Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
51/21.1T8PTB.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: PROCESSO DE JUSTIFICAÇÃO
EFECTIVAÇÃO DE REGISTO
RECURSO DA DECISÃO DO CONSERVADOR
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O processo de justificação, registal ou notarial, pressupõe a observância de sete requisitos, a saber: ausência de qualquer situação controvertida; a falta de título; a impossibilidade de obter título pelas vias normais; a inscrição do prédio na matriz; a observância rigoR. G. da lei; que os imóveis (ou móveis sujeitos a registo) estejam integrados no comércio jurídico; a notificação do titular inscrito ou dos seus herdeiros.
2. O objetivo da justificação registal ou notarial é a obtenção de documento idóneo à efetivação de registo.
3. A não interposição de recurso da decisão do conservador previsto no artigo 117º-I do Código de Registo Predial não preclude a possibilidade de interposição de ação judicial, agora já não para atacar a criação do título com base no qual se efetuou o registo, mas para impugnar o próprio direito que lhe subjaz.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

M. E. e marido, J. P., intentaram a presente ação sobre a forma de processo comum contra J. B. e mulher, P. R., formulando os seguintes pedidos:

“a) Se impugne o facto justificado no processo de justificação de direitos que deu entrada na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., pela apresentação n.º 1466 de 2020/02/05 cuja decisão final foi a seguinte: Pelo exposto, defiro o pedido constante do requerimento inicial e, em consequência declaro que: J. B. e mulher P. R., titulares dos NIF(s) ……… e ………, são proprietários do prédio supra, referente à invocada aquisição pelos Réus, por usucapião, do direito de propriedade do prédio rústico id. no artº. 1 deste articulado;
b) Se declare ineficaz e de nenhum efeito o processo de justificação de direitos; id. na alínea anterior, por forma a que os Réus não possam através dela registar quaisquer direitos sobre o prédio nele identificado e objeto da presente impugnação.
c) Se declare a nulidade do processo de justificação de direitos sob o prédio id. na alínea a) referente à invocada aquisição, pelos Réus por usucapião do direito de propriedade do prédio id. no art. 1.º deste articulado (exceto o facto de estar omisso à matriz).
d) Se declare que o prédio id. em 1.º deste articulado era propriedade de F. C. até ao dia 5 de Fevereiro de 2020, data em que procederam à sua venda aos Réus.
e) Se ordene, junto da Conservatória de Registo Predial de …, o cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus, do prédio descrito n.º … da freguesia de ..., concelho de Ponte da Barca;
f) Se declare que os Autores, na qualidade de proprietários do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica sob o art. ...º de ..., Ponte da Barca e descrito na Conservatória de Registo Predial a seu favor sob a ficha … de ..., gozam do direito de preferência sobre o prédio id. em 1.º deste articulado.
g) Se condene os Réus a absterem-se de prática de quaisquer atos conducentes com a posse do prédio id. em 1.º deste articulado”.
Suscitada oficiosamente a questão da incompetência territorial deste Tribunal para julgar a ação, à luz do disposto no artigo 117.º-I, n.º 1, do Código do Registo Predial, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a mesma.
Os AA. alegaram que intentarem a presente ação considerando a localização do prédio e o disposto no artigo 70.º do CPC, e argumentando, com base em jurisprudência que identificam, que as ações de impugnação de justificação notarial de posse devem ser propostas no Tribunal da situação dos bens justificados.
Acrescentam ainda que o artº 117.º-I, n.º 1, do Código do Registo Predial, apenas se aplica a decisões proferidas pelo Conservador na pendência do processo de justificação e não depois do processo findo.
Os RR. nada disseram.

Foi prolatado saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:
Em consequência do decidido, vão os RR. J. B. e P. R. absolvidos dos pedidos que os AA. M. E. e J. P. contra si formularam.
Custas a cargo dos AA. (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, e 607.º, n.º 6, ambos do CPC).
Registe e notifique.

Inconformados com a decisão os autores apelaram, formulando as seguintes conclusões:

1ª Os autores/recorrentes intentaram a presente ação para impugnar o processo de justificação de direitos que correu termos na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …;
2.ª Pretendem que se declare ineficaz e de nenhum efeito esse processo de justificação para que os Réus/recorridos não possam através dela registar quaisquer direitos sobre o prédio nele identificado.
3ª Se declare a nulidade da invocada aquisição do prédio em crise nos autos por parte dos Réus/recorridos pelo instituto de usucapião.
