Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
588/21.2T8VCT.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – No procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez proferido o despacho inicial, os rendimentos que o devedor venha a auferir passam a integrar duas massas patrimoniais distintas, a fidúcia e o rendimento disponível.
II – Essas massas patrimoniais não integram a massa insolvente que com elas pode coexistir, a qual é composta por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, destinando-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas.
III – A apropriação, pelo devedor, de parte do saldo de uma conta bancária apreendido para a massa insolvente, determinando uma diminuição da mesma, implica o agravamento da situação de insolvência e, sendo dolosa, é causa da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos previstos no art. 243/1, b), do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1). No dia 24 de fevereiro de 2021, AA e BB pediram a declaração de insolvência de CC, alegando que este, de quem se arrogaram credores, se encontrava impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
O requerido, citado, apresentou, no dia 25 de março de 2021, requerimento em que admitiu encontrar-se em situação de insolvência.
Na mesma data, foi proferida sentença a julgar procedente a ação e a declarar a insolvência do requerido, bem como a decretar a apreensão, para imediata entrega ao Administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, sem prejuízo do disposto no n.º 1 do art. 150 do CIRE.
No dia 27 de abril de 2021, o insolvente pediu a exoneração do passivo restante dizendo, para além do mais, que “[e]ncontram-se (…) preenchidos todos os requisitos necessários ao decretamento da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235º e seguintes do CIRE. / 5. O ora requerente encontra-se reformado, auferindo de uma pensão de reforma de € 207,64 mensais – Doc. .... / 6 – O requerente é, juntamente com a sua esposa DD, dono de um prédio urbano inscrito na matriz urbana da União de freguesias ... e ... sob o artº ...40, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...5/..., com o valor patrimonial tributário de € 42 860,00, e de 8 prédios rústicos na mesma freguesia, inscritos na matriz sob o artigos ...70, com o VPT de € 69,83; artigo 2252 com o valor patrimonial de € 4,39; artigo 1010 com o valor patrimonial de € 25,74; artigo 1987 com o valor patrimonial tributário de € 905,02; artigo 2539 com o valor patrimonial tributário de € 756,00; artigo 2540 com o valor patrimonial tributário de € 45,40; artigo 2541 com o valor patrimonial tributário de € 4,40 e artigo 2542 com o valor patrimonial tributário de € 8,80 (…)”
No dia 5 de maio de 2021, o credor reclamante EE apresentou oposição ao requerimento de exoneração do passivo restante com fundamento na sua extemporaneidade e na verificação de factos enquadráveis nas alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 238 do CIRE.
No dia 21 de julho de 2021, foi proferido despacho a determinar o prosseguimento do processo para exoneração do passivo restante, estabelecendo-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do insolvente, superior a € 750,00/mês, ficasse cedido ao fiduciário.
Por despacho de 30 de agosto de 2021 consignou-se que o despacho inicial de exoneração apenas implicava o encerramento do processo para efeitos do início do período da cessão do rendimento disponível, prosseguindo este no mais, mais concretamente para liquidação dos bens que, entretanto, haviam sido apreendidos para a massa insolvente.
Por requerimento apresentado no dia 13 de julho de 2022, o credor reclamante EE veio dizer que, depois do despacho inicial, o Insolvente gastou e procedeu ao levantamento de quantias em dinheiro que existiam nas contas bancárias de que era e é titular no Banco 1..., SA, com o nítido propósito de evitar a sua apreensão no processo de insolvência, prejudicando dessa forma os seus credores e a massa insolvente, o que constitui fundamento para a recusa da exoneração do passivo restante.
O insolvente opôs-se, no dia 26 de setembro de 2022, dizendo que “[e]m 30 de abril de 2021, através do seu mandatário, o Insolvente informou o Sr. A.I. de todo o seu património. / 3. - E indicou ao Sr. A. I. todos os créditos que à data possuía, inclusive os valores depositados em contas bancárias. / 4. - Por mero lapso de escrita do seu mandatário o insolvente indicou, nessa rubrica, a existência de um depósito do valor de € 98 035,00, que, em tempo algum possuiu. / 5. - Posteriormente, verificou-se ter havido um lapso na indicação do verdadeiro valor, uma vez que o que se pretendia dizer era um depósito no valor de € 9.803,50, facto que foi comunicado ao administrador de insolvência em 14/03/2022, em resposta ao e-mail do mesmo de 11/03/2022 – Doc. ... / 6. - Tendo-lhe também sido comunicado que a Instituição Bancária, após a Declaração de insolvência, continuou a pagar os créditos do Insolvente que, entretanto, se venceram. / 7. - Após ter sido declarado Insolvente, notificado dessa condição, jamais ocultou ou dissimulou o que quer que fosse. / De resto, 8. - Os depósitos bancários que possuía à data da declaração da sua Insolvência, são aqueles que constam dos autos e relativamente aos quais jamais este efetuou, por decisão e “motu proprio”, qualquer movimento. / 9. - Tanto quanto se recorda, no final do passado ano de 2021, o Insolvente, atenta a situação de miséria a que chegou, por causa de um crédito que o credor EE logrou obter com total e absoluta injustiça (€200,00 por dia durante anos), colocou ao gabinete do administrador de insolvência a questão de saber como poder subsistir com a mínima das dignidades, / 10. - Tendo obtido, da parte deste, autorização para efetuar alguns movimentos bancários, de baixo valor, Sem olvidar que, / 11. - Os valores efetivamente existentes nas contas bancárias são património comum do casal, a verdade é que os mesmos foram apreendidos na totalidade para a massa insolvente. / 12. - O facto de o credor EE crer que o Insolvente movimentou contas bancárias de que era titular não é facto bastante relevante.”
