Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2475/21.5T8GMR
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PEDIDO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
NULIDADE
PRECLUSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando se pede a declaração da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas não se identifica a parcela de terreno cuja aquisição se pede, nomeadamente sem referir a área da dita parcela nem as confrontações da mesma, estamos perante um pedido ininteligível, que causa a ineptidão da petição inicial.
2. Esse vício é ao mesmo tempo uma nulidade de todo o processo e uma excepção dilatória, e deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).
3. Porém, por força do art. 200º,2 CPC, proferida a sentença em primeira instância sem o Tribunal conhecer dessa excepção ou nulidade, fica precludida a possibilidade de dela conhecer posteriormente.
4. Não obstante, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave em sede de recurso como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente. Resta, pois, por exclusão de parte, absolver o réu do pedido.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA, viúva, de per si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, viúva, residente na Rua ..., da freguesia ..., do concelho ...,

Pedindo: a) a condenação da Ré a ver judicialmente declarada a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...52/..., melhor identificados nos artigos supra desta petição inicial a favor da A., de per si e na qualidade de Cabeça de Casal por usucapião, nomeadamente do terreno onde está implementada a sua habitação; b) condenação da ré a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe a posse e propriedade da A., de per si e na qualidade de Cabeça de Casal no referido terreno onde existe a sua casa de habitação; c) condenação da ré no cancelamento de todas as inscrições, hipotecas e penhoras e/ou outras, registadas na Conservatória do Registo Predial que ofendam a posse e a propriedade da Autora de per si e na qualidade de Cabeça de Casal sobre o referido prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...52/... por, além do mais, serem ineficazes;
Para tanto alega, que a A. é Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de BB que faleceu em .../.../2000, tendo já sido habilitados como seus herdeiros, além da A., sua cônjuge sobreviva AA e os dois filhos DD e EE. Sucede que o referido BB, era filho da Ré CC e de FF, pré falecido e, nessa qualidade de filho e estando a iniciar a sua vida, o referido BB, já casado em 1993, solicitou á Ré sua mãe que o deixasse construir uma casa n... canto do campo que havia sido adquirido denominado Campo ..., sito no lugar ..., actualmente na rua ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...52/.... A Ré nessa data não apenas autorizou o falecido BB e a sua esposa ora A., a construir, como lhe referiu que lhe dava a área de terreno para construção, autorizando a sua construção e assegurando-lhe que o mesmo era seu. Assim a A., e o seu falecido marido passaram a tratar de tal terreno, passando a construir a sua habitação onde viriam a nascer e a viver até há pouco tempo os seus dois filhos DD e EE, nascidos respectivamente em .../.../1992 e .../.../1996 e, durante vários anos foi a A., e o seu falecido marido efectuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro à volta do mesmo, fazendo benfeitorias, que aumentaram após a morte do marido, tendo efectuado melhorias muito significativas no mesmo, no qual despendeu várias dezenas de milhares de euros uma vez que pretendia e pretende habitar na sua habitação até ao final dos seus dias. A Ré apesar do consentimento que prestou ao seu filho e nora, nunca formalizou por escritura publica a doação do mesmo, isto apesar de diversas vezes o ter prometido nomeadamente ao seu falecido filho, mas assegurando-lhe sempre que não se preocupasse que o terreno onde estava a casa era seu e que ninguém lhe mexeria. Assim, entende a autora que, se outro título de aquisição não tivesse, A de per si e na qualidade de Cabeça de Casal sempre seria dona e legítima possuidora do prédio em causa, pois, por si e antepossuidores, sempre estiveram na posse do mesma, por mais de, 5, 10, 20, 30, 40, 50 e 60 anos, contínua e ininterruptamente, transformando-o, passando o mesmo de rustico a urbano, com a construção efectuada e nele efectuando obras de construção e implementação do prédio urbano, bem como de conservação, pagando as respectivas contribuições, em suma, fruindo-o e gozando-o na qualidade de possuidores e proprietários, posse essa que foi adquirida sem violência, e na convicção de não lesar direitos de outrem, e que sempre foi exercida à vista de toda a gente e dos mais directamente interessados, com o conhecimento da generalidade das pessoas, nomeadamente dos vizinhos, e sem oposição de ninguém, dia a dia, ano a ano, sem soluções de continuidade, e sempre foi exercida com ânimo de quem exerce direitos próprios e no seu próprio nome.
De facto, desde1993, a Autora e o seu marido passaram a ocupar e usufruir o prédio como sua propriedade, tendo passado a ser ali, na casa por si contruída em tal terreno, que a A., e desde sempre igualmente os filhos que tomam refeições, confeccionam as mesmas, pernoitam e realizam a higiene diária, têm residência e mobílias, efectuam limpezas domésticas, recebem familiares e amigos, estacionam os veículos no logradouro, recebem correspondência, à vista de toda a gente, incluindo os pais, pacificamente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer tais actos sobre coisa sua, como legítimos e exclusivos proprietários.

