responsáveis pelo ato de agressão patrimonial. Com efeito, do n.º 4 do art. 607 do CPC resulta que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita (A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107), “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta. A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.” Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784[2], https://blogippc.blogspot.com/, que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…) A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.” Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento equilibrado da questão. Com efeito, tal como se expende no Ac. de 9.11.2023 (175/21.5T8VNF-B.G2), do presente Relator, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007, 07A3060, ainda na vigência do CPC de 1961, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.” Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)” O relator deste Acórdão, Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…” Sem prejuízo, como salientado no Acórdão desta Relação de 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…” No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.” Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa. Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.” Isto sem esquecer que, como refere a declaração de voto de vencido da Conselheira Luísa Geraldes ao Acórdão do STJ de 28.01.2016 (1715/12.6TTPRT.P1.S1), “ainda que relativamente a alguns deles se pudesse afirmar a sua natureza conclusiva, nem assim se justificava a eliminação pura e simples, de tais pontos de facto, devendo a Relação fazer uso dos poderes conferidos enquanto Tribunal de instância que conhece da matéria de facto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º do CPC.” Deste modo, sempre seria necessário substanciar a afirmação em questão através do enunciado de factos concretos que permitissem concluir, já em sede valorativa, a emissão de uma ordem dos Recorridos à agente de execução e o subsequente acatamento dessa ordem. Essa tarefa teria como ponto de partida o teor dos atos comunicacionais entre os Recorrentes e a agente de execução, cuja reconstituição está facilitada por terem sido reduzidos a escrito, constituindo, precisamente, os documentos em que a Recorrente sustenta a sua tese. E é aqui que reside o segundo equívoco da Recorrente: os atos em questão não passam de requerimentos: no primeiro, dirigido à agente de execução, os Recorridos (ou, dizendo com mais rigor, o advogado que os representa) limitaram-se a “indicar à penhora” o veículo automóvel com a matrícula QQ-..-.., todos os bens imóveis registados a favor da executada e eventuais créditos da executada”, bem como a requerer a penhora de saldos em contas bancárias cuja titularidade pela Recorrida se viesse a apurar, “com carácter de máxima urgência, atento o risco de dissipação de bens”; no segundo, dirigido já “ao Juiz de Direito” – e não à agente de execução –, os Recorridos mais não fizeram que sustentar o prosseguimento da execução com o ato de liquidação para que fosse “efetuada a penhora de bens necessários para o pagamento da quantia que seja apurada.” Como é axiomático, um requerimento mais não é que uma petição dirigida a alguém que tem um poder decisório – no fundo, um ato postulativo – e que, assim, tanto o pode deferir, como indeferir, pelo que o teor dos documentos em questão se afigura como demasiado pouco, para usarmos a conhecida expressão de Epicuro de Samos, para deles se concluir que foi dada, pelos Recorridos, e acatada, pela agente de execução, uma ordem de penhora de bens da Recorrente. Não queremos com isto significar que essa ordem não existiu, mas apenas que ela não pode ser retirada dos elementos de prova em que se baseia a Recorrente para impugnar a decisão do Tribunal a quo. Para a demonstrar seriam necessários elementos de prova que permitissem concluir, de uma forma objetiva, pela existência de outros atos comunicacionais que, pelo menos, complementassem aqueles, dando-lhes outro sentido – mais concretamente, por evidenciarem que a agente de execução agiu de forma contrária ao seu estatuto. Ora, tais elementos, não foram indicados pela Recorrente nem se vislumbra que constem dos autos ou que a sua existência possa ser retirada da prova oralmente produzida em sede de audiência. Sem tais elementos, a afirmação de que a agente de execução levou a cabo as penhoras seguindo ordens dos Recorridos – a qual tem como pressuposto que estes tenham sobre ela um poder de direção – apresenta-se, pelo menos, como especulativa, senão mesmo temerária. A própria Recorrente se encarrega de patentear a fragilidade da sua tese quando, numa verdadeira contradictio in terminis, afirma que, afinal, os Recorridos “influenciaram a conduta da agente de execução.” Está aqui implícito que a decisão de realizar as penhoras foi da agente de execução, ainda que por cedência, no prévio processo de formação da sua vontade, aos argumentos que os Recorridos lhe apresentaram. Isto exclui que tenha atuado como um mero agente cumpridor de ordens. Neste conspecto, sem necessidade de outras considerações, nenhuma censura merece a decisão de non liquet do Tribunal a quo quanto a este concreto enunciado. β – alínea c): “Os exequentes, com as suas condutas, pretenderam, dolosamente, entorpecer ação da justiça e causar prejuízos à opoente, pondo até em causa o seu bom nome e credibilidade.” Na tese da Recorrente, os já referidos requerimentos dos executados impõem a formação de uma convicção positiva quanto a este facto. Desde logo, importa dizer que está em causa um facto do foro interno dos Recorridos – a intenção com que estes atuaram na formulação do requerimento de penhora de bens da Recorrente sem que previamente tivessem procedido à liquidação do valor dos bens que esta estava obrigada a entregar-lhes e do prejuízo que sofreram pelo incumprimento dessa obrigação. É indiscutível que as realidades de natureza psicológica podem integrar a fundamentação de facto. Como se pode ler, a propósito, em STJ de 17.12.2019, 756/13.0TVPRT.P2.S1, “factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais e os eventos do foro interno, psíquico.” O que sucede, acrescentamos, é que a apreensão de tais realidades não pode ser feita de forma direta. É o que explica Michele Taruffo (La Prueba des los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, 2005, p. 166) quando escreve que “[q]uando o facto juridicamente relevante é verdadeiramente um facto psíquico (não redutível ou