Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
232/24.6T8PVA-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL SUBSIDIÁRIO
DESPACHO LIMINAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Não existe previsto na lei um despacho liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da reconvenção, e, havendo divergência na jurisprudência e doutrina sobre a necessidade dessa apreciação liminar, não é necessário proferir despacho liminar a admitir a reconvenção.
2. A dedução da reconvenção não é livre, estando submetida a requisitos materiais e formais que visam compatibilizar o princípio da economia processual com o da celeridade.
3. Para que o pedido reconvencional seja legalmente admissível tem de ser autónomo, não bastando a verificação de um dos elementos de conexão exigidos por lei. É ainda necessário que a pretensão por essa via deduzida extravase da simples oposição ao pedido formulado por via de acção, e tenha um fim próprio e autónomo.
4. Verificando-se uma das situações previstas no art. 266º,2 CPC, nada impede que o pedido reconvencional seja deduzido a título subsidiário, para a eventualidade de vir a proceder a pretensão deduzida pelo autor.
5. Tendo o recurso contra o despacho que não admitiu a reconvenção subido com efeito meramente devolutivo, e logo tendo o processo continuado a ser tramitado, importa, após a revogação do despacho recorrido, tomar as medidas necessárias para não destruir todo o processado após esse momento, por razões de economia processual, mas apenas aqueles actos que não possam de todo manter-se, por interferirem com os direitos processuais do reconvinte.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA, NIF ...36, residente na Rua ..., ... ..., casada com BB, segundo o regime da comunhão de adquiridos, veio intentar contra:

1. CC, NIF ...46 e mulher, DD, NIF ...54, residentes em ..., Cidade ..., ..., ...84-7012 ..., e
2. EE, NIF ...14, residente na Rua ..., ..., ... ..., ..., casada com FF, mas dele separada de pessoas e bens, acção declarativa para o exercício do direito de preferência.

Alega, numa breve síntese, ser proprietária do prédio rústico denominado «...», terreno de cultivo arvense de regadio, olival, nogueiral e pastagem, situado no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o ...19 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...13.
E por escritura outorgada no dia 2.2.2024, os primeiros réus declararam doar à segunda ré a propriedade plena de um prédio rústico confinante com o da autora.
À autora tinham dado a conhecer o preço de €30.000,00 para efeitos do exercício do direito de preferência, sendo que esta informou os primeiros réus que pretendia exercer o direito de preferência.
Ficou a aguardar a data para a escritura, quando soube que a segunda ré já ocupava o prédio e iniciava nele um aterro.
Os réus, conluiados para obstarem ao exercício do direito de preferência, gizaram a falsa doação, e ainda procederam a um aterro de parte desse prédio, com terra não vegetal, na tentativa da demandante se desinteressar.
Por isso pedem que seja declarada a nulidade da doação simulada e declarada a validade da aludida compra e venda, reconhecendo-se à Autora o invocado direito de preferência na compra do prédio.

Os réus vieram apresentar contestação, na qual alegam, em síntese, que a doação correspondeu à vontade real das partes. E afirmam ainda que no prédio doado, e que estava inculto há mais de duas décadas, nele medrando matos, tojos, giestas e pinheiros de regeneração natural, é intenção da 2.ª ré ali prosseguir a sua actividade ligada à exploração florestal, designadamente para depósito de madeiras não tratadas, contemplando a construção posterior de um armazém de apoio, a fim de potencializar o aproveitamento daquele espaço. Logo após a outorga da doação iniciaram trabalhos de terraplanagem do referido terreno, mobilizando camiões e máquina retroescavadora para o local, de forma a corporizar o seu desígnio para o terreno.
Deduzem reconvenção (subsidiária), para a hipótese de a acção vir a ser julgada procedente, caso em que pretendem ser indemnizados das benfeitorias que fizeram no terreno.

