Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
269/13.0TBCMN-C.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: TITULAR DE EMPRESA
OBRIGAÇÃO DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
SÓCIO DA INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I. O dever de apresentação à insolvência a que alude o nº1, do artigo 18º, do CIRE, impende sobre toda a pessoa singular que seja titular duma empresa quando esta seja necessariamente abrangida pela insolvência, atento o princípio normativo contido no artigo 601º do Código Civil, ou possa ser afectada no seu património específico por via da declaração da insolvência do seu titular;
II. Esse dever também impende sobre a pessoa singular que seja titular duma empresa, ainda que dotada de autonomia patrimonial e passível de objecto de declaração de insolvência nos termos do artº 2º do CIRE, sempre que pelas suas dívidas empresa possa responder o património autónomo, ainda que a título subsidiário, como por exemplo sucede com estabelecimento comercial de responsabilidade limitada aprovado pelo Dec-Lei 248/86;
III. É claro que esse dever não impende sobre o sócio duma sociedade por quotas, como é o caso, porquanto não pode ser considerado titular da empresa (a titularidade da empresa é da própria sociedade, pessoa jurídica diversa dos seus sócios), e uma vez que o património da sociedade não responde por dívidas alheias à sua actividade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório.
1.No âmbito do processo de insolvência 269/13.0TBCMN foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores e determinado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores venham a auferir se considere cedido ao fiduciário, integrando o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título aos devedores, com exclusão dos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e nomeadamente do que seja razoavelmente necessário para o sustento dos devedores, que se fixa em um salário mínimo nacional e meio para os dois insolventes;
O Administrador Judicial tinha dado parecer favorável, tendo referido a propósito inexistirem factos que permitam estabelecer uma relação de causa-efeito de insolvência culposa; por sua vez, na Assembleia de Apreciação do Relatório, votaram contra o deferimento da exoneração a Caixa…, C.R.L, Banco…, S.A., e Banco…, S.A.

2. Interpôs recurso dessa decisão a Caixa…, C.R.L, formulando as seguintes conclusões:

1ª O deferimento do pedido de exoneração do passivo restante pressupõe a verificação dos requisitos e procedimentos enumerados nos artigos 236º a 238º do CIRE e a sua concessão efetiva, nos termos da alínea a) do artº 237° do mesmo diploma, a inexistência de motivo para o indeferimento liminar do pedido, ou seja, a verificação de alguma das situações previstas no nº 1 do artigo 238º do CIRE;
2ª De acordo com o nº1 alínea d), 1ª parte do artigo 238° do ClRE "o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência" sendo certo que o artigo 18° n" 1 do CIRE prescreve que "o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes á data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n° 1 do artigo 3°, ou à data em que devesse conhecê-la", e o seu n" 2 que "exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram na situação de insolvência".
3ª Na data em que incorreram na situação de insolvência, os ora insolventes eram titulares de uma empresa, mormente o insolvente marido, na qualidade de sócio gerente da firma "C…, Lda", firma esta também declarada insolvente por sentença datada de 21 de Março de 2012 e já transitada em julgado no processo de insolvência (Apresentação) nº 148/12.9TBCMN do T.J. de Caminha, e não por sentença de 22 de Março de 2013 conforme por lapso se refere no douto despacho recorrido.
4ª A ora recorrente, por requerimento apresentado a juízo em 03 de Março de 2014, com a refª 16109204, refª Citius 356954 opôs-se ao parecer favorável á exoneração emitido pela A.I. e insurgiu-se contra a sua concessão aos ora insolventes.
5ª A insolvência da firma "C…, Lda" da qual os ora insolventes e mormente o insolvente marido eram sócios gerentes foi qualificada como culposa, sendo afetado por tal qualificação o seu único responsável e gerente A….
6ª Estando obrigados como efetivamente estavam ao dever de apresentação à insolvência, fizeram-no extemporaneamente, com prejuízo para os credores, traduzido na contração de novos compromissos junto dos requerentes da insolvência e de seus filhos.
7ª. Das reclamações de créditos apresentadas resulta a responsabilidade solidária dos insolventes pelo pagamento de vários empréstimos e entidades bancárias e de outras dívidas pessoais a particulares, em incumprimento desde 2010/2011.
8ª. Existindo a esta data já várias execuções pendentes contra a referida firma e os insolventes e, em particular a execução 313/09.6TBMNC (secção única do T.J. de Monção), a qual se encontra ainda a tramitar com vista á venda de bens pessoais dos insolventes doados pelos mesmos a seus filhos em 28.12.2010 .
9ª Em 19.03.2012, data da entrada em juízo do pedido de declaração de insolvência da firma "C…, Lda", os ora insolventes constituíram hipoteca voluntária sobre um dos prédios doados a favor de seu filho donatário para garantia do pagamento do valor de 80.000,00€ .
10ª Em 30.11.2011 constituíram nova divida de 95.000,00€ junto dos requerentes da insolvência, constituindo hipoteca a favor dos mesmos sobre imóvel pessoal que se encontrava já penhorado à ora recorrente na execução 313/09.6TBMNC .
11ª Portanto, desde 2010/2011 que os ora insolventes vieram a aumentar o seu passivo e dissipar património através da contração de empréstimos junto de particulares .
12ª O despacho recorrido ao considerar inaplicável aos ora insolventes o dever de apresentação à insolvência, conforme decorre do artigo 18° n" 2 do CIRE, laborou claramente em erro, violando o disposto no n° 1 desse preceito legal e o disposto n° n° 1, alínea d), 18 parte do artigo 238° do CIRE.