Entretanto, no dia 30 de setembro de 2022, o fiduciário apresentou o relatório relativo ao primeiro ano de fidúcia, no qual disse não ter apurado a existência de quaisquer rendimentos do insolvente.
No dia 8 de dezembro de 2022, o fiduciário pronunciou-se especificamente sobre o pedido de cessação antecipada dizendo que “o Devedor tem prestado ao signatário a informação solicitada, pelo que, e salvo melhor entendimento, tem vindo a cumprir os deveres que se lhe impõem por força do regime da exoneração do passivo restante. / 5. No mais, e no que concerne às movimentações existentes na conta domiciliada no Banco 1..., S.A., para cabal esclarecimento, aguarda-se, ainda, o envio de todos os extratos solicitados.”

No dia 10 de dezembro de 2022 foi proferido o seguinte despacho:
“INCIDENTE DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
QUESTÃO PRÉVIA
Entrada em vigor a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, por força da qual foi alterado o CIRE, sendo imediatamente aplicável aos processos pendentes [cf. art.º 10.º, n.º 1], temos que, nos presentes autos de processo de insolvência de pessoa singular, foi liminarmente deferido o pedido de exoneração, tendo, entretanto, finalizado o 1.º ano do período de cessão de rendimento disponível.
Assim sendo, tendo em atenção a nova redação do art.º 235.º do CIRE, de acordo com a qual o incidente de exoneração, quando liminarmente admitido, se tem por concedido por um período de três anos [e já não os cinco anteriormente previstos], contados a partir do encerramento para esse efeito do processo de insolvência, determina-se que ao incidente de exoneração do passivo liminarmente admitido nos presentes autos se aplica o período de três anos previsto pela atual redação do art.º 235.º do CIRE.---
Entretanto, deverá o Fiduciário diligenciar pela apresentação dos relatórios anuais até 30 dias após o decurso de cada um dos períodos [anos] de cessão, juntando igualmente aos autos comprovativos de notificação aos credores, sem prejuízo do cumprimento do dever de informação dos credores e do próprio Tribunal em caso de conhecimento de qualquer violação [art.º 241º, n.º 3 do CIRE]; devendo ainda o relatório final de cessão ser acompanhado de pronúncia nos termos do art.º 244.º do CIRE.
(…)
RELATÓRIO ANUAL DE CESSÃO [1º ANO] E INCIDENTE DE CESSAÇÃO ANTECIPADA/RECUSA
Visto.
Resultando da informação do Fiduciário que o Devedor tem prestado a informação solicitada e tem vindo a cumprir os deveres que se lhe impõem por força do regime da exoneração do passivo restante, por ora inexistem razões para concluir que tenham sido violados os deveres previstos nas alíneas a) e c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE.
Entretanto, uma vez que a soma das quantias auferidas não ultrapassa o valor fixado como indisponível, não há lugar a qualquer entrega à Fidúcia.”
Nos dias 16 de março e 5 de maio de 2023 , o fiduciário apresentou os extratos das contas bancárias tituladas pelo Insolvente no Banco 1..., SA, desde ../../2018 e, na sequência, o referido credor EE veio dizer, através de requerimento apresentado a 10 de maio de 2023, que, “[a]nalisado o extrato bancário em causa é possível verificar, para além do mais, que após a declaração de insolvência, ocorrida em 25/03/2021, o Devedor/Insolvente continuou a “controlar” a conta de depósitos à ordem de que é titular no Banco 1... e a proceder quer a levantamentos, em numerário, das quantias que nela eram creditadas, quer a descontar cheques, nomeadamente: a) Em 09/11/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque n.º ...28, no valor de 1.850,00 € (cf. pág. 23 do extrato de fls…); b) Em 22/12/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque n.º ...29, no valor de 4.000,00 € (cf. pág. 23 do extrato de fls…); c) Em 06/01/2022 procedeu ao levantamento em numerário da quantia de 100,00 € (cf. pág. 23 do extrato de fls…); e d) Em 06/09/2022 procedeu à transferência bancária para a conta da sua esposa DD da quantia de 7.000,00 € (cf. pág. 25 do extrato de fls…). (…) / 2. Verifica-se, assim, que o Insolvente gastou e procedeu ao levantamento e transferência de quantias em dinheiro que existiam na conta bancária de que era e é titular, com o nítido propósito de evitar a sua apreensão no processo de insolvência, prejudicando dessa forma os seus credores e a massa insolvente. / 3. Ao atuar da forma supra descrita, o Devedor/Insolvente ocultou ao Sr. Administrador/Fiduciário e ao Tribunal as quantias e rendimentos que auferia e auferiu, não as tendo entregado ao fiduciário, como devia, violando, com dolo ou culpa grave, os deveres que para ele decorriam, previstos nas alíneas a) e c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE, o que constitui fundamento para lhe ser recusada a exoneração do passivo restante, tal como foi suscitado pelo ora Requerente nos requerimentos que apresentou nos presentes autos em 13/07/2022, com a Refª ...50, e em 17/03/2023, com a Refª. ...43, que por uma questão de economia processual se dão por reproduzidos, o que se requer.”