reconduzível a uma declaração), quase nunca é determinado diretamente. O verdadeiro objeto do conhecimento do juiz, pelo contrário, são indícios que tendem a ser recolhidos em esquemas tipificados, sob a premissa de que esses indícios típicos produzem com razoável segurança a determinação do facto psíquico em questão, ao qual a norma atribui consequências normativas. No entanto, é muito discutível a ideia de que, realmente, nestas situações, o juiz determina a verdade ou a existência de um facto psíquico interno da mesma forma que determina presuntivamente um facto material do qual não tem prova direta. Em vez disso, o que acontece é que o juiz conhece apenas indícios que se encaixam num esquema típico e, com base nesse conhecimento, considera subjacente o pressuposto de facto que se está a tentar determinar. Dizer que, neste caso, estamos perante uma determinação indireta, mas tipificada do facto psíquico é talvez uma complicação formal inútil.” Daqui resulta que é provavelmente mais realista pensar que os factos psíquicos não são realmente determinados; são antes substituídos por uma constelação de indícios que são tipicamente considerados equivalentes a eles e que representam o verdadeiro objeto da determinação probatória. Em resumo, como também escreve Michele Taruffo, “o facto psíquico interno não existe como objeto de prova e a sua definição normativa é apenas uma formulação elíptica cujo significado se reduz às circunstâncias específicas do caso concreto.” Ora, do contexto em que os referidos requerimentos foram formulados e apresentados, em especial o primeiro, apenas conseguimos retirar, com base nas regras do id quod plerumque accidit, a intenção dos Recorridos obterem, de forma célere, a penhora dos bens que indicaram à agente de execução, ato necessário à satisfação, por via sucedânea (mediante equivalente pecuniário), da obrigação de entrega de que eram (rectius, são) titulares ativos. É, afinal, esse o interesse que preside à atuação dos credores em sede executiva e que os leva a tentarem abreviar os trâmites processuais, pugnando, por vezes, pela prática prematura de atos de agressão do património dos seus devedores. Para que se pudesse concluir que aquela atuação foi motivada por outra intenção – a de causar, de forma gratuita, um prejuízo à Recorrente ou a de colocar em causa o bom nome e a credibilidade desta – seriam necessários outros indícios a que a Recorrente não fez qualquer referência e cuja existência não vislumbramos nos autos. O juízo que prescindisse destes seria, por tudo quanto expusemos, meramente especulativo. A ausência desses outros indícios não pode ser suprida pela exegese do segmento do requerimento de 9 de setembro de 2023 em que os Recorridos fizeram apelo ao “risco de dissipação de bens.” Este apresenta-se como anódino para o fim pretendido pela Recorrente, pois nenhum elemento suplementar permite concluir se o risco a que a que os Recorridos fizeram referência era concreto ou meramente abstrato. E em qualquer caso sempre se teria de considerar como razoável a sua existência na mente dos Recorridos, atenta a situação de incumprimento por parte da Recorrente que motivou a instauração da execução e que havia sido reafirmada na sentença, datada de 9 de julho de 2023, que julgara improcedente a oposição adrede apresentada. De acrescentar que, também quanto a este particular, a própria Recorrente evidencia a fragilidade da sua argumentação quando pretende atribuir aos Recorridos a intenção de “entorpecerem a ação da justiça” e, nas alegações, escreve, em decalque dos conceitos constantes da alínea d) do n.º 2 do art. 542, que os Recorridos “usaram meios dilatórios, com o intuito de apenas protelar[em] o trânsito em julgado do despacho de fls., e de causar[em] e avolumar[em] os prejuízos da executada.” Desde logo, a atuação dos Recorridos, consubstanciada na prática prematura de atos processuais e na ultrapassagem de uma fase do processo, evidencia precisamente o contrário – a ânsia de obterem a satisfação (por via sucedânea, percute-se) do crédito exequendo; depois, admitindo que o despacho a que a Recorrente faz referência – e que não se deu ao trabalho de identificar – é o de 9 de julho de 2023 (só este faz sentido, pois todos os demais foram proferidos em momento ulterior à realização das penhoras), pura e simplesmente não se percebe onde residia o interesse dos Recorridos em protelarem o seu trânsito em julgado – afinal, a decisão ali plasmada foi-lhes favorável. Também aqui concluímos, sem necessidade de outras considerações, que a decisão impugnada não merece qualquer censura. *** 1).3. A finalizar, importa acrescentar ao elenco dos factos provados, com arrimo no disposto no art. 607/4, ex vi do art. 663/2, em complemento ao ponto 1) dos factos provados, que: Os Recorridos apresentaram, como título executivo, a sentença, transitada em julgado, datada de 22 de outubro de 2019, proferida na ação comum que correu termos pelo Juízo Local Cível de Fafe sob o n.º 1281/18...., a qual condenou a Recorrente a entregar aos Recorridos a máquina da loiça, o forno, o exaustor, a placa a gás e o esquentador que estavam colocados num prédio propriedade daqueles ou, na impossibilidade de assim proceder, a substituir tais eletrodomésticos por outros novos, de características e qualidade semelhantes, cf. documento 1 apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui damos por integralmente reproduzido. *** 2).1. Avançamos para a segunda questão.No requerimento de oposição à penhora com que deu início ao incidente, a Recorrente pugnou, a um tempo, pelo enquadramento da situação dos autos, caraterizada pela indicação e subsequente penhora de bens, no âmbito de uma execução para entrega de coisa certa, em momento anterior ao da conversação em execução para pagamento de quantia certa, na previsão da norma do art. 858, e, a outro, pela aplicação do regime sancionatório que nesta está previsto em cumulação com o consagrado para a litigância de má-fé. Na sentença recorrida, na sequência da análise da norma, considerou-se que é requisito da sua aplicação a prévia procedência da oposição à execução, o que não sucede no caso, em que “estamos perante uma oposição à penhora.” Contra este argumento, a Recorrente sustenta agora, num raciocínio verdadeiramente tautológico, que “não está em causa aplicar a norma do art. 858º do CPC por analogia a situações nele não contempladas”, mas, “a montante da aplicação dessa norma, ter como análoga, a aplicação desse mesmo regime, quando se apura que o executado