Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
227/15.0T8PRG-X.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ACÇÃO DE VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO
NATUREZA PROCESSUAL
CONHECIMENTO OFICIOSO DO TRIBUNAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O prazo de três meses previsto na 2ª parte da alínea b) do nº2 do art. 146º do CIRE é um prazo de natureza de processual e não um prazo de caducidade.
II – Sendo um prazo processual é do conhecimento oficioso do Tribunal, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto no processo de insolvência, não sendo sequer necessária a sua invocação pela parte contrária.
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO (1)

(Proc. nº 227/15.0T8PRG-X.G1)
* * * * * * *
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
* * *
1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

A Autora Sociedade Turística e Hoteleira Quinta da X, Lda intentou contra a Ré Massa Insolvente Sociedade Agrícola Quinta do Y, Lda e contra os Réus Credores da Massa Insolvente, nos termos do art. 125º do CIRE, acção para verificação ulterior de créditos, pedindo que seja «reconhecido com base no art. 754º e alínea f) e 755º ambos do Cód Civil, o direito de retenção da A./reclamante, sobre o imóvel» e que seja «o crédito A./reclamante, no valor de 700 mil euros, reconhecido e graduado como crédito privilegiado», fundamentando a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «Encontrando-se provado que a A./reclamante é titular de um crédito de 700 mil euros cujo pagamento se encontra garantido por “direito de retenção” e pelo “direito de propriedade” incidentes sobre imóvel (Quinta de W) que, por efeito de “cessão de créditos” da reclamante e cedente CAIXA ... entregou à C. e esta por sua vez celebrou um contrato com a M. & S., DOURO LDA; a cedente CAIXA ... reclamou créditos e estes foram reconhecidos e graduados como privilegiados passando a integrar a massa insolvente Y; o credor hipotecário cedeu os créditos e as garantias (CAIXA ... à C. e esta à M.); o imóvel sobre que recai a garantia real pertence à massa insolvente de Y; como foi o insolvente a contrair a divida perante a A./reclamante e esta pagou o preço do prédio “Quinta da W”, como terceiro que constituíram hipoteca sobre o imóvel para garantia do respectivo pagamento da divida, a A./reclamante é credora da insolvência; a partir de 10 de Janeiro de 2012 o imóvel, juridicamente, passou a pertencer à aqui A./reclamante, mas a constituição do direito de propriedade e direito de retenção como credor na insolvência só se torna definitiva com o cancelamento do registo da aquisição do imóvel a favor dos mutuários; está-se perante um direito de crédito sobre a insolvência de constituição posterior à sentença de declaração da insolvência; mostrando-se que a lei estabelece, como referência da contagem do prazo limite, a constituição do direito, não há dúvida de que, para esse efeito, o registo de cancelamento da aquisição a favor dos mutuários, seus devedores, não pode deixar de ser oponível ao A./reclamante (como parte interessada, ou mesmo, tão só, enquanto terceiro); a publicação do anúncio da venda é de todo irrelevante para o exercício do direito de reclamação ulterior da A./reclamante; o registo do cancelamento da aquisição e nova apresentação a favor da cessionária foi em Julho de 2020, e a presente ação deu entrada em juízo em Agosto de 2020; mediante o aludido contrato de compra e venda, a Insolvente vendeu à reclamante/A. e esta comprou, mediante o pagamento de 220.000,00 € o mencionado prédio, e o que foi devidamente registado; foram registadas as transmissões de crédito, mediante cessão de créditos, da Hipoteca Voluntaria da CAIXA ... para a referida C., e desta para a referida M. & S.; foi intentada ação de execução contra a A./reclamante onde títula como exequente a referida M. & S.; a A./reclamante na referida execução não é devedor na relação de dívida, mas sim a Insolvente; a penhora ofende a posse de que é titular e de quem não é parte na causa; nesta situação, a sociedade aqui A./reclamante fica investida na posição de credora sobre a devedora principal, a Insolvente, da restituição do crédito que sobre si recai; a A./reclamante pagou o preço de € 220 mil euros na data da aquisição da Quinta da W; a partir de então a A./reclamante investiu milhares de euros, quer em obras uteis na manutenção, remodelação e ampliação da Quinta de W; esta hoje tem um valor de mercado de mais de um milhão de euros; tem assim a A./reclamante um direito de propriedade e um direito de retenção, em virtude das benfeitorias úteis, necessárias e urgentes, direitos a que se arroga a A./reclamante na eventualidade de ter que entregar o prédio; deve o crédito ora reclamado no valor de € 700 mil euros, ou seja, 220 mil euros da aquisição consubstancia um direito propriedade e 480 mil euros a investimentos realizados, benfeitorias uteis e urgentes realizadas, ser reconhecido e graduado como crédito privilegiado».
Notificada, a Ré Massa Insolvente contestou, pugnando pela improcedência total da acção, «mantendo-se intactas as resoluções efetuadas pela Administradora da Insolvência», sendo que, para além do mais, no seu articulado de defesa deduziu a «excepção de caducidade do direito de interposição da presente acção», excepção que fundou, essencialmente, do seguinte: «a “Quinta de W” não se encontra apreendida a favor da massa insolvente, não constituindo bem nela integrado pelo que não tem qualquer aplicação no caso a dirimir invocar direito de retenção e de propriedade sobre algo que não está por ela apreendido; do que veio invocado pela Autora, a CAIXA ... é(ra) credora da insolvente de dadas quantias, créditos que provieram de vários empréstimos concedidos em certo(s) momento(s) à sociedade agora insolvente, algum ou alguns dos quais se encontravam garantidos por via de hipoteca também sobre o imóvel que à insolvente pertenceu e que, em 10 de Janeiro de 2012, ainda antes da declaração de insolvência, o terá adquirido a Autora pelo preço de 220.000,00 €; a Caixa ..., reclamou, de facto, oportunamente os seus créditos sobre a insolvência, entre os quais se encontra(va)m, então, o(s) garantido(s) pela aludida hipoteca sobre o imóvel que veio a ser adquirido pela sociedade Autora; o aludido imóvel, que foi adquirido pela Autora já onerado com a dita hipoteca para garantia do pagamento desse específico crédito da CAIXA ..., deverá responder pelo seu pagamento, se foi ele objecto de execução; o único crédito que possa vir a deter sobre a insolvência, o que resultar do que for forçada a pagar ou ter de suportar pela execução do prédio que adquiriu à agora insolvente, tendo por isso como limite o valor pelo qual adquiriu esse bem à insolvente, já que era ela perfeitamente conhecedora dos riscos que conscientemente assumiu ao adquirir esse bem com o ónus que sobre ele impendia, a dita hipoteca a favor da CAIXA ..., ademais com dimensão do crédito que garantia; a Autora poderá vir a subrogar-se na posição jurídica ocupada pela entidade credora da insolvente que estará a executar esse crédito sobre o bem de sua propriedade, sempre e na medida do que esse prédio venha a ter de efectivamente suportar para o seu pagamento, a realizar-se por via incidental de habilitação nos autos de insolvência; ao invés do que pretende a Autora, o crédito que possa “reclamar” sobre a insolvência em razão do sucedido, não é nunca de constituição posterior à declaração da insolvência e constituiu-se pelo menos com a sua declaração, ele detido pela CAIXA ..., oportunamente por ela reclamado e já reconhecido, tendo sido o mesmo cedido sucessivamente a outrem; caso a CAIXA ... não o tivesse oportunamente reclamado, acorrendo ao que antes se defendeu, de facto a Autora poderia no prazo concedido para a apresentação das reclamações de créditos e até depois, nos termos do artigo 146.º do CIRE, reclamar tal crédito, na circunstância ainda que condicionalmente; só agora, passados pouco menos de cinco anos sobre a declaração de insolvência (12-10-2015), veio a Autora invocar ser desse crédito detentora; já transcorridos tantos anos após a declaração de insolvência da sociedade, pode concluir-se que foram ultrapassados bem largamente os prazos para o fazer por essa via, tendo caducado este direito; caso o credor originário não tivesse reclamado tal crédito, mas uma vez que o fez tal obsta à reclamação ou qualquer verificação ulterior do mesmo crédito que a Autora pudesse realizar, pelo que a iniciativa por ela agora tomada judicialmente com a interposição da presente acção seria sempre manifestamente extemporânea.
Notificados, nenhum dos Credores da Massa Insolvente contestou.

Em sede de despacho saneador, para além do mais, foi proferida a seguinte decisão:
«Em sede de contestação, invoca a ré “a caducidade do direito de interposição da presente acção”, uma vez que, segundo defende, o crédito da autora, a existir, nasceu pelo menos com a declaração de insolvência, a qual teve lugar em 12.10.2015.

Nos termos do artigo 146.º, n.º 2, do CIRE, “o direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior:
a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior;
b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente”.

No caso, excluída que está a aplicação da alínea a) da norma citada, cumpre apreciar da verificação do prazo contido na alínea b).
Ora, conforme vem sendo referido pela jurisprudência, o prazo aí previsto consubstancia um prazo de natureza processual, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto no âmbito do processo de insolvência, nos termos do artigo 139.º, n.ºs 1 e 3, do CPC.
