Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2247/05-1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA
PACTO ATRIBUTIVO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Tendo o réu alegado que as partes escolheram foro estrangeiro para julgar os litígios emergentes de uma dada relação contratual, estamos perante um caso de incompetência relativa dos tribunais portugueses em função da violação da regra de competência estabelecida em pacto atributivo de jurisdição.
II – Vale como efectivo pacto atributivo de jurisdição, nos termos do artº 23º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, a cláusula escrita proposta por uma das partes no sentido da atribuição da competência ao foro estrangeiro, e a outra parte a aceita tacitamente.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães:


A intentou, pelo tribunal da comarca de Braga, acção com processo na forma ordinária contra B, sociedade de direito espanhol e com sede em Espanha, peticionando a condenação desta no pagamento do valor dos prejuízos que diz terem-lhe sido causados pela R..
Alegou para o efeito, em síntese, que encomendou à R., que aceitou a encomenda, o fornecimento de certas roupas. Acontece que a R. não cumpriu a sua parte no contrato, o que foi causa de prejuízos para a A.
Contestou a R.
Disse, além do mais, que os tribunais portugueses carecem de competência para dirimir o pleito, na medida em que as partes escolheram, nos termos do doc. nº 1 junto com a PI, o foro de Porriño (Espanha) para julgar os litígios decorrentes do aludido contrato.
Replicou a A., defendendo que os tribunais portugueses são competentes.
Veio a ser proferida decisão que julgou procedente a excepção e absolveu a R. da instância.

Inconformada com o assim decidido, agravou a A..


Da respectiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1º. Não há qualquer acordo escrito entre as partes que consubstancie um pacto de aforamento;
2ª. A R. não articula factos que consubstanciem a efectiva existência da evocada convenção de competência territorial;
3ª. Ainda que assim não se entenda, o texto "em caso de litígio o comprador submete-se á jurisdição dos Tribunais de Justiça de Porriño" não preenche os requisitos legais exigidos nos nºs. 2 e 4 do artº 100º C.P.C., sendo por isso inválido ou nulo enquanto cláusula de aforamento de competência;
4ª. O referido texto não designa as questões concretas para as quais o Tribunal referido ficou a ter competência, nem especifica os factos susceptíveis de as originar, além de não mencionar ou designar o critério que presidiu à determinação do Tribunal escolhido;
5ª. O referido texto pretende ser uma imposição da R. aos seus potenciais clientes, quanto ao foro competente para julgar os litígios em que seja parte, não se vislumbrando qualquer interesse sério para afastar a competência territorial determinada na lei portuguesa;
6ª. O tribunal competente para julgar o presente litígio é o Tribunal de Braga, á luz do artº 74º C.P.C. - lugar do cumprimento da obrigação (entrega das mercadoria).


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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
Foi proferido despacho de sustentação do decidido.


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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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Sustenta a R. que as partes escolheram o foro de Porriño (Espanha) para julgar os litígios decorrentes da relação contratual em causa. Para o efeito, reporta-se ao doc. nº 1 apresentado com a PI.
Pretende-se assim que as partes estabeleceram entre si um pacto atributivo de competência às justiças de Espanha, de tal competência ficando privados os tribunais portugueses.
O que está em causa é pois a incompetência relativa dos tribunais portugueses, em função da violação de regra de competência estabelecida em pacto atributivo de jurisdição (artºs 101º, nº 1 a contrario e 108º, do CPC). Não está em causa directamente, contra o que se pretende na decisão recorrida (maxime, a respectiva parte final), a incompetência territorial, pois que esta, para além de se reportar apenas e exclusivamente à competência interna dos tribunais portugueses, pressupõe estar resolvido ou assente que os tribunais portugueses têm competência no plano internacional.
Por outro lado, e contra igualmente o que se supõe na decisão recorrida (bem como na alegação da apelante), o artº 99º do CPC (e muito menos o artº 100º, este justamente porque não está aqui em causa a competência interna territorial) não se aplica ao caso vertente.
Com efeito, tanto Portugal como a Espanha passaram a estar (desde 1992 e 1991, respectivamente) vinculados pela consabida Convenção de Bruxelas Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (e, subsequentemente, por outra, mas de idêntico conteúdo, a Convenção de Lugano), que veio derrogar, nas relações entre Estados Membros da UE, as comuns regras de conflitos de jurisdição constantes das respectivas leis processuais internas, de sorte que tais regras só são atendíveis nos casos a que não se aplique tal Convenção (v. Fernando Ferreira Pinto, Lições de Direito Processual Civil, pág. 150 e sgts; Miguel Teixeira de Sousa, A competência Declarativa dos Tribunais Comuns, pág. 65). E posteriormente, a disciplina inserta nessa Convenção de Bruxelas deixou de ser aplicável, tendo sido substituída pela disciplina hoje constante do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial (v. artº 68º, nº 1 do Regulamento: “O presente regulamento substitui, entre os Estados-Membros, a Convenção de Bruxelas […]”). Regulamento esse que entrou em vigor em 1 de Março de 2002.
Portanto, para sabermos qual o tribunal in casu competente no plano internacional, na certeza de que tanto Portugal como a Espanha, como Estados-Membros da UE, estão vinculados pelo dito Regulamento, temos de incidir sobre o mesmo, e esquecer o artº 99º do CPC.
Face ao Regulamento a regra é a de que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado (artº 2º, nº 1), só podendo ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-Membro nas hipóteses excepcionais previstos no Regulamento (artº 3º, nº 1). Uma dessas hipóteses é a de estarmos perante matéria contratual, pois que neste caso uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação (artº 5º, nº 1 a)), sendo que no caso de venda de bens o lugar do cumprimento é aquele onde os bens foram ou devam ser entregues (artº 5º, nº 1 b)). Mas o Regulamento prevê de extensão da competência, sendo atendível o pacto tendente a submeter a um tribunal específico de um Estado-Membro a competência para decidir o litígio que possa surgir de uma determinada relação jurídica. Mas este pacto atributivo de jurisdição deve: a) ser celebrado por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou, b) em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou, c) No comércio jurídico internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado (artº 23º, nº 1).