Por despacho de 29 de maio de 2023, foi determinada a notificação do fiduciário, dos demais credores e do Devedor para se pronunciarem “sobre a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos art.ºs 243.º, n.ºs 1, al. a), e 3 e 239.º, n.º 4, al. a) e c) do CIRE, por alegada ocultação das quantias e rendimentos auferidos e respetiva falta de entrega à fidúcia, com grave negligência e com prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
O insolvente respondeu, no dia 12 de junho de 2023, dizendo que: “(…) como já foi dito anteriormente, o Insolvente tinha passado cheques anteriormente à declaração de insolvência, que os destinatários, muito naturalmente, apresentaram a pagamento, e que a Instituição Bancária pagou. / 3. - Com a declaração de Insolvência, o casal de que o Insolvente faz parte, viu-se privado de quaisquer fontes de rendimentos, / 4. - Tanto mais que a esposa do Insolvente é doméstica e, / 5. - Por tal motivo, colocou tal problema ao Sr. Administrador de Insolvência, / 6. - O qual, de forma correta, autorizou os restantes levantamentos da conta. / Por outro lado, 7. - Convém não esquecer que o Insolvente é casado no regime de comunhão de adquiridos e que, como tal, metade do saldo da conta bancária pertence ao seu cônjuge, / 8. - A qual não foi declarada insolvente, nenhum processo havendo corrido contra ela.”
O fiduciário pronunciou-se, no dia 20 de julho de 2023, dizendo que “inexiste factualidade suficiente que permita sustentar a violação dos deveres que se impõem ao devedor por força de tal regime da exoneração do passivo restante.”
No dia 31 de julho de 2023, o credor EE apresentou requerimento do seguinte teor: “O Credor defende a cessação antecipada da exoneração do passivo restante por entender, como entende, que o Insolvente gastou e procedeu ao levantamento/ e transferência de quantias em dinheiro que existiam nas contas bancárias de que era e é titular, com o propósito de evitar a sua apreensão no processo de insolvência, prejudicando dessa forma os seus credores e a massa insolvente. / Com efeito, 2. Analisado o extrato bancário relativo à conta de depósitos à ordem de que o Insolvente era e é titular no Banco 1..., S.A. com o n.º ...01, junto pelo Sr. Administrador de Insolvência em 05/05/2023 (requerimento Ref.ª Citius ...98) é possível verificar, para além do mais, que após a declaração de insolvência, ocorrida em 25/03/2021, o Devedor/Insolvente continuou a movimentar, como movimentou, aquela conta bancária e a proceder quer a levantamentos, em numerário, das quantias que nela eram creditadas, quer a descontar cheques, nomeadamente: a) Em 09/11/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque nº ...28, no valor de 1.850,00 € (cf. pág. 72 do extrato de fls…); b) Em 22/12/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque nº ...29, no valor de 4.000,00 € (cf. pág. 72 do extrato de fls…); c) Em 06/01/2022 procedeu ao levantamento em numerário da quantia de 100,00 € (cf. pág. 72 do extrato de fls…); e d) Em 06/09/2022 procedeu à transferência bancária para a conta da sua esposa DD da quantia de 7.000,00 € (cf. pág. 74 do extrato de fls…). / 3. Na Resposta que apresentou em 12/06/2023 (requerimento com a Refª Citius ...45) o Devedor/Insolvente aceitou, reconheceu e confessou que procedeu ao desconto dos cheques, ao levantamento em numerário e à transferência bancária identificados nas alíneas a, b), c) e d) do ponto anterior. / Sendo que, 4. O Devedor/Insolvente tenta “justificar” os levantamentos das quantias de 1.850,00 € e 4.000,00 € no facto de alegadamente ter passado cheques antes da data da declaração da insolvência e que só vieram a ser apresentados a pagamento depois dessa data e que os demais levantamentos – levantamento de 100,00 € em numerário e transferência de 7.000,00 € para a conta bancária da esposa DD em 06/09/2022 – foram autorizados pelo Sr. Administrador de Insolvência. / 5. Apesar de ter sido, como foi, expressamente notificado do requerimento inicial apresentado pelo Credor EE em 10/05/2023 (Refª Citius ...08), da resposta apresentada pelo Devedor/Insolvente em 12/06/2023 (Refª Citius ...45) e do requerimento apresentado pelo Credor EE em 19/06/2023 (Refª Citius ...56), e para se pronunciar sobre os mesmos, o Sr. Administrador de Insolvência pronunciou-se, com o devido e de forma genérica e abstrata sobre “os deveres a que o devedor se encontra adstrito, previstos no nº 4 do artigo 249º do CIRE”, mas não tomou numa posição concreta e definida sobre os levantamentos efetuados pelo Devedor/Insolvente, concretamente se o levantamento de 100,00 € em numerário e se a transferência de 7.000,00 € para a conta bancária da esposa do Devedor/Insolvente, DD foram, ou não, autorizadas por si. / 6. Assim, por se afigurar importante para a descoberta da verdade material e para a boa decisão do deferimento/indeferimento da cessação antecipada da exoneração do passivo restante, requer a V. Exª se digne mandar notificar o Sr. Administrador de Insolvência para tomar uma posição definida sobre tal matéria, concretamente para esclarecer se autorizou, ou não, o Devedor/Insolvente a proceder ao levantamento de 100,00 €, em numerário, efetuado em 06/01/2022 e a proceder à transferência de 7.000,00 € para a conta bancária da esposa do Devedor/Insolvente, DD, efetuada em 06/09/2022.”