De facto, segue-se o entendimento segundo o qual “o prazo de propositura de ação de verificação ulterior de créditos a que se refere o artigo 146º, nº 2, alínea b), do CIRE, não tem natureza substantiva, não integra a respectiva relação jurídica obrigacional, nem se lhe aplica o regime de caducidade previsto nos artigos 298º, nº 2, e 333º, nº 2, C. Civil” (cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 20.06.2017, disponível em www.dgsi.pt).
Trata-se, pois, de um prazo de natureza processual, pelo que, não tendo o seu conhecimento lugar enquanto excepção peremptória impeditiva, desde já se conhece da observância de tal prazo.
Ora, como veremos, o direito a discutir nos presentes autos não se mostra ainda constituído, vindo a constituir-se apenas se e na medida em que o prédio de que a autora é proprietária responda por dívidas da insolvência (razão pela qual, a ser reconhecido, o será como crédito condicional).
Pelo que, e sem necessidade de mais considerandos, entende o Tribunal que a propositura da presente acção de verificação ulterior de créditos se mostra tempestiva».
*
1.2. Do Recurso da Autora

Inconformada com a referida decisão, a Ré Massa Insolvente interpôs recurso de apelação, pedindo que se «julgue procedente o recurso, e em consequência, que se revogue o Despacho proferido no que concerne a decisão de não verificação da caducidade do exercício do direito de reclamação de créditos por via da acção instaurada, com a consequente absolvição dos Réus de todos os pedidos formulados ou, caso assim se não entenda, relegar-se a apreciação sobre a (in)tempestividade para prolação de sentença», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“A) A Recorrente discorda com a decisão de mérito proferida no despacho de que se recorre que entende não se verificar a excepção de caducidade invocada pela ora Recorrente, consequentemente pronunciando-se pela tempestividade da instauração da presente acção de verificação ulterior de créditos.
B) Para tal decisão, pareceu estribar-se o Venerando Tribunal a quo no entendimento que o direito de crédito invocado pela Autora no seu petitório não se mostra ainda constituído, vindo a constituir-se apenas se e na medida em que o prédio de que é proprietária responda por dívidas da insolvência (razão pela qual, a ser reconhecido, o será como crédito condicional).
C) É o entendimento da Recorrente, o exercício do invocado direito de crédito primou pela sua extemporaneidade, porque a existir, o que se desconhece, o mesmo se terá constituído, como argui a própria sociedade Recorrida, e já bem antes dos três meses anteriores à data interposição da presente acção.
D) A A./Recorrida organizou o seu petitório invocando deter um direito de crédito sobre a insolvência, sempre e na medida em que o prédio de que é proprietária venha a responder por dívidas daquela, esse que resulta das benfeitorias, investimentos realizados que tal prédio valorizaram.
E) No que concerne a benfeitorias necessárias, tem o possuidor direito a ser indemnizado, é certo, de igual modo de ser satisfeito o valor das benfeitorias úteis, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, tendo ainda de provar que não é possível o seu levantamento sem detrimento do imóvel - cfr. art.º 1273.º, n. 1 e 2 do C. Civil.
F) Sobre as benfeitorias voluptuárias consigna o artigo 1275.º do mesmo Código o seguinte:
“1. O possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas.
2. O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito.”
G) Neste quadro legal, o eventual crédito da Autora invocável contra a Recorrente, emergente das benfeitorias v.g. “investimentos” realizados que o prédio valorizaram, constituiu-se quando da sua realização, pelo que, se realizados até à declaração de insolvência da Quinta do Y, eram reclamáveis até ao fim do prazo das reclamações ou nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença declaração de insolvência,
H) ou, se realizados posteriormente, aí se constituindo, reclamáveis sobre a insolvência nos três meses seguintes a tal realização.
I) Do que deflui da aliás petição inicial e documentos juntos, as benfeitorias/investimentos que a Autora ou a alegada arrendatária do prédio tivesse(m) eventualmente realizado e que ficassem a pertencer ao prédio em causa, podê-lo-ão ter sido mas já bem antes dos três meses anteriores à data interposição da presente acção.
J) Se tais créditos assim se constituíram, ao invés do que o Venerando Tribunal a quo propugna, a faculdade de os reclamar no processo de insolvência, resulta amplamente dos autos foi exercida fora dos limites temporais legalmente permitidos, donde teria inevitavelmente de concluir pela caducidade do direito ao seu exercício por via da presente acção.
K) A decisão proferida violou o artigo 146.º do CIRE.
L) Uma vez que a verificação ulterior de créditos está sujeita a prazo de caducidade, não poderia o Tribunal a Quo formular, sem qualquer sustentação factual, formular um juízo definitivo sobre a tempestividade da acção quando não conhece quando foi constituído o crédito da Recorrida - porque desconhece ainda se e quando a Recorrida realizou as benfeitorias/investimentos cujo valor reclama nos autos.
M) A apreciação da excepção de caducidade invocada, deverá pelo menos ser relegada para o momento de prolação da sentença, apenas aí podendo verificar com exactidão a reclamação dos créditos cumpriu o prazo previsto na alínea b) in fine do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE”.
Nem a Autora nem os Credores da Massa Insolvente contra-alegaram.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
* * *
2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (2) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida (3)).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela Ré Massa Insolvente é uma a questão a apreciar por este Tribunal ad quem: a presente acção para verificação ulterior de créditos foi intentada de forma tempestiva?
* * *
3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede, e ainda os seguintes:

1) No processo de insolvência que corresponde aos autos principais, na data de 12/10/2015, foi proferida sentença, que declarou a insolvência da Sociedade Agrícola Quinta de Y, Lda. (cfr. decisão proferida naquela data e naqueles autos),
2) Sentença que transitou em julgado na data de 03/11/2015 (cfr. certidão emitida na data de 13/11/2015 e naqueles autos).
3) O imóvel correspondente ao prédio misto sito em “Quinta de W”, composto por casa de habitação, armazém e lagares, casa de caseiros, vinha da Região Demarcada do Douro, cultura arvense de sequeiro, mato, cultura arvense de regadio, terreno estéril, urbano e pátio, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o art.º n.º …/20020205 não foi apreendido no processo de insolvência (cfr. auto de apreensão que apresentado a 24/11/2015 nos autos principais e auto de apreensão apresentado na data de 11/04/2016 no apenso C).
* * *
4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Nos termos do art. 1º/1 do C.I.R.E., “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
A verificação do passivo obedece ao regime previsto nos arts. 128º a 140º do C.I.R.E., correndo por apenso ao processo de insolvência, procedendo-se à reclamação dos créditos perante o administrador da insolvência (cfr. art. 128º/2), e trata-se de uma fase processual destinada à repartição do produto da liquidação e que terá que assegurar a plena igualdade no exercício de direitos por parte dos diversos reclamantes.
A oportunidade processual para a reclamação de créditos pelos credores da insolvência encontra-se subordinada ao cumprimento do prazo designado para o efeito na sentença que declara a insolvência, até a um máximo de 30 dias – cfr. arts. 128º/1 e 36º/1j) do C.I.R.E.
Decorrido este prazo, a lei concede ainda a possibilidade de reclamação e verificação ulterior de créditos da insolvência, através do expediente processual especialmente previsto no art. 146º do C.I.R.E, no qual se estatui: “1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efectuando-se a citação dos credores por meio de edital electrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação. 2 - O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior: a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior; b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente”.
Para o caso em apreço, releva a situação prevista na alínea b), na qual se estabelece neste um prazo limite de seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença da declaração da insolvência (1ª parte), e um outro de três meses após a constituição do crédito a reclamar, caso termine posteriormente (2ª parte).