4.ª Se declare que o prédio em crise era propriedade do casal F. C. e mulher R. G., pelo menos até ao dia 5 de fevereiro de 2020.
5.ª Se declare que os Autores/recorrentes na qualidade de proprietários do prédio rústico inscrito na matriz sob o artº. ...º da freguesia de ... do concelho de Ponte da Barca gozam do direito de preferência sob o prédio em crise nos autos.
6.ª Os Autores/recorrentes deram entrada da presente ação no Juízo Local Cível de Ponte da Barca por entenderem ser este, nos termos do artº. 70.º do Código do Processo Civil, o Tribunal competente.
7.ª Os Réus/recorridos deduziram contestação defendendo-se por exceção e por impugnação.
8.ª Por exceção alegaram que os Autores/recorrentes não são donos de qualquer prédio rústico confinante com o prédio em crise.
9.ª Por impugnação alegaram que a presente ação entrou fora de prazo e que os Réus/recorridos não têm interesse em agir.
10.ª Autores/recorrentes e Réus/recorridos foram notificados para se pronunciarem sobre a competência do Juízo Local Cível de Ponte da Barca para apreciar o pedido dos Autores/recorrentes.
11.ª Os Autores/recorrentes responderam pugnando pela competência do Tribunal com base no disposto no art. 70.º do Código do Processo Civil.
12.ª Os Réus/recorridos nada disseram.
13.ª O Sr. Juiz “a quo” “decidiu pela não incompetência territorial: “Suscitámos oficiosamente a questão da incompetência territorial para julgar a ação à luz do disposto no artigo 117.º - I n.º 1 do Código do Registo Predial. Todavia, perante a posição dos autores sobre a dita questão e após melhor estudo das matérias em discussão na ação cremos que não está em causa aquele pressuposto.”
14.ª Mais declarou que o Tribunal está na posse de todos os elementos necessários para decidir do mérito da causa, convidando as partes para se pronunciar no prazo de dez dias.
15.ª Os Autores/recorrentes responderam a esse convite alegando:
a) Que o prédio dos Autores/recorrentes é rústico e confronta com o prédio rústico em crise nos autos;
b) Que os Réus/recorridos optaram por um processo de justificação de direitos para obstar ao exercício de direito de preferência na venda que efetivamente o F. C. e a R. G. fizeram aos Réus/recorridos.
16.ª Estes F. C. e R. G. são vivos, pelo que, se houvesse necessidade de levar o prédio a registo, a escritura de justificação ou o processo de justificação de direitos teria que ser feito em nome destes, e não em nome dos Réus/Recorridos.
17.ª Se, por um lado, no Douto Despacho de 06-10-2021 o Meritíssimo Juiz considera não estar em causa a incompetência territorial do Tribunal, já na Douta Sentença recorrida considera que o Tribunal é incompetente.
18.ª Declarando que os Autores/recorrentes não poderiam ter intentado a ação no Juízo Cível de Ponte da Barca, mas sim deviam ter interposto recurso para o Tribunal de 1.ª Instância de Braga, nos termos do artº. 117- I do Código de Registo Predial.
19.ª Mas ao contrário do decidido e na sequência do despacho de 06-10-2021 deveria o Senhor Juiz considerar o Tribunal competente territorialmente.
20.ª Não o considerando competente estamos em presença de uma exceção dilatória, que deveria ter como consequência ou a absolvição dos Réus/recorridos da Instância ou remeter o processo para o Tribunal competente.
21.ª Há, assim uma contradição evidente entre o Despacho do Meritíssimo Juiz “a quo” e a Douta Sentença.
22.ª A Sentença declara que os Autores/recorrentes não pretendem exercer o direito de preferência mas pretendem que a Sentença declarasse que estes gozam do Direito de preferência no prédio objeto de notificação.
23.ª E que por isso não são titulares de qualquer direito de preferência, já que o prédio em causa nos autos não foi vendido.
24.ª Mas não houve escritura de compra e venda com o simples objetivo de afastar a possibilidade de os Autores/Recorrentes exercer o seu direito de preferência.
25.ª A Sentença em crise declara que os Autores estruturaram a ação numa premissa falsa.
26.ª A de que os Réus/recorridos lançaram mão do processo de justificação para se esquivar às consequências do direito de preferência por banda dos Autores/recorrentes.