Isto posto:

Factualmente, e para os fins em causa, temos como provado nos autos que:

a) A R. emitiu o escrito junto com a PI sob o nº 1, datado de 4 de Fevereiro de 2004;
b) Consta de tal escrito que a mercadoria aí referida, a fornecer pela R. à A., deveria ser entregue em Braga,
c) Consta do mesmo escrito, em dizeres impressos previamente apostos, que “em caso de litígio o comprador submete-se à jurisdição dos Tribunais de Justiça de Porriño”;
d) Em 13 de Abril de 2004 a R. comunicou à A. o preço do produto a que se refere o falado escrito, identificando a conta bancária para onde devia ser feita a respectiva transferência;
e) Em 17 de Agosto de 2004 a A. procedeu à transferência para essa conta do preço indicado;
f) Em 24 de Agosto de 2004 a A. enviou à R. o fax a que se refere o documento junto com a PI sob o nº 5, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

Perante esta factualidade, temos que a obrigação imputada à R., emergente de uma suposta relação contratual, era para ser cumprida em Portugal, por isso que os bens a fornecer deveriam ser entregues à A. em Braga.
O que significa que a R. podia ser demandada perante os tribunais portugueses.
Isto só não deverá ser assim se acaso se dever concluir que as partes convencionaram privar os tribunais portugueses da competência, e atribuir essa mesma competência aos tribunais espanhóis (e, mais concretamente, no âmbito da respectiva organização interna, ao tribunal de Porriño).
E pode-se dizer que convencionaram?
A R. diz que sim, fundada na circunstância de documento junto com a PI sob o nº 1 constar a menção de que “Em caso de litígio, o comprador submete-se à jurisdição dos Tribunais de Justiça de Porriño”.
No mesmo sentido vai a decisão recorrida.
E nós dizemos que estamos de acordo com a decisão recorrida.
Afastadas que têm de ser necessariamente as hipóteses previstas no artº 23º, nº 1 b) e c) do Regulamento (na medida em que é certo que nada consta dos autos que signifique [sendo que nada foi alegado nesse sentido pela parte interessada, a R.] que foi celebrado um pacto atributivo de competência em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; [aliás, sabe-se que entre as partes não houvera anteriormente quaisquer relações negociais] ou em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, no comércio internacional, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado), julgamos todavia que o caso cai na primeira parte da alínea a) do nº 1 do Regulamento.
A propósito do artº 17º (alínea a)) da Convenção de Bruxelas – norma esta cujo teor é praticamente em tudo idêntica à do nº 1 do artº 23º do Regulamento – a jurisprudência tem tergiversado sobre se as declarações de vontade dos pactuantes têm que constar do documento que formaliza o pacto atributivo de competência, ou se é admissível a aceitação tácita de uma cláusula, proposta por uma das partes, no sentido da atribuição de competência a uma certa jurisdição. Assim, para os Ac’s do STJ de 1.7.99 (Col Jur-Ac do STJ, 1999, 3º, pág. 11) e de 12.6.97 (BMJ 468, pág. 324), não se cumpriria o requisito de forma exigido nessa norma senão quando ambas as partes contratantes tivessem assinado o escrito donde consta a cláusula. Já para o Ac da RP de 28.6.99 (BMJ 488, pág. 410), e para os Ac’s do STJ de 17.6.97 (Col Jur-Ac do STJ, 2º, pág. 128) e de 23.4.96 (BMJ 456, pág. 353), a convenção teria que constar de documento, mas tal documento não teria que ser assinado por ambas as partes outorgantes, sendo suficiente a aceitação tácita da cláusula proposta por escrito no sentido da atribuição da competência a determinado tribunal. Também nesta Relação de Guimarães se decidiu já neste último sentido (Ac de 4.6.03, Col Jur 2003, 3º, pág. 290), decisão aliás subscrita por dois dos juízes que intervêm no presente acórdão.
Inclinamo-nos efectivamente para este último entendimento. Entendimento que não vemos razão para não ser levado em linha de conta no caso de que nos ocupamos agora, o do artº 23º, nº 1 a), 1ª parte do Regulamento (repetimos que a redacção das normas do artº 17º da Convenção e do artº 23º do Regulamento são praticamente idênticas).