Em sede de audiência prévia foi proferido o seguinte despacho:
A ré EE deduziu pedido reconvencional subsidiário contra a autora.
Invocou que, caso a ação seja procedente, tem direito a ser indemnizada pelos trabalhos e benfeitoras que realizou no prédio com vista à sua afetação ao exercício da sua atividade de exploração florestal.
Ora, em sede de contestação invocam os réus matéria de exceção que consiste precisamente na afetação do prédio a um fim distinto da cultura.
Estando os trabalhos alegados em sede reconvenção relacionados com a atividade de exploração florestal, a apreciação da reconvenção dependeria da improcedência da matéria de exceção.
Assim, mesmo a nível subsidiário, a reconvenção é contraditória com a matéria vertida na contestação.
Para ser reconhecido o direito de preferência da autora é essencial que não se demonstre a destinação do prédio à exploração da atividade florestal. Não se fazendo tal prova, consequentemente, não pode a ré ser indemnizada por trabalhos tendentes à referida atividade.
Deste modo, não se admite a reconvenção apresentada”.

Inconformada com esta decisão, a Ré GG dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo (cfr. arts. 627º,1, 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 639º, 644º,1,b), 645º,2, e 647º,1 CPC.
    
Apresenta as seguintes conclusões:
a) O presente recurso tem como objeto o despacho proferido em 11.06.2025, que não admitiu o pedido reconvencional subsidiário deduzido pela ora recorrente, decisão que, nos termos do artigo 644.º, n.º 1, alínea b), do CPC, é autonomamente recorrível por pôr termo ao pedido reconvencional.
b) Apesar da redobrada convicção de que a acção instaurada pela autora está votada ao insucesso, a 2.ª ré, ora recorrente, num espírito de máxima cautela, deduziu reconvenção, que frisou ser a título subsidiário, peticionando, na hipótese - que ressalvou como absolutamente remota -, de vir a ser declarada a nulidade da doação, por hipotética simulação, e declarada a validade da invocada compra e venda, reconhecendo-se à autora-reconvinda o peticionado direito de preferência, que se atendessem às benfeitorias por si efectuadas no prédio em causa, com o concomitante direito a ser indemnizada pela autora/reconvinda em função do aumento da valorização global do prédio, incluindo as despesas efectuadas, em montante não inferior a 100.000,00 €, ao qual devem acrescer juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
c) O pedido reconvencional, feito a título subsidiário, fundado em despesas e benfeitorias realizadas no prédio doado, visa a compensação por enriquecimento sem causa nos termos do artigo 1273.º do Código Civil e da jurisprudência consolidada (cf. Acórdão do STJ de 23.10.1997 e TRG de 24.11.2016).
d) A reconvenção respeita os requisitos do artigo 266.º, n.º 2 do CPC, já que o seu objeto está conexo com o objeto da ação principal e depende da eventual procedência da mesma.
e) A reconvenção apresentada, que está deduzida a título eventual -reconvenção subsidiária- é, por isso, admissível nos termos legais.
f) Entende-se, salvo melhor opinião, que tal reconvenção não encerra qualquer contradição com a matéria da contestação.
g) A decisão recorrida assenta na alegada contradição entre a reconvenção e a matéria da contestação, em particular com a exceção de que o prédio tem destinação não agrícola/florestal, contudo, essa contradição não existe: a reconvenção é subsidiária, apenas se tornando relevante, na hipótese que se configura como absolutamente remota, de a versão da autora vingar — isto é, se for reconhecido o direito de preferência.
h) A invocação de uma exceção de destinação não agrícola não impede a formulação subsidiária de um pedido que pressupõe a eventual improcedência dessa exceção, o que é absolutamente legítimo no plano técnico-processual.
i) A possibilidade de formular pedidos subsidiários, inclusive reconvencionais, está expressamente prevista no art. 266.º, n.º 2 do CPC, e é frequentemente admitida pela jurisprudência, precisamente para garantir o contraditório em todas as dimensões do litígio.
j) Neste conspecto, entende-se que decisão recorrida restringe injustificadamente o direito da recorrente a ver apreciada uma questão (hipotética) de relevância patrimonial séria e documentada (trabalhos no valor de cerca de €18.962,06 e valorização estimada do prédio em €100.000), violando o princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado, desde logo, no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
k) Ao impedir a apreciação do pedido reconvencional em sede própria, a decisão recorrida pode gerar injustiça material, caso venha a ser reconhecido o direito de preferência sem que a recorrente seja indemnizada pelas benfeitorias (incorporações, mais-valias) realizadas de boa-fé.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem, revogando-se o despacho recorrido, por ilegal, injusto e violador dos princípios fundamentais do processo civil e da boa administração da justiça, admitindo-se a reconvenção, deduzida a título eventual – reconvenção subsidiária – apresentada pela ré-reconvinte.