27.ª Não existem elementos nos autos que permitam ao Meritíssimo Juiz “a quo” tirar tal conclusão.
28.ª Só a produção de prova poderia habilitar o Tribunal a decidir sobre esta questão.
29.ª A Douta sentença em nosso entender violou as disposições contidas nos art. 70.º, 576.º, 596.º e 607.º todos do Código de Processo Civil.

Pelo que, deve a Douta Sentença ser revogada e substituída por outra que:

A) Ordene o prosseguimento dos autos;
Ou se assim não se entender,
B) Que ordene a remessa dos autos ao Tribunal competente.
Com o que farão V.ª Ex.ª a costumada Justiça!
Os réus contra-alegaram pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim:
- aferir do meio processual idóneo à impugnação da criação do título em sede de justificação registal;
- aferir da possibilidade de cumulação de pedidos;
- aferir da existência do pressuposto processual de interesse em agir.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório antecedente.
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B. Fundamentos de direito.

Como flui dos autos, a presente ação surge na sequência de processo de justificação de direitos, apresentado na 2ª Conservatória do Registo Predial de ..., ao abrigo do artº 117º-A do Código do Registo Predial.

Referem Isabel Ferreira Quelhas Geraldes e Olga Maria Barreto Gomes (1) que “A justificação, seja mediante processo de justificação notarial seja mediante processo de justificação registal, só é admissível verificando-se, naturalmente, determinados pressupostos que tornam o recurso a este meio legítimo e lícito. A saber:

a) O primeiro, a ausência total de qualquer situação controvertida. Com efeito, se pairar alguma dúvida quanto à existência do direito, indefinição ou litígio relativamente ao prédio em causa, arredada fica a possibilidade de se recorrer a este meio de suprimento, dado que nem o conservador nem o notário têm competência para dirimir conflitos, sendo esta uma função jurisdicional exclusiva dos tribunais, exercida pelos juízes. Como nota Pereira Rodrigues ao fazer a síntese de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a ausência de litígio constitui a pedra de toque: «ou ela existe e, então, o interessado no registo pode e deve recorrer desde logo ao tribunal; ou ela não existe e, então, o interessado deverá recorrer ao processo de justificação relativa ao trato sucessivo a correr no serviço de registo. Nesse processo não terá de demandar oponentes, porque oponentes não se conhecem, ressalvado o caso, de a justificação se destinar ao reatamento ou ao estabelecimento de novo trato sucessivo, da citação do titular da última inscrição (artigo 117º-G/2 do CRP).
Note-se, no entanto, que caso exista à partida claro litígio sobre a posse do bem, o interessado no registo pode e deve recorrer desde logo ao tribunal, pois seria puro desperdício de tempo e de meios intentar o processo no serviço do registo predial para este, depois, ter de o declarar findo mediante a oposição da parte contrária».
Na verdade, tendo em consideração que o nº 2 do artigo 117º-H determina que se houver oposição o processo é declarado findo e os interessados remetidos para os meios judiciais, cremos que encetar processo de justificação registal condenado desde logo ao insucesso, em face do conhecimento do litígio “ab initio”, constitui puro desperdício de recursos, sendo assim de evitar.
b) O segundo, falta de título, não falta de direito.
Para que se possa proceder a uma justificação é necessário que se verifique uma razoável certeza de que o direito existe. A falta respeita apenas ao título. Por isso, os tituladores têm de ficar convencidos da preexistência do direito, já que a justificação tem como escopo a atualização do registo através da obtenção de um título formal, que permita a sua execução, por o justificante não ter (porque não a possui, mesmo, ou porque a não localiza) a imprescindível prova documental para servir de base ao registo. É que por força da norma imperativa consagrada no nº1 do artigo 43º do CRP, só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem.
c) O terceiro, inviabilidade de obter o título pelas vias normais.
A justificação notarial, bem como o processo de justificação são considerados meios excecionais (anormais) de titular atos. A alegada inviabilidade ou impossibilidade de o interessado obter o título pelas vias tradicionais, segundo critérios de normalidade, deve ser avaliado pelo conservador e/ou pelo notário aquilatando se, em face da alegação do interessado, é de facultar, ou não, o recurso ao processo de justificação registal ou à escritura de justificação notarial.
d) O quarto, de natureza objetiva, prende-se com a inscrição do prédio na matriz.