II. Fundamentação:
Factos Provados:
1. O requerido marido nasceu em 20.04.1945 e a requerida mulher nasceu em 15.03.1948.
2. Os requeridos são casados entre si, no regime de comunhão geral de bens.
3. Os requeridos estão reformados, auferindo o marido uma pensão de velhice no valor de €558,35 mensais e a mulher uma pensão de velhice no montante de €287,00 mensais, computando-se o rendimento anual de ambos no valor ilíquido de €5.558,62.
4. Os requeridos exerceram funções de sócios gerentes das sociedades "C…,, Lda." e "Construções do…, Lda", sendo certo que, a sociedade "Construções do…,, Lda." foi declarada insolvente por sentença datada de 22 de Março de 2013, já transitada em julgado, no processo n.º 148/12.9TBCMN, que corre termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Caminha.
5. Contraíram créditos, na sua maioria para financiar as empresas, nas quais, os Requeridos exerciam funções de sócios gerentes.
6. Os requeridos têm como propriedades a fracção AG, do U- 03011, da freguesia de Caminha, sobre a qual recai uma hipoteca voluntária a favor dos requerentes da insolvência, e uma penhora a favor da Caixa… e, ainda, umas pequenas leiras de terreno na freguesia de Riba de Mouro, em Monção, artigo rústico 714, valor patrimonial 106,94C, artigo rústico 718, valor patrimonial 584,29, artigo 4097, valor patrimoniaI6,98C.
7. Em 30 de Novembro de 2011, os requeridos assinaram um escrito de confissão de dívida, solidariamente, na quantia de noventa e cinco mil euros, a favor dos requerentes, que à data era certa, líquida e exigível.
8. Em garantia do cumprimento do referido em 7., constituíram hipoteca registada a favor dos requerentes, sobre o prédio rústico denominado "Freixo", sito no lugar de Unhares, freguesia de Riba de Mouro, concelho de Monção, composto de terreno e cultura e vinha, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monção sob o número 2119, daquela freguesia, inscrito na matriz sob o artigo 718, com o valor patrimonial tributário de novecentos e onze euros e quarenta e nove cêntimos.
9. Tal garantia incide também sobre a fração autónoma designada pelas letras "AG", no bloco sul, correspondente ao segundo andar esquerdo frente, destinado a habitação, tipo T-dois e na cave, dependência de arrumos, no quadrante Sul-Poente, com porta orientada a Nascente e um lugar de estacionamento, inscrito na matriz sob o artigo 3011-AG, com o valor patrimonial tributário de quatro mil oitocentos e noventa euros.
10. O valor total do passivo a liquidar é de C1.089.279,89.
11. Do certificado de registo criminal dos requeridos, nada consta.

III. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Olhando para as conclusões contidas nas alegações de recurso, é bom de ver que a questão colocada prende-se em saber se, tal como entende a apelante, deveria ter sido liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante nos termos do 238º, nº1, d), do CIRE (código de insolvência e da recuperação de empresas aprovado pelo DL nº. 53/2004, de 18 de Março, a que também pertencem as normas que a seguir se indiquem sem expressa referência a outro diploma legal)[1].
Na perspectiva da apelante impendia sobre os insolventes o dever de requereram a declaração de insolvência, por não ocorrer a situação de excepção prevista no nº2 do referido artigo 18º, dada a qualidade de sócio gerentes do insolvente marido da firma “Construções do…, Lda” (também ela declarada insolvente por sentença de 21 de Março de 2012 no processo 148/12.9TBCMN do T.J. Caminha) à data em que incorreu na situação de insolvência.

Vejamos:
Nos termos do nº1 do artigo 18º, na redacção dada pelo DL 16/2012, de 20.04, “o devedor deve requerer a insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la”.
Contudo, segundo o nº2, do mesmo artigo[2], estão desoneradas desse dever as pessoas singulares que à data em que incorram na situação de insolvência não forem titulares duma empresa, entendida esta como “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica” (cfr. artigo 5º).
Parece-nos incontroverso que o dever de apresentação à insolvência a que alude o nº1, do artigo 18º, impende sobre a pessoa singular que seja titular duma empresa - o mesmo é dizer, quando a empresa integre o seu património geral – que seja necessariamente abrangida pela insolvência, ou possa ser afectada no seu património específico por via da declaração da insolvência, não se podendo olvidar que segundo o artigo 601º, do Código Civil, “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”.
Assim essa afectação ocorre necessariamente desde logo nos casos em que não há qualquer distinção entre o património privado e o património da empresa (cfr. Menezes Leitão in direito da insolvência, 5ª edição, 2013, pág.78), pois todo ele responde sem restrições pelas dívidas do empresário, como por exemplo sucede com os comerciantes e outros empresários em nome individual referidos nos artigos 38º e 39º do RNPC aprovado pelo Dec-Lei 128/98, de 13.05.
Se com esse dever de apresentação à insolvência, em prazo curto, se visa proteger terceiros e o comércio em geral da eventual dissipação de bens e doutras vicissitudes que possam agravar a situação patrimonial do devedor, tudo leva a pensar que o normativo não é aplicável aos casos em que a empresa, não obstante integrar o património geral da pessoa singular, for dotada de autonomia patrimonial e passível de declaração de insolvência. Pois desse modo estaria assegurado o interesse público.
A propósito, valerá a pena evocar os ensinamentos do Prof. Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição atualizada, pág. 346) para quem o critério do reconhecimento da autonomia ou separação de patrimónios é precisamente o da responsabilidade por dívidas: “torna-se necessário para se falar de autonomia patrimonial ou separação de patrimónios que um certo património responda apenas por certas dívidas do seu titular, não respondendo pelas outras, e que por aquelas dívidas só o património autónomo responda, não podendo elas afectar o património geral do seu titular” – e, acrescentamos nós, nem podendo as dívidas do seu titular afectar o património autónomo.
Por essa razão, o decisivo critério para se poder aferir quem é passível de declaração de insolvência nos termos do artigo 2º do CIRE não é a dominialidade da empresa mas a sua autonomia patrimonial e regime próprio de responsabilidade por dívidas (neste sentido Catarina Serra, in “O Novo Regime Português de Insolvência- Uma introdução”, 5ª ed., pág. 34).
Mas tudo depende duma avaliação casuística, parecendo-nos precipitado dizer-se e concluir-se que sobre a pessoa singular não impende o dever de requerer a sua insolvência nos termos conjugados dos nºs 1 e 2 do artigo 18º, se do seu património geral fizer parte integrante qualquer empresa com património autónomo e passível de declaração de insolvência nos termos do artigo 2º do CIRE.
Que assim não é, bastará buscarmos o exemplo do estabelecimento comercial de responsabilidade limitada aprovado pelo Dec-Lei 248/86, de 25.08 de Agosto. Embora passível de declaração de insolvência (artigo 2º, nº1, g), do CIRE), e com património autónomo[3], respondendo os bens a ele afectos apenas pelas dívidas resultantes de actividades comerciais (artigos 10º, nº1, e 11º, nº1, do DL 248/86), o estabelecimento pode ser penhorado nas execuções movidas contra o seu titular, em caso de insuficiência dos restantes bens deste, ainda que para pagamento de dívidas alheias à respectiva exploração (artigo 22º, do DL 248/86).
Ora se a situação de insolvência é precisamente a insuficiência de bens do devedor para cumprir as suas obrigações, sendo por essa razão previsível que, subsidiariamente, por elas venham a responder o estabelecimento comercial de que é titular, na defesa dos interesses dos credores comerciais impõe-se que se apresente à insolvência no prazo de 30 dias previsto no artigo 18º, nº1. E a pessoa singular titular do EIRL que não observe esse normativo, poderá consequentemente ver indeferido o pedido de exoneração do passivo restante nos termos do artigo 238º, nº1, alínea d), primeira parte do CIRE.
A situação dos autos parece-nos de fácil resolução, pois na linha da jurisprudência pacífica dos nossos tribunais superiores[4], os sócios das sociedades por quotas não podem ser considerados como titulares da empresa (a titularidade da empresa é da própria sociedade, pessoa jurídica diversa dos seus sócios), e o património da sociedade responde apenas pelas suas próprias dívidas.