Pronunciando-se sobre este requerimento, o fiduciário disse, no dia 15 de agosto de 2023, que “o desbloqueio da conta - autorizado pelo signatário - decorreu de pedido realizado pelo Insolvente, mormente, para fazer face às despesas básicas, como alimentação, saúde, água, luz, etc., suas e do respetivo agregado familiar; / 3. Não obstante o ora exposto, desde já se deixa à consideração do Douto Tribunal, a devolução, pelo insolvente à massa insolvente, das quantias identificadas pelo citado credor.”
No dia 14 de setembro de 2023, o insolvente apresentou requerimento do seguinte teor: “(…) Em tal conta bancária, aquando da sua apreensão pelo Sr. Administrador de Insolvência, em 2020, havia as quantias de € 4.875,14 + 1.876,54 + 8.7895,00 + 9.803,50, num total de € 25.334,13. / 6. - Tal valor pertencia, em comum e partes iguais, ao ora Insolvente e a sua mulher, ou seja, cada um deles é legítimo dono de € 12.667,06. / 7. - Sendo só o marido Insolvente, sua mulher DD, é dona de metade do valor então existente. / Ora, 8. - Até ao momento, de tal quantia existente de € 25.334,13, foram levantados € 12.850,00 (€ 1.850,00 + 4.000,00 + 7.000,00). / Assim, 9. - Da meação do Insolvente, sujeita a apreensão, só foram levantados € 182.93 (12.850,00 - 12.667,06), / 10. - O que significa que do direito que o Insolvente tem na massa Insolvente, para o seu sustento, só foi – efetivamente – levantada a quantia de € 182,93 (…).
No dia 18 de outubro de 2023, foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo o Insolvente declarado no requerimento que apresentou nos autos em 14.09.2023 [ref.ª ...09] que as quantias existentes nas contas bancárias, à data da declaração de insolvência, num total de € 25.334,13, pertenciam, em comum e partes iguais, ao Insolvente e à esposa, e que, por isso, da sua Insolvente de € 12.667,06 só teria sido alegadamente levantada a quantia de € 182,93, sendo que o AI veio, por requerimento apresentado em 02.10.2023 [ref.ª ...74], informar não lhe ter sido possível proceder à efetiva apreensão de qualquer quantia, determina-se a notificação do Devedor para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega à massa insolvente a quantia remanescente, no total de € 12.484,13 [€ 12.667,06 - € 182,93].”
No dia 21 de novembro de 2021, o fiduciário informou que o insolvente não tinha procedido à entrega à massa insolvente da quantia de € 12 484,13.
Notificado, o insolvente nada disse.
No dia 30 de novembro de 2023, foi proferido despacho a recusar antecipadamente a exoneração.
***
2). Inconformado, o insolvente interpôs o presente recurso, composto por alegações e respetivas conclusões, estas do seguinte teor:

“A. Consoante resulta dos autos, mas contrariamente ao que consta no despacho sob recurso, o Insolvente não violou o disposto na alínea a) do nº 4 do artº 239 do CIRE na medida em que: a)- Não ocultou ou dissimulou quaisquer rendimentos que auferiu; b)- Informou sempre o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e prazo em que isso lhe foi requisitado; c)- Os levantamentos da conta bancária do casal – que não apenas dele Insolvente - foram feitos com autorização do Sr. Administrador de insolvência;
B. - Nenhuma conta bancária foi ocultada pelo Insolvente.
C. - Os levantamentos foram consentidos pelo Sr. Administrador de Insolvência.
D. - Em tal conta bancária, aquando da sua apreensão pelo Sr. Administrador de Insolvência, em 2020, havia as quantias de € 4.875,14 + 1.876,54 + 8.7895,00 + 9.803,50, num total de € 25.334,13.
E. - Tal valor pertencia, em comum e partes iguais, ao ora Insolvente e a sua mulher, ou seja, cada um deles é legítimo dono de € 12.667,06.
F. - Sendo só o marido Insolvente, sua mulher DD, é dona de metade do valor então existente.
G. - Até ao momento, de tal quantia existente de € 25.334,13, foram levantados € 12.850,00 (€ 1.850,00 + 4.000,00 + 7.000,00).
H. - Da meação do Insolvente, sujeita a apreensão, só foram levantados € 182.93 (12.850,00 - 12.667,06),
I. - Do direito que o Insolvente tem na massa Insolvente, para o seu sustento, só foi – efetivamente – levantada a quantia de € 182,93,
J. - Tais levantamentos destinaram-se a prover às necessidades básicas do Insolvente e do seu agregado familiar, nomeadamente alimentação, energia, medicamentos e outros.
L. - Tendo em atenção a data em que foi apreendida tal verba para a massa insolvente - na data da insolvência em 25/3/2021 - o valor levantado pelo casal, que não apenas o Insolvente, foi de € 12.484,13 -, dividido por 32 meses, desde a declaração de insolvência, represente o valor de cerca de € 390,00.