A autora apresentou as suas contra-alegações, nas quais defende a manutenção integral da decisão recorrida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão que temos para decidir é saber se o pedido reconvencional é ou não admissível.

III
Apreciando o despacho recorrido, de imediato duas coisas sobressaem: primeiro, não é citada uma única disposição legal para fundamentar o sentido do decidido; segundo, o despacho parece pronunciar-se sobre a substância do pedido reconvencional (veja-se a afirmação: “para ser reconhecido o direito de preferência da autora é essencial que não se demonstre a destinação do prédio à exploração da atividade florestal. Não se fazendo tal prova, consequentemente, não pode a ré ser indemnizada por trabalhos tendentes à referida atividade), mas não obstante, termina não com uma decisão de mérito, mas sim com uma decisão processual de forma, não admitindo a reconvenção.
Apesar desta contradição entre os fundamentos e a decisão, o que tornaria o despacho recorrido nulo (art. 615º,1,c e 613º,3 CPC), por razões de economia processual o que esta Relação deve fazer agora é decidir se a reconvenção é ou não admissível e deve seguir os seus termos.
Podemos desde já dizer que não se verifica qualquer impedimento à reconvenção derivado da forma de processo (art. 266º,3 CPC), pois todos os pedidos formulados a nível de acção e de reconvenção seguem a forma de processo comum, e o processo comum de declaração segue forma única (arts. 546º,1 e 548º CPC).
E não existe previsto na lei um despacho liminar de admissibilidade ou inadmissibilidade da reconvenção. Existe divergência na jurisprudência e doutrina sobre a necessidade dessa apreciação liminar, questão que não cabe tratar aqui, sendo que entendemos não ser devida a prolação de despacho liminar a admitir a reconvenção.
Porém, a dedução da reconvenção não é livre, “estando submetida a requisitos materiais e formais que visam compatibilizar o princípio da economia processual com o da celeridade. Os de ordem material figuram no art. 266º,2, pressupondo uma determinada conexão com a relação jurídica invocada pelo autor[1].
Dos requisitos de admissibilidade da reconvenção exigidos pela norma citada, vamos de imediato ao que nos interessa, que é o da alínea b): a reconvenção é admissível “quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida”.
Esta alínea não suscita dificuldades interpretativas, sendo até bastante clara. E como referem os mesmos autores acima citados, “em certos casos, esta iniciativa deve ser expressa por via subsidiária, isto é, unicamente para a eventualidade de vir a proceder a pretensão deduzida pelo autor”. Que é justamente o que se passa nos presentes autos, em que a ré teve o cuidado de referir que o pedido reconvencional é deduzido a título subsidiário, para a hipótese de a acção vir a ser julgada procedente.
Existe ainda uma outra qualidade que é necessária para que o pedido reconvencional seja legalmente admissível: a sua autonomia; não basta a verificação de um dos elementos de conexão exigidos por lei. É ainda necessário, por razões óbvias, que seja possível intelectualmente vislumbrar esse pedido a ser formulado, quer como reconvenção, quer como acção, numa outra acção. Ou seja, o pedido reconvencional não pode limitar-se à paralisação da pretensão do autor. Para isso existe a defesa por impugnação e por excepção. Para estarmos perante uma verdadeira reconvenção é necessário que a pretensão por essa via deduzida extravase da simples oposição ao pedido formulado por via de acção, e tenha um fim próprio e autónomo. E também nos parece pacífico que é o que se passa no caso dos autos, em que a reconvenção não visa paralisar a acção mas antes tem total autonomia, porque visa indemnizar a reconvinte das despesas que teve com o prédio, e apenas no caso de o pedido formulado na acção proceder.
