Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
42/13.6TBMNC.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: INTERESSE EM AGIR
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O interesse processual ou interesse em agir deve traduzir-se numa necessidade justificada, razoável e fundada de recurso à ação judicial.
II - Nas ações de simples apreciação, para que haja interesse em agir, quanto à existência ou inexistência do direito ou do facto, deve a situação de incerteza ser objetiva e grave.

III - Essa objetividade e gravidade devem subsumir-se em circunstâncias exteriores e prejuízo concretos e reais, não consubstanciando tal meras conjeturas, caprichos ou hipóteses académicas.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – Relatório;

Recorrente: M…e Outros (autores);
Recorridos: M… e outro (réus);


*****
Pedido:
Os Autores intentaram a presente acção de simples apreciação negativa com o fim de fazer negar um direito real de servidão sobre o seu prédio (que identificam na p.i.) por parte ou na titularidade dos RR.
Mais concretamente pedem que se declare e reconheça que os Réus não têm qualquer direito de servidão sobre o prédio dos Autores nem qualquer direito de abrir sobre este portas ou janelas.
Os AA. alegaram, como fundamento da acção que os RR. levavam a cabo obras no seu prédio e projectavam, segundo informação que chegou ao conhecimento da A. mulher, abrir uma porta que dá directamente para os rossios do seu prédio, o que pressupunha a criação de uma servidão de passagem constituída em favor do prédio dos RR. onerando o prédio dos AA.

Em sede de despacho saneador, com o argumento de que os AA. não alegaram qualquer estado de incerteza objectiva e grave que mereça tutela jurisdicional, o tribunal recorrido julgou procedente a excepção de dilatória de falta de interesse em agir, absolvendo os RR. da instância.

Inconformados com tal, interpuseram os AA. o presente recurso de apelação, de cujas alegações se extrai, em síntese, as seguintes conclusões:
1) Os AA/Recorrentes alegaram e provaram, como supra se transcreveu, que eram proprietários de um prédio composto de casa e rossios.
2) Por seu lado os RR/recorridos alegaram que os AA/Recorrentes não tinham rossios, e que existia uma porta aberta para um caminho público.
3) Alegaram ainda que nunca existiu servidão de passagem a seu favor por os mesmos RR/recorridos confrontarem com caminho público.
4) Os AA/recorrentes alegaram o seu estado de incerteza com base numa conversa com terceira pessoa que os informou dos projectos dos RR/recorridos.
5) E apesar de não chamarem aos autos a pessoa que os informou, facto é de constatar que a isso não eram obrigados pois os próprios RR/recorridos alegam que confrontam com caminho público.
6) São os próprios RR/recorridos que, tendo o ónus de alegar que confrontam com caminho público, aceitam que os AA/Recorrentes são proprietários do seu prédio e aceitam que não existe nenhuma servidão a seu favor.
7) É interesse dos AA/recorrentes ver apreciado o seu estado de incerteza perante a actuação dos RR/recorridos que, apesar de não terem efectivamente causado prejuízos aos AA, equacionam delimitar o direito de propriedade dos AA.
8) Os AA/recorrentes alegaram e provaram serem proprietários de um prédio composto de casa e rossios.
9) Alegaram igualmente que os RR/ recorridos tencionavam abrir para o prédio deles – AA- uma porta.
10) Quando informados de tal possibilidade os AA/recorrentes ficaram na dúvida em saber se tal seria possível.
11) A concretizar-se a actuação dos RR/recorridos, estes AA/recorrentes teriam uma diminuição do seu direito de propriedade.
12) No caso dos autos, os RR/recorridos negam que os AA/recorrentes tenham um direito de propriedade pleno sobre o prédio em que se encontra a sua moradia e os rossios pois, alegam que somente existe um caminho publico a nascente do prédio dos AA.
13) Ao assim ser, fica demonstrado tanto o estado de incerteza (por o direito de propriedade poder ser limitado por um suposto caminho publico) como o prejuízo grave que afectaria os AA/recorrentes.
14) O Meritíssimo Juiz “a quo” interpretou incorrectamente as disposições conjugadas dos art.º 342º a 344º do CC, e 7º do Cod. Registro Predial.
15) Na realidade, os Autores/recorrentes alegaram ser proprietários de um prédio composto por casa e rossios, sendo que estes – rossios- não constam da caderneta predial mas foram já objecto de decisão judicial anterior.
16) Os Autores/recorrentes beneficiam da presunção do art.º 7 do Cod. Registo Predial de que o seu direito existe e fizeram prova do mesmo.
17) Por seu lado, competia aos Réus/recorridos ilidir a presunção do registo e provar que existia uma servidão de passagem ou um caminho publico no prédio dos Autores.
18) Uma vez que tal direito foi provado pelos Autores, não foi impugnado pelos Réus nem sequer estes alegaram direito próprio, facto é de constatar que a decisão deveria ter sido em sentido diferente.
19) E nomeadamente, conjugando a matéria dada como provada pelo Meritíssimo Juiz “a quo” e o enunciado do acórdão supra, em nossa modesta opinião, deveria a acção prosseguir não se absolvendo os RR/recorridos.
Pedem que se declare que existe interesse em agir da sua parte, revogando-se a decisão proferida.

Houve contra alegações por parte dos RR. pugnando pela confirmação do julgado.


