Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3362/23.8T8BCL.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EFEITOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Nos termos do artigo 90º do CIRE, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do diploma, devendo reclamar os seus créditos sob pena de não obterem pagamento.
Nos termos do Ac. uniformizador nº 1/2014, transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

AA, idf. nos autos, deduziu ação declarativa de condenação com processo comum conta, EMP01..., LDA, idf. nos autos, com fundamento em resolução do contrato de trabalho com justa causa, peticionando:

a) O montante nunca inferior a 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização;
b) O montante de 2.747,70 € (dois mil, setecentos e quarenta e sete euros e setenta cêntimos), a título de proporcionais de férias e Natal;
c) O montante de €392,00 (trezentos e noventa e dois euros), a título de formação;
d) Ser a ré condenada ao pagamento de juros de mora à taxa supletiva legal de 4% sobre as quantias em dívida e até ao seu integral pagamento (arts.804º, nº. 1, 806º e 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/03, de 08/04).
e) Ser a ré condenada ao pagamento do montante de 30.000,00€, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
Invoca assédio e violação da sua integridade psíquica e moral e dignidade da pessoa humana quer como fundamento da resolução quer dos damos não patrimoniais.
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- A requerida foi declarada insolvente por decisão de 21-8-2024, transitada em julgado.
- A 16-10-2024, foi proferida a seguinte decisão:
“ Uma vez que a Ré EMP01..., Lda., foi objeto de declaração de insolvência, pelas razões já aduzidas no despacho final hoje proferido no âmbito do apenso cautelar, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, atenta a natureza da presente lide e a utilidade que para o autor pode advir da mesma e, bem assim a previsão do art.º 128.º do CIRE, bem como o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, DR n.º 39/2014, Série I de 25/02/, declara-se a presente instância extinta, por inutilidade superveniente da lide, quanto àquela sociedade – art.º 277º, al. e) do CPC.
(…)”

- Inconformado o autor apresentou a presente apelação formulando as seguintes conclusões:
I - Nos termos do presente recurso de apelação, o Apelante invoca um pedido de reconhecimento de créditos de natureza mista, englobando, por um lado, créditos laborais patrimoniais e, por outro, créditos de natureza extrapatrimonial, decorrentes de assédio laboral e ofensas à honra e dignidade.
II - Verifica-se que os créditos extrapatrimoniais alegados, nomeadamente aqueles relativos a danos morais oriundos do assédio laboral, não devem ser considerados no contexto patrimonial da insolvência.
III - Tais créditos visam a proteção de direitos fundamentais, entre os quais a integridade moral e a dignidade pessoal, cuja tutela é de natureza autónoma.
IV - Dado que o objetivo da indemnização extrapatrimonial é compensar danos morais e assegurar a proteção de direitos de personalidade do trabalhador, estes créditos não podem ser reduzidos a valores económicos simples.
V - O seu tratamento em sede de insolvência configuraria uma desconsideração pela dignidade e personalidade do Apelante, valores essenciais na ordem jurídica.
VI - Doutrinariamente, argumenta-se que os créditos extrapatrimoniais, associados à lesão de direitos fundamentais e à personalidade do trabalhador, como ocorre com o assédio laboral, não devem integrar a massa insolvente do empregador.
VII - Estes créditos exigem um foro autónomo de apreciação e uma proteção específica, distinta dos créditos laborais típicos, como salários ou subsídios.
VIII - O tratamento de créditos extrapatrimoniais no foro cível, mesmo em casos de insolvência, é essencial para a adequada tutela dos direitos de personalidade.
IX - A jurisprudência tem acompanhado este entendimento, reconhecendo que tais créditos devem ser tratados em instância própria, sem integração automática no património insolvente.
X - A uniformização de jurisprudência estabelecida pelo AUJ n.º 1/2014 limita-se à extinção de instâncias envolvendo créditos patrimoniais e de natureza estritamente económica.
XI - A extensão deste aresto aos créditos extrapatrimoniais resultantes de ofensas à honra e dignidade pessoal do trabalhador configuraria uma interpretação extensiva e desprovida de fundamento jurídico, que desconsidera o carácter não económico dos direitos envolvidos.
XII - Em linha com a jurisprudência, a distinção entre créditos patrimoniais e extrapatrimoniais é fundamental para a preservação dos direitos fundamentais do trabalhador.
XIII - A aplicação extensiva do AUJ n.º 1/2014 aos créditos extrapatrimoniais ofenderia o princípio da especialidade e violaria os direitos de personalidade.
XIV - Assim, a extinção da instância em relação aos pedidos de assédio e atentado à honra, sem uma devida apreciação judicial, representaria uma violação do direito de acesso à justiça, conforme consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XV - A jurisprudência constitucional tem reiterado a importância do acesso à justiça para todos os pedidos que envolvem a proteção de direitos de personalidade.
XVI - A recusa de apreciação judicial a tais pedidos, num contexto em que se invocam violações à honra, dignidade e integridade moral do trabalhador, configuraria uma denegação de justiça, desrespeitando o direito do Apelante de ver os seus direitos fundamentais apreciados em sede judicial.
XVII - Do ponto de vista doutrinário, sustenta-se que o direito fundamental de acesso à justiça deve ser interpretado de forma inclusiva, abrangendo igualmente os pedidos extrapatrimoniais, dado que estes envolvem a defesa de valores essenciais da pessoa humana, como a honra e a dignidade pessoal.
XVIII - No âmbito do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a norma do artigo 128.º, n.º 3 não se estende aos créditos extrapatrimoniais, os quais não se inserem no processo de insolvência, uma vez que não representam créditos económicos ou patrimoniais em sentido estrito.
XIX - A doutrina e a jurisprudência sustentam que os créditos extrapatrimoniais, como os decorrentes de assédio laboral, devem ser considerados autonomamente em foro cível, visando a reparação de danos que afetam a personalidade e dignidade do trabalhador e que ultrapassam a esfera meramente económica.
XX - Assim, no contexto dos tribunais de trabalho, é reconhecida a sua competência para apreciar litígios que derivem do contrato de trabalho, incluindo aqueles que envolvam pedidos de indemnização por danos extrapatrimoniais relacionados com assédio laboral.
XXI - A prática abusiva de assédio no local de trabalho é considerada uma grave violação dos direitos de personalidade do trabalhador, sendo objeto de tutela nos tribunais do trabalho.
XXII - A competência dos tribunais laborais para a apreciação de pedidos de indemnização por danos extrapatrimoniais em casos de assédio laboral visa assegurar uma resposta adequada à complexidade e especificidade desses danos, considerando a gravidade da violação dos direitos de personalidade no contexto laboral.
XXIII - Tendo em vista os valores fundamentais que estão em causa — honra, dignidade, integridade física e moral —, os créditos por danos morais não devem integrar automaticamente a massa insolvente do empregador.
XXIV - Estes devem ser apreciados no foro laboral, de forma a assegurar uma proteção efetiva dos direitos fundamentais do trabalhador.
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O Emª PGA deu parecer no sentido da improcedência, referindo o carater unitário da indemnização, nos termos do artigo 396º do CT, e os termos do artigo 128º do CIRE.
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A factualidade com interesse é a que resulta do precedente relatório.
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Conhecendo do recurso:

Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Importa saber se os créditos peticionados na ação, por danos não patrimoniais, devem ou não estar englobados no “contexto patrimonial da insolvente”, como refere o recorrente; seja, se devem considerar-se na previsão dos artigos 90º e 128º do CIRE (Decreto-Lei n.º 53/2004.)
O recorrente sustenta que os créditos referidos visam a proteção de direitos fundamentais, entre os quais a integridade moral e a dignidade pessoal, cuja tutela é de natureza autónoma. Dado que o objetivo da indemnização extrapatrimonial é compensar danos morais e assegurar
a proteção de direitos de personalidade do trabalhador, estes créditos não podem ser reduzidos a valores económicos simples. O seu tratamento em sede de insolvência configuraria uma desconsideração pela dignidade e personalidade do apelante.
A questão não deve colocar-se nos termos em que o faz o recorrente, mas antes tendo como foco o tipo de medida a tomar pelo tribunal, o tipo de decisão a proferir. Se o pedido resulta num valor monetário, com repercussão na massa de bens da insolvente, deve o respetivo crédito, em princípio, ser reclamado no processo de insolvência nos termos do artigo 128º ou, verificando-se os respetivos pressupostos, em verificação ulterior – artigo 146º do CIRE.
Afastadas estão naturalmente pedidos que não impliquem a constituição ou reconhecimento de um crédito sobre a insolvente, com repercussão na massa, ou sobre “responsabilidades muito específicas” e com regras próprias, como será o caso dos acidentes de trabalho.
Refere o recorrente que o tratamento de créditos extrapatrimoniais só encontra tutela adequada no foro civil.
Atenta a natureza universal e plena da reclamação, que pode implicar apreciação de créditos reclamados, ocorre uma extensão da competência material do tribunal, chamando a si, competências que pertenceriam a outros tribunais. 
À atribuição de competência em função da matéria, conquanto não seja alheia uma melhoria na qualidade da decisão, decorrente da especialização, visa sobretudo uma maior celeridade, já que o juiz, qualquer juiz, fixada a sua competência, aplica todo o direito que o caso submetido reclamar. Veja-se o preâmbulo do D.L. 49/2014.
Com a atribuição de extensão de competência nos termos do nº 3 do artigo 128º da LOSJ ( L. 62/2013), visa-se desse logo o mesmo objetivo de celeridade, tendo em consideração quer o princípio par conditio creditorum – tratamento igual de todos dos  credores, sem prejuízo de diferenciações legalmente previstas (ex. 604 do CC) -; quer o direito  destes impugnarem outros créditos, visando acautelar a efetiva realização do respetivo crédito e afastar quaisquer expedientes suscetíveis de prejudicar tal realização.
Importa referir que o processo de insolvência constitui pela sua natureza, um processo de execução universal – artigo 1º, nº 1 do CIRE. Esta natureza universal visa garantir, com respeito pelas preferências legais, o pagamento de todos os credores, importando a necessidade de reclamação; ainda que desprovidos de garantias, o que numa normal execução não ocorre, já que nesta, apenas são convocados e admitidos a reclamar, credores com determinadas garantias.
A norma do artigo 46º do CIRE refere a “satisfação dos credores da insolvente”, sem excluir créditos de qualquer origem.
Por sua vez o artigo 47º, nº 1 refere que “todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.” Resulta daqui, que com a declaração de insolvência, o credor passa a sê-lo da insolvência.
Daí a necessidade de reclamar os créditos no processo, conforme resulta da norma do artigo 90º do CIRE e do 173º do mesmo diploma.