M. Tal valor, dividido por 32 meses, ou seja, desde a declaração de insolvência, representa o valor mensal de cerca de € 390,00.
N. - Tal valor de € 390,00, situa-se claramente dentro dos limites inerentes ao princípio da dignidade humana.
O. - Como resulta dos autos - e especialmente por causa € 200,00 diários que o Credor Principal andou imoralmente a sugar ao Insolvente, durante anos - o casal foi privado e despojado, de qualquer património a que pudesse acudir para suprir as necessidades básicas do dia a dia.
P. - O Despacho Recorrido violou o disposto nos artºs 239º 243º, 244º, do CIRE, artºs 1º e 59º da CRP, e artº 607º do CPC.”
Pediu a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que mantenha a concessão da exoneração do passivo restante.
Na resposta, o credor EE pugnou pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
“1ª Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 639º do Código de Processo Civil, o Recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2ª Assim, no corpo das alegações, o Recorrente deve indicar os motivos e fundamentos da sua discordância da decisão recorrida.
3ª No corpo das alegações apresentadas o Recorrente limita-se a alegar que o despacho recorrido ignorou a matéria por si alegada, transcrita em XI e XII, mas não concretiza quais as verdadeiras razões da sua discordância relativamente ao douto Despacho recorrido e, nomeadamente não especifica os fundamentos concretos em que se baseia para pedir a revogação/alteração do douto Despacho recorrido e a sua substituição por um outro que mantenha a concessão da exoneração do passivo restante.
4ª A alegação, sem o mínimo de concretização, dos motivos ou razões da sua discordância relativamente ao douto Despacho recorrido não consubstancia, no modesto entendimento do Recorrido, a “indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, a que alude o nº 1 do artigo 639º do Código de Processo Civil.
5ª Ao não concretizar, como não concretiza, as verdadeiras razões, motivos ou fundamentos da discordância do douto Despacho recorrido, o recurso interposto pelo Recorrente não respeita, nem cumpre, os requisitos necessários e legalmente exigidos no nº 1 do artigo 639º do Código de Processo Civil.
6ª Pelo que, o recurso interposto pelo Insolvente não deve ser apreciado, nem decidido por este Altíssimo Tribunal, com as legais consequências.
7ª Consta e resulta suficientemente provado nos autos, até por confissão do próprio Insolvente, que este (Devedor/Insolvente), após a declaração da insolvência, procedeu ao levantamento de várias quantias que tinha depositadas em contas bancárias de que era titular, nomeadamente: a) Em 09/11/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque nº ...28, no valor de 1.850,00 €; b) Em 22/12/2021 procedeu ao desconto/pagamento do cheque nº ...29, no valor de 4.000,00 €; e c) Em 06/09/2022 procedeu à transferência da quantia de 7.000,00 € para a conta da sua esposa DD,
8ª Tendo o Insolvente declarado no requerimento que apresentou nos autos em 14/09/2013 (refª ...09) que as quantias existentes nas contas bancárias, à data da declaração da insolvência, num total de 25.334,13 €, pertenciam, em comum e partes iguais, ao Insolvente e à esposa e que, por isso, da sua parte de 12.667,06 € (25.334,13 € : 2) só teria alegadamente levantado a quantia de 182,93 € e tendo o Exmº Sr. Administrador de Insolvência informado (requerimento de 02/10/2023 (refª ...74) não ter sido possível proceder à efetiva apreensão de qualquer quantia, por douto despacho datado de 18/10/2023, foi ordenada a notificação do Insolvente, ora Recorrente, para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega à massa insolvente da quantia remanescente, no total de 12.484,13 € (12.667,06 € - 182,93 €).
9ª Tendo sido notificado do douto despacho datado de 18/10/2023 a ordenar ao Insolvente, ora Recorrente, para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega à massa insolvente da quantia de 12.484,13 € (12.667,06 € - 182,93 €), o Insolvente não impugnou, não recorreu nem deduziu qualquer reclamação de tal despacho, aceitando-o e conformando-se com o mesmo.
10ª Face ao trânsito em julgado do douto despacho datado de 18/10/2023, recaía sobre o insolvente a obrigação de, no prazo de 10 dias, ou seja, até ao dia ../../2023, proceder à entrega à massa insolvente da quantia que havia levantado e gasto indevidamente de 12.484,13 €, o que o Insolvente não fez, nem deu qualquer justificação.
11ª Por douto despacho datado de 09/11/2023, foi ordenado que se insistisse pela notificação do Insolvente, ora Recorrente, para proceder à entrega do montante em falta, ou requerer o que tiver por conveniente, sob pena de poder dar lugar a eventual cessação antecipada [art.º 243.º do CIRE] ou recusa [art.º 244.º do CIRE] do incidente de exoneração do passivo restante, se assim vier a ser requerido pelo Fiduciário ou pelos credores.
12ª Tendo sido notificado do douto despacho datado de 09/11/2023 a ordenar que se insistisse pela notificação do Insolvente, ora Recorrente, para proceder à entrega do montante em falta, ou requerer o que tiver por conveniente, sob pena de poder dar lugar a eventual cessação antecipada [art.º 243.º do CIRE] ou recusa [art.º 244.º do CIRE] do incidente de exoneração do passivo restante, se assim viesse a ser requerido pelo Fiduciário ou pelos credores, o Insolvente não impugnou, não recorreu, nem deduziu qualquer reclamação de tal despacho, aceitando-o e conformando-se com o mesmo.