Este pressuposto, de inscrição matricial, demanda abordagem distinta consoante seja considerada no âmbito da escritura de justificação notarial ou no processo de justificação registal. Neste processo, porque, havendo necessidade, é possível desencadear diligências complementares (tal como dantes acontecia no processo de justificação judicial) aceita-se a simples participação matricial, ao contrário do que acontece para a celebração da escritura de justificação. (…).
e) O quinto, estrita observância da lei.
Quer este pressuposto dizer que, por via da justificação, não se podem contornar ou violar comandos legais que de outro modo teriam de ser cumpridos. Referimo-nos, designadamente, às prescrições administrativas relativas ao regime jurídico do loteamento urbano ou à licença de utilização. (…). Como síntese das reflexões precedentes afigura-se-nos que não é temerário afirmar que as restrições legais imperativas colocadas ao fracionamento de prédios por força do disposto nos Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) não podem ser postergadas mediante a invocação da usucapião, sob pena de se defraudarem normas de direito urbanístico, de cariz imperativo, bem como os interesses públicos que este acautela.
f) O sexto, que o objeto da justificação respeite a bens imóveis (ou móveis sujeitos a registo) integrados no comércio jurídico.
Como já salientámos, os bens do domínio público encontram-se excluídos do comércio jurídico, por força do preceituado no nº2 do artº 202º do Código Civil.
g) O sétimo, notificação do titular inscrito ou dos seus herdeiros, se for caso disso.
Este pressuposto é, naturalmente, restrito aos casos em que existe titular inscrito, prendendo-se com as presunções derivadas do registo, consagradas no artº 7º do CRP, e com o incontornável princípio do trato sucessivo – cfr. o artigo 34º.
É que, na verdade, é impensável que à revelia do titular inscrito se possibilite o ingresso nas tábuas de qualquer registo sem que este tenha alguma intervenção ou, pelo menos, sem que tenha tido possibilidade de intervir. Como se salienta em inúmeros pareceres do Conselho Consultivo do IRN, IP, em face do sistema de registo predial, dos seus princípios e da sua organização, com a primeira inscrição inicia-se uma cadeia do direito publicitado que se desenvolve, acrescentando novos elos, com a inerente transferência do direito e dos efeitos do registo mediante novo registo (artigo 10º), ou que se extingue por caducidade (artigos 10º e 11º, nº4) ou por cancelamento com base na extinção dos direitos, ónus ou encargos definidos no registo (artigo 13º), suprimindo-se, deste modo, o direito do mundo jurídico.
Efetuada que seja a notificação prevista no artº 117º-G, do referido diploma, e como resulta do artº 117º-H, os interessados podem deduzir oposição nos 10 dias subsequentes ao termo do prazo de notificação e, se houver oposição, o processo é declarado findo, sendo os interessados remetidos para os meios judiciais.
Não sendo deduzida oposição, procede-se à inquirição das testemunhas apresentadas pela parte que as tenha indicado. A decisão é proferida no prazo de 10 dias e, tornando-se definitiva, são efetuados os consequentes registos. – artº 117º-H.
Por último, de acordo com o artº 117º-I do mesmo código, o Ministério Público e qualquer interessado podem recorrer da decisão do conservador para o tribunal de 1ª instância competente na área da circunscrição a que pertence a conservatória onde pende o processo. 2 – O prazo para a impugnação, que tem efeito suspensivo, é o do artigo 685º (atual 638º) do Código de Processo Civil. 3 – A impugnação efetua-se por meio de requerimento onde são expostos os respetivos fundamentos. 4 – A interposição da impugnação considera-se feita com a apresentação da mesma no serviço de registo em que o processo se encontra pendente, a qual é anotada no diário, sendo o processo remetido à entidade competente no mesmo dia em que for recebido.
Como refere Isabel Ferreira Quelhas Geraldes (2) “O Ministério Público e qualquer interessado podem recorrer da decisão do conservador para o tribunal de 1ª instância competente na área da circunscrição a que pertence a conservatória onde pende o processo, no prazo de 30 dias, em face do preceituado no artigo 638º do CPC (anterior artigo 685º), aplicável ex vi do disposto no nº2 do artigo 117º-I, bem como no artigo 156º.
A impugnação, que se efetua por meio de requerimento onde são expostos os respetivos fundamentos, tem-se por interposta com a apresentação daquele no serviço de registo em que o processo se encontra pendente, sendo imediatamente anotada no diário, em cumprimento do prescrito nos nºs 3 e 4 do citado artigo 117º-I.