Quanto à natureza deste prazo de três meses, designadamente sobre se constitui um prazo processual (ou adjectivo) ou um prazo de caducidade, é entendimento pacífico do STJ de que estamos perante um prazo processual, e que foi reafirmado no seu recente aresto de 10/05/2021 (4), no qual se decidiu que «O prazo de três meses previsto no art. 146.º, n.º2, al. b), 2.ª parte, do CIRE, reveste a natureza de prazo processual e não de prazo de caducidade». E explica-se, de forma muito concreta e assertiva, que: “… tal prazo destina-se tão simplesmente ao exercício de uma determinada faculdade processual que se enquadra, em termos gerais e finalísticos, no âmbito e na lógica intrínseca do próprio processo de insolvência, não produzindo qualquer afectação na relação jurídica que se lhe encontra subjacente. Trata-se da fixação de um período de tempo destinado à produção de determinado efeito que se enquadra na regulação dos actos processuais, pressupondo, portanto, a (antecedente) instauração e pendência de uma acção (in casu, de insolvência) e que marca o período dentro do qual o acto deverá ser praticado, sob pena de preclusão do exercício da faculdade que se lhe encontrava associada… Como se compreende, a inobservância deste prazo não conduz à extinção do direito de crédito do reclamante, por via do instituto da caducidade, mas apenas ao não atendimento da reclamação de créditos por extemporânea, segundo as regras próprias do processo especial de insolvência…. Sobre esta matéria, revestem ainda particular interesse as considerações expendidas no acórdão do Tribunal Constitucional de 11 de Janeiro de 2012 (relatora Maria Lúcia Amaral),… onde se realça a este propósito: «A possibilidade eficiente de satisfação dos direitos de crédito levou o legislador a prever a acção de verificação ulterior de créditos, a intentar em apenso ao processo de insolvência mas uma vez já findo o prazo designado para as reclamações. Nenhuma norma constitucional obrigava o legislador a prever este específico meio processual e a pô-lo à disposição dos credores. No âmbito da sua liberdade de conformação, o legislador escolheu fazê-lo, tendo em mente que o seu objectivo precípuo era - precisamente em obediência à ordem objectiva de regulação que a Constituição lhe endereça no artigo 62º - a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores. No entanto, e porque esse objectivo precípuo não consistia na satisfação de certos e determinados créditos mas na máxima realização possível de todos eles, de modo a garantir a fluidez do tráfego jurídico, o legislador estabeleceu também limites à possibilidade de verificações tardias de créditos, não reclamados durante o prazo geral». Este aresto aliás negou o pedido juízo de inconstitucionalidade fundado na circunstância do prazo previsto no artigo 146º, nº 2, alínea b), do CIRE se contar desde a data em que transitou a sentença declaratória da insolvência, ainda que a mesma decisão, porventura, não tenha sido do conhecimento do credor reclamante. Ora, quando se prevê no Capítulo III do CIRE (artigos 146º a 148º) a possibilidade de reclamação e verificação ulterior de créditos, o que está em causa é a fixação de um regime especial que contempla, em termos circunscritos, a existência de credores que não tiveram possibilidade de fazer valer os seus direitos dentro do prazo inicialmente previsto, designadamente por falta de conhecimento atempado de que lhes competia reclamar, nesta sede, os seus créditos. De todo o modo, vigorará em qualquer circunstância a regra geral «par conditio creditorum», da qual resulta que a todos os credores será concedida a possibilidade de concorrerem ao produto da liquidação do activo em situação de igualdade de oportunidades, assegurando-se em particular o tratamento paritário entre os credores da mesma classe. Sendo inquestionavelmente de natureza adjectiva ou processual o prazo para a reclamação de créditos prevista na fase inicial do processo de insolvência, comportando o inerente efeito preclusivo se o respectivo direito não for exercido em tempo oportuno, nos termos do artigo 139º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17º, nº 1, do CIRE, idêntica natureza jurídica deverá logicamente ser conferida aos prazos para a reclamação ulterior dos créditos da insolvência nos termos previstos no artigo 146º, nº 2, alínea b) do CIRE, que se destinam precisamente ao exercício da mesma faculdade essencial. Embora a lei exija a instauração de uma acção judicial autónoma destinada à verificação ulterior do crédito, trata-se, no fundo, da conjugação de duas etapas sucessivas que têm precisamente a mesma finalidade prática e jurídica: a verificação de créditos em processo de insolvência, com plena e rigorosa observância dos princípios da igualdade de oportunidades, adversa à aplicação de regimes diferenciados quanto ao modo de exercício dos respectivos direitos. Ou seja, o regime legal atinente ao conhecimento da tempestividade ou extemporaneidade deverá ser o mesmo, quer se trate da reclamação de créditos realizada inicialmente, quer ulteriormente” (os sublinhados são nossos).
No mesmo sentido, decidiu o Ac. do STJ de 05/12/2017 (5): “As limitações temporais estabelecidas no artigo 146.º, n.º2, alínea b), do CIRE (6 meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência e 3 meses seguintes à constituição do crédito, caso termine posteriormente), à semelhança do prazo geral da reclamação de créditos, assumem natureza de prazo processual (não de caducidade), que não está na disponibilidade das partes e, enquanto prazo peremptório, o seu decurso extingue o direito de praticar o acto” (6).
Apesar de constituir entendimento unânime na Jurisprudência do STJ, não o foi ao nível da Jurisprudência das Relações, como se dá nota no Ac. da RG de 06/05/2021 (7): “É consabida a divergência jurisprudencial sobre a natureza e regime do prazo previsto para a propositura da acção de verificação ulterior de créditos, previsto no n.2 alínea b) do artigo 146º, sobre o qual existem duas posições: - por um lado, a que está subjacente à decisão recorrida, de que está em causa um prazo processual, de conhecimento oficioso, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto, nos termos do artigo 139º do Código de Processo Civil ex vi artigo 17º do CIRE. Neste sentido são exemplo, entre outros, os Acs. do S.T.J. de 27.11.2019, processo 41/10.0TYNG-I.P1.S2; STJ de 5.12.2017, processo 1856/07.1TBFUN-L.L1.S1; Acs. da R. C. de 20.06.2017, processo n.º 4185/14.0T8VIS-K.C1; Tribunal da Relação do Porto de 13.03.2014 (José Amaral); Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2015 e 07-06-2016, Processos n.º 664/10.7YLSB-AB.L1-7 e 1567/13.9TYLSB-I.L1-7; R.L. de 20-06-2017, processo 1338/16.0T8SNT.L1-7, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10-04-2014 e 27-03-2014 Processos nº 1218/12.9TJVNF-N.P1 e 1218/12.9TJVNF-W.P1; de 22.10.2018, processo 235/12.3TYVNG-D.P1; Relação de Évora de 5.12.2019, processo 555/15.5T8OLH-K.E1… - por outro, a que defende estar em causa um prazo de caducidade que não é de conhecimento oficioso (art.º 329.º e 331.º, n.º 1, do Código Civil); de que são exemplo, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-02-2014, Processo 1551/12.0TBBRG-C.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2016, Processo 600/14.1TBPBL-E.C1; Ac. desta Relação de Guimarães de 8.3.2018, processo 674/16.0T8GMR-I.G1;Relação do Porto de 11-09-2014, processo 1218/12.9TJVNF-AB.P1, de 21.10.2008, processo 0822995; de 17.06.2014, processo1218/12.9TJVNF-Q.P1;… A distinção entre as duas teses assume especial relevo na apreciação da presente apelação, dada a inerente questão da possibilidade de conhecimento oficioso do prazo em causa para a reclamação ulterior de créditos apresentada pela apelante. Na verdade, a considerar-se tal prazo como de caducidade, haverá que ponderar o regime do art. 333º do C. Civil, nos termos do qual tal excepção só é de conhecimento oficioso “se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes” (nº 1). Na ausência desse pressuposto, é aplicável à caducidade o art. 303º do Código Civil, segundo o qual está vedado ao tribunal suprir, de ofício, a prescrição que, para ser eficaz, necessita de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público - nº 2 do preceito. Já se o entendimento for o de estarmos aqui perante um prazo de natureza processual, então o seu decurso, extinguindo apenas o direito de praticar o ato – art. 139º, nº 3 do CPC –, pode e deve ser oficiosamente conhecido pelo tribunal. O incumprimento desse prazo leva tão só à perda do direito processual de praticar o ato, ou seja, de reclamar créditos em sede de verificação ulterior, por apenso à insolvência, sem que a relação jurídica que lhes subjaz seja, de modo algum, afetada”. Após dar nota desta divergência, explicam-se as razões pelas quais qualifica o prazo em causa como sendo de natureza processual: “… o que está em causa é a regulação da reclamação e verificação de créditos após a declaração de insolvência e, portanto, no âmbito de um processo de insolvência. Apresentada a reclamação sob a veste de acção a correr termos por apenso à insolvência e, pese embora a diferença de tempo e de forma previstos para cada uma das fases da reclamação, o referido prazo não se distingue, quanto à sua natureza, do previsto para a reclamação de créditos na sua fase inicial ou ordinária… Está-se aqui, manifestamente, perante um prazo , entendido este, na definição de Alberto dos Reis, como «período de tempo fixado para se produzir um determinado efeito processual», que tem por função «regular a distância entre os actos do processo» e pressupõe «necessariamente que já está proposta a acção, que já existe um determinado processo, e destina-se ou a marcar o período de tempo dentro do qual há-de praticar-se um determinado acto processual (prazo processual) (…)», não havendo dúvida de que o seu incumprimento leva à extinção do direito de praticar o ato processual – art. 139º, nº 3 do CPC –, e não à extinção do direito de crédito do reclamante, como aconteceria se estivesse em causa um prazo de caducidade… a verificação ulterior de créditos em tudo se assemelha, salvo quanto ao momento concreto em que é deduzida e ao meio processual a adotar - ação no primeiro caso, seguindo os termos do processo sumário, e requerimento no segundo, mas ambos correndo por apenso ao processo de insolvência -, à reclamação de créditos acima referida e de que tratam, como dissemos, os arts. 128º a 140º, nenhuma justificação se descortinando para atribuir natureza diferente aos prazos num e noutro caso estabelecidos para reclamar a verificação e graduação de créditos. O objetivo único e comum a estes dois meios processuais é distribuir pelos credores do insolvente o produto da liquidação dos seus bens; e deduzidas por uma ou por outra das enunciadas vias, as reclamações de créditos em causa são sempre consequência do processo onde a insolvência do devedor foi decretada… Tratar como processual o prazo para a reclamação inicial e como de caducidade o prazo para a reclamação efectuada em momento ulterior, não se mostra compaginável, a nosso ver, com a finalidade unitária da reclamação de créditos e com a unicidade do processo de insolvência. Mas não apenas, já que também a análise dos efeitos do decurso do prazo da reclamação no direito do credor, nos permite alcançar a distinção da sua natureza e sua caracterização, porquanto claramente se evidencia que o decurso do prazo da reclamação de créditos na insolvência, nos termos dos normativos enunciados, não se reflecte na subsistência ou não do direito do credor a conhecer na acção, ou seja o direito não caduca, não se extingue, mas apenas se repercute na sua admissibilidade no âmbito do processo de insolvência. O seu decurso apenas extingue a possibilidade de este ser reclamado nesses autos, como desde logo se evidencia do segmento da norma «de modo a serem atendidos no processo de insolvência». Por outras palavras, se não for reclamado tempestivamente na insolvência o que pode acontecer é que a satisfação desse direito, não se extinguindo, não é atingida através do pagamento através do património que compõe a massa insolvente… o crédito não nasce nem morre com a acção ou pelo facto de ela não ser interposta; pode é tornar-se inexequível por esgotamento, na insolvência, do património que o garanta… Em abono da natureza processual deste prazo, indiciação da sua natureza e subsequentemente, do seu regime, ressalta, no contexto que vem de se expor, o teor do próprio normativo, porquanto aí se diz expressamente que a reclamação de outros créditos não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do art. 129°, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior, e que tal reclamação só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, o que evidencia claramente que esta reclamação (através da acção), delimitada temporalmente nesse artigo para o exercício do direito de acção, constitui parte integrante do processo de insolvência e dependente, quanto ao referido prazo, da tramitação a ele inerente, ao qual corre por apenso, o que tudo aponta nitidamente, e com todo o respeito por diferente entendimento, para um prazo de claro cariz adjectivo ou processual e não substantivo, de conhecimento oficioso…”.