Não há assim qualquer obstáculo processual ou substantivo à admissibilidade do pedido reconvencional.
Para terminar, vamos regressar ao argumento usado no despacho recorrido. Afirma o Tribunal que “mesmo a nível subsidiário, a reconvenção é contraditória com a matéria vertida na contestação”.
Aqui temos de dizer que temos muita dificuldade em compreender esta afirmação do Tribunal recorrido. O facto de o pedido reconvencional ser deduzido a título subsidiário significa que ele só deverá ser apreciado caso a defesa apresentada na contestação fracasse e a acção seja julgada procedente.
Ora, se a defesa (por impugnação ou por excepção) fracassar, caberá ao Tribunal apreciar a causa de pedir do pedido reconvencional. E terá de fazer essa apreciação de per si, e não com ligação às eventuais excepções que tenham sido arguidas na contestação, as quais já terão sido julgadas. É uma das manifestações da autonomia dos pedidos reconvencionais a que nos referimos supra.
Se transportarmos estas noções para o presente processo, o que verificamos é que -num breve resumo- na contestação os réus alegam que o prédio sobre o qual a autora pretende exercer a preferência é um terreno que estava inculto há mais de duas décadas, nele medrando matos, tojos, giestas e pinheiros de regeneração natural, sendo intenção da 2.ª ré ali prosseguir a sua actividade ligada à exploração florestal, designadamente para depósito de madeiras não tratadas, contemplando a construção posterior de um armazém de apoio, a fim de potencializar o aproveitamento daquele espaço. Daí, entendem os réus que estamos perante uma situação excludente do direito de preferência por destinação diferente da cultura, quer do prédio doado quer do próprio prédio confinante (artigo 1380, n.º 1 al. a), parte final), o que invocam.
Depois, nos artigos 21º e seguintes da contestação alegam os variados trabalhos, obras e despesas que tiveram com a terraplanagem do referido terreno, mobilizando camiões e máquina retroescavadora para o local, de forma a corporizar o seu desígnio para o terreno.
Daí que, quando de seguida afirmam que, caso a acção proceda, pretendem ser ressarcidos de todas essas despesas, não vemos onde esteja a contradição.

Pelo exposto, o despacho recorrido não se pode manter.

Uma vez que o recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo, e portanto o processo seguiu os seus trâmites sem a componente do pedido reconvencional, importa agora assegurar que a reconvinte não fica prejudicada com a prolação do despacho que agora se revoga. Mas ao mesmo tempo, por uma questão de economia processual, não faria sentido determinar a anulação de todo o processado posterior ao momento em que o despacho recorrido foi proferido, devendo apenas ser anulados aqueles actos que possam ter prejudicado a reconvinte.

Sumário:


IV- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga o despacho recorrido, declarando a reconvenção admissível.
Mais determina que, para não anular todo o processado posterior ao despacho agora revogado, o Tribunal recorrido tome as medidas necessárias para que os actos processuais ligados à tramitação do pedido reconvencional, nomeadamente a indicação dos meios de prova, são assegurados.

Custas pela recorrida (art. 527º,1 CPC e art. 1º,2 do Regulamento das Custas Processuais).
Data: 27.11.2025

Relator

(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alexandra Rolim Mendes)
2º Adjunto
(António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida)


[1] CPC anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art, 266º.