Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2588/15.2T8GMR.G1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: PER
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. O processo especial de revitalização aplica-se a qualquer devedor, titular ou não de uma empresa, englobando, por conseguinte, as pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes.
II. Só são admissíveis diferenciações justificadas entre credores por razões objectivas, designadamente quando a diferença de tratamento assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que é assumida no artigo 47º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
III. Os valores subjacentes ao princípio da igualdade não podem deixar de se correlacionar com critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa.
IV. Constituiu violação do princípio da igualdade dos credores salvaguardado no artigo 194º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a aprovação do plano de recuperação onde se prevê que o credor hipotecário recebe integralmente o seu crédito sem qualquer redução, perdão ou prorrogação de prazo de pagamento, nem tão pouco perdão parcial de juros, bem como o seu crédito comum, ainda que de montante reduzido, também sem redução, enquanto que os restantes credores comuns, cujos créditos correspondem a mais de 50% dos créditos reconhecidos, ficam com os mesmos reduzidos a apenas 15% do capital, com perdão integral de juros e encargos vencidos e vincendos, o qual só receberão em 40 prestações mensais, depois de um período de carência de 12 meses.
V. Tal plano de recuperação é obtido exclusivamente à custa dos credores comuns, numa percentagem de tal modo elevada e com uma dilação temporal quanto ao pagamento do remanescente não sacrificado dos seus créditos, que constitui a imposição de um ónus desproporcionado e irrazoável para com estes credores, que a existência do crédito privilegiado e o interesse na revitalização do devedor não justificam.
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO DA 2ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO
1. J, invocando encontrar-se numa situação económica difícil, mas ainda susceptível de recuperação, veio, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, instaurar Processo Especial de Revitalização, com vista a estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

2. Procedeu-se à nomeação do administrador judicial provisório, nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 17º-C, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Junta aos autos a lista provisória de créditos, veio a mesma a ser convertida em definitiva, na ausência de impugnações.
Pelo Sr. Administrador Judicial nomeado foi requerida a junção aos autos do Plano de Recuperação apresentado pelo devedor e a respectiva votação, como consta de fls. 78 a 96, informando que o mesmo foi votado por 6 credores, que representam 99,97% dos créditos totais, dos quais votaram favoravelmente o plano 3 credores, que representam 57,55% dos créditos reconhecidos (cf. fls. 77 e 95/96).

3. Na sequência da junção do referido plano e documentação anexa foi proferido o despacho de fls. 97, do seguinte teor:
“O prazo para homologação ou não homologação do plano de recuperação é extremamente curto.
Numa primeira análise entendemos que o plano fere o princípio da igualdade, já que os créditos do Millennium (onde se incluem créditos comuns) e da Fazenda Nacional se mantêm imutáveis. Já os restantes credores verão reduzidos o seu crédito a 15% do capital.
Trata-se de uma redução extremamente elevada.
Assim, antes de mais, porque tal não consta do plano, deverá o requerente justificar o motivo da destrinça e uma justificação plausível para uma diferenciação acentuadíssima dos credores.
O prazo máximo que é possível conceder serão 3 dias. Igualmente o administrador provisório caso se queira pronunciar terá igual prazo.”

4. Em resposta veio o Administrador Judicial Provisório informar: - que a elaboração do plano ficou a cargo do devedor, “sendo que as condições de pagamento ali previstas resultaram daquilo que o mesmo entendia ser razoável, tendo em consideração as suas fontes de rendimento”; - que, “no que concerne à Fazenda Nacional as condições de pagamento não se mantiveram inalteradas, isto porque os termos de pagamento ali previstos se demostram prestacionais, tendo em consideração as condições sobejamente conhecidas para este credor e que se encontram previstas no Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT)”; e que “no entanto, no que concerne ao credor Banco Comercial Português, S.A., não consegue o aqui signatário descortinar formalmente quais as razões que justificam o tratamento desigual deste credor no que concerne aos créditos comuns, razão pela qual deverá o mesmo vir aos Autos apresentar tais esclarecimentos.” (sublinhado nosso)
O Devedor, devidamente notificado (cf. fls. 98), nada disse.