Porque se concorda inteiramente com os fundamentos profusamente explanados quer no primeiro aresto do STJ supra referido, quer neste aresto da RG, entendemos que é de aderir e de sufragar o entendimento de que o prazo de 3 meses previsto na 2ªparte do art. 146º/2b) é de natureza processual e de conhecimento oficioso, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto no processo de insolvência, não sendo sequer necessária a sua invocação pela parte contrária.
Daqui decorre que não assiste razão à Ré Massa Insolvente, ora Recorrente, quando qualificou a alegada falta de tempestividade da presente acção para verificação ulterior de créditos como «excepção de caducidade do direito de interposição da presente acção»: com efeito, estando ou não ultrapassado o prazo de 3 meses, como resulta do entendimento supra exposto, não estamos perante um prazo de caducidade (logo, inexiste uma excepção peremptória de caducidade do eventual direito de crédito), mas sim perante um prazo processual (o qual extingue apenas o direito de praticar tal acto no processo de insolvência). Logo, e não estando o Tribunal sujeito às qualificações jurídicas das partes (cfr. art. 5º/3 do C.P.Civil de 2013), a excepção suscitada pela Ré Massa Insolvente configura uma excepção dilatória inominada da falta tempestividade da acção por falta de cumprimento do respectivo prazo processual de interposição, e é neste enquadramento jurídico que será objecto de apreciação (sendo certo que foi também neste mesmo âmbito foi apreciada na decisão recorrida - «Trata-se, pois, de um prazo de natureza processual…»).
A decisão recorrida pronunciou-se no sentido da tempestividade da presente acção com a seguinte fundamentação: «… como veremos, o direito a discutir nos presentes autos não se mostra ainda constituído, vindo a constituir-se apenas se e na medida em que o prédio de que a autora é proprietária responda por dívidas da insolvência (razão pela qual, a ser reconhecido, o será como crédito condicional)».
Não podemos subscrever o sentido da decisão nem a sua sintética fundamentação atento o teor da causa de pedir deduzida e do pedido formulado na respectiva petição inicial (mais se salientando que tal decisão recorrida até se mostra contraditória com os despachos inicialmente proferidos pelo Tribunal a quo sobre a questão). Concretizando.
Analisando a (primitiva) petição inicial, apresentada nos autos na data de 11/09/2020, confrontamo-nos, desde logo, com um articulado confuso, com diversas incongruências, contradições, e até ininteligibilidades. A título meramente exemplificativo, refere-se: logo no seu art. 1º (da parte “da legitimidade e do prazo”), está alegado que o crédito reclamado de € 700.000,00 «encontra-se provado», mas nunca se concretiza “onde”, “quando” e “modo” de tal prova; no seu art. 4º (da parte “da legitimidade e do prazo”), foi alegado que o imóvel em causa pertence à massa insolvente, o que está em total contradição com a alegada aquisição desse imóvel pelo próprio três anos antes da declaração de insolvência, e é falso porque o mesmo não foi apreendido no processo de insolvência (cfr. facto provado nº3); o alegado no art. 6º (da parte “da legitimidade e do prazo”) é absolutamente incompreensível porque não se descortina qual a «dívida que a insolvente contraiu perante esta Autora/Credora»; no seu art. 17º (da parte “da legitimidade e do prazo”), alega-se que a «presente acção deu entrada em juízo em Agosto de 2020» quando a petição deu entrada em 11/09/2020; e nos arts. 11º a 13º (da parte «fundamentos de facto»), alega-se a ilegitimidade da Autora/Credora relativamente a uma execução que não respeita ao processo de insolvência nem a qualquer dos respectivos apensos (!?).
Mas, apesar deste “quadro”, ainda assim a petição inicial permite alcançar qual é o crédito que a Autora/Credora invoca como causa de pedir e peticiona que lhe seja reconhecido: com efeito, atento o alegado nos arts. 22º a 38º e 52º (da parte «fundamentos de direito»), e atento o teor da alínea c) do petitório final, é inequívoco que pretende que lhe seja reconhecido um crédito sobre massa insolvente no valor de € 700.000,00, crédito este que, na sua perspectiva, é constituído pelo valor de € 220.000,00 relativo ao preço da aquisição do imóvel em causa (realizada em 10/01/2021) à sociedade posteriormente declarada insolvente, e pelo valor de € 480.000,00 relativo ao valor das benfeitorias que alega ter realizado nesse imóvel (mostrando-se incompreensíveis as alegações produzidas, na contestação da Ré Massa Insolvente, no sentido que «daquele crédito de 700.000,00 o credor reclamante excluiu o valor do preço» - ?!).
Frise-se que, embora nos arts. 10º a 17º (da parte «fundamentos de direito»), a Autora/Credora alegue que a segunda cessionária do crédito da cedente CAIXA ... (que foi reclamado e reconhecido no processo de insolvência) interpôs uma execução contra si (embora “evite” afirmá-lo, trata-se obviamente da execução hipotecária relativamente ao imóvel que o credor adquiriu à sociedade insolvente e sobre o qual estava constituída uma hipoteca a favor da referida cedente CAIXA ... para garantia daquele crédito reclamado e reconhecido) e mais alegue que “fica investida na posição de credora sobre a devedora principal, aqui Insolvente/Y, da restituição do crédito que sobre si recai”, jamais, em qualquer momento da petição, aquela invoca e afirma que o crédito que pretende reclamar e reconhecer corresponde ao valor da parte da dívida da massa insolvente (para com aquela credora segunda cessionária, actual detentora daquele crédito que era originariamente da CAIXA ...), que for satisfeita com a venda do bem imóvel naquela execução hipotecária: com efeito, em nenhum dos vários artigos da petição, o Autor/Credor concretizou, como facto jurídico do qual emerge o crédito que pretende ver reconhecido (no montante de € 700.000,00), a venda do imóvel em causa realizada (ou a realizar) naquela execução, o valor que foi obtido (ou que será obtido) nessa venda, e o cumprimento parcial (ou total) que esse valor satisfez (ou irá satisfazer) da dívida da massa insolvente relativamente tal credora/cessionária.
Portanto, independentemente da viabilidade jurídica da causa de pedir e do pedido efectivamente deduzidos na petição e independentemente do direito que lhe pode (ou não) assistir no caso do bem imóvel (que adquiriu à sociedade que veio a ser declarada insolvente) tenha sido (ou venha a ser) vendido na referida execução hipotecária, certo e inequívoco é que, através da presente acção ulterior de verificação de créditos, atento o teor do articulado inicial, os factos jurídicos em que o Autor/Credor se baseia para formular o pedido de reconhecimento (e graduação) do crédito de € 700.000,00 é o preço da aquisição do imóvel que pagou à sociedade insolvente (€ 220,000,00) e o valor das benfeitorias que realizou nesse imóvel (€ 480.000,00). Deste modo, é perante tal causa de pedir e a tal pedido que pode e deve ser apreciada e decidida a questão da tempestividade da presente acção.
Sucede que o Tribunal a quo veio a percorrer um “caminho” que ainda tornou mais confuso e complexo o articulado inicial, vindo aliás a suscitar algumas alegações por parte da Autora/Credora que estão em contradição com as alegações que constam da petição inicial.