Ora, in casu, o doc. nº 1 apresentado com a PI (referimo-nos ao original, constante de fls 130 e sgts, e não à fotocópia inicialmente apresentada pela A. e que, sem dúvida por mero acaso, se encontra amputada dessa menção) menciona, em dizeres impressos previamente apostos nele, que em caso de litígio quanto ao negócio aí reflectido o comprador submeter-se-ia à jurisdição dos tribunais de justiça de Porriño. Tal documento, elaborado em Fevereiro de 2004 (ou seja, aquando da conclusão do suposto contrato que serve de causa de pedir na presente acção), não se encontra assinado pela A., mas reporta-se à relação contratual alegadamente estabelecida entre as partes, e que serve de causa de pedir nesta acção, sendo certo que é a própria A. quem o apresenta como prova de tal relação. E desse documento constam certas condições (a que podemos chamar “condições gerais”) que a R. opôs à A.. Acontece que a A. teve necessariamente conhecimento dessas condições, pois que o documento lhe foi entregue pela R.. E o que é certo é que subsequentemente a A. aceitou o preço da suposta encomenda indicado pela R. e a esta o remeteu. Da mesma forma, a A., posteriormente, com a R. interagiu por escrito no âmbito e na suposição da relação contratual que o referido documento sugere. Ora, isto não significa senão que a A. aceitou tacitamente as ditas “condições gerais” opostas pela R., e, entre estas, aquela que se refere ao tribunal competente para conhecer de eventuais litígios que emergissem da relação negocial retratada naquele documento. E, tal como se observa na decisão recorrida, nada compatível com o vector da boa fé será sustentar-se que o falado documento só vale para o que à A. convém, e não também como demonstrativo dos contornos globais da relação negocial, tal como foi querida pela R. e, dizemos nós, aceite tacitamente pela A..
Deste modo, cremos que foi validamente estabelecido um pacto atributivo de competência às justiças de Espanha para conhecer de litígios que da alegada relação contratual surgissem. Competência essa que é exclusiva (v. nº 1 do artº 23º do Regulamento), isto é, não se põe sequer uma hipótese de competência concorrente dos tribunais portugueses. O que significa que estes foram estão convencionalmente privados de competência para julgar o presente litígio.
Improcede pois o que se diz nas conclusões 1ª a 4ª e primeira parte da conclusão 5ª.
No que tange à segunda parte da conclusão 5ª, temos como óbvio que o que aí se diz carece de qualquer cabimento. Desde logo, porque o assunto sub judice não se reporta à competência territorial determinada na lei portuguesa, mas sim à competência internacional. Depois, se a R. é uma entidade de direito espanhol, se está sedeada em Espanha, se foi em Espanha que o pretenso contrato foi concluído, se era em Espanha que o produto encomendado seria fabricado, como pode pensar-se que não há qualquer interesse sério no afastamento da competência dos tribunais portugueses? Só temos de dizer que a R. tinha todo o interesse em submeter à justiça espanhola o conhecimento de qualquer litígio emergente, o que a A. não rejeitou, antes aceitou tacitamente.
Improcede assim tal conclusão, na parte em destaque.
No que respeita à conclusão 6ª, cabe apenas repetir o que acaba de ser dito: o que está em causa não é a questão da determinação da competência interna territorial dos tribunais portugueses, mas sim de determinação de qual a jurisdição internacional competente (se a portuguesa, se a espanhola). O que significa que não nos interessa nada saber se, na ordem interna territorial, o tribunal da comarca de Braga é ou não competente. Não foi a competência territorial dos tribunais judiciais portugueses que a R. veio contestar.



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Decisão:


Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao agravo.



Regime de Custas:


A agravante é condenada nas custas do agravo.


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Guimarães, 14 de Dezembro de 2005

Manso Rainho
Rosa Tching
Espinheira Baltar