II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão suscitada pelos Recorrentes é a seguinte:
a) Existe ou não interesse em agir por parte dos AA.?

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

1. De facto;

Têm interesse para a decisão da questão recursiva as incidências fáctico-jurídicas que constam do Relatório I) supra:

*****

2. De direito;

a) Interesse em agir por parte dos AA.?

No presente recurso de apelação, a questão suscitada pelos recorrentes prende-se com os pressupostos do interesse em agir dos demandantes, no caso concreto.
Vejamos.

O interesse processual ou interesse em agir, como pressuposto processual, é controvertido na doutrina.

Os autores italianos apelidam-no de interesse em agir, ao passo que a doutrina germânica lhe chama a necessidade de tutela judiciária. O autor tem interesse processual quando a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais [1] Neste sentido, veja-se Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, Manuel de Processo Civil, 2ª Ed., Pág. 180.

Consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção.

Trata-se aqui do interesse em recorrer aos tribunais para tutela do interesse material, não se confundindo com o interesse em demandar ou contradizer referido no artº 30º, nº 1, do CPC, e que é um pressuposto da legitimidade.

O interesse processual traduz-se, pois, no nosso direito constituído, apenas na existência de um interesse sério para recurso a juízo, mas independentemente da espécie de acção que se venha a propor.[2] Neste sentido, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 205.

Ainda assim exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo. [3] Obra cit., pág. 181.

No que respeita às acções de simples apreciação, como a presente, as quais se destinam a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, entende-se que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto para que haja interesse processual na acção.

Essa incerteza deve ser objectiva e grave.

E será objectiva quando se funda em factos exteriores, em circunstâncias externas, “e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor”. [4] Obra cit. pág. 186.

E na aludida obra supra – Manual de Processo Civil – os citados autores afirmam que “As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material de contestação dum direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (…)”.

Já a gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor.

Em suma, o interesse processual tem de alicerçar-se numa situação de incerteza que seja objectiva e grave.

No caso concreto, ante o circunstancialismo fáctico alegado pelos autores – vide artºs 9º, 11º, 12º, 13º e 14º - podemos concluir que a invocada incerteza ou dúvida dos autores (de inexistência de direito de servidão de passagem sobre o seu prédio a favor do prédio dos réus) não é objectiva nem grave, nos termos acima explicitados.

Por um lado, este tipo de acção destina-se a declarar, quando há incerteza, se o direito existe ou não. No caso, seria o direito de servidão de passagem.

Mas não pode haver incerteza ou abstracção quanto à base factual (in casu, diz-se, alguém disse, que os réus projectam abrir uma porta que dá directamente para o prédio dos autores) que serve de suporte ao direito, cuja existência ou inexistência cabe declarar judicialmente.

Ou seja, a objectividade e a gravidade da situação de incerteza dos autores – de inexistência do direito de servidão de passagem - tem de fundar-se em circunstâncias externas concretas e palpáveis, não bastando para tal uma informação anónima de hipótese de abertura de uma porta por banda dos réus que estaria na origem dessa dúvida, quanto a um direito de servidão de passagem a favor dos RR., tanto mais que os autores alegam (artº 9º da p.i.) que do lado poente o prédio daqueles confronta com caminho público.

Os autores não articulam sequer o factualismo inerente à dita informação (independentemente da identificação do informante) que lhes foi fornecida e relativa à projectada (presumida) abertura de porta, a fim de poderem alicerçar uma verdadeira situação objectiva de carência em que se encontrem e que justificasse a pretendida declaração de inexistência do direito de servidão de passagem a favor dos RR.

Coisa distinta já seria se os autores tivessem alegado que a sua incerteza decorria, a título de exemplo, da existência de um projecto de construção onde estava prevista a implantação da propalada porta ou da contratação de operário para realizar essa abertura; enfim, de elementos fácticos que corporizassem, objectivassem essa necessidade de declaração judicial de inexistência do direito dos réus.

Porém, como refere o tribunal recorrido, os demandantes “ fundamentam a sua pretensão em meras conjecturas subjectivas sem arrimo em qualquer elemento de natureza objectiva, sendo que no tipo de acções em apreço o seu objecto não pode, salvo em casos excepcionalmente previstos na lei, traduzir-se numa mera situação de facto, antes deve tender à apreciação de um direito que seja já sugerido ou suscitado, em presença de um prejuízo actual e não meramente potencial”.

Estamos, pois, perante uma dúvida subjectiva e não grave.

Pelas razões expendidas, improcede a apelação.

Sumariando:

I. O interesse processual ou interesse em agir deve traduzir-se numa necessidade justificada, razoável e fundada de recurso à acção judicial.
II. Nas acções de simples apreciação, para que haja interesse em agir, quanto à existência ou inexistência do direito ou do facto, deve a situação de incerteza ser objectiva e grave.
III. Essa objectividade e gravidade devem subsumir-se em circunstâncias exteriores e prejuízo concretos e reais, não consubstanciando tal meras conjecturas, caprichos ou hipóteses académicas.

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.
Guimarães, 19 de junho de 2014
António Sobrinho
Isabel Rocha
Moisés Silva
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[1] Neste sentido, veja-se Antunes Varela, J. Miguel Beleza e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Pág. 180.
[2] Neste sentido, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 205.
[3] Obra cit., pág. 181.
[4] Obra cit. pág. 186.