Embora na decisão recorrida não se lhe faça qualquer referência, resulta dos autos que constituem a acção para verificação ulterior de créditos (apenso W) que, logo de início, o Tribunal a quo, de forma oficiosa, suscitou a questão da tempestividade: após a apresentação em juízo da petição inicial (na data de 11/09/2020, e não em Agosto de 2020 como, de forma absolutamente errada, e até inaceitável, se alega no art. 17º da petição), aquele Tribunal proferiu despacho (em 21/01/2021) no sentido de “Notifique a requerente para comprovar documentalmente a constituição do crédito que se arroga, em data posterior como fundamento para a tempestividade da pretensão formulada”. Portanto, ao contrário do que veio a considerar na decisão recorrida, perante o teor da petição inicial, o Tribunal a quo não vislumbrou qualquer reclamação de direito de crédito «a constituir», entendendo sim que o direito reclamado estava constituído e até exigiu a junção de prova documental sobre a data da sua constituição.
Na sequência de tal despacho, a Autora/Credora apresentou requerimento em 22/10/2021, através do qual se limitou a alegar que “… o seu crédito deriva do documento nº1 apresentado (escritura pública) de compra e venda que adquiriu o imóvel misto… pela execução que decorrer no Juízo de Execução de Chaves pelo Processo 400/20.0T8CHV pretende a M. & S., DOURO, LDA a propriedade, com prejuízo para a aqui requerente que efectivamente pagou e com benfeitorias enriqueceu o prédio… sobre a tempestividade… soube a requerente na presente data daquela execução que reagiu com “Embargos de Executado/Terceiro” e dentro do prazo apresentou a acção ulterior. Vejamos o douto Ac. do STJ Proc. nº1856/07.1TBFUN-L.L1.S1», e juntou, de novo, o “Título de Compra e Venda” (já junto com a petição inicial) e uma cópia parcial da documentação que lhe foi entregue no âmbito da sua citação naquela execução. Portanto, através deste requerimento, a Autora/Credora continua a fundar o direito de crédito reclamado no «preço que pagou» e nas «benfeitorias que realizou», e considera que a prova de constituição desse crédito é a “Escritura/Título de compra e venda» do imóvel em causa, voltando a relacionar a tempestividade com o cancelamento do registo de aquisição (embora não o afirme directamente, é o que resulta da remissão directa que faz para o identificado aresto do STJ), sendo que continuou a não juntar qualquer prova documental do aludido registo de cancelamento.
Na sequência de tal requerimento, na data de 12/11/2020, o Tribunal a quo profere novo despacho no sentido de que «Atento o alegado e o prazo a que alude o art. 146º n.º 2 al. b) do CIRE, notifique a requerente para, no prazo de cinco dias, se pronunciar quanto à (in)tempestividade da presente ação», voltando, deste modo, mesmo perante os “esclarecimentos prestados”, a suscitar a questão da tempestividade.
Perante este novo despacho, a Autora/Credora apresentou novo requerimento, em 22/10/2021, através do qual alega que “… a Autora na referida execução não é devedora na relação de dívida, mas sim a aqui Insolvente… da qual teve conhecimento quando citada para a execução… em Julho de 2020… Nesta situação, a sociedade aqui Autora fica investida na posição de credora sobre a devedora principal, aqui Insolvente, da restituição do crédito que sobre si recai… para o exercício do direito de reclamação ulterior da Autora, verificando-se que o registo de penhora foi efectuado em 17/06/2020, uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 11/09/2020, mostrando-se tempestivo o prazo (processual) de três meses…”. Portanto, através deste requerimento, aquele limita-se a aludir genericamente a ter a posição de credor da insolvente relativamente à «restituição do crédito que sobre si recai naquela execução», tratando-se da mesma alusão genérica que já constavam do art. 16º (da parte «fundamentos de direito») da petição inicial, mas sem qualquer tipo de concretização no sentido de fundar o direito de crédito reclamado nessa alegação genérica, sendo que agora já relaciona a tempestividade com o registo da penhora (e não com qualquer cancelamento do registo de aquisição…), sendo que também não juntou qualquer documento comprovativo sobre a data da efectivação da penhora e/ou a data do respectivo registo.
Apesar disto, na data de 05/01/2021, o Tribunal a quo profere novo despacho, no sentido de que «Em face do alegado, de onde ressalta que a requerente é proprietária de um imóvel vendido pela sociedade aqui insolvente, que deu como garantia das obrigações por si assumidas junto da Caixa ... e o qual foi objecto de penhora na execução que identifica, não lhe conferindo a penhora de per si um direito de crédito propriamente dito, uma vez que ainda subsiste o seu direito de propriedade, esclareça a requerente se pretende reclamar o “crédito” de que se arroga como condicional, ou seja, a verificar-se quando o imóvel deixar de estar na sua esfera jurídica, caso em que deverá corrigir a sua petição em conformidade». Daqui resulta que, após ter proferido um despacho inicial em que qualificou o crédito reclamado como «crédito constituído» e exigindo prova documental da data da constituição, o Tribunal a quo inverte a sua posição, com base numa alegação genérica e que já constava da petição inicial, e convida a Autora/Credora a esclarecer se o crédito reclamado é condicional, mas tudo sem qualquer alteração da causa de pedir e do pedido (no que respeita ao seu montante e aos fundamentos que justificam tal montante).
Nesta sequência, é apresentado mais um requerimento pela Autora/Credora, em 07/01/2021, através do qual vem alegar que “… detém um direito de propriedade sobre o Prédio Misto, e ainda não o perdeu, logo o seu crédito é condicional…”. Frise-se que, além de não ter alterado a causa de pedir, a alegação agora produzida no sentido de que «ainda não perdeu o direito de propriedade sobre o prédio» está em absoluta e total contradição com a alegação que produziu no art. 17º (da parte «fundamentos de direito») da petição, no qual expressamente se alega que «em Julho de 2020, foi realizado o registo do cancelamento da sua aquisição sobre o imóvel, e foi realizada nova apresentação a favor da cessionária» (ou seja, segundo esta sua alegação, o bem imóvel em causa já nem sequer está registado a seu favor, no que concerne à aquisição do respectivo direito de propriedade).
Sem atentar em tal inequívoca contradição, o Tribunal a quo profere outro despacho, na data de 20/01/2021, no sentido de que “Com vista à ulterior tramitação do processo, deverá a requerente dar integral cumprimento ao ordenado, corrigindo a petição por si apresentada nos autos, em conformidade com o exposto em 07.01.2021”, tendo, nesta sequência, a Autora/Credora vem apresentar, na data de 22/01/2021, nova petição mas com um conteúdo exactamente igual ao da primeira petição apresentada (em 11/09/2020), com excepção de duas “pequeniníssimas” alterações: com efeito, no art. 52º (da parte «fundamentos de direito») e na alínea c) do petitório final, onde constava a palavra «privilegiado», passou a constar, neste segundo articulado, a palavra «condicional», sem mais (sem qualquer nova alegação ou sem qualquer alteração de qualquer das alegações que constavam do primeiro articulado).
Deste modo, apesar do consignado na decisão recorrida e do teor destes dois últimos despachos supra referidos (e independentemente da ser legalmente possível ao Tribunal a quo poder convidar a parte a alterar a qualificação do crédito reclamado…), dúvidas não existem que, mesmo apesar da apresentação da nova petição e das duas “alterações” supra identificadas, certo e inequívoco é que a Autora/Credora manteve, como causa de pedir, o seu direito de propriedade sobre o imóvel e o valor do preço da sua aquisição (€ 220,000,00), e o seu alegado “direito de retenção” em virtude das benfeitorias que realizou nesse imóvel e o valor das mesmas (€ 480.000,00), sendo que manteve o pedido de reconhecimento de um crédito equivalente à soma desses valores. E nunca, nem mesmo perante a última “perspectiva” do Tribunal a quo, a Autora/Credora alegou, de forma concreta e precisa, e como fundamento da pretensão (como causa de pedir), que está a reclamar sobre a massa insolvente um crédito «na medida em que o prédio de que a autora é proprietária responda por dívidas da insolvência», como incorrectamente se afirma na decisão recorrida (apesar das meras referências e alusões à execução hipotecária, em momento algum, quer da primeira petição quer da segunda, aquela alegou que a venda do bem imóvel naquela execução deu, ou dará, pagamento a uma parte, ou totalidade, da dívida da massa insolvente para com a credora/cessionária que é exequente, e que, seja por via de uma sub-rogação, ou por qualquer outra via legal, ficou, ou ficará, a ser ela própria, na medida exacta do valor satisfeito, a ser credora da massa insolvente e que o crédito deste valor que pretende reclamar). Mais: de forma totalmente contraditória e incongruente, a Autora/Credora (na sequência de um convite do Tribunal a quo…) vem agora classificar o seu crédito como condicional, mas mantém exactamente o mesmo montante peticionado (€ 700.000,00), montante este que representa a soma do valor do preço de aquisição e do valor das benfeitorias realizadas, sendo que tudo representam valores já apurados («já constituídos»), nunca alegando nem indicando que tal montante do crédito corresponde (não àqueles preço e benfeitorias) mas sim ao valor (da parte ou totalidade) da dívida da credora/cessionária sobre a massa insolvente que foi paga (ou será paga) com a venda do bem imóvel naquela execução hipotecária (afinal, os € 700.000,00 reclamados estão condicionados a que facto ou circunstância?). Alterou-se a classificação do crédito de «privilegiado» para «condicional», mas não se alega nem se concretiza a condição, não se faz depender a existência do crédito, e muito menos o seu valor, da «medida em que o prédio de que a autora é proprietária responda por dívidas da insolvência», existindo até uma contradição entre a causa de pedir e este “novo” pedido de crédito condicional (em vez de privilegiado): por um lado, mantém-se como fundamento o direito de propriedade e o direito de retenção (do qual decorre, perante os termos alegados, a natureza «privilegiada») e os respectivos valores do preço e das benfeitorias, mas, por outro lado, vem invocar-se a natureza condicional do crédito mas não se altera o montante peticionado por forma a corresponder ao valor da dívida satisfeito (ou a satisfazer) com a venda do bem imóvel na execução hipotecária.