O processo, em face do disposto no nº4, deve ser remetido à entidade ad quem no mesmo dia em que for recebido.
Considerando que o conservador deve, em face dos argumentos esgrimidos pelo impugnante, reapreciar a questão, afigura-se-nos que o prazo referido é escasso. O prazo de dois dias que se encontra estabelecido no nº4 do artigo 131º-C para remessa do respetivo processo à entidade ad quem nos casos de retificação parece-nos mais aceitável e, comprovadamente, exequível.
Os recorrentes/autores, pretendendo impugnar judicialmente a decisão do senhor conservador, nos termos do nº4, do artigo 117º-I, do Código do Registo Predial, teriam de ter apresentado a mesma junto dos serviços de registo, o que não fizeram.
A questão que então se coloca é a de saber se tal omissão precludiu o direito dos autores à interposição de ação declarativa. E a resposta é negativa.
Como supra se referiu, a justificação, seja ela notarial ou registal, tem como objetivo a obtenção de documento idóneo à efetivação de registo. Ora, resulta cristalino do artigo 7º do Código do Registo Predial que o registo constitui uma presunção de que o direito existe, e que pertence ao titular inscrito. Todavia, tal presunção não é constitutiva do direito que faz presumir.
Vicente Monteiro (3) refere que “Tratando-se de escritura pública, é exigida uma ampla divulgação pela forma que ainda hoje podemos considerar a mais eficaz – o jornal mais lido da terra – mas, no caso da justificação no registo predial, essa publicitação já não tem a divulgação tradicional e de há muito arreigada nos hábitos da população, o que – repito – me parece muito limitativo e potencialmente gerador de maior conflitualidade.
É que, mesmo considerando que em geral não está em causa qualquer litígio, a invocação da usucapião pode afetar interesses de terceiros ainda que não inscritos no registo e que, por não serem diretamente notificados, não terão qualquer possibilidade de se opor dentro do processo. Na verdade, a partir da entrada em vigor destas alterações, só há notificação edital - agora também em sítio na internet – no caso de se verificar o falecimento ou a ausência em parte incerta do último titular inscrito no registo predial quando o mesmo não tenha intervindo na cadeia das sucessivas transmissões. Mas, neste caso, apesar de ser uma notificação edital, ela não deixa de ter destinatários certos, pelo que, mesmo que os factos sejam conhecidos de qualquer outro interessado, não me parece que ele possa intervir nesta fase do processo. Terá de aguardar pela publicação da decisão final, mas pode não dispor dos necessários meios de acesso, e não lhe resta outra alternativa que não seja interpor a competente ação judicial de impugnação.
Como se decidiu no AcRL de 15/11/2011, processo nº 884/07.1TBLNH.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, “Se os interessados não puderem, não tiverem condições (especialmente por não terem intervindo no processo respetivo) de, pela via do recurso da decisão do conservador atacar a criação do título e obstar ao registo do facto justificado, disporão sempre da possibilidade de, nos termos gerais, impugnar a existência do próprio direito registado.
E no mesmo aresto, em síntese conclusiva, refere-se que “No recurso da decisão do conservador ataca-se a criação do título, em si mesma; através da ação judicial vai impugnar-se o próprio direito que lhe subjaz e que aquela decisão não constituiu.
Todavia, resulta claramente da petição inicial que os autores pretenderam atacar a criação do título e obstar ao registo do facto justificado, e não impugnar a existência do direito registado.
Com efeito, os autores/recorrentes peticionaram que se impugne o facto justificado no processo de justificação de direitos (alínea a)); que se declare ineficaz e de nenhum efeito o processo de justificação de direitos (alínea b)); que se declare a nulidade do processo de justificação de direitos (alínea c)). Aliás, se dúvidas ainda restassem, ter-se-iam dissipado com a 1ª conclusão das alegações de recurso: “Os autores/recorrentes intentaram a presente ação para impugnar o processo de justificação de direitos que correu termos na 2ª Conservatória do Registo Predial de ....”
Ora, tendo sido intenção dos autores/recorrentes impugnar o processo de justificação de direitos, o meio processual adequado era o previsto no artº 117º-I, nº 3, do Código do Registo Predial. Não o tendo feito, colocar-se-ia a questão da eventual aplicação do disposto no artº 193º, nº3, do CPC.
Referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (4) que “O nº 3 trata, já não do erro na forma de processo (global), mas do erro no meio processual utilizado pela parte no âmbito de um processo.