foi alvo de uma penhora infundada e ilegal, o que é algo diferente.” (sic) *** 2).2. Desde logo, não se percebe a insistência da Recorrente no enquadramento da situação na previsão da norma do art. 858.Este preceito, como é denunciado pela sua inserção sistemática – no Capítulo II (Do processo sumário) do Título III (da execução para pagamento de quantia certa) do Livro IV (Do processo de execução) do CPC – apenas está previsto para a execução sumária para pagamento de quantia certa, em que a penhora se realiza antes da citação do executado (art. 855/3). Mais sentido faria, portanto, que a Recorrente esgrimisse a norma paralela do art. 866, enquadrada no âmbito da execução para entrega de coisa certa, do seguinte teor: “[p]rocedendo a oposição à execução que se funde em título extrajudicial, o exequente responde pelos danos culposamente causados ao executado e incorre em multa correspondente a 10% do valor da execução, mas não inferior a 10 UC nem superior ao dobro da taxa de justiça, quando não tenha agido com a prudência normal, sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possa também incorrer.” Como facilmente se constata, as duas normas têm um escopo muito claro e preciso: a reação contra execuções injustas, cujo potencial danoso é exponenciado quando os atos de agressão do património do executado antecedem a citação deste e, bem assim, quando se estribam em títulos extrajudiciais. Em tais situações, ganha atualidade a advertência de José Alberto dos Reis (Processo de Execução, I, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p 57): “o processo de execução, em vez de ser posto ao serviço do direito de crédito, pode funcionar como instrumento de extorsão e de violência em benefício de um portador do título executivo que não é verdadeiramente credor.” Foi este uso indevido da ação executiva que o legislador quis sancionar com o regime do art. 858 e, bem assim, com o do art. 866. Neste sentido, escreve Olinda Garcia (A Responsabilidade do Exequente e de outros Intervenientes Processuais, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 15), a propósito do art. 819 do CPC de 1961, na redação do DL n.º 38/2003, de 8.03, antecessor do atual art. 858, que está em causa a “ideia de penalização do recurso infundado à ação executiva, naquelas hipóteses em que a lei (confiando na existência de fundamento da pretensão executiva) desprotege o executado, não lhe garantindo o direito de defesa até à efetiva apreensão dos bens suscetíveis de penhora, sujeitando-o, portanto, aos riscos inerentes à celeridade dessa tramitação. Efetivamente, neste domínio o executado só é citado depois da apreensão dos seus bens, ou seja, depois de já ter sofrido danos, vindo posteriormente a demonstrar, na oposição à execução, a falta de fundamento dessa ação executiva.” Compreende-se que assim seja: o título executivo, constitui o “Abre-te Sésamo” da ação executiva, determinando o seu fim e os seus limites (art. 10/5), mas não garante, per se, a existência do crédito de que o exequente se arroga titular; apenas confere a “probabilidade séria da sua existência” (J. M. Gonçalves Sampaio, A Ação Executiva e a Problemática das Execuções Injustas, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 450). Se esse direito não existir, a execução será injusta, mais não exprimindo que a intenção do exequente em obter um fim contrário ao direito. É o propósito de esconjurar as execuções injustas que está na génese da opção do legislador em consagrar, em cada uma das duas normas em questão (arts. 858 e 866), um tipo de ilícito processual (especial) menos exigente que o tipo de ilícito processual (geral) do art. 542/1: enquanto este pressupõe, como melhor veremos na resposta à terceira questão, o dolo ou a negligência grosseira do agente, aquele basta-se com uma atuação culposa ou, dito de outra forma, motivada pela falta de diligência do lesante, de modo semelhante ao que sucede no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos prevista no art. 483/1 do Código Civil. Isto muito embora se deva acrescentar que, como assinala Miguel Teixeira de Sousa (A Reforma da Ação Executiva, Lisboa, Lex, 2004, p. 30), em termos práticos, “é mais verosímil a propositura dolosa de uma ação executiva – situação que é coberta pela litigância de má fé (...) – do que a instauração negligente de uma execução, porque é mais fácil imaginar o credor que, tendo nomeadamente conhecimento de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do seu direito, ainda assim resolve instaurar a execução do que conceber que o credor desconhece, por negligência, factos importantes relativos ao seu crédito, como, por exemplo, o de que o crédito possui vários devedores ou o de que o mesmo ainda não está vencido ou já foi satisfeito pelo devedor.” *** 2).3. Neste contexto, compreende-se que a aplicação do regime do art. 858, ademais de pressupor que se esteja perante uma execução para pagamento de quantia certa, dependa, como judiciosamente foi assinalado na sentença recorrida, de pressupostos cumulativos, tanto de natureza processual, como de natureza substantiva, que Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais, Coimbra: Almedina, 2022, pp. 471-472) sintetiza nos seguintes termos: “a) ter a penhora precedido a citação do executado; b) ter o executado deduzido oposição à execução; c) ter sido a oposição julgada procedente; d) ter a execução causado prejuízos ao executado; e) terem os prejuízos sido causados culposamente; f) não ter o exequente agido com a prudência normal.”Como se compreende também que a aplicação do regime do art. 866 tenha como pressuposto a procedência da oposição à execução para entrega de coisa certa fundada em título extrajudicial. De facto, excluída, no âmbito da execução para entrega de coisa certa, a possibilidade de um ato de agressão patrimonial sem a prévia possibilidade de o executado se opor à pretensão executiva, atento o disposto no art. 859, os riscos de uma execução injusta estão limitados às hipóteses em que o título executivo tem natureza extrajudicial, não oferecendo as mesmas garantias de um título judicial, sendo incrementados quando se trata da entrega de imóvel arrendado. Não é por isso de estranhar que a opção do legislador encontre as suas raízes na Lei n.