Nestas circunstâncias, e como supra já se referiu, a questão da tempestividade da presente acção tem que ser apreciada e decidida perante a causa de pedir e o pedido efectivamente formulados (independentemente desta “alteração” da natureza do crédito).
Estamos perante uma reclamação ulterior de um crédito que apresenta o seguinte enquadramento (reforça-se, mais uma vez, perante a causa de pedir e o pedido concretamente deduzidos, e que se mantiveram iguais mesmo na segunda petição): em 10/01/2012, a Autora/Credora comprou à Sociedade Agrícola Quinta do Y, Lda (que só veio a ser declarada insolvente em 12/05/2015 – cfr. facto provado nº1), o bem imóvel correspondente ao prédio misto denominado «Quinta de W», pelo valor de € 220,000,00, sendo do total e integral do conhecimento daquela compradora, tal como resulta do respectivo “Título de Compra e Venda” junto com a petição inicial, que sobre esse bem imóvel adquirido se encontrava registada uma hipoteca a favor da CAIXA ... (para além de duas penhoras, uma a favor do Banco … e outra a favor do IGFSS, mas que, curiosamente, a Autora/Credora omite, tal como omite o que “sucedeu” com tais penhoras…), hipoteca essa que, como resulta da certidão registral também junta com a petição inicial, garantia um montante máximo de mais de 12 milhões de euros [e frise-se que, como resulta do apenso C), relativo à reclamação de créditos, foi reconhecido à CAIXA ... um crédito sobre a massa insolvente superior a 7 milhões de euros].
Daqui resulta que, ao contrário do que parece “esquecer-se”, a Autora/Credora não adquiriu à Sociedade Agrícola Quinta do Y, Lda um bem imóvel livre de quaisquer ónus e encargos: adquiriu sim (e por razões que convenientemente nunca alegou) um bem imóvel “carregado” por uma hipoteca que garantia uma dívida que era 54 vezes superior ao valor do preço que pagou e ainda “carregado” por mais duas penhoras que totalizam um valor superior a mais de metade do preço pago. Portanto, a Autora/Credora sabia exactamente o bem que estava a comprar e que corria um sério risco de vir a ser executada relativamente a ao mesmo por força daquela garantia hipotecária, e, por essa via, de vir a “perder” o seu direito de propriedade sobre o mesmo, mas, ainda assim, adquiriu o bem imóvel àquela sociedade e sem estabelecer, no respectivo contrato de compra venda, qualquer cláusula que lhe concedesse algum direito indemnizatório ou outro qualquer direito, no caso de se verificarem tal execução e tal venda do bem. Mas não se ficou por aqui: apesar do evidente risco e apesar de não ter estabelecido qualquer cláusula que salvaguardasse o direito de propriedade que estava a adquirir nessas condições, segundo as suas próprias alegações, a partir do momento da aquisição, fez investimentos nesse imóvel de «mais de 700 mil euros» (cfr. art. 32º da petição)…
Ora, é neste enquadramento que, mais de 8 anos após a aquisição do imóvel em causa, quase 5 anos depois da sociedade vendedora ter sido declarada insolvente e a respectiva sentença ter transitado (cfr. factos provados nºs. 1 e 2), a Autora/Credora vem reclamar um crédito sob a massa insolvente, que se funda no seu direito de propriedade sobre tal imóvel e do qual “faz emergir” um crédito de € 220.000,00 relativamente ao preço daquela aquisição (!?), e que também se funda num direito de retenção (relativamente a quem?) correspondente a um crédito de € 480.000,00 “emergente” das benfeitorias que realizou no prédio de que é proprietário (!?). Mostram-se, obviamente, ininteligíveis tais direitos: por um lado, se aquela procedeu
à aquisição do imóvel, como compradora estava obrigada a pagar o preço [art. 879º/c) do C.Civil], pelo que não se vislumbra qualquer fundamento jurídico para ser detentora de um crédito que corresponde ao valor desse preço (a compra e venda não foi declarada nula nem foi anulada, e no respectivo contrato de compra e venda nada está clausulado no sentido de que, verificada alguma condição, a sociedade vendedora teria que pagar à compradora, a Autora/Credora, o valor do preço); por outro lado, se a Autora/Credora, após a compra e na qualidade de proprietária do imóvel, realizou investimentos nesse imóvel, não se vislumbra qualquer razão jurídica para que os mesmos possam consubstanciar benfeitorias como as que são realizadas por um possuidor no âmbito do art. 1275º do C.Civil (que aqui não tem qualquer aplicação uma vez que aquela é a própria titular do direito de propriedade sobre o imóvel), e muito menos se vislumbra que tais “investimentos” possam originar algum tipo de direito de crédito da compradora relativamente à sociedade vendedora e que muito posteriormente veio a ser declarada insolvente (!?); e, por fim, independentemente de poderem consubstanciar benfeitorias, mais uma vez não se vislumbra qualquer fundamento jurídico para delas possa decorrer um direito de retenção do detentor do direito de propriedade relativamente à sociedade que anterior lhe vendeu o imóvel (!?), sendo aliás esclarecedora a circunstância de, na petição inicial, a Autora/Credora invocar vários acórdãos sobre o direito de retenção mas todos reportados a quem tem a qualidade de empreiteiro… Portanto, dos “direitos” aqui invocados a título de causa de pedir do crédito peticionado de € 700.000,00 não decorre qualquer direito de crédito da Autora/Credora sobre a sociedade insolvente e, por consequência, sobre a massa insolvente.

Porém, uma vez que a decisão recorrida não se “debruçou” sobre a ininteligibilidade e/ou viabilidade de tais “direitos” (aliás, apreciou a questão da tempestividade sem se reportar aos direitos efectivamente invocados…), teremos que, em abstracto, admitir a existência dos mesmos e então verificar da tempestividade da acção relativamente aos mesmos.
Relativamente ao crédito na parte que corresponde ao valor do preço (€ 220.000,00), uma vez que a Autora/Credora se limita invocar o seu direito de propriedade e que tal direito de propriedade se constituiu em 10/01/2012, ou seja, na data da respectiva aquisição (aliás, no requerimento apresentou em 22/10/2021, refere mesmo que “… o seu crédito deriva do documento nº1 apresentado (escritura pública) de compra e venda que adquiriu o imóvel misto…”), e uma vez que nada mais alegou para fundamentar tal direito de crédito, então temos necessariamente que concluir que o “pressuposto e eventual” direito a que a massa insolvente lhe pague o valor do preço de aquisição constituiu-se precisamente naquela data de aquisição (10/01/2012). Por conseguinte, tendo a sentença de insolvência transitado em 03/11/2015 (cfr. factos provados nºs. 1 e 2), e tendo a presente acção sido intentada apenas na data de 11/09/2020, conclui-se que estão há muito ultrapassados os prazos previstos na alínea b) do art. 146º do C.I.R.E (tendo-se constituído antes da própria declaração de insolvência, nem sequer era aplicável o prazo de três meses, mas sim o prazo de seis meses que terminou em 03/05/2016, ou seja, 6 meses depois do trânsito em julgado da sentença) pelo que, nesta parte, a acção/reclamação é extemporânea por não ter cumprido o respectivo prazo legal.