5. Após, foi proferido despacho, no qual se decidiu homologar o plano de revitalização apresentado, com os seguintes fundamentos:
“(…)
O plano de recuperação considera-se aprovado nos termos do art. 17º-C, n.º 3, alínea a) do CIRE, conforme informação do Sr. Administrador.
O cerne da questão prende-se com o princípio da igualdade, sendo que a sua violação consiste numa violação grave não negligenciável das regras aplicáveis (assim Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, Volume II, Quid Juris, Lisboa 2006, pago 46).
Oficiosamente o plano de recuperação pode ser recusado caso viole a igualdade entre os credores da insolvência (cfr. disposições conjugadas dos arts. 17º-F, n.º 5, 194º e 215º do CIRE.
O tratamento igual dos credores da insolvência não é absoluto. Nos termos do art. 194º, n.º 1 parte final do CIRE, são possíveis diferenciações justificadas por razões objectivas. Mais não é do que a consagração do princípio de que situações distintas podem ser objecto de tratamento desigual.
E mesmo existindo uma desigualdade objectiva, sempre será admissível se o credor afectado der o seu consentimento, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável (art. 194º, n.º2, do CIRE).
A jurisprudência tem sido uniforme no sentido da diferenciação de tratamento consoante a natureza dos créditos (entre outros ac. da RE, Rel. Alexandra Santos, proc. n.º• 63/14.1T8RMZ.E1, 10.9.2015, consultado em www.dgsi.pt: “1 - Resulta do nº 1 do art.º 194º do CIRE que é admissível a desigualdade entre os credores, desde que, para tanto, se invoquem razões objectivas; 2 - A razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos nos termos em que agora está assumida no arts 47º desse Código. Ou seja, a gradação prevista no CIRE (garantidos, privilegiados, comuns e subordinados), permite tratamento diferenciado de tais créditos, justamente atenta a diversa garantia que os mesmos beneficiam").
Mas a lei não é taxativa. Ou seja, são admissíveis todas as diferenciações justificadas por razões objectivas. Em princípio se dirá que a distinção entre créditos da mesma natureza fere o princípio da igualdade. Neste sentido veja-se recente ac. da RP, Rel. Rodrigues Pires, proc. n.º 2438/14.7T80AZ.P1, 15.9.2015, consultado em www.dgsi.pt: “I - A consagração do princípio de igualdade de tratamento dos credores, previsto no art. 194º do CIRE, faz com que se procurem soluções de tratamento igual entre créditos iguais e de tratamento diferenciado quando estejam presentes créditos de natureza diferente. II - O princípio da igualdade não pode ser tido por absoluto, não se impondo, de forma necessária, uma total identidade de tratamento entre créditos idênticos, tal como não se permite toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de diversa natureza. III - Não podem, porém, os valores subjacentes ao princípio da igualdade deixar de se correlacionar com critérios de proporcionalidade. IV - Ocorre violação do princípio da igualdade quando no plano de recuperação se propõe o pagamento integral de dois créditos comuns, quando relativamente aos demais créditos comuns se propõe o perdão de 70% do capital, bem como da totalidade dos juros vincendos.”. Como se salienta nesse acórdão a questão da diferenciação dos credores não se pode “radicar na própria necessidade de viabilização do plano”.
Mas no fundo a questão prende-se em apurar se existem diferenciações injustificadas, ou seja, que não têm por fundamento qualquer razão objectiva. E aqui reiteramos que dependerá das circunstâncias em concreto: motivo da diferenciação, valor dos créditos, número de créditos diferenciados, garantias dos créditos, etc. O número de votos contrários, a autonomia (da maioria de credores) na aprovação do plano, o objectivo primordial da lei em permitir a recuperação económica de devedores, a proporcionalidade de recusar planos em determinadas circunstâncias em concreto também relevam. Importa também considerar as votações e qual foi a posição dos credores diferenciados e o seu comportamento à posteriori, ou seja, se após o resultado das votações, solicitaram a recusa de aprovação do plano de insolvência.
Só após sopesar todas essas circunstâncias e considerando-se que os credores estão em idêntica situação, é que poderá ter aplicabilidade o n.º 2 do art. 194º do CIRE. Ou seja, pressuposto da aplicabilidade sempre serão diferenciações não justificadas de credores em idêntica situação, sendo que como dissemos diferenciações de credores com a mesma categoria de créditos indicia fortemente uma diferenciação injustificada. Mas não obstante, como referimos, não são um limite intransponível (veja-se ac. da RC, proc. 5570/14.3T8CBR.C1, Rel. Arlindo Oliveira, 15/09/2015, consultado em www.dgsi.pt: “O princípio da igualdade entre credores não afasta a possibilidade de diferenciações entre credores em idênticas circunstâncias, desde que justificadas por razões objectivas, tendo em vista uma adequada e necessária ponderação de todos os interesses em confronto.”).
No caso em concreto existe uma clara diferenciação entre o crédito comum do Millenium e dos restantes credores comuns. Embora o Requerente não tenha apresentado justificações, cremos que essa diferenciação prende-se com o facto de ser o credor hipotecário e de modo a viabilizar o plano de recuperação.
Em princípio essa diferenciação colidiria com o princípio da igualdade. Mas uma visão global torna aceitável a mesma. Na verdade o crédito comum é só de 850,47€, sendo a esmagadora maioria do crédito garantido por hipoteca. Importa ainda considerar que um dos credores comuns votou favoravelmente, o plano foi aprovado segundo as regras instituídas, e nenhum dos credores veio posteriormente pedir a recusa de aprovação do plano. Por último, é considerado a única forma de revitalizar o devedor, objectivo primordial do CIRE para evitar insolvências e os efeitos nefastos que daí advêm.
Pelo exposto:
Homologo por sentença, nos termos do 17º-F n.ºs 5 e 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o plano de revitalização do devedor J. (…)”