Autor e réu têm ao seu alcance, ao longo do processo, meios de atuação que a lei processual lhes disponibiliza para veicularem e fazerem vingar as suas pretensões ou oposições, quer no plano do mérito, quer no das questões processuais (articulados, requerimentos, respostas, reclamações, recursos, embargos). O nº3 cuida do erro da parte no ato de utilização de um desses meios, determinando o aproveitamento daquele que a parte haja inadequadamente qualificado, mas cujo conteúdo – subentende-se – se adeque ao meio que devia ter sido utilizado; o juiz, oficiosamente, observado o princípio do contraditório, corrige o erro e manda proceder à tramitação própria deste último. Embora só refira o erro da parte, o preceito abrange também o erro do terceiro interveniente. (…) Mas a referência do nº3 em anotação à qualificação do meio não obsta à correção do erro na determinação do destinatário da impugnação (…) Não há também lugar ao aproveitamento do errado meio processual quando já não seja admissível, por intempestivo, o meio processual que se adequaria ao caso.
Decorre dos presentes autos que o processo de justificação deu entrada na Conservatória do Registo Predial de ... em 5 de fevereiro de 2020.
Inexiste menção expressa nos autos sobre a data em que o senhor conservador proferiu decisão.
Na contestação os réus excecionaram a intempestividade da impugnação, exceção a que os autores não responderam.
Tal intempestividade resulta implicitamente reconhecida no pedido formulado pelos ora recorrentes na alínea e) da sua petição inicial, onde pediram que seja cancelado o registo de aquisição a favor dos réus.
Carece de sentido, nos sobreditos termos, a menção dos recorrentes à alegada incompetência territorial do tribunal, tendo a questão apenas o enquadramento jurídico supra exposto.
Discorda-se apenas do tribunal recorrido quanto à consequência que extraiu (absolvição dos pedidos formulados sob as alíneas a) a c) e e) da petição inicial). Com efeito, e nos sobreditos termos, atenta a intempestividade da ação e a impossibilidade de aproveitamento do processado, a consequência processual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 198º, nº3, 576º nº1 e 2, e 577º, alínea b), do CPC, deveria ter sido a absolvição da instância, o que ora se declara.
Também quanto ao mais, tem o presente recurso de ser considerado improcedente. Desde logo, colocava-se a questão da admissibilidade processual da cumulação de pedidos (artº 555º, nº1, do CPC), sendo certo que a mesma pressupõe a identidade do foro competente para deles conhecer (artº 37º, nº1, do CPC), de modo que a cumulação apenas é admitida se o tribunal tiver competência internacional, material e hierárquica para todos os pedidos, ainda que a não tenha em razão do valor ou do território.
Como supra se viu, o recurso previsto no artº 117º-I do CRP, por força do seu nº4, haveria de ter sido proposto na Conservatória do Registo Predial, ainda que depois pudesse ser remetido por aquela ao tribunal. Não obstante tratar-se de uma cumulação ilegal ab initio, entendemos que se tratava de uma exceção dilatória sanável, cujo suprimento se deu com a absolvição da instância quanto aos pedidos supra referidos, razão pela qual entendemos inexistir obstáculo ao conhecimento dos pedidos sobejantes formulados.
Assente o exposto, importa começar que sufragamos, no essencial as considerações da sentença recorrida.
Os autores não pretendem exercer um direito de preferência, pretendem antes que se declare que gozam do direito de preferência sobre o prédio objeto da justificação registal. Também o pedido formulado sob a alínea d) da petição inicial tem de ser como tal interpretado, daí que não se façam considerações sobre uma hipotética ineptidão do mesmo, face à ali alegada venda, desacompanhada de factos que a caracterizem.
A interposição de uma ação de simples apreciação pressupõe, a montante, a demonstração do interesse na propositura da mesma, ou seja, a necessidade em obter a declaração judicial da (in)existência de um direito.
Como se refere no AcRE de 2/10/2018, processo 814/16.0T8EVR.E1, “Tendo as ações de simples apreciação por objetivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de ações quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria e objetiva, de que lhe possa resultar um dano. (…) Enquanto a venda não se consumar, não há qualquer frustração do eventual direito de preferência dos autores na aludida venda. Tal “incerteza” não gera na esfera jurídica dos autores um dano que legitime o recurso à ação de simples apreciação para declaração do direito de preferência. Dano esse que só se concretizará com a realização da venda, sem que seja facultada antecipadamente a preferência aos autores na respetiva aquisição. Nesse momento haverá, então, a efetivação de um dano na esfera jurídica dos autores, mas para o qual a lei prevê um remédio, que é a instauração da competente ação de preferência.”