Relativamente ao crédito na parte que corresponde ao valor das benfeitorias (€ 480.000,00), uma vez que a Autora/Credora se limita invocar o seu direito de retenção com base nas benfeitorias alegadamente realizadas, e uma vez que nada mais alegou para fundamentar o respectivo direito de crédito correspondente ao valor das mesmas (frise-se que, no requerimento apresentou em 22/10/2021, após o Tribunal a quo a ter notificada para comprovar documentalmente a data da constituição, sem fazer qualquer distinção, a Autora/Credora respondeu que “… o seu crédito deriva do documento nº1 apresentado (escritura pública) de compra e venda que adquiriu o imóvel misto…”), temos necessariamente que concluir que o “pressuposto e eventual” direito a que a massa insolvente lhe pague o valor das benfeitorias só poderá ter-se constituído na data da realização dessas benfeitorias (aqui, não foi data da aquisição da propriedade… mesmo apesar do teor do referido requerimento). Apesar de lhe incumbir quer o respectivo ónus de alegação [cfr. art. 5º/1, 1ªparte), do C.P.Civil de 2013], quer o respectivo ónus de prova (cfr. art. 342º/1 do C.Civil), a Autora/Credora omitiu, em absoluto, a data (ou as datas) em que foram realizadas tais benfeitorias, tal como omitiu a junção de qualquer documental da realização das mesmas, omissões essa que se verificam quer na petição inicial, quer em todos os requerimentos que apresentados na sequência dos vários despachos do Tribunal a quo (principalmente, dos dois primeiros que supra se referiram). Por conseguinte, incumbido à Autora/Credora a demonstração do cumprimento dos prazos estatuídos na alínea b) do art. 146º do C.I.R.E, ónus esse que, no caso em apreço, passava pela alegação e prova de que tais benfeitorias foram realizadas nos três meses antecedentes à data da propositura da presente acção (uma vez que atenta a data do trânsito da sentença de insolvência e a data da propositura desta acção, não tem aplicação o prazo de seis meses previsto no mesmo preceito) e verificando-se que nem sequer foram alegados factos que, a provarem-se, permitissem concluir pelo cumprimento daquele prazo de 3 meses, então impõe concluir-se que também nesta parte a acção/reclamação é extemporânea por não estar demonstrado o cumprimento do respectivo prazo legal.
Atentas as conclusões supra alcançadas, a resposta à questão que, no âmbito do presente recurso, incumbe a este Tribunal ad quem apreciar é, necessariamente, no sentido de que presente acção para verificação ulterior de créditos não foi intentada de forma tempestiva porque não se mostram cumpridos os prazos previstos na alínea b) do art. 146º do C.I.R.E., revelando-se como uma pretensão/reclamação extemporânea.
E esta resposta não modificada pelas alegações/conclusões da Autora/Credora no sentido de que o crédito reclamado se constituiu «aquando do cancelamento do registo da aquisição» ou «do registo da penhora». Explicando.
Nos arts. 15º e 17º (da parte “da legitimidade e do prazo”) da petição, aquela alega que “mostrando-se que a lei estabelece, como referência da contagem do prazo limite, a constituição do direito, não há dúvida de que, para esse efeito, o registo de cancelamento da aquisição a favor dos mutuários, seus devedores, não pode deixar de ser oponível ao A./reclamante (como parte interessada, ou mesmo, tão só, enquanto terceiro)… o registo do cancelamento da aquisição e nova apresentação a favor da cessionária foi em Julho de 2020, e a presente ação deu entrada em juízo em Agosto de 2020”. Ainda que se tratem de alegações pouco claras (como sucede com várias outras que integram o articulado inicial), consegue perceber-se que a Autora/Credora está a invocar que a constituição do seu direito só ocorreu com tal registo, mas sem concretizar qualquer razão jurídica para os alegados «direito de propriedade donde deriva o direito de crédito ao valor do preço» e «direito ao valor das benfeitorias» só se pudessem constituir com o registo de tal cancelamento. É através do já referido requerimento de 22/10/2021 que, por remissão para o “Ac. do STJ Proc. nº1856/07.1TBFUN-L.L1.S1”, aquela acaba por procurar fundamentar tal entendimento. Ora, decidiu-se nesse aresto (8) que: “… IV - O autor, enquanto credor hipotecário, adquire interesse em agir no âmbito do processo de insolvência (para propositura da acção ulterior de créditos) com a aquisição da qualidade de credor da insolvência, que ocorre partir da altura em que o imóvel onerado com a hipoteca passou a fazer parte do espólio da massa insolvente. V - Com o trânsito em julgado da decisão que julgou improcedente a acção de impugnação da resolução do contrato de compra e venda do imóvel em benefício da massa insolvente, este passou, juridicamente, a pertencer à massa insolvente. Todavia, a constituição do direito do autor, como credor na insolvência, só se torna definitiva com o cancelamento do registo da aquisição do imóvel a favor dos mutuários em que se sustentava o acto resolvido, fazendo ressurgir a inscrição anterior a favor do insolvente relativamente ao direito de propriedade do imóvel. VI – Com efeito, até ao cancelamento do registo, não obstante o trânsito em julgado da acção de impugnação da resolução, vigorava a inscrição registral de aquisição da fracção a favor dos terceiros mutuários, constituindo, por isso e nessa medida, presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define. VII - Consequentemente, é com o cancelamento do registo da aquisição do imóvel a favor dos terceiros mutuários que se inicia o prazo de três meses previsto na alínea b) do n.º2 do artigo 146.º do CIRE”. Basta atentar nesta parte do respectivo sumário (e é também confirmado pela leitura da respectiva fundamentação), para que se torne evidente que a realidade fáctico-jurídica em que se basou tal entendimento jurisprudencial é completamente diversa e distinta da realidade fáctico-jurídica alegada a título de causa de pedir na presente acção, ressaltando à evidência que a aqui Autora/Credora não é credora hipotecária, que o bem imóvel aqui em causa não faz parte da massa insolvente, que não existiu qualquer resolução do contrato de compra e venda desse imóvel, e/ou que não existiu qualquer cancelamento do registo da aquisição de terceiro mutuário. Logo, o entendimento jurisprudencial invocado pela Autora/Credora não tem qualquer validade e aplicação no caso em apreço, não existindo qualquer fundamento jurídico para se concluir que os direitos em que aquela fundamenta o crédito reclamado de € 700.000,00 só se constituiu com o cancelamento do registo da sua aquisição (!?). Mas mesmo que se entendesse que sim, o que só se admite por mera hipótese de raciocínio, também aqui Autora/Credora não teria demonstrado o cumprimento do prazo de três meses estatuído na parte final alínea b) do art. 146º do C.I.R.E. já que tal cancelamento do registo apenas se pode provar por documento e aquela nem com a petição inicial nem após o despacho inicial do Tribunal a quo que lhe determinou a comprovação documental da constituição do seu crédito (nem mesmo posteriormente) apresentou nos autos certidão registral que comprovasse tal cancelamento e a data do mesmo.
E as considerações supra explanadas têm também inteira aplicação e validade para a alegação que a Autora/Credora vem posteriormente a realizar, no requerimento de 22/10/2021, no sentido de que “… para o exercício do direito de reclamação ulterior da Autora, verificando-se que o registo de penhora foi efectuado em 17/06/2020, uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 11/09/2020, mostrando-se tempestivo o prazo (processual) de três meses…”. Sem dar qualquer explicação para a contradição em que “caiu” (afinal, o seu direito constituiu-se com o cancelamento do registo de aquisição ou com o registo da penhora?!), volta a não concretizar qual a razão jurídica para os alegados «direito de propriedade donde deriva o direito de crédito ao valor do preço» e «direito ao valor das benfeitorias» só se pudessem constitur com o registo da penhora do bem imóvel em causa, não vislumbrando este Tribunal qualquer fundamento jurídico válido e lógico para sustentar tal “alegação/conclusão”. Mas mesmo que se entendesse que sim, o que igualmente só se admite por mera hipótese de raciocínio, mais uma vez a Autora/Credora não teria demonstrado o cumprimento do prazo de três meses estatuído na parte final alínea b) do art. 146º do C.I.R.E. já que tal registo da penhora apenas se pode provar por documento e aquela nem com a petição inicial nem após o despacho inicial do Tribunal a quo que lhe determinou a comprovação documental da constituição do seu crédito (nem mesmo posteriormente) apresentou nos autos certidão registral que comprovasse o registo da penhora e a data do mesmo.