º 6/2006, de 27.02, diploma que, tendo passado a permitir a cessação da relação de arrendamento por via extrajudicial, sem a necessidade de uma prévia ação de despejo, e a atribuir força executiva aos documentos particulares que evidenciam esse facto jurídico (art. 15), aditou ao CPC de 1961 o art. 930-E, cuja redação foi reproduzida no art. 866 do CPC de 2013. É neste contexto que Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., p. 484), procurando as razões que determinaram o nivelamento do elemento subjetivo do tipo pelo art. 483 do Código Civil, numa réplica do art. 819 do CPC de 1961 (= art. 858 do CPC de 2013), escreve que “[a] contrapartida da dispensa do locador de um recurso prévio à via judicial, compensatória dos riscos que uma execução imediata de um título extrajudicial pode implicar, é o agravamento da sua responsabilidade.” *** 2).4. Aqui chegados, podemos assentar que os pressupostos de aplicação daqueles tipos especiais de responsabilidade processual não estão verificados nas situações, como a dos autos, em que o direito de crédito exequendo, incorporado no título, que tem indiscutível natureza judicial (a sentença que condenou a Recorrente a entregar os objetos aos Recorridos), existe, mas em que vem a ser praticado, na sequência processual, um ato de agressão patrimonial ilegal, seja por ocorrer a destempo, seja por incidir sobre bens que não são suscetíveis de penhora ou que não respondem, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, seja ainda por infringir o princípio da proporcionalidade. Quanto a estes, na ponderação dos interesses antitéticos em jogo – de um lado, o favor creditoris, do outro, o favor debitoris –, o legislador entendeu não haver justificação para a elevação do patamar da responsabilidade – e mais concretamente da responsabilidade do exequente –, mantendo-a no quadro geral da litigância de má-fé.Por outro lado, importa aqui notar um aspeto não considerado na argumentação da Recorrente: a responsabilidade processual é delineada de acordo com um modelo baseado em tipos legais, em que se descrevem as condutas lesivas, ao contrário do que sucede com a responsabilidade civil geral, esta assente num sistema de numerus apertus, centrado no dano e em delitos indeterminados (António Menezes Cordeiro, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, pp. 416-416), o que se explica pelas suas consequências – ademais da constituição de deveres de indemnizar, a aplicação de penas civis (a multa), que a aproximam, em termos dogmáticos, do direito sancionatório, em especial do direito penal. Neste sentido, Paula Costa e Silva, Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 504-505. É, assim, de afastar terminantemente a aplicação (analógica) dos referidos tipos a situações de facto neles não contempladas. A esta luz, a tese da Recorrente apresenta-se, pura e simplesmente, como contra legem, não merecendo qualquer acolhimento. Apenas acrescentamos que, conforme resulta do que escrevemos, o tipo do art. 858, assim como o do art. 866, se apresentam como especiais relativamente ao tipo (geral) do art. 542/1, pelo que a aplicação daqueles não pode ser cumulada com a aplicação deste, em obediência ao princípio expresso no brocardo Lex specialis derogat legi generali. *** 3).1. A resposta negativa à segunda questão serve-nos de mote para enfrentarmos a terceira: não estando verificados os pressupostos de aplicação do regime especial do art. 858 – ou do que consta do art. 866 –, a situação dos autos pode ser enquadrada no tipo (geral) da litigância de má-fé?A resposta deve ter como ponto de partida a análise do comportamento processual dos Recorridos, para que que sejam evitados os equívocos e a inerente confusão que caracterizam a alegação da Recorrente. Assim, em primeiro lugar, a Recorrente alega que os Recorridos, por requerimento datado de 9 de setembro de 2023, quando “ainda não havia título executivo” (sic) – posto que não tinha transitado em julgado a decisão que julgara improcedente a oposição à execução, apresentada com fundamento no cumprimento da obrigação de entrega dos objetos em momento prévio ao da apresentação do requerimento executivo –, ordenaram à agente de execução a penhora de saldos em contas bancárias e de um veículo automóvel, sem que, ademais, tivessem previamente providenciado pela conversão da execução e pela liquidação do valor dos bens e do prejuízo sofrido com a sua não entrega. Com esse comportamento, causaram prejuízos à executada concretizados no seguinte: por um lado, ao nível patrimonial, em despesas com honorários ao advogado que a representa; por outro, ao nível não patrimonial, no desgosto e na tristeza decorrentes de ter surgido aos olhos de terceiros como “má pagadora quando na verdade nada deve.” Como vimos por ocasião da resposta à primeira questão, a afirmação de que a penhora foi realizada por ordem dos Recorridos, de tal modo que o ato do agente de execução (autor material) foi, em última instância, um ato (também) dos Recorridos (autores morais), não tem suporte factual. A única ação empreendida pelos Recorridos anterior aos referidos danos foi a formulação do referido requerimento de 9 de setembro de 2023. É em face desta – e apenas desta – que deve ser dada a resposta. Por outro lado, a afirmação de que “ainda não havia título executivo” não é correta. Por um lado, esquece que o título era constituído pela sentença de 22 de outubro de 2019, que condenara a Recorrente a entregar aos Recorridos os objetos; o que faltava, no dia 9 de setembro de 2023, era a prévia conversão desta obrigação de entrega de coisa certa numa obrigação de pagamento do valor da coisa e da indemnização dos prejuízos decorrentes do seu incumprimento, o que pressupunha a prévia liquidação. Só depois desta seria possível realizar a penhora, como resulta, claramente, do disposto no art. 867. Nesta medida, podemos assentar que foi cometida uma nulidade, decorrente da omissão de um ato previsto na tramitação da ação executiva, que necessariamente inquinou os termos subsequentes desta, mais concretamente as penhoras realizadas (arts. 195/1 e 2). Por outro lado, tal afirmação confunde o conceito de suspensão do efeito da sentença – ou de outra decisão judicial – enquanto título executivo (efeito extraprocessual) com o conceito de suspensão do efeito da sentença sobre a subsequente marcha do processo em que é proferida (efeito intraprocessual), distinção que é claramente feita no art. 647/1 e 2. A propósito, vide Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, pp. 405-407). Até pela própria natureza da sentença que julgou improcedente a oposição à execução, a qual não contém qualquer segmento condenatório, sequer implícito, suscetível de execução, apenas o segundo efeito poderia estar em causa, sendo, por