6. Inconformado, interpôs recurso o credor BANCO P, SA., pedindo a revogação do despacho, com a consequente recusa de homologação do plano, nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões sintetizadas na sequência do despacho do relator de fls. 163/164]:
1.ª O presente recurso tem por objecto o douto despacho de 09-10-2015, o qual homologou o acordo de pagamento entre o supra identificado Devedor e todos os seus Credores reclamantes.
2.ª O plano de revitalização apresentado foi homologado, porquanto o Tribunal a quo considerou que o mesmo foi aprovado segunda as regras instituídas e nenhum dos credores veio posteriormente pedir a recusa da aprovação do plano, apesar do voto de rejeição do aqui Recorrente.
3.ª Tal decisão não aprecia a legitimidade de quem requer tal plano, nem analisa o conteúdo do mesmo e a sua expressão na esfera económica dos credores, sopesando apenas a votação dos mesmos.
4.ª O Devedor alegando encontrar-se em situação económica difícil, recorreu ao processo especial de revitalização, como expediente para a sua recuperação económica.
5.ª Porém, considera o Recorrente que tal instituto não lhe é aplicável, porquanto, atento o espirito da lei e a sua ratio, se destina apenas a devedores empresários e não a quaisquer outras pessoas singulares.
6.ª Ora, o Processo Especial de Revitalização pretendeu e pretende consubstanciar-se num mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual.
7.ª A situação económica difícil obriga a procurar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento dos agentes económicos.
8.ª É, assim, claro que o Processo Especial de Revitalização foi criado em torno e para recuperação dos agentes económicos, ou seja, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma actividade autónoma e por conta própria gera receita e/ou cria emprego, não sendo aplicável a pessoas singulares que não sejam devedores empresários.
9.ª O que não sucede com o Devedor, já que este, para além de pessoa singular, é trabalhador dependente, o que, a contrario, significa não ser o mesmo agente económico nos termos supra referidos, pelo que deveria ter recorrido a outros mecanismos legais existentes no CIRE.
10.ª Face ao exposto, o presente processo especial de revitalização, por não ser o meio processual idóneo e por carecer o Devedor de legitimidade para o efeito, deve ser extinto.
11.ª Mais se refira que o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor estabelecer negociações com vista ao estabelecimento de um acordo de reestruturação.
12.ª Destarte, é princípio transversal de todo o processo especial de revitalização, o que resulta da própria letra da lei, isto é, a negociação entre Devedores e Credores.
13.ª É este princípio que permite ao processo ver cumprido o seu escopo: o primado da vontade das partes, ou seja, possibilita a Devedor e Credores, conjuntamente, delinearem um plano de pagamentos concertado em que as legitimas expectativas de ressarcimento estejam ali materializadas.
14.ª Os intervenientes nas negociações devem respeitar os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011, de 25 de Outubro, cumprindo, desde logo, destacar os seguintes princípios:
“Primeiro Principio - O procedimento extrajudicial de recuperação de devedores corresponde às negociações entre o devedor e os credores envolvidos, tendo em vista obter um acordo que permita a efectiva recuperação do devedor. (…)
Segundo Principio - Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.”.
15.ª Contudo, e como se logrou demonstrar, não houve qualquer iniciativa de negociação por parte do Devedor com o aqui Recorrente, já que nunca foi submetido ao Recorrente qualquer draft do plano, nem nunca foi impetrada qualquer tentativa de contacto com o Apelante, nem tão pouco foi colhida a sua opinião.
16.ª Assim, sendo o móbil do processo especial de revitalização o necessário contacto, colaboração e negociação entre Devedores e Credores, o único impulso activo para o efeito foi dado pelo aqui Apelante, exercendo um direito que decorre, de resto, da própria lei, ao manifestar interesse em participar nas negociações e solicitar o draft do plano para se poder pronunciar, e solicitando, no decurso do prazo de negociações, o seu envio, nunca tendo efectivamente recebido qualquer resposta por parte do Devedor.
17.ª Há assim uma clara violação não negligenciável das normas imperativas do art.º 17.º-D, n.º 6 e nº 10 e do art.º 17º F, do CIRE, o que se traduziu na total exclusão do Recorrente de todo o período negocial.
18.ª Ademais, após a junção do plano de recuperação aos autos, foi solicitado pelo Juiz a quo que o Devedor e o Sr. Administrador Judicial Provisório viessem justificar a razão pela qual um dos Credores beneficiava de um tratamento preferencial e vantajoso comparativamente com os restantes Credores.
19.ª O Devedor não se pronunciou, sendo que apenas o Sr. Administrador Judicial Provisório informou os autos que não consegue descortinar formalmente as razões que justificam o tratamento desigual no que concerne aos créditos comuns.
20.ª O que se traduziu na fundada convicção do Recorrente de que não se encontravam reunidos os pressupostos para a homologação do plano, não restando alternativa ao Juiz a quo que não a sua recusa.