Regular e pessoalmente citada, a Ré apresentou contestação onde impugna a matéria alegada.
Conclui pedindo a improcedência da acção e pela absolvição da Ré do pedido.

A Autora não deixou de responder aos documentos juntos com a contestação.

Foi proferido despacho saneador onde foi fixado o objecto do litígio, e elaboraram-se os temas da prova, após o que foi realizada a audiência de julgamento, com observância de todas as legais formalidades.

A final foi proferida sentença, que julgou totalmente improcedente a acção e, em consequência absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1ª- O tribunal a quo considerou que não podia a A. adquirir a parcela de terreno em causa nos autos através do instituto da usucapião pela ausência de demonstração do cumprimento das normas de cariz administrativo.
2ª- No nosso ordenamento jurídico, a usucapião constitui uma forma de aquisição originária do direito de propriedade e, amplius, de outros jura in re usucapíveis.
3ª- A usucapião serve, além do mais, para “legalizar” situações de facto “ilegais”, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa. Claro que esta “legalização” do “ilegal” produz efeitos estritamente jurídico-civilísticos.
4ª- Não podem ser sobrepostas ao instituto da usucapião normas de natureza administrativa.
5ª- O interesse público é a razão de ser quer da posse quer da usucapião, sendo a usucapião a primeira regra do ordenamento do território!!!
6ª- No confronto entre o interesse público que as leis referentes ao fraccionamento, destaque e ao loteamento visam satisfazer e o interesse público que também é a razão de ser da posse e da usucapião, tem de se atender a este último.
7ª- É imputável à Administração o facto de não ter actuado atempada e preventivamente por forma a impedir a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território: “dormientibus non sucurrit jus”.
8ª- Pode a Administração, em último ratio, ainda intervir e corrigir estas situações através de planos de urbanização ou de pormenor que abranjam a respectiva área, ou mesmo ordenando a demolição da obra ilegal ou até incitar a sua legalização.
9ª- Entre as normas vigentes à data do início da posse não se vislumbra, entre as normas legais reguladoras do fraccionamento de prédios rústicos, alguma que negue a possibilidade de adquirir por usucapião as parcelas de terreno que venham a ser objecto de posse mercê de fraccionamento ilegal de prédio rústico.
10ª- O direito à habitação é um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, Lei Fundamental do país, no seu artigo 65º.
11ª- Existe, in casu, uma colisão de direitos e nos termos da figura prevista no artigo 335º do Código Civil, o direito superior é o da Recorrente.
12ª- Do ponto de vista constitucional, tem de prevalecer a função social, mesmo naquelas hipóteses em que haja vício na aquisição da posse de um determinado bem, como ocorre no caso da clandestinidade.
13ª- A interpretação perfilhada pela sentença recorrida, segundo a qual os artigos 1251º, 1263º e 1287º do Código Civil devem ceder perante a aplicação das normas de natureza administrativa referentes ao destaque, fraccionamento e loteamento urbano é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 9º, 25º, 26º e 27º e 65º da Constituição da República Portuguesa.

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida, e formulando as seguintes conclusões:

I. A Autora autorizou o filho a construir uma casa de habitação (clandestina) numa parcela de terreno, de dimensões e características não apuradas;
II. Passando a ser parte integrante do prédio rústico de maiores dimensões pertencente à Ré e onde esta também tinha implantada a sua habitação;
III. Um outro filho da Ré, também casado, foi autorizado pela mesma a fazer a suas expensas, umas obras nos fundos da casa desta, para aí habitar com a sua família, depois de casado;
IV. Onde ainda vive até ao momento;
V. A Ré não pretendeu doar a qualquer dos filhos a parcela de terreno ou a casa de habitação;
VI. A doação verbal, mesmo que provada, é sempre nula por inobservância da forma legalmente prescrita nos termos do Artigo 220 do Código Civil;
VII. Implicando a necessária aplicação do Artigo 289, n.º 1, do Código Civil;
VIII. Nulidade assumida pela própria Recorrente na sua petição inicial;
IX. A posse dos presentes autos é não titulada;
X. Não existe projecto aprovado pela Câmara Municipal ... para a construção erigida na parcela hipotética e pretensamente “destacada”;
XI. Nunca foi realizada ou aferida qualquer tentativa pela Recorrente ou pelo seu falecido marido de legitimarem qualquer viabilização de um projecto urbanístico que não fosse desconforme com as regras que limitam o fraccionamento de prédios rústicos;
XII. Nunca foi realizada ou aferida qualquer tentativa pela Recorrente ou pelo seu falecido marido de legitimarem qualquer viabilização de um projecto urbanístico que não fosse desconforme com as regras que regulam as operações de fraccionamento para fins urbanísticos;
XIII. Não foi alegado, provado ou sequer mencionado nos autos um qualquer licenciamento ou a sua dispensa das operações de loteamento urbano que permitisse o cumprimento do regime legal dos loteamentos urbanos;
XIV. A própria via notarial da escritura de justificação ou através do processo de justificação a correr nos serviços de registo predial face à ausência de loteamento ou destaque prévio;
XV. Traduz uma causa de nulidade da aquisição do imóvel correspondente ao prédio objecto de justificação por usucapião;
XVI. Não existe qualquer alvará de loteamento;
XVII. Não existe qualquer projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal;
XVIII. Não existe qualquer operação urbanística que resulta da divisão do prédio da Ré;
XIX. Porquanto, toda e qualquer situação passível de reconhecimento de propriedade tem de ser qualificada como nula;
XX. Pelo que, tudo conjugado, muito bem foi decidido por sentença que a acção proposta deveria e foi julgado totalmente improcedente, absolvendo a Ré de todos os pedidos contra si formulados;
XXI. A Ré aceita os fundamentos e a decisão proferida pela Meritíssima Juiz a quo, aceitando-os por corresponderem à verdade e à realidade dos factos;
XXII. Impõe-se a manutenção plena e na íntegra do teor e conteúdo da sentença recorrida;
XXIII. A qual foi, pela própria Recorrente, qualificada nas suas alegações de recurso, como proferida de forma exaustiva, cuidada e o foi com sapiente fundamentação, com lisura de pensamento e isenta objectividade.
XXIV. Pelo que, com elevado grau de probabilidade, importará a improcedência das alegações de recurso formuladas pela Recorrente.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, as questões a decidir são duas:
a) questão prévia: eventual ineptidão da petição inicial e suas consequências
b) saber se as regras que levam à aquisição do direito de propriedade por usucapião prevalecem sobre normas de direito administrativo sobre fraccionamento do território.

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:
A A. é Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de BB que faleceu em .../.../2000 Cfr. Ponto 1º da P.I.
Tendo já sido habilitados como seus herdeiros, além da A., sua cônjuge sobreviva AA e os dois filhos DD e EE, conforme flui da escritura publica de habilitação de herdeiros outorgada em 12 de Maio de 2000, no ... Cartório Notarial ..., de fls. 59 a fls. 59 Verso, do Livro de Escrituras Diversas nº ... – Cfr. Ponto 2º da P.I..
Sucede que o referido BB, era filho da Ré CC e de FF, pré falecido, conforme flui da cópia do assento de óbito e de casamento que se juntam e se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais – Cfr. Ponto 3º da P.I..
Nessa qualidade de filho e estando a iniciar a sua vida, o referido BB, já casado em 1993, solicitou à Ré sua mãe que o deixasse construir uma casa numa parcela de terreno, que fazia parte integrante de um prédio de maiores dimensões, denominado Campo ..., sito no lugar ..., actualmente na rua ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...52/..., inscrito em nome da Ré – Cfr. Ponto 4º da P.I.
A Ré nessa data autorizou o falecido BB e a sua esposa ora A., a construir naquela parcela – Cfr. Ponto 5º da P.I.
Assim a A., e o seu falecido marido passaram a tratar de tal parcela de terreno, passando a construir a sua habitação onde viriam a nascer e a viver até há pouco tempo os seus dois filhos DD e EE, nascidos respectivamente em .../.../1992 e .../.../1996 – Cfr. Ponto 6º da P.I.
Durante vários anos foi a A., e o seu falecido marido efectuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro à volta do mesmo – Cfr. Ponto 7º da P.I.
Que aumentaram após a morte do marido, tendo efectuado melhorias muito significativas no mesmo, para melhor acudir às necessidades da família que entretanto cresceu – Cfr. Ponto 8º da P.I..
Posse essa que foi adquirida sem violência, e na convicção de não lesar direitos de outrem, e que sempre foi exercida à vista de toda a gente e dos mais directamente interessados, com o conhecimento da generalidade das pessoas, nomeadamente dos vizinhos, e sem oposição de ninguém, dia a dia, ano a ano, sem soluções de continuidade – Cfr. ponto 12º da P.I.
10º E sempre foi exercida com ânimo de quem exerce direitos próprios e no seu próprio nome – Cfr. Ponto 13º da P.I.
11º Desde1993, a Autora e o seu marido passaram a ocupar e usufruir o prédio como sua propriedade, tendo passado a ser ali, na casa por si contruída em tal parcela de terreno, que a A., e desde sempre igualmente os filhos que tomam refeições, confeccionam as mesmas, pernoitam e realizam a higiene diária, têm residência e mobílias, efectuam limpezas domésticas, recebem familiares e amigos, estacionam os veículos no logradouro, recebem correspondência, à vista de toda a gente, incluindo os pais, pacificamente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na convicção de exercer tais actos sobre coisa sua, como legítimos e exclusivos proprietários – Cfr. Pontos 14º e 16º da P.I.