esta singela razão, despropositado convocar-se o disposto no art. 704/1. Ora, quanto a este efeito intraprocessual, é manifesto que a sentença que julga a oposição à execução improcedente não constitui qualquer obstáculo à prossecução da instância executiva no hiato compreendido entre a sua prolação e o trânsito em julgado. Isto porque a possível interposição de um recurso dessa sentença não terá um efeito suspensivo da execução (art. 647/2 ex vi do art. 953/1 do CPC), em coerência, aliás, com o efeito da própria apresentação da oposição à execução (art. 733/1, a contrario, supletivamente aplicável nos termos do art. 551/2, ambos do CPC). A atribuição de semelhante efeito ao recurso só ocorrerá se verificados os pressupostos do art. 647/4 – ou seja, se ficar demonstrado que o prosseguimento da execução causará prejuízo considerável à executada e se for prestação caução. E só a efetiva prestação da caução levará à suspensão (ex nunc) dos trâmites subsequentes da execução. *** 3).2. Dito o que antecede, tudo se resume, afinal, a saber se os Recorridos deviam ter sido (rectius, devem) ser condenados como litigantes de má-fé por terem requerido a realização da penhora de forma prematura. Diz o art. 542/1 e 2: “1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.” Daqui podemos retirar, desde logo, que está em causa, no instituto, o sancionamento de comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual, genericamente consagrado, no seu sentido objetivo, no art. 8.º De facto, nas diversas alíneas do citado n.º 2 são descritas condutas que as partes se devem abster de praticar no decurso do processo pois delas podem resultar prejuízos para o decurso da relação processual cujo sucesso, com a obtenção de uma decisão justa e em prazo razoável, pressupõe um espírito de cooperação intersubjetiva e consentâneo com o dever de verdade. Mais concretamente, a alínea a), impõe às partes um dever de cuidado por ocasião da propositura da ação ou da dedução da oposição, para que a máquina judiciária estadual não seja colocada em causa desnecessariamente. A alínea b) exprime o dever de verdade a que as partes devem obedecer nas suas alegações fácticas, impondo-lhes que se abstenham de emitir falsas declarações ou omitir factos relevantes. As alíneas c) e d) concretizam a obrigação de cooperação intersubjetiva que, tendo também como fundamento o princípio da boa-fé, recai sobre as partes durante todo o curso do processo e que, quando infringida, o desvia do interesse e da função a que se encontra destinado. Por outro lado, não basta que uma das partes leve a cabo um comportamento subsumível a uma das alíneas. Para que exista má-fé, exige-se um elemento de ordem subjetiva sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito. Referimo-nos ao dolo e à culpa grave a que alude o proémio do n.º 2. Esta exigência, que aproxima o modelo do ilícito penal, justifica-se como forma de salvaguardar a margem de liberdade que o processo necessariamente pressupõe, sob pena de se restringirem de forma excessiva os direitos processuais de ação ou de defesa que assistem às partes. Este elemento subjetivo deve ser considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade, pelo que apenas haverá um ilícito típico quando se possa concluir que o comportamento enquadrável numa das alíneas foi praticado com dolo ou negligência grave. Na falta deste elemento, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé. Neste sentido, escreve Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., p. 382) que “[a] integração de elementos subjetivos no tipo de ilícito pode apontar para uma certa indistinção face à culpa. É nesta que, tradicionalmente, se valora a atuação do agente para se determinar se, atendendo à sua colocação ou ao modo como atua, merece a concreta sanção que a lei ordena para a sua conduta típica e ilícita.” A autora explica, na sequência, que, não obstante, “também numa importação da dogmática penal, os elementos subjetivos relevarão na tipicidade para que se determine se um comportamento, atendendo a estes elementos, se pode considerar típico. No momento da culpa dar-se-á, novamente, relevância a estes elementos, mas agora para a determinação do modo como influenciam o conteúdo concreto das situações jurídicas que a conduta típica e ilícita desencadeia, quer isto dizer, o tipo de culpa relevará na determinação do conteúdo concreto da obrigação de indemnizar.” Ainda a propósito dos elementos subjetivos, importa notar que, na versão original do CPC de 1961, o legislador processual aproximava a má-fé ao dolo. Com a reforma levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, o elemento subjetivo da litigância de má-fé foi ampliado à culpa grave, assim se consagrando a máxima culpa lata dolo aequiparatur, o que indicia que estamos perante uma noção ética de boa-fé subjetiva, considerando de má-fé não apenas a conduta daquele que conhece o erro em que incorre, mas também a daquele que o desconhece por não ter cumprido com os deveres de cuidado que lhe eram impostos. Como adverte Marta Alexandra Frias Borges (Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Coimbra: UC, 2014, p. 43), “[e]sta eticização da má-fé processual não se afigura total, na medida em que se não compadece com qualquer desrespeito por esses deveres de cuidado, independentemente do grau de culpa. Pelo contrário, apenas estaremos perante má-fé processual quando se tenham desrespeitado os mais elementares deveres de cuidado e de prudência, atuando de forma gravemente negligente, isto é, com culpa grave. Pelo que só a culpa grave será capaz de eliminar a boa-fé subjetiva em que se presume estar aquele que objetivamente preenche alguma das alíneas do art. 542º, nº2.” *** 3).3. Os termos em que é feita, nas alíneas do n.º 2 do art. 542, a descrição das condutas processualmente reprováveis permite integrar a má-fé processual numa de duas modalidades: substancial ou instrumental, consoante respeite ao próprio fundo da causa, ou apenas ao comportamento processual especificamente assumido pelo litigante. Haverá má-fé substancial quando a parte formule pedido ou oposição manifestamente infundados ou quando infrinja o dever de verdade (art. 542/2, a) e b)); haverá má-fé instrumental quando a parte, independentemente da razão que possa ter quanto ao mérito da causa, infrinja o dever de cooperação ou faça um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais (art. 542/2, c) e d)). À luz desta distinção faz sentido que se afirme, com Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 457), que “só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé.” É neste ponto que nos deparamos com uma insuficiência da tese da Recorrente: a omissão do enquadramento do comportamento imputado aos Recorridos numa das alíneas do n.