21.ª Não tendo sido prestados os esclarecimentos necessários pelo principal interessado na homologação do plano, isto é, pelo devedor, nem se tendo o mesmo sequer pronunciado sobre tal matéria, foi com surpresa que o Recorrente foi notificado da homologação do plano.
22.ª Uma vez que o Recorrente se encontrava a aguardar os referidos esclarecimentos para aferir do mérito da interposição de requerimento de não homologação, o que se viu impedida de concretizar.
23.ª Em total desrespeito com o disposto nos números 1 e 2 do artigo 195.º do CIRE, o Devedor clausulou, quanto ao aqui Apelante, que o pagamento de apenas 15 % do capital reclamado será feito em 40 prestações mensais, após o período de carência de capital e juros de 12 meses.
24.ª Além disso, não indica claramente a alteração jurídica efectuada à posição dos Credores, bem como quais os efeitos relativos às garantias prestadas, apenas efectuando uma exposição vaga, e repleta de lugares comuns, sobre a situação de incumprimento e encargos/gastos.
25.ª Acresce que, em relação ao credor B, S.A., não se prevê o pagamento nos mesmos termos dos restantes credores em situação similar, prevendo-se a continuação do seu pagamento nos exactos termos e condições decorrentes do preçário em vigor na instituição.
26.ª Ora, do conteúdo do plano não é possível ao Recorrente compreender a razão de tal discriminação, sendo forçoso concluir que o plano de recuperação mais não visa do que encapotar a verdadeira intenção do Devedor: a libertação das suas dívidas, com um perdão exponencial de 85%.
27.ª Sucede que a supra referida a Resolução do Concelho de Ministros prevê que: “VI - A ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.”.
28.ª Não restando dúvidas que tal prescrição legal foi violada, não podendo, desta forma, ser homologado o presente plano, por força dos artigos 17º D, nº 5, 195º, nº 1 e 2 e 215º do CIRE e nº 2 do art.º 18º da CRP.
29.ª Saliente-se, também, o que dispõe o art.º 17º- A do CIRE, no seu nº 1, que o “ O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com este acordo conducente à sua revitalização.”.
30.ª Sucede que, a solução aqui espelhada no presente Plano não pode ser vista como construtiva ou satisfatória para o aqui Apelante e, de resto, para qualquer um dos Credores em situação similar.
31.ª Atentando ao crédito reclamado pelo aqui Recorrente, o Plano aprovou um perdão de 85 %, tendo o Banco P de aguardar 12 meses de carência para receber a ínfima parte do montante em dívida.
32.ª Ora, tal solução consubstancia um perdão brutal e injustificado, o qual lhe foi imposto unilateralmente.
33.ª A aceitação da proposta apresentada, para além de atentar contra a boa-fé, traduz-se num verdadeiro abuso de direito, afigurando-se como uma cobertura legal para o incumprimento contratual.
34.ª Além disso, existe uma verdadeira desproporcionalidade entre a recuperação do devedor e o sacrifício decorrente dela, imposto aos credores comuns, os quais são essenciais à sua recuperação.
35.ª Se de facto um dos fins do Processo Especial de Revitalização é o de permitir a recuperação económica, a taxa de recuperação dos credores é o objectivo precípuo de qualquer processo previsto no CIRE.
36.ª Se é certo que a introdução deste tipo de processo especial teve em vista possibilitar ao devedor, em situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, mas susceptível de recuperação, a sua reabilitação, de forma a por cobro à extinção de agentes económicos, também terá de ser sopesado o prejuízo que a mesma comporta para os Credores, o que não se verifica no presente Plano.
37.ª Acresce que, a situação do Apelante no âmbito do plano é mais desfavorável quando comparada com a liquidação do Devedor – cf. alínea a), nº 1, art.º 216º do CIRE, uma vez que detém reserva de propriedade sobre a viatura financiada através do crédito reclamado.
38.ª Assim, se o processo seguisse, quer pela via da execução, quer pela via da insolvência, o Apelante teria a possibilidade de recuperar a viatura com reserva de propriedade a seu favor e utilizar o produto da venda da mesma para liquidação do crédito reclamado.
39.ª Viatura essa que tem o valor Eurotax actual de venda de 14.650,00 €, ou seja, num cenário de liquidação, ainda que a mesma não seja suficiente para liquidar a totalidade da dívida, seria suficiente abater de imediato uma grande parte da mesma.
40.ª Ademais, o cumprimento do plano não é certo e sendo as viaturas automóveis bens sujeitos a uma constante desvalorização, significa uma verdadeira perda de garantia para o aqui Apelante.
41.ª O plano homologado viola assim, as legítimas expectativas e interesses subjacentes ao ressarcimento do aqui Apelante.
42.ª Em face do exposto, o Plano de Recuperação apresentado pelo Devedor deve ser recusado, na medida em que a situação do Banco Primus, ao abrigo do supra referido Plano, no caso do mesmo vir a ser aprovado, é menos favorável do que a que seria na ausência de qualquer Plano, nos termos do disposto no art.º 216º, nº 1 do CIRE.
43.ª Impõe-se assim, a não homologação do plano apresentado pela Devedora, sob pena de violação do disposto nos artigos 17º D e F, 195º, 215º e 216º do CIRE.
Nestes termos e, nos mais de direito aplicáveis que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando a decisão do Tribunal “a quo” que homologou o plano de recuperação do devedor, substituindo-a por outra que recuse a homologação deste plano, assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!

7. Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da inadmissibilidade do Processo Especial de Revitalização relativamente a pessoas singulares que não sejam empresários; e
(ii) Se ocorre fundamento para a não homologação do Plano de Revitalização apresentado pelo Devedor.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) - OS FACTOS
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais referidas no relato dos autos.
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B) – O DIREITO
1. O Processo Especial de Revitalização foi o procedimento instituído na ordem jurídica portuguesa, através do aditamento ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, introduzido pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, destinado a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização (artigo 17.º-A, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Com a introdução do Processo Especial de Revitalização no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, a satisfação dos direitos dos credores deixou de consistir no objectivo primordial, ou quase único, da liquidação do devedor, passando, desde então, a revitalização do devedor a consubstanciar, também, um fim a ter em conta no âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, alterando-se, assim, o paradigma da legislação falimentar, conforme se retira da leitura da exposição de motivos da proposta de lei que deu lugar à referenciada Lei n.º 16/2012 (Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30/12/2011, da Presidência do Conselho de Ministros), e se realça no Acórdão da Relação do Porto, de 30/09/2013 (proferido no proc. 4819/12.1TBSTS-A.P1, disponível, como os demais citados, sem outra referência, em www.dgsi.pt).
Querendo lançar mão do referido processo, o devedor apresenta-se ao tribunal competente acompanhado da declaração de recuperabilidade prevista no artigo 17-A, manifestando a vontade de iniciar negociações com os seus credores, acompanhado de, pelo menos, um dos seus credores, tudo documentado por declaração escrita e juntando todos os elementos previstos no artigo 24º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cf. n.º 1 e n.º 2, alínea b), do artigo 17-C).
Notificado do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor comunica, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do art.º 24º se encontra patente na secretaria do tribunal, para consulta (cf. n.º 1 do artigo 17º-D). Os credores dispõem de 20 dias contados da publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do art.º 17º-D para reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador judicial provisório, que, no prazo de cinco dias, elabora uma lista provisória de créditos (n.º 2). A lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias úteis e dispondo o juiz, em seguida, de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas (n.º 3).
Findo o prazo para impugnações, os declarantes dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez e por um mês, mediante acordo prévio e escrito entre o administrador judicial provisório nomeado e o devedor, devendo tal acordo ser junto aos autos e publicado no portal Citius (n.º 5).
Como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 30/09/2013 (acima citado), com o qual concordamos, neste processo urgente de revitalização a vontade dos credores assume o primado, confiando-se, quase plenamente, nos mesmos, no administrador judicial, bem como, de certa forma, no devedor, razão pela qual, temos de convir que a intervenção do Juiz, neste processo urgente, é limitada, cabendo-lhe quase exclusivamente sindicar o cumprimento das normas aplicáveis enquanto pressuposto da homologação do plano, quer as que contendem com as regras procedimentais, quer as que dizem respeito ao próprio conteúdo do plano.
Assim, operada a votação e aprovação do Plano de Recuperação, por parte dos credores, cabe ao Juiz, no prazo de dez dias a contar da recepção do mesmo (artigo 17º-F, nºs. 5 e 6 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), dirimir o aprovado plano de recuperação, homologando-o ou recusando-o, vinculando os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, observando-se, para o efeito, com as necessárias adaptações, os preceitos vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência estabelecidos no título IX do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (artigos 215º e 216º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), dos quais decorre o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda nos casos em que tal lhe tenha sido impetrado por algum credor que a evidencie, com foros de plausibilidade, ou que a sua situação com o plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria sem qualquer plano (a)), ou que o plano proporciona a um credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos (b)).