Como ensina Henrique Mesquita (5), “de tudo resulta também que se, ou enquanto, o obrigado não efetuar a notificação para preferir e enquanto o negócio de venda ou dação projetado, haja ou não contrato-promessa, se não efetivar, o preferente legal não pode invocar ou exercitar qualquer direito. Até que ocorra um desses factos ou situações, através dos quais adquire o respetivo direito subjetivo, o preferente legal mantém-se tão só como detentor da expectativa que a norma legal que lhe reconhece o direito lhe atribui - a de virem a verificar-se essas condições, que fazem surgir o direito a favor do preferente (no caso de alienação, o direito potestativo de substituição através da ação de preferência)”.
Ora, como bem refere a sentença recorrida, “Tudo isto para dizer o seguinte: a circunstância de as declarações prestadas pelos RR. justificantes na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ... sobre, entre o mais, a forma como adquiriram o prédio que é objeto do procedimento em causa, não corresponderem à realidade – como alegam se alega na petição inicial –, não afeta qualquer direito de que os AA. sejam eventualmente titulares (e não o são, como já vimos, pelo menos no momento atual) ou sequer o seu futuro e eventual exercício, mormente o do direito de preferência que nasce nos casos previstos no artigo 1380.º, n.º 1, do Código Civil. Com efeito, se vierem a ser titulares desse direito poderão sempre exercê-lo em juízo se a alienação não lhes for comunicada nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, ex vi do artigo 1380.º, n.º 4, ambos do Código Civil; e poderão (ou mais corretamente, deverão) também, nessa ação, fazer prova dos requisitos de que depende o exercício de tal direito, designadamente que o prédio vendido, dado em cumprimento ou aforado tem área inferior à unidade de cultura e que o preferente é dono de prédio confinante com o alienado.
O Prof. Manuel de Andrade (6) referia que o interesse em agir consiste em estar o direito do demandante carecido de tutela judicial. É o interesse de utilizar a arma judiciária, em recorrer ao processo.
Assim sendo, e em termos sucintos, o interesse processual existirá apenas e só quando existir uma posição subjetiva, carecida de uma tutela judicial (AcRC, de 30/06/2009, CJ, 2009, 3º-30).
Ele apresenta-se como um interesse instrumental em relação ao interesse substancial primário, pressupondo “a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação” – Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, 1982, pág. 253. – apud AcRG de 28/02/2019, processo nº 3504/16.0T8BRG.G1, in www.dgsi.pt.
Apenas se discorda, também aqui, da conclusão extraída pelo tribunal recorrido, pois esta falta de interesse em agir, como exceção dilatória inominada, tem como consequência a absolvição da instância, e não do pedido - 576º nº1 e 2, e 577º, alínea b), do CPC, o que ora se declara.
Por tudo o supra exposto se conclui que, a despeito de se concluir pela absolvição da instância, ao invés do pedido, inexiste fundamento para a procedência do recurso, designadamente para o prosseguimento dos autos ou remessa ao tribunal competente, conforme pedido pelos recorrentes.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, mas alterando-se a decisão recorrida nos seguintes termos: “Em consequência do decidido, vão os RR. J. B. e P. R. absolvidos da instância.”, mantendo-se o demais decidido.
Custas do recurso pelos recorrentes – artº 527º, nº1 e 2 do CPC.
Notifique.
Guimarães, 21 de abril de 2022.

Relator - Fernando Barroso Cabanelas;
1.ª Adjunta – Maria Eugénia Pedro;
2.º Adjunto – Pedro Maurício.


1. Justificação Relativa ao Trato Sucessivo, Almedina, 2019, pág. 110-116.
2. Código do Registo Predial, Anotado e Comentado, Almedina, 2018, pág. 294.
3. “Desjudicialização da Justificação de Direitos sobre Imóveis” disponível no site do CENoR, in www.fd.uc.pt/cenor.
4. Código de Processo Civil - Anotado, Almedina, vol. I, 4ª edição, pág. 397-398.
5. Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 211, nota 132, RLJ, 126.º-62 e 132.º-191 e ss, apud AcRG de 12/03/2015, processo nº 198/11.2TBVRM.G1.
6. Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79.