Embora, como supra já se explicou por diversas vezes, a Autora/Credora jamais tenha estabelecido qualquer nexo entre o crédito efectivamente reclamado/peticionado (e a respectiva causa de pedir) e a execução hipotecária a que faz diversas referências e alusões na petição (e noutros requerimento que lhe sucederam), e até porque, em sede de contestação, a Ré Massa Insolvente alega que «a Autora poderá vir a subrogar-se na posição jurídica ocupada pela entidade credora da insolvente que estará a executar esse crédito sobre o bem de sua propriedade, sempre e na medida do que esse prédio venha a ter de efectivamente suportar para o seu pagamento, a realizar-se por via incidental de habilitação nos autos de insolvência», então, e ainda que de forma sintética, importa analisar tal possibilidade daquela ter crédito sobre a Massa Insolvente na sequência de venda do bem imóvel naquela execução hipotecária. Para já, saliente-se que atentas as várias alegações confusas e contraditórias que têm sido constantes na actuação processual da Autora/Credora (e também atenta a falta de apresentação da competente prova documental), é desconhecido o efectivo estado processual da execução hipotecária: se no art. 17º (da parte «fundamentos de direito») da petição alegou que «em Julho de 2020, foi realizado o registo do cancelamento da sua aquisição sobre o imóvel, e foi realizada nova apresentação a favor da cessionária», o que indicia que o bem já foi vendido/adjudicado nessa execução, já no posterior requerimento de 07/01/2021 alega que “… detém um direito de propriedade sobre o Prédio Misto, e ainda não o perdeu…”, o que indicia precisamente o contrário. Mas, independentemente do estado dessa execução, não tendo no respectivo contrato de compra e venda sido estatuída uma cláusula que conferisse algum tipo de direito ao comprador (a Autora/Credora) sobre a vendedora (a sociedade que veio a ser declarada insolvente) para o caso da “perda” do direito de propriedade sobre o bem precisamente para o caso de tal execução hipotecária vir a ter lugar, e sendo certo que a Autora/Credora não tem a posição de garante na dívida em causa e que não procedeu a qualquer pagamento voluntário da dívida (ou parte dela) da massa insolvente para com a cessionária/credora/exequente (nada alegou neste sentido, e muito menos comprovou), então nem através do instituto da sub-rogação aquela poder obter um crédito sobre a massa insolvente. Com efeito, decidiu-se no Ac. do STJ de 12/09/2013 que: “I - O direito de sub-rogação traduz a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor (ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento): a sub-rogação pode ser voluntária, quando decorre de manifestação expressa da vontade do credor ou do devedor, designadamente quando, apesar de ser o devedor a cumprir, o faz com dinheiro ou outra cousa fungível emprestada por terceiro – arts. 589.º, 590.º e 591.º do CC – ou legal, quando opera por determinação da lei, independentemente de declaração do credor ou devedor – art. 592.º, n.º 1, do CC. II - Resulta do art. 592.º, n.º 1, do CC, que são razões especiais que justificam o regime legal de favor que coloca o terceiro na mesma posição jurídica do primitivo credor, o que significa que o crédito não se extingue, antes de transfere para o terceiro que cumpre em vez do devedor. Mantém-se, por conseguinte, na titularidade do terceiro, o mesmo direito de crédito de que era titular o anterior credor. III - Não é qualquer terceiro que cumpra obrigação alheia que beneficia da sub-rogação, mas apenas aqueles que cumpriram em determinadas circunstâncias valoradas pela lei. Assim, só fica sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia quando tiver garantido (previamente) o cumprimento, isto é, quando o cumprimento tenha em vista evitar a execução de garantia que prestou. IV - Fica, também, sub-rogado nos direitos do credor, o terceiro que cumpra a obrigação alheia, quando “por outra causa, estiver directamente interessado na satisfação do crédito” – art. 592.º, n.º 1, in fine, do CC. Exige-se um interesse directo, que a doutrina vem entendendo como sendo um interesse patrimonial e próprio, excluindo um mero interesse “moral” ou “afectivo” do solvens. V - Se o terceiro, apesar de não ter interesse no cumprimento, realiza a prestação alheia e o credor a aceita, não há transmissão do crédito para o solvens, verificando-se, antes, a extinção da obrigação. Não significa isso, porém, que o terceiro não interessado que cumpriu a obrigação alheia não adquira qualquer direito face ao devedor liberado. VI - Não é irrelevante que o cumprimento ocorra voluntariamente, por iniciativa do terceiro ou seja promovido pelo credor através da execução e venda do penhor. É que só na primeira situação o terceiro cumpre a obrigação alheia no seu próprio interesse, designadamente com a finalidade especial de evitar a execução, ou a consumação desta, pela venda (e consequente perda) da coisa empenhada, sendo exactamente esse cumprimento interessado a razão ser da sub-rogação” (os sublinhados são nossos). No caso em apreço, como a existir cumprimento naquela execução hipotecária através do bem imóvel (que adquiriu com os respectivos ónus e encargos), resulta da promoção da execução pelo próprio credor/cessionário e não de qualquer cumprimento voluntário da a Autora/Credora, como esta não tem qualquer posição de garante e como no respectivo contrato de compra e venda também não se previu qualquer possibilidade de sub-rogação, temos necessariamente que concluir que, independentemente da “venda do bem imóvel” na execução hipotecária, não assiste à Autora/Credora qualquer direito de crédito sob a massa insolvente pelo que, neste caso, inexiste sequer a possibilidade de se verificar um situação de sub-rogação (que, diga-se, nunca foi invocada por aquela, mas que foi alegada, ainda que sem razão, pela Ré Massa Insolvente). Afigura-se-nos que, atentas as condições da compra e venda do imóvel em causa, o único direito que poderá assistir à Autora/Credora, caso o valor obtido na venda do bem imóvel seja superior ao valor da quantia exequenda, é fazer seu o valor remanescente. De tudo isto mais resulta que nem “com recurso” ao fundamento da possibilidade de existir um direito de crédito a «constituir», se poderia concluir pela tempestividade da presente acção/reclamação.
Por último, importa ainda frisar que, em nosso entender, ainda que o crédito reclamado fosse “a constituir-se apenas se e na medida em que o prédio de que a autora é proprietária responda por dívidas da insolvência”, como se afirmou na decisão recorrido mas, como já explicou, não foi efectivamente esse o crédito que a Autora/Credor peticionou, então, no caso em apreço, a acção/reclamação teria sido intentada de forma intempestiva e prematura, jamais podendo, pelo menos por agora, prosseguir os seus termos. Com efeito, na fase “normal” de reclamação de créditos na insolvência, no art. 128º do C.I.R.E., o legislador alude expressamente às condições dos créditos a reclamar [alínea b) do nº1], o que inclui os créditos sob condição (inclusive, os que ainda não estão construídos – cfr. art. 50º do C.I.R.E.) e jamais estabelece qualquer nexo entre o prazo da reclamação desses créditos e a data da sua constituição. Porém, na parte final da alínea b) do nº2 do referido art. 146º do C.I.R.E. o legislador estabeleceu um óbvio e inequívoco nexo entre o prazo de reclamação de três meses e a respectiva data de constituição: “… a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior: a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior; b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente” (o sublinhado é nosso). Ora, ponderando o disposto no art. 9º/2 do C.Civil, donde decorre que na interpretação da lei não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, afigura-se-nos que, para créditos constituídos após os seis meses do trânsito em julgado da sentença da insolvência, só é viável (só é legalmente possível) a respectiva reclamação através do expediente processual especial da verificação ulterior de créditos após o crédito estar constituído, sendo que a partir desse momento que se inicia o respectivo prazo processual de 3 meses e cujo cumprimento é do conhecimento oficioso (se o crédito ainda for a constituir como é que o Tribunal pode conhecer do seu cumprimento ou não?). E, para além da letra da lei, compreende-se que assim seja, uma vez que já estamos numa fase adiantada do processo de insolvência, em que inclusivamente já decorreram mais de 6 meses sobre o trânsito em julgado da sentença, não se mostrando lógico nem adequado à celeridade processual (que é inerente ao próprio processo de insolvência) estar nesse momento processual ainda a admitir reclamação de créditos que não estão constituídos, e que não se sabe se vão efectivamente constituir (consolidar) e nem se sabe quando se vão constituir (consolidar), relembrando-se que a intenção do legislador é «a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores» e a «máxima realização possível de todos os créditos», mas o mesmo legislador quis estabelecer e estabeleceu «limites para à possibilidade de verificações tardias de créditos» (e aqui estamos parente um dos limites). Deste modo, mesmo a entender-se, como se fez na decisão recorrida, que a reclamação deduzida nesta acção corresponde a um crédito a constituir-se, então, como supra se referiu, como tal crédito ainda não está constituído, não estão preenchidas condições legais para ser reclamado através da acção de verificação ulterior de créditos porque nem sequer se iniciou o decurso do respectivo prazo de reclamação (só se inicia com a sua efectiva constituição), e, por via disso, a propositura da presente acção sempre se mostraria intempestiva, por ser prematura.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que ficou exposto, ainda que com base em fundamentação algo diversa das alegações/conclusões insertas no recurso, deverá julgar-se procedente o recurso interposto pela Ré Massa Insolvente/Recorrente, e, por via disso, deverá revogar-se a decisão recorrida, deverá declarar-se verificada a excepção dilatória inominada da falta de tempestividade da presente acção (por falta de cumprimento do respectivo prazo legal), e deverá declarar-se absolvição dos Réus da instância e a extinção da instância.
Procedendo o recurso e atentos os efeitos dessa procedência na acção, as custas do presente recurso e as custas da acção ficarão a cargo da Autora/Credora - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Ré Massa Insolvente/Recorrente e, em consequência, mais decidem:

1) revogar a decisão recorrida;
2) declarar verificada a excepção dilatória inominada da falta de tempestividade (por falta de cumprimento do respectivo prazo legal) na propositura da presente acção para verificação ulterior de créditos pela Autora/Recorrida Sociedade Turística e Hoteleira Quinta da X, Lda;
3) Absolver da instância a Ré/Recorrente Massa Insolvente Sociedade Agrícola Quinta do Y, Lda e os Réus Credores da Massa Insolvente;
4) E declarar a extinção da instância.
Custas do recurso e da acção pela Autora/Recorrida.
* * *
Guimarães, 16 de Dezembro de 2021.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - José Fernando Cardoso Amaral.



1. A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
2. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
3. Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
4. Juiz Conselheiro Luís Espirito Santo, proc. nº 261/18.9T8AMT-E.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
5. Juíza Conselheira Graça Amaral, proc. nº1856/07.1TBFUN-L.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
6. Também o Ac. do STJ de 27/11/2019, Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, proc. nº41/10.0TYNG-I.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
7. Juíza Desembargadora Elisabete Alves, proc. nº8755/15.1T8VNF-J.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
8. Que supra já se citou – cfr. Ac. do STJ de 05/12/2017.