2. No caso em apreço foi homologado o plano de revitalização apresentado pelo devedor.
O recorrente discorda desta homologação, primeiro, porque entende que o Processo Especial de Revitalização se destina apenas a devedores empresários e não a quaisquer outras pessoas singulares, depois, porque considera que foram violadas regras procedimentais imperativas do processo de revitalização, por ter sido excluído do processo de negociações, e regras relativas ao conteúdo do plano, alegando-se, aqui, a violação do princípio da igualdade dos credores e que existe desproporcionalidade entre a recuperação do devedor e o sacrifício para os credores comuns, além de que o recorrente ficou numa situação menos favorável com a aprovação do plano do que ficaria na ausência de qualquer plano.
Vejamos por partes.

3. No que toca à primeira questão - a da inaplicabilidade do Processo Especial de Revitalização a pessoas singulares não comerciantes, invoca o recorrente, em prol da sua posição, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA (Código do Insolvência e do Recuperação de Empresas Anotado, 2° Edição, Quid Juris, pág. 140 e segs.), e, na jurisprudência, o Acórdão da Relação do Porto, de 23/02/2015, proferido no processo n.º 3700/13.1TBGDM.P1.
Contudo, não se concorda com este entendimento, o qual não corresponde ao entendimento maioritário dos nossos Tribunais, que aqui seguimos.
Efectivamente, como, aliás, se diz no texto do referido aresto, tem-se entendido, pelo menos na generalidade das decisões judiciais (que o afirmam ou necessariamente o pressupõem) que o aludido processo especial de revitalização se aplica a qualquer devedor, “titular ou não de uma empresa” (cf. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2014, pág. 280), ou seja, que tal processo especial também se aplica às pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes.
A este respeito, refere LUÍS M. MARTINS que: “Atendendo à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação das empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era “facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar a reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis...”, pretendendo, de raiz, abranger as empresas e as pessoas singulares. Talvez por esse motivo, os novos arts. 17º-A a 17º-I, que regulam o processo especial de revitalização, em momento algum referem que a sua aplicação está limitada às pessoas colectivas ou entidades equiparáveis, antes anunciando, expressamente, que o processo de revitalização pode ser utilizado “por todo o devedor”. Assim, não deixa de ser aplicável às pessoas singulares, quando estas estejam na situação descrita e sejam financeiramente responsáveis – cf. n.º 2 do artigo 17.º-A” (Recuperação de Pessoas Singulares, 2.ª edição, Almedina, 2012, pág. 15).
CATARINA SERRA, também entende que “[o] regime do PER aplica-se a qualquer devedor, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a quaisquer requisitos (cf. art. 1.º, n.º 2 e art. 17.º-A, n.º 1)” (Processo especial de Revitalização – Contributos para uma “rectificação” – in. Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Abr./Set. 2012, Lisboa, págs. 715/741, a pág. 716, nota 2).
Idêntico entendimento é seguido por FÁTIMA REIS SILVA (Processo Especial de Revitalização, Notas práticas e jurisprudência recente, pág. 20/21), e por NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS (PER – O Processo Especial de Revitalização, Cometários aos artigos 17º-A a 17º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 13 e 14), quando referem que: “[a]s pessoas singulares com capacidade plena também podem exercer uma actividade económica, pelo que – mesmo não sendo comerciantes ou empresários – são igualmente susceptíveis de recuperação. E não se vê motivo para as excluir do recurso ao PER. Sendo certo que o Processo Especial de Revitalização foi concebido no interesse da recuperação do tecido empresarial, ainda assim as vantagens de um processo expedito e não estigmatizante podem até ser mais justificado no caso de pessoas singulares”.
No que respeita à jurisprudência, salienta-se, com relevo, no sentido da aplicabilidade do Processo Especial de Revitalização a qualquer devedor, titular ou não de uma empresa, incluindo, por conseguinte, as pessoas singulares que não exerçam actividade comercial própria, entre outros, os Acórdãos da Relação de Évora de 09/07/2015 (proc. n.º 1518/14.3T8STR.E1), de 10/09/2015 (proc. n.º 1234/15.9T8STR.E1) e de 21/01/2016 (proc. n.º 1279/15.9T8STR.E1); e da Relação do Porto de 16/12/2015 (proc. n.º 2112/15.7T8STS.P1).
Acresce que a interpretação restritiva efectuada pela posição contrária não tem correspondência na letra da lei, uma vez que se dispõe nos n.ºs 1 e 2 do artigo 17°-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “[o] processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”, e pode “… ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação”.
Assim, não resultando da letra da lei qualquer limitação de índole subjectiva ao âmbito de aplicação do Processo Especial de Revitalização, nem se encontrando fundamento bastante que revele ter essa limitação sido querida pelo legislador, há que concluir pela aplicação deste processo especial também às pessoas singulares, ainda que não sejam titulares de empresas ou que não exerçam actividade comercial própria.
Deste modo, e com os fundamentos expressos nestes arestos, conclui-se pela aplicabilidade do Processo Especial de Revitalização ao caso em apreço, sendo, por conseguinte, este o meio processual próprio para o requerente, alegando a situação prevista no n.º 1 do artigo 17º-A do CIRE, estabelecer negociações com os credores com o objectivo de concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.