º 2 do art. 542, ficando a alegação por uma referência a estas em bloco. Como quer que seja, afigura-se-nos axiomático que apenas é cogitável a hipótese de tal comportamento ser integrado no tipo da alínea d), na parte em que nesta se alude ao uso manifestamente reprovável dos meios processuais com o objetivo de conseguir um objetivo ilegal – que consistiria na penhora de bens da devedora de uma obrigação de entrega de coisa certa em momento anterior à conversão desta numa obrigação (líquida) de pagamento de quantia certa. Para justificar esta afirmação diremos apenas, em complemento, que na alínea a) está em causa o exercício do direito de ação ou de oposição em função de interesses diversos daquelas que fundamentam a sua atribuição, configurando um abuso do processo, e não a prática disfuncional de atos concretos no processo – ou, dito de outra forma, um abuso macroscópio (Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé cit., p. 31); na alínea b) está em causa o desrespeito pelo dever de verdade que as partes devem observar nas suas alegações fácticas; na alínea c), está em causa a omissão grave do dever de cooperação, que impõe que as partes contribuam para que a solução do litígio seja alcançada em tempo útil (art. 7.º/1). *** 3).3.1. Como ensina Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 406-407), estamos, nesta alínea d), perante um tipo “altamente complexo” que, para se ter como preenchido, pressupõe, em primeiro lugar, que a parte tenha feito do processo ou dos meios processuais “um uso, não apenas reprovável, mas manifestamente reprovável”, o que o aproxima da figura do abuso do direito prevista no art. 334 do Código Civil. O que está em causa é o uso disfuncional da ação ou dos meios processuais que nesta são colocados à disposição das partes e que, no seu encadeado, conformam o processo, concorrendo para o ato terminal – que, numa execução, será a realização coerciva da prestação em dívida, assim se satisfazendo o interesse do credor.Em segundo lugar, o preenchimento do tipo pressupõe que o agente tenha atuado com uma intenção específica, o que vale por dizer que, não obstante o que consta do proémio do n.º 2, apenas cabem aqui condutas dolosas. Neste sentido, na doutrina, Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 411), escreve que se o tipo em questão “pressupõe a finalidade do agente, dirigida à obtenção de um concreto resultado, por referência ao qual é dirigido o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, a descrição típica é inconciliável com uma atuação negligente. A descrição típica opera uma restrição necessária dos elementos subjetivos do ilícito. Na jurisprudência, STJ 1.03.2007 (07B477) e RL 16.12.2021 (12367/19.2T8LSB.L2-2). Com recurso à lição de Lebre de Freitas/ Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado cit., p. 457), diremos que “[o] autor visa objetivo ilegal quando, por exemplo quer atingir, com a ação, uma finalidade não tutelada por lei, em vez da função que lhe é própria; o autor ou o réu visa objetivo ilegal quanto, também por exemplo, utiliza meios processuais, como a reclamação, o recurso ou simples requerimentos, para fins ilícitos, designadamente invocando fundamentos inexistentes.” *** 3).4. Numa outra perspetiva, o instituto da litigância de má-fé está ordenado à tutela de bens de naturezas distintas. Em primeiro lugar, à tutela de um interesse público, posto que a litigância de má-fé viola o bem jurídico sistema de justiça, pondo em risco o bem jurídico Justiça. Por esta razão intervirá, através da aplicação de multa, mesmo que não sejam provocados danos – processuais típicos ou outros – na esfera da contraparte. Se forem provocados danos em bens jurídicos da contraparte, estes devem ser indemnizados. Está, portanto, também ordenado à tutela de bens privados. A multa prescinde do dano provocado em bens da contraparte, mas pressupõe a lesão de um bem jurídico público, que o preenchimento dos elementos do tipo faz presumir iure et de iure. Já o ressarcimento dos danos provocados na esfera da contraparte pressupõe a verificação de dois pressupostos: a lesão de um bem jurídico público através do exercício ilícito de situações jurídicas processuais e a lesão de um bem jurídico privado ou individual (Paula Costa e Silva, Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., p. 506). Vale isto por dizer que mesmo que o comportamento da parte se mostre censurável, não recairá sobre si qualquer obrigação de indemnizar se com ele não tiver sido causado qualquer dano para a contraparte. *** 3).4.1. Sobre o dano, resulta do art. 543 que a indemnização por má-fé processual pode cobrir apenas as despesas processuais típicas ou abarcar todos os danos direta ou indiretamente causados à contraparte, competindo a escolha ao juiz consoante a maior ou menor gravidade da conduta do lesante (art. 543/2).Seguindo a orientação de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, II, 3.º ed., reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 278), tal como fazem António Abrantes Geraldes (Temas Judiciários, I, Coimbra: Almedina, 1998, p. 335) e Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado cit., p. 463), diremos que, em princípio, sempre que o juiz conclua pela conduta dolosa do agente deverá condená-lo ao pagamento da indemnização agravada prevista pela alínea b). A indemnização simples a que se refere a alínea a) deverá ser reservada para os comportamentos gravemente culposos. Neste sentido, na jurisprudência, RG 18.04.20204 (486/18.7T8MNC.G4). É inegável que ao mandar atender à gravidade da conduta do lesante, para fixar a extensão dos danos que serão objeto de indemnização, o legislador processual atribui à responsabilidade por litigância de má-fé uma certa função punitiva, discutindo-se, depois, se esta sobreleva sobre a função ressarcitória, ao ponto de permitir a fixação de um montante indemnizatório superior ao dano sofrido pelo lesado, ou independente da existência desse dano, como é característico dos punitive damages dos sistemas jurídicos anglo-saxónicos. Não entrando nesta discussão, desnecessária para a decisão do recurso [sobre os seus termos, podem ver-se, na doutrina, Paula Costa e Silva, Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 