Não se provou:
12º Que, quando a autora, em 1993, autorizou que o filho construísse a sua habitação, na parcela de terreno que é parte integrante do seu prédio, lhe tenha dito que lhe doava a parcela de terreno, assegurando-lhe que essa parcela seria sua.

IV
Conhecendo do recurso.

Não havendo qualquer controvérsia quanto aos factos provados e não provados, as questões que se colocam são puramente jurídicas.
A recorrente e autora pretende que o Tribunal declare que ela adquiriu “o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...52/..., melhor identificados nos artigos supra desta petição inicial a favor da A., de per si e na qualidade de Cabeça de Casal por usucapião, nomeadamente do terreno onde está implementada a sua habitação”.
Se formos olhar para a petição inicial em busca de uma definição completa da parcela de terreno que a autora pretende adquirir, apenas vemos a seguinte referência: “o referido BB, já casado em 1993, solicitou à Ré sua mãe que o deixasse construir uma casa n... canto do campo que havia sido adquirido denominado Campo ..., sito no lugar ..., actualmente na rua ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...52/..., conforme flui da cópia que se junta e se dá por reproduzida para todos os efeitos legais – cfr. doc. nº ...”. E mais adiante: “durante vários anos foi a A., e o seu falecido marido efectuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro á volta do mesmo, fazendo benfeitorias, que aumentaram após a morte do marido, tendo efectuado melhorias muito significativas no mesmo, no qual dispendeu várias dezenas de milhares de euros uma vez que pretendia e pretende habitar na sua habitação até ao final dos seus dias”.
O Tribunal recorrido apercebeu-se do problema, quando escreveu: “pretende a autora obter a condenação judicial da Ré a ver declarada a aquisição a seu favor, por usucapião, de uma parcela de terreno, de dimensões e características não especificadas, que seria parte integrante de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré”. Só que seguiu em frente, apreciando a questão da usucapião.
Pensamos porém que não deveria ter seguido.
O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (art. 3º,1 CPC).
O princípio do dispositivo é estruturante do processo civil. Escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC anotado, anotação ao art. 3º, que “quanto ao princípio do dispositivo, podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos de natureza processual destinados a assegurar a respectiva tutela. (…) O mesmo princípio estende-se à configuração do objecto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamentação à acção ou a defesa (art. 5º,1). A formulação do pedido (art. 552º,1,e), que vai determinar o objecto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objecto do processo (art. 3º), com repercussão nos limites da sentença (art. 609º,1). O pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
Recorrendo ao que escreve o primeiro dos autores citados, in Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, fls. 105: “mas não basta concluir pela necessidade de formulação do pedido. A lei processual impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objecto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da acção (…)”.
Mais adiante, escreve o mesmo autor, quanto às características da petição quanto ao pedido: “(…) Precisão e determinação: a indeterminabilidade ou a ambiguidade do objecto do processo constituem uma falha tão grave quanto as referidas no ponto anterior (pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros), devendo o autor expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença. Será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstracto (cfr. A. Reis, ob cit, pág. 363, nota 1), como aquele que foi objecto do Acórdão da Relação de Évora, de 13-12-84, e que consistia em “proibir o réu de todo e qualquer acto ofensivo de interesses do autor”, ou quando se pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação (não respeita esta regra a petição onde apenas se pede o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores Destaque nosso. ou quando se pede que o autor se abstenha de todo e qualquer acto ofensivo de interesses – cfr. Teixeira de Sousa, in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 122”).
Ora, no caso dos autos, estamos perante um pedido que padece exactamente desse mal: a pretensão da autora é que o Tribunal declare que ela adquiriu por usucapião uma determinada parcela de terreno. Mas de concreto apenas sabemos que essa parcela faz parte de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré. Nada mais sabemos: nem a sua área, nem as suas confrontações. Se o Juiz chegasse à sentença e entendesse dar razão à autora, que parcela exacta da superfície terrestre é que iria declarar que tinha sido adquirida por usucapião ? Não sabemos, porque ela não está indicada. Quer o pedido, quer a causa de pedir, não contém essa precisão.
Claro que este exercício mental é puramente académico, pois como já vimos, também a causa de pedir sofre do mesmo mal, não estando identificada devidamente (nem sendo passível de identificação) a parcela exacta (com indicação da área e confrontações) que é objecto do pedido. Ainda podemos aceitar que nessa parcela se situa a casa onde a autora reside. Mas, qual a respectiva área ? E o logradouro ? Quais as suas dimensões ? 200 metros quadrados ? 2.000 metros quadrados ? 20.000 metros quadrados ? Nada sabemos, porque nada foi alegado. E quais as confrontações ? Também nada sabemos porque nada foi alegado.
E imagine-se que, tendo obtido ganho de causa, a autora se apresentava no registo predial para registar a aquisição por usucapião. Que parcela ia registar ? Com que área ? Com que confrontações ? O registo seria liminarmente recusado (cfr. art. 82º C. Reg. Predial).
Há uma grave indeterminação do pedido, o mesmo sucedendo com a causa de pedir, tão grave que afecta de modo insanável o objecto do processo.
E logo, por força do art. 186º,1,2,a CPC, estamos perante uma petição inicial inepta, por ininteligibilidade do pedido. O que significa que ocorre uma nulidade de todo o processo.
Tal vício, que é de conhecimento oficioso (art. 196º CPC), deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).