4. Invoca o recorrente a violação de regras imperativas do procedimento, por ter sido excluído do processo negocial, em violação do que se dispõe nos artigos 17-D, n.º 6 e 10, e 17-F, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, alegando-se a este respeito que o devedor não teve qualquer iniciativa de negociação com o credor, ora recorrente, não o ouviu, nem lhe apresentou sequer o draft do plano.
Sucede, porém, que tal questão não foi antes suscitada perante o tribunal a quo, de modo a que este tribunal tivesse oportunidade para indagar da sua verificação e pronunciar-se sobre a mesma.
Trata-se, pois, de questão nova, de que agora não se pode conhecer, porquanto, como se sabe, os recursos, por natureza, visam a reapreciação de decisões judiciais, visam uma alteração do decidido, não podem ser um meio de introduzir questões novas e assim obter decisões diferentes com base numa fundamentação que não podia ter sido considerada na instância recorrida.
E, não colhe a argumentação expendida nas alegações pelo recorrente, quando refere que se encontrava a aguardar que o devedor prestasse os esclarecimentos pedidos pelo tribunal (cf. despacho transcrito no ponto 3 do relatório), para aferir do mérito da interposição de requerimento de não homologação, porquanto, com a apresentação do plano de recuperação, durante o prazo das votações e até à prolação do despacho homologatório, o recorrente teve a possibilidade de invocar a situação que agora alega (de ter sido excluído do processo negocial), a qual não dependia da prestação dos esclarecimentos pelo devedor.

5. Alega ainda o recorrente que foi violado o princípio da igualdade dos credores, porque o credor B, SA recebe o seu crédito comum integralmente e sem qualquer restrição, enquanto que os restantes credores comuns viram reduzidos os seus créditos a 15% do capital, que só irá ser pago em 40 prestações, após um período de carência de 12 meses, e que existe também uma desproporcionalidade entre a recuperação do devedor e o sacrifício que para tanto é imposto aos credores comuns em face da referida redução dos seus créditos.
Vejamos:

5.1. Operada a votação e aprovação do Plano de Recuperação, por parte dos credores, cabe ao Juiz, no prazo de dez dias a contar da recepção do mesmo (artigo 17º-F, nºs. 5 e 6 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), decidir se homologa o plano de recuperação apresentado ou se recusa a sua homologação, aplicando para o efeito, com as necessárias adaptações, os preceitos vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência estabelecidos no título IX do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (artigos 215º e 216º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), dos quais decorre o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda nos casos em que tal lhe tenha sido impetrado por algum credor que a evidencie, com foros de plausibilidade, ou que a sua situação com o plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria sem qualquer plano (a)), ou que o plano proporciona a um credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos (b)).
No caso em apreço, a questão da não homologação do plano foi logo suscitada pelo Mmo. Juiz a quo no despacho de fls. 97, por ter entendido que, “numa primeira análise” o plano fere o princípio da igualdade, já que os créditos do B, SA (onde se incluem créditos comuns) e da Fazenda Nacional se mantêm imutáveis, enquanto os restantes credores ficarão com os seus créditos reduzidos a 15% do capital, redução esta que se teve como “extremamente elevada”.
Porém, não obstante a falta de resposta do devedor e a posição assumida pelo administrador judicial provisório, que disse não descortinar formalmente quais as razões que justificam o tratamento desigual deste credor comum em relação aos demais, concluiu-se no despacho recorrido ser de aceitar esta diferenciação, em virtude de o crédito comum do dito credor ser de apenas € 850,47, sendo a esmagadora maioria do crédito garantido por hipoteca, e porque o plano foi aprovado segundo as regras instituídas, sem que nenhum dos credores tenha posteriormente pedido a recusa de homologação, tendo mesmo sido votado por um dos credores comuns.

5.2. Antes de mais, cumpre referir que se concorda-se com o enquadramento doutrinário dado ao princípio da igualdade dos credores que emana do despacho recorrido, com referência à jurisprudência nele transcrita, da qual resulta, em síntese, face ao que se dispõe no artigo 194º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que: (i) só são admissíveis diferenciações justificadas entre credores por razões objectivas, designadamente quando a diferença de tratamento assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que é assumida no artigo 47º daquele Código; (ii) o princípio da igualdade não pode ser visto em termos absolutos, não impondo sempre uma identidade de tratamento entre créditos com idêntica classificação (podendo existir diferenciações em função de concretas circunstâncias), nem implicado toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de natureza diversa; e (iii) está correlacionado com critérios de proporcionalidade.
Efectivamente, os valores subjacentes ao princípio da igualdade não podem deixar de se correlacionar com critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa (cf. acórdão da Relação do Porto de 9/12/2014 - proc. n.º 166/14.2TJPRT.P1).
Por outro lado, importa reter que o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante do plano de recuperação e, por conseguinte, a sua afectação traduz-se, seja qual for a perspectiva, numa violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis (cf. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ob. cit., pág. 754).