373-374, e, na jurisprudência, RP 13.02.2017 (3006/05.0TBGDM.P3), RG 30.05.2018 (19/17.2T8CBC.G1), RP 23.05.2019, (1473/17.8T8BGC.G1), RL 12.05.2022 (980/08.8TCSNT-A.L1-2) e RL 14.12.2023 (2071/13.0TYLSB-C.L1-1)], diremos apenas que há quem, como Pedro de Albuquerque (Responsabilidade Processual por Litigância de Má-fé. Abuso do Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Atos Praticados no Processo, Coimbra: Almedina, 2006, p. 51) entenda que a responsabilidade processual se ocupa apenas das ofensas infligidas a posições jurídicas processuais – que se traduzem nos poderes, faculdades, ónus ou deveres, conferidos às partes, que vão sendo exercidos, ao longo do decurso da lide, tendo em vista a realização do fim do processo: obtenção de uma decisão conforme ao direito material – e nunca em posições jurídicas substantivas, cuja tutela remete de forma exclusiva para a responsabilidade civil. Cremos que assim será quando o juiz, guiado pelo referido critério, opte pela indemnização simples; quando opte pela indemnização agravada, porém, a indemnização deverá abranger todos os danos causados em virtude da má-fé da contraparte – e apenas estes e não todos os danos que a parte lesada tenha sofrido em consequência do processo –, incluindo as ofensas que, ainda que indiretamente, o comportamento processual tenha infligido a posições jurídicas substantivas, pois também estes danos, inclusive os de natureza não patrimonial, serão o resultado do ilícito adjetivo, devendo, por conseguinte, o seu ressarcimento ser aferido ao abrigo do regime da responsabilidade processual, como ensina Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 522-528) e vem entendendo a jurisprudência (STJ 10.07.2007, 07B2413; RC 9.10.2012, 374/10.5T2AND.C2; RE 20.12.2012, 1353/11.0TBABT-A.E1). No mesmo sentido, especificamente quanto aos danos não patrimoniais, António Abrantes Geraldes, Temas Judiciários cit., p. 336. Vale isto por dizer, seguindo Paula Costa e Silva (idem), que o relevante não é tanto o tipo de bem jurídico lesado, mas antes o “meio através do qual o bem jurídico é lesado”. Se o facto gerador do dano for um ato processual, a sua ilicitude deverá ser aferida à luz do ordenamento jurídico processual, estando, por conseguinte, sujeito à responsabilidade dos arts. 542 e ss. Pelo contrário, se o ato lesivo nada tiver a ver com o processo, a ilicitude deverá ser avaliada de acordo com os pressupostos do tipo substantivo, em sede de responsabilidade civil. Acresce que, como nota Marta Alexandra Frias Borges (Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé cit., p. 99), nada na lei processual afasta o ressarcimento dos prejuízos causados a direitos subjetivos materiais, pelo que “[n]ão admitir o ressarcimento deste tipo de danos seria regredir a um tempo em que se procedia à distinção entre danos intrínsecos e danos extrínsecos, admitindo que a responsabilidade processual apenas se encontrasse voltada ao ressarcimento dos primeiros.” *** 3).4.2. Finalmente, importa precisar a afirmação de que apenas podem ser considerados os danos causados pelo comportamento processual do litigante de má-fé, a qual encontra arrimo na letra do art. 543/1, onde o legislador utiliza expressões como “despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado” ou “prejuízos sofridos como consequência direta ou indireta da má-fé.”De facto, não pode prescindir-se aqui do nexo causal, sobretudo nas situações em que a má-fé não atinge o processo como um todo, mas apenas uma fase isolada do mesmo (v.g., incidente processual ou recurso). Como sabemos, não é suficiente para este efeito um critério puramente naturalístico, assente na denominada teoria da conditio sine qua non. Pelo contrário, é de convocar a teoria da causalidade adequada, consagrada no art. 563 do Código civil, nos termos do qual “[a] obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.” Conforme ensina Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 326), embora esta formulação parta da teoria da conditio sine qua non, o uso do advérbio “provavelmente” permite concluir que não está em causa apenas a imprescindibilidade da condição para o desencadear do processo causal, exigindo ainda que essa condição, de acordo com um juízo de probabilidade, seja idónea a produzir um dano. Pressupõe-se, assim, um juízo de prognose abstrata que atenda às circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do lesante, juízo esse que, por sua vez, pode ser perspetivado numa formulação positiva ou numa formulação negativa. Na primeira, o facto é causa adequada do dano quando é previsível – de acordo com as circunstâncias concretas em que o agente atua e de si conhecidas – e quando, pela experiência comum, ao facto se siga a produção daquele dano. Exige-se, portanto, aqui, a previsibilidade do agente quer quanto à ocorrência do facto quer quanto à produção do efeito danoso. Inversamente, na segunda, a previsibilidade do agente contenta-se com o facto prescindindo dos efeitos danosos. Nesta – muito próxima da teoria da equivalência das condições – o facto é causa adequada quando é uma das condições sem a qual o dano não teria ocorrido, só se excluindo o nexo causal quando a condição se apresente de todo indiferente à ocorrência do efeito de acordo com o conhecimento que a experiência comum nos fornece. Do exposto resulta que a formulação negativa é muito mais abrangente que a positiva. Daí que seja ela a preferida na esfera da teoria indemnizatória civil ao passo que a formulação positiva (que pressupõe eticidade maior na previsibilidade dos efeitos danosos) é utilizada no âmbito do direito criminal. Tendo isto presente, podemos assentar que, para a responsabilidade do litigante de má-fé não basta que o seu comportamento tenha sido condição sem a qual o dano sofrido pela contraparte não se teria verificado; é também necessário que, em abstrato, aquele comportamento seja idóneo a produzir tal tipo de dano. Isto assume especial relevo nas situações, como a gizada pela Recorrente, em que o dano resulta de uma cadeia complexa de atos – primeiro, um ato postulativo da parte e, depois, um ato do órgão judicial ou parajudicial que acolhe aquele, como sucede, por exemplo, com os danos derivados de providência cautelar decretada com base em factos falsos alegados pelo requerente ou da penhora efetuada pelo agente de execução, não obstante a dívida exequenda se encontrar já extinta. Diremos que é manifesto que a intervenção do terceiro não quebra o nexo causal entre o comportamento do litigante de má-fé e o dano sofrido pela contraparte quando aquele, deferindo a postulação da parte, atue sem consciência da ilicitude não censurável. Mas é duvidoso que assim seja quando o decisor, apercebendo-se da ilicitude da postulação, a defira ou quando apenas dela não se aperceba por não ter atuado com a diligência que lhe era exigida. Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., p. 565) entende que tanto nas situações em que o decisor, designadamente o judicial, atua dolosamente, como naquelas em que a sua atuação é meramente negligente não há, ainda assim, quebra do nexo de causalidade. Neste sentido, escreve, a propósito das primeiras, que “apesar da insuficiência da conduta da parte para a produção do resultado proibido, este veio a verificar-se. Se bem que assim tenha acontecido em circunstâncias que não permitem afirmar que ela continua a ter o domínio do processo causal, ela quer a prática do ato que vem a provocar o resultado proibido. Afinal, a sua conduta foi adequada à criação de um estado de lesão. É certo que assim foi com permeio de um ilícito doloso do juiz. Mas a responsabilidade específica deste não impede que a parte que agiu ilicitamente seja condenada no dever de indemnizar a contraparte pelos prejuízos que com o seu comportamento processual ilícito a esta tenham sido provocados.” E acrescenta, a propósito das segundas (ob. cit., p. 567), que “não obstante a circunstância de a parte ter atuado de um modo aparentemente inidóneo para a produção do resultado desejado – a prática de um ato judicial que acolha a sua pretensão – devido à negligência do juiz, esse resultado sobreveio. Ela criou o risco proibido pela norma que tutela os bens da contraparte. Com a sua postulação, a parte concorreu para a lesão desses bens jurídicos. O resultado da ação deverá ser-lhe imputado.” *** 3).5. Assim expostos os aspetos jurídicos a considerar na resposta à questão enunciada, podemos assentar, desde logo, que está em causa uma penhora realizada, pela agente de execução, no âmbito das suas competências funcionais (art. 719/1), em resposta afirmativa a um requerimento dos Recorridos, quando a execução para entrega de coisa certa ainda não tinha sido convertida em execução para pagamento de quantia certa, apresentando-se, por isso, como inadmissível naquele momento processual.Isto resulta da leitura do art. 867, em cujo n.º 1 se escreve que “[q]uando não seja encontrada a coisa que o exequente devia receber, este pode, no mesmo processo, fazer liquidar o seu valor e o prejuízo resultante da falta de entrega, observando-se o disposto nos artigos 358.º, 360.º e 716.º, com as necessárias adaptações”, logo se acrescentando, no n.º 2, que “[f]eita a liquidação, procede-se à penhora dos bens necessários para o pagamento da quantia apurada, seguindo-se os demais termos do processo de execução para pagamento de quantia certa.” Nesta medida, a postulação dos Recorridos consistia na prática de um ato – a penhora – num momento processual que não era o próprio, por ainda não ter sido praticado um outro que era seu pressuposto e condição. Tal postulação devia, assim, ter merecido, da parte da agente de execução – que, enquanto “auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública” e que, embora designado pelo exequente, não é um mandatário deste, nem o representa, conforme resulta do disposto nos arts. 129/1 e 162/3 do Estatuto dos Solicitadores e Agentes de Execução, aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14.09 –, uma decisão de indeferimento ou, pelo menos, uma que relegasse o seu conhecimento para um momento subsequente à conversão da execução para pagamento de quantia certa e à liquidação da quantia exequenda. Daqui não podemos, porém, concluir que tal postulação integre litigância de má-fé – necessariamente de natureza instrumental, conforme vimos. Para que assim sucedesse seria necessário, de acordo com a leitura que fizemos do tipo da alínea d) do n.º 1 do art. 542, que os Recorridos (rectius, o advogado por eles constituído e que subscreveu e apresentou o requerimento) tivessem atuado dolosamente, com o fim de conseguirem um objetivo de cuja ilegalidade estavam cientes. Perante os dados de facto, não o podemos fazer. Na verdade, estes apenas nos permitem concluir pelo cometimento de um erro jurídico, que pode ter sido motivado pela pressa, que cremos ser transversal a todos os credores, de obterem o cumprimento da obrigação exequenda, ainda que através de um sucedâneo da prestação que a Recorrente estava (está) obrigada a realizar por sentença proferida no já longínquo dia 22 de outubro de 2019. Ademais, a finalidade que visaram – a penhora de bens da sua devedora – não se apresenta como ilegal a se. A ilegalidade cinge-se apenas ao momento processual em que ocorreu a penhora – e, bem assim, o requerimento da parte que a espoletou –, o que, de outra perspetiva, não basta para que o comportamento processual dos Recorridos seja considerado como manifestamente reprovável. Não estão, portanto, preenchidos os elementos do tipo. A resposta a esta terceira questão é, pelo exposto, negativa, com o que fica prejudicado o conhecimento da quarta. *** 4) Na improcedência do recurso, a Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527 1 e 2.*** V.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação e Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a sentença recorrida. Custas a cargo da Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. *** Conforme resulta do ofício do ISS, IP, junto nos autos de execução no dia 3 de fevereiro de 2021, a Recorrente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.Segundo afirmou no requerimento de oposição à penhora e replicou nas alegações de recurso, possui, “para além do mais, um veículo automóvel e dois prédios urbanos, sendo um deles um estabelecimento comercial”, a que acresce que lhe foram penhorados “saldos bancários, nomeadamente, da quantia de 50 000,00€.” Estas afirmações são suscetíveis de colocar em causa os pressupostos em que assentou a atribuição daquele benefício (cf. art. 10.º/1, a), e b), da Lei n.º 34/2004, de 29.07), pelo que se determina a sua comunicação ao ISS, IP, para os fins tidos por convenientes. *** Notifique.* Guimarães, 28 de novembro de 2024 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes 2.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos [1] Pertencem ao CPC vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. [2] O autor retomou o tema no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html |