Porém, dispõe o art. 200º,2 CPC o seguinte:
As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.
Em anotação a este artigo, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa que “neste contexto, a prolação do despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º a 193º,1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades. Se o processo não comportar ou não tiver despacho saneador, o juiz pode conhecer destes dois vícios até à sentença final”.
É certo que a ineptidão da petição inicial, além de determinar a nulidade de todo o processo, tem também a natureza de excepção dilatória (arts. 577º, b e 595º,1,a CPC). Por aplicação do art. 576º,2 CPC, as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (…).
Os mesmos autores anotam: “Se o processo for nulo, não faz sentido que o juiz profira uma decisão de mérito sobre a questão apresentada ao Tribunal. Esta nulidade surge quando a petição inicial é inepta. Sendo esta peça a base de qualquer processo, mas padecendo de algum dos vícios constantes do art. 186º,2, todo o processo ficará inquinado, sendo por isso nulo (…) Importa, no entanto, contar com a possibilidade de se considerar sanada tal nulidade sustentada na falta ou inteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, a partir da apreciação da posição assumida pelo réu na contestação, nos termos do art. 186º,3”. No caso concreto sabemos que a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição, antes defendeu o conhecimento do mérito da causa. Porém, não deixa de ser incontornável que o facto de a ré não ter arguido esse vício, substantivamente não convalida a petição: esta continua a ter um objecto demasiado vago e indefinido para permitir uma correcta apreciação do mérito.
O conhecimento das excepções dilatórias é um dever oficioso do Tribunal, como resulta do art. 578º CPC.
Porém, como já vimos, existe um limite para o conhecimento deste vício resultante da ineptidão da petição inicial, que é a sentença final. Passado esse marco, já nem o Tribunal de recurso pode conhecer do mesmo, para absolver o réu da instância.
Todavia, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave agora como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente.
A sentença recorrida julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados. Esta Relação concorda com essa absolvição dos pedidos, embora com um fundamento diferente.
Assim, resumindo e concluindo, uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido, quando já não é processualmente possível conhecer desse vício, dá lugar não à absolvição da instância mas à absolvição do pedido.
E assim sendo, pelas mesmas razões, resta julgar o recurso também totalmente improcedente, pois, independentemente de saber se assistia razão à recorrente quanto à questão que veio suscitar no recurso, com o pedido ininteligível que formulou nunca poderia a acção ter sido julgada procedente.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e, embora por razões diversas das aduzidas na sentença recorrida, confirma a total absolvição da ré dos pedidos.
Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 26.1.2023

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1 - Destaque nosso.