Sumariando:
1. O dever de apresentação à insolvência a que alude o nº1, do artigo 18º, do CIRE, impende sobre toda a pessoa singular que seja titular duma empresa quando esta seja necessariamente abrangida pela insolvência, atento o princípio normativo contido no artigo 601º do Código Civil, ou possa ser afectada no seu património específico por via da declaração da insolvência do seu titular;
2. Esse dever também impende sobre a pessoa singular que seja titular duma empresa, ainda que dotada de autonomia patrimonial e passível de objecto de declaração de insolvência nos termos do artº 2º do CIRE, sempre que pelas suas dívidas empresa possa responder o património autónomo, ainda que a título subsidiário, como por exemplo sucede com estabelecimento comercial de responsabilidade limitada aprovado pelo Dec-Lei 248/86;
3. É claro que esse dever não impende sobre o sócio duma sociedade por quotas, como é o caso, porquanto não pode ser considerado titular da empresa (a titularidade da empresa é da própria sociedade, pessoa jurídica diversa dos seus sócios), e uma vez que o património da sociedade não responde por dívidas alheias à sua actividade.

IV. Pelos enunciados fundamentos, os Juízes desta Relação acordam em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
*
TRG, 25.09.2014
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade
Carlos Guerra
________________
[1] Na redacção dada pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, estabelece o nº1 desse preceito legal do CIRE que “O devedor deve requerer a declaração de insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la”.
[2] “Exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram na situação de insolvência”
[3] Como refere Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, 2013, pág. 80, depois de defender que se deve considerar tacitamente revogado com a publicação do CIRE o artigo 11º, nº2, do 248/86, “nestes casos, em vez de o devedor ser objecto de um processo de insolvência geral, que abrange universalmente o seu património, a insolvência é restrita a uma parte do seu património, sujeita a um regime especial de responsabilidade por dívidas, o que legitima a que se fale em insolvência especial ou particular”.
[4] Entre outros, cfr. acórdão do STJ de 19.06.2012(processo 1239/11.9TBBRG-E), acórdãos da Relação do Porto de 08.02.2011 (processo 754/10.6TBOAZ-E) e de 06.10.2009 (processo 286/09.5TBPRD-C) e da Relação de Guimarães de 19.06.2012 (processo 1239/11.9TBBRG-E).