13ª Face ao trânsito em julgado do douto despacho datado de 09/11/2023 recaía sobre o Insolvente a obrigação de, no prazo legal de 10 dias, ou seja, até ao dia ../../2023, proceder à entrega à massa insolvente da quantia de 12.484,13 €, ou requerer o que tiver por conveniente, sob pena de poder dar lugar a eventual cessação antecipada [art.º 243.º do CIRE] ou recusa [art.º 244.º do CIRE] do incidente de exoneração do passivo restante, se assim viesse a ser requerido pelo Fiduciário ou pelos credores, o que o Insolvente também não fez, nem deu qualquer justificação.
14ª Assim, apesar de devidamente notificado, por duas vezes, para devolver à massa insolvente a quantia que levantou de 12.484,13 € e de ter sido expressamente advertido de que caso não o fizesse tal omissão poder dar lugar a eventual cessação antecipada [art.º 243.º do CIRE] ou recusa [art.º 244.º do CIRE] do incidente de exoneração do passivo restante, se assim viesse a ser requerido pelo Fiduciário ou pelos credores, o Insolvente nada ligou às notificações que lhe foram efetuadas pelo Tribunal e não devolveu à massa insolvente a referida quantia de 12.484,13 €, nem deu qualquer justificação para o efeito.
15ª Tal atuação do Devedor/Insolvente revela total desrespeito e desconsideração pelos Tribunais e viola os deveres de informação, colaboração, cooperação e de atuação de boa fé processual que impediam e impendem sobre o Insolvente.
16ª Verifica-se, assim, que o Insolvente gastou e procedeu ao levantamento/e transferência de quantias em dinheiro que existiam nas contas bancárias de que era e é titular de forma abusiva, ilegal e ilícita, com o nítido propósito de evitar a sua apreensão no processo de insolvência, prejudicando dessa forma os seus credores e a massa insolvente.
17ª Ao atuar da forma supra descrita e ao não ter devolvido à massa insolvente a quantia que lhe foi ordenada pelo Tribunal, no montante de 12.484,13 €, o Devedor/Insolvente violou, com dolo ou culpa grave, os deveres que para ele decorriam, previstos na alínea a) do nº 4 do artigo 239º do CIRE e na al. g) do nº 1 do artigo 238º, ambos do CIRE, o que constitui fundamento para lhe ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 243º, nº 1, al. a). do CIRE.
18ª Assim, ao decidir recusar, como recusou, antecipadamente a exoneração do passivo restante ao devedor CC, declarando-se encerrado o correspondente incidente, o Tribunal de 1ª Instância decidiu corretamente e de acordo com os preceitos legais aplicáveis.
19ª Pelo que, não há razão ou fundamento para se revogar o douto Despacho recorrido e para o substituir por um outro que mantenha a concessão da exoneração do passivo restante, devendo, assim, ser negado provimento ao recurso interposto pelo Insolvente/Recorrente, com as legais consequências.”
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Deste modo, a questão que se coloca no presente recurso pode ser sintetizada nos seguintes termos: a decisão recorrida, ao determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restantes, incorreu em erro na subsunção dos factos à previsão das normas contantes dos arts. 239/4, a), e 243/1, a), e 244 do CIRE?
Previamente há, porém, que tratar da questão, colocada pelo Recorrido, de saber se o recurso deve ser rejeitado por o requerido não concretizar as razões, de facto e de direito, da sua discordância relativamente ao decidido no despacho recorrido.
***
III.
1). Começando por esta questão prévia, recordamos que o art. 639/1 do CPC estabelece que o recorrente deve apresentar, com o requerimento de interposição do recurso, a sua alegação, que consiste na exposição das razões da sua pretensão no sentido da alteração, anulação ou revogação da decisão recorrida. A norma tem carácter genérico, pelo que tanto se reporta aos recursos em que sejam unicamente suscitadas questões de direito, como àqueles que também envolvam a impugnação da matéria de facto.
Assim, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, quando o recurso verse apenas sobre matéria de direito, como sucede com aquele que estamos a apreciar, o recorrente deve indicar as normas jurídicas, sejam de direito material ou de direito adjetivo, violadas, pronunciar-se sobre o sentido que às mesmas deve ser atribuído e, quando entenda ter sido cometido um erro na qualificação, dizer qual a norma jurídica aplicável à situação, desenvolvendo esses aspetos, inclusive com apoio doutrinal e jurisprudencial.
Acontece que apenas a falta absoluta de alegações (ou de conclusões) tem como consequência a rejeição do recurso, a declarar, em 1.ª linha, pelo juiz a quo (art. 641/2, b), do CPC). A inobservância das boas práticas na elaboração da peça, prejudicando a compreensão pelo tribunal superior das razões da impugnação, relevará, quando muito, ao nível do sucesso do recurso que, ainda assim, deverá ser conhecido.
Ora, no caso vertente, é apodítico que o recurso é composto por alegações – e, já agora, por conclusões. Saber se aquelas são adequadas a expressar as razões da discordância do Recorrente quanto ao que foi decidido pelo Tribunal a quo é aspeto que se situa a jusante da admissibilidade do recurso, contendendo com o mérito deste e com a resposta a dar à questão enunciada.