5.3. No caso em apreço, conclui-se da análise do plano, com relevância para a questão:
- Que, excluindo os créditos da Fazenda Nacional, que não estão aqui em causa, cujo valor é de € 5.839,23, o B, SA, mantém as mesmas condições relativamente ao crédito de € 54.196,73, quer na parte em que este se encontra garantido por hipoteca, no montante de € 53.346,26, quer na parte em que constitui crédito comum, no valor de € 850,47;
- Que os restantes créditos comuns, no valor de € 62.583,29, que representam mais de 50% do montante total dos créditos reconhecidos, no valor total de € 122.619,25, têm um perdão de 85% do capital em dívida e a totalidade dos juros e encargos vencidos e vincendos, ficando reduzidos a 15% do capital, sem encargos, nem juros, e a pagar em 40 prestações, após um período de carência de 12 meses, a contar da homologação.

5.3. Em face deste enquadramento factual, parece-nos evidente que há uma ostensiva discriminação positiva a favor do credor B, SA.
Mas, ainda que se tenha por aceitável essa discriminação na parte em que o crédito é privilegiado (por gozar da garantia resultante da hipoteca), e que, por esse motivo, possa beneficiar de um tratamento mais favorável do que o conferido aos outros créditos meramente comuns, respeitando-se, porém, sempre adequados critérios de proporcionalidade, tal discriminação é inadmissível em relação à parte comum do crédito, e ainda mais, quando o próprio devedor não avança com uma qualquer explicação para tal facto.
É evidente que esta diferenciação de tratamento dado ao crédito comum do B, SA em relação aos demais credores comuns, como se diz na sentença, “prende-se com o facto de ser o credor hipotecário e de modo a viabilizar o plano de recuperação”. Ou seja, paga-se integralmente o crédito comum deste credor para que este vote favoravelmente o plano.
Porém, como se diz no acórdão da Relação do Porto, de 15/09/2015, citado no despacho recorrido, “… as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano. É este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre credores” (cf. acórdão da Relação do Porto de 14/05/2013 - proc. n.º 1172/12.7 TBMCN.P1).

5.4. Por outro lado, não se compreende que no contexto da revitalização em causa nos autos - em que o credor hipotecário recebe integralmente o seu crédito sem qualquer redução, perdão ou prorrogação de prazo de pagamento, nem tão pouco perdão parcial de juros, e em que os restantes credores comuns ficam com os seus créditos reduzidos a apenas 15% do capital, com perdão integral de juros e encargos vencidos e vincendos, o qual só receberão em 40 prestações mensais, depois de um período de carência de 12 meses -, que o credor hipotecário não possa ver reduzido o seu crédito comum, que até é de reduzido montante, nos mesmos termos que os demais credores.
De resto, parece evidente que o plano de recuperação em causa é obtido exclusivamente à custa dos credores comuns, numa percentagem de tal modo elevada e com uma dilação temporal quanto ao pagamento do remanescente não sacrificado dos seus créditos, que constitui a imposição de um ónus desproporcionado e irrazoável para com estes credores, que a existência do crédito privilegiado e o interesse na revitalização do devedor não justificam.

6. Conclui-se assim, com fundamento no disposto no artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pela existência de violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano de recuperação, mais concretamente do disposto no artigo 194º do mesmo código, que impõe a não homologação do plano de recuperação apresentado.
Deste modo, deve julgar-se procedente o recurso, com a consequente revogação do despacho recorrido.
*
C) - SUMÁRIO
I. O processo especial de revitalização aplica-se a qualquer devedor, titular ou não de uma empresa, englobando, por conseguinte, as pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes.
II. Só são admissíveis diferenciações justificadas entre credores por razões objectivas, designadamente quando a diferença de tratamento assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em que é assumida no artigo 47º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
III. Os valores subjacentes ao princípio da igualdade não podem deixar de se correlacionar com critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa.
IV. Constituiu violação do princípio da igualdade dos credores salvaguardado no artigo 194º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a aprovação do plano de recuperação onde se prevê que o credor hipotecário recebe integralmente o seu crédito sem qualquer redução, perdão ou prorrogação de prazo de pagamento, nem tão pouco perdão parcial de juros, bem como o seu crédito comum, ainda que de montante reduzido, também sem redução, enquanto que os restantes credores comuns, cujos créditos correspondem a mais de 50% dos créditos reconhecidos, ficam com os mesmos reduzidos a apenas 15% do capital, com perdão integral de juros e encargos vencidos e vincendos, o qual só receberão em 40 prestações mensais, depois de um período de carência de 12 meses.
V. Tal plano de recuperação é obtido exclusivamente à custa dos credores comuns, numa percentagem de tal modo elevada e com uma dilação temporal quanto ao pagamento do remanescente não sacrificado dos seus créditos, que constitui a imposição de um ónus desproporcionado e irrazoável para com estes credores, que a existência do crédito privilegiado e o interesse na revitalização do devedor não justificam.
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IV – DECISÃO
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o despacho recorrido, recusando-se a homologação do plano de recuperação apresentado.
Custas a cargo do devedor, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Guimarães, 25 de Fevereiro de 2016
(Francisco Cunha Xavier)
(Francisca Mendes)
(João Diogo Rodrigues)