Referem os normativos:
90º
Exercício dos créditos sobre a insolvência
Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.
173º
O pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado.
Vejam-se ainda os termos do nº 5 do artigo 128º do CIRE:
“A verificação tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”
Ora, à reclamação de créditos, quando admitidos pelo administrador,  podem opor-se não apenas o devedor, mas todos os outros credores, dado o interesse manifesto que têm em preservar a garantia patrimonial, que, dada a situação, por regra, se apresentará já insuficiente, para satisfação de todas as responsabilidades da insolvente; conforme artigo 130º, do CIRE, e mesmo que o crédito esteja reconhecido por sentença transitada em julgado, desde que o credor impugnante não tenha sido parte em tal processo. De igual modo, se não reconhecido pelo administrador, terá o credor que impugnar a indevida exclusão, conforme mesmo artigo, sendo aplicável o nº 2 do artigo 25º do mesmo diploma, seguindo os posteriores termos – artigos 131 e 132º ss do CIRE.
 Compreende-se assim a extensão de competência, e a “inutilidade” a que o acórdão uniformizador nº 1/2014 de 8-5-2024, Diário da República, n.º 39, Série I, de 25-02-2014 se refere, relativamente a ações declarativas, já que o respetivo crédito tem que ser reclamado na insolvência, e aí de novo apreciado se objeto de impugnação.
Refere o Ac. uniformizador:
“Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”
Sobre esta interpretação veja-se a pronuncia do TC no Ac. n.º 46/2014, de 09/01/2014, no DR, Série II - N.º 29 - de 11 de fevereiro de 2014.
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Isto sem prejuízo de relativamente a algumas responsabilidades, a aplicação não ser assim tão linear. Assim o caso apreciado no Ac. RG nº 681/12.2TBEPS-G.G1, de 6-2-2014, relativo a créditos decorrentes de sinistro laboral, em que estão em causa relevantes interesses sociais, constituindo um regime especial de indemnização, com regras próprias, “relativas ao cálculo, à remissão e a outras vertentes, informado por princípios de natureza pública - veja-se o artigo 78º da L. 98/2009 relativo à indisponibilidade, irrenunciabilidade e impenhorabilidade dos créditos; veja-se ao art. 12º da mesma lei relativo à nulidade de todos os acordos ou convenções contrárias aos direitos e garantias legalmente consagrados; veja-se a própria especificidade do processo de acidente de trabalho”. Podendo ocorrer “ alterações com o decurso do tempo, como agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão que deu origem à reparação …, caráter atualizável da pensão, e outras, algumas já acima aludidas, podendo surpreender-se concessões ao sistema de responsabilidade social no D.L. 142/99 que institui o Fundo de Acidentes de Trabalho (substitui o Fundo de Atualização de Pensões de Acidentes de Trabalho)...”. Referenciando-se no acórdão a reclamação condicional.
Não é o caso apresentado.
O crédito referido constitui crédito laboral decorrente da violação do contrato de trabalho, como resulta do artigo 396º do CT - constitui elemento integrante da indemnização pela resolução do contrato com justa causa, ainda que se faça uso do disposto no seu nº 3. Se não constituísse motivo de resolução, seria então decorrente da violação das normas 14º ss, designadamente artigo 29º do CT. E ainda que se tratasse de indemnização por responsabilidade extracontratual, nos termos do código civil, sempre estaria abrangido pela obrigatoriedade de reclamação na insolvência, nos termos referenciados.
A extensão de competência não põe em causa a proteção efetiva dos direitos fundamentais do trabalhador, como referido. É que, desde logo, a decisão transitada apenas tem efeito inter partes, não estando, pois, o reclamante a coberto da possibilidade de ter de demonstrar de novo, o seu direito, no processo de insolvência. O seu direito será apreciado, por um juiz, e nos termos de um procedimento equitativo.
Assim é de confirma a decisão.
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DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido.
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Custas pelo recorrente sem prejuízo de apoio judiciário.
8-5-2025

Antero Veiga
Vera Sottomayor
Leonor Barroso