Improcede, portanto, esta questão prévia.
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2).1. Dito isto, avançamos com a resposta à questão enunciada, começando por respigar o despacho recorrido e respetiva fundamentação (transcrição):

 “CESSAÇÃO ANTECIPADA
Nos presentes autos de insolvência foi liminarmente concedida a exoneração do passivo restante.
O Fiduciário veio, entretanto, juntar aos autos relatório/informação dando conta do incumprimento reiterado dos pressupostos inerentes à exoneração do passivo restante a que o devedor se propôs quando requereu a exoneração do passivo restante, designadamente entrega à massa insolvente da quantia apurada e ordenada, no total de 12.484,13 €.
Cumprido o disposto no art.º 243.º, n.º 3 do CIRE, nada foi oposto ou esclarecido pelo devedor, tendo, entretanto, o credor EE requerido a cessação antecipada/recusa da exoneração do passivo restante requerida pelo Insolvente.
*
Nos termos do art.º 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE, ainda antes de terminado o período da cessão, deve o Juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Entretanto, de acordo com o art. 239.º, n.º4 do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
Dos autos resulta que, tendo o Insolvente declarado no requerimento que apresentou nos autos em 14.09.2023 [ref.ª ...09] que as quantias existentes nas contas bancárias, à data da declaração de insolvência, num total de € 25.334,13, pertenciam, em comum e partes iguais, ao Insolvente e à esposa, e que, por isso, da sua parte de € 12.667,06 só teria sido alegadamente levantada a quantia de € 182,93, sendo que o AI veio, por requerimento apresentado em 02.10.2023 [ref.ª ...74], informar não lhe ter sido possível proceder à efetiva apreensão de qualquer quantia, determinou-se, por despacho datado de 18.10.2023, a notificação do Devedor para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega à massa insolvente a quantia remanescente, no total de € 12.484,13 [€ 12.667,06 - € 182,93].
Entretanto, não tendo o Devedor cumprido o determinado nem oferecer qualquer esclarecimento, por despacho datado de 09.11.2023 insistiu-se junto daquele para proceder à entrega do montante em falta, ou requerer o que tiver por conveniente, sob pena de poder dar lugar a eventual cessação antecipada [art.º 243.º do CIRE] ou recusa [art.º 244.º do CIRE] do incidente de exoneração do passivo restante, se assim vier a ser requerido pelo Fiduciário ou pelos credores.
Mais uma vez, nada foi oposto ou esclarecido pelo devedor.
Assim sendo, face aos elementos constantes dos autos, encontra-se demonstrado que o insolvente, com a sua conduta de incumprimento reiterado de falta de entrega do montante devido, violou culposamente o dever inscrito na al. a) do n.º 4 do art.º 239.º do CIRE, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
*
Pelo exposto, decide-se recusar antecipadamente a exoneração do passivo restante ao devedor CC, declarando-se encerrado o correspondente incidente.
Custas a cargo do devedor.
Registe, notifique e publicite [art.º 247.º do CIRE].”
***
2).2.1. Da leitura do despacho recorrido constata-se que o Tribunal a quo recusou antecipadamente a exoneração do passivo restante do devedor com fundamento numa situação de facto que enquadrou na previsão da alínea a) do n.º 4 do art. 239 assim caraterizada:
1. O Recorrente foi notificado, por duas vezes, para entregar ao fiduciário a quantia de € 12 484,13;
2. Não procedeu a essa entrega;
3. também não apresentou qualquer justificação para a sua omissão.
Estes factos, conformes ao iter processual que foi descrito no relatório que constitui a parte I. deste Acórdão, não foram impugnados pelo Recorrente, podendo, portanto, ter-se como definitivamente adquiridos.
***
2).2.2. Aos referidos factos, há que acrescentar ainda os seguintes, assim se observando, em substituição da 1.ª instância, o disposto no art. 607/4, ex vi do art. 663/2 do CPC:
4. O insolvente contraiu casamento católico, sem convenção antenupcial, com FF, no dia 24 de junho de 1989, cf. certidão do assento de nascimento apresentada sob o n.º 12 com a petição inicial, cujo teor aqui é dado por integralmente reproduzido;
5. Na data da declaração de insolvência, o insolvente era titular da conta de depósitos à ordem n.º ...01 do Banco 1..., SA, cujo saldo foi apreendido para a massa insolvente como verba n.º 13, cf. auto de apreensão apresentado no apenso B (apreensão de bens), sob a referência Citius ...07, cujo teor aqui é dado por integralmente reproduzido;
6. Foram pagos, através de desconto no saldo da referidas conta, os seguintes cheques emitidos pelo insolvente: a) no dia 9 de novembro de 2021, o cheque n.º ...28, no valor de € 1 850,00; b) no dia 22 de dezembro de 2021, o cheque n.º ...29, no valor de € 4 000,00.
7. No dia 6 de janeiro de 2022, o insolvente procedeu ao levantamento, em numerário, da quantia de € 100,00;
8. No dia 6 de setembro de 2022, o insolvente transferiu a quantia de € 7 000,00 da referida conta para a conta uma conta bancária titulada pela referida DD.
9. O fiduciário autorizou o insolvente a movimentar a identificada conta bancária às despesas básicas do seu agregado familiar, designadamente com alimentação, saúde, água e eletricidade.
***
2).2.2.1. Os factos dos pontos 4. e 5. resultam dos documentos indicados a propósito de cada um deles; os factos dos pontos 7 e 8, alegados pelo Recorrido no seu requerimento de 10 de maio de 2023, não foram impugnados pelo insolvente na resposta a ele apresentada no dia 12 de junho de 2023, tendo-se assim como admitidos por acordo, cf. 574/2 do CPC ex vi do art. 17/1 do CIRE; o facto do ponto 9 resulta da informação prestada pelo fiduciário no dia 15 de agosto de 2023.
***
2).2.3. Do que antecede resulta que não estão provados os seguintes factos:
a) Os cheques referidos em 6. foram emitidos antes da declaração de insolvência;
b) O levantamento referido em 7. foi destinado ao pagamento das despesas com alimentação, saúde, água e eletricidade do agregado familiar do insolvente;
c) O fiduciário autorizou a realização da transferência referida em 8.
***
2).2.3.1. A convicção negativa quanto aos factos que antecedem resulta da ausência de qualquer prova sobre eles.
***
2).3.1. O instituto da exoneração do passivo restante foi introduzido entre nós pelo CIRE (arts. 235 a 249), tendo por base o modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO).
O modelo parte da constatação de que, numa economia de mercado, é comum que uma pessoa singular se torne devedora de créditos que excedem largamente a medida da sua capacidade patrimonial.
O que se pretende é evitar que aqueles que, tendo atuado de boa-fé, num sentido objetivo, enquanto norma de conduta, mas que, por circunstâncias várias, em virtude dos normais riscos associados à contratação, se viram na referida situação, sejam definitivamente afastados do mercado. Para tanto, procede-se à afetação, durante certo período de tempo após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não puderam ser satisfeitos por essa via.[1] A intenção é, portanto, a de liberar o devedor das suas obrigações, realizando uma espécie de azzeramento da sua posição passiva remanescente, para que, “depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for o caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial” (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, pp. 610-611).
***
2).3.2. Como escrevemos, a exoneração do passivo restante encontra-se regulada nos arts. 235 a 249, integrada no título XII, relativo à insolvência das pessoas singulares. Pode ser concedida quando os créditos da insolvência – i. é, todos os créditos de natureza patrimonial que existam sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data de declaração de insolvência (art. 47/1 e 2) – não obtenham pagamento integral no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento (art. 235, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.01).
Não existe, por contraposição, uma libertação quanto às dívidas da massa insolvente, previstas no art. 51, dada a sua natureza e o regime preferencial do seu pagamento.[2]
Apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que todos os créditos tenham ficado satisfeitos, o devedor pessoa singular fica adstrito ao pagamento aos credores, durante três anos, findos os quais, poderá ser-lhe judicialmente concedida a exoneração do passivo restante, uma vez cumpridos determinados requisitos.
Deste modo, a exoneração é, acima de tudo, uma medida de proteção do devedor (Assunção Cristas, “Exoneração do passivo restante”, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167).  Com efeito, se não fosse declarado insolvente, o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas, sem prejuízo da eventual prescrição (art. 309 do Código Civil), em respeito pelo princípio pacta sunt servanda.
De acordo com Catarina Serra (Lições cit., p. 614), o instituto tem, no entanto, vantagens que apresentam um alcance mais geral: ao constituir um estimulo à diligência processual do devedor, permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador – o chamado timing problem; por outro lado, permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo, estendendo aos devedores singulares o benefício exoneratório que resulta para as sociedades comerciais do registo do encerramento após o rateio final (art. 234/3), consequência da extinção da respetiva personalidade jurídica; finalmente, acaba por produzir um impacto positivo na economia: “quanto mais restrito é o acesso ao crédito – mais exigente quem o concede e mais responsável quem o pede – menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual.”
Já do ponto de vista dos credores, afigura-se duvidoso que o instituto apresente vantagens, ao contrário do que escrevem autores como Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 366, e Letícia Gomes Marques, “O regime especial de insolvência de pessoas singulares”, Revista de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto, 2013, n.º 2, p. 137, disponível em https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/3260, para quem a exoneração constituiu uma dupla oportunidade de satisfação dos seus créditos: durante o processo de insolvência e durante o chamado “período de cessão.” No mesmo sentido, RP 10.20.2020, 1066/13.9TJPRT.P1. Na verdade, com a exoneração, cada um dos credores fica novamente sujeito a um rateio. Para os credores da insolvência, esse rateio é restrito ao remanescente do pagamento dos credores a massa (art. 241/1, d)). Como nota Catarina Serra, Lições cit., p. 614, nota 1168, “[s]e não houvesse exoneração, não haveria rateio; a satisfação do credor dependeria apenas da sua diligência processual e da data de prescrição do seu crédito, o que não poucas vezes representaria um aumento do prazo para agir executivamente contra o devedor. O período de cinco anos [que a Lei n.º 9/2022, de 11.01, reduziu para três] não é, além do mais, suficientemente longo para que seja frequente o devedor reconstituir-se in bonis de forma a pagar, dentro desse período, de formas satisfatória, a todos os que permanecessem seus credores.”
***
2).3.3. As consequências da exoneração do passivo restante explicam os especiais cuidados colocados pelo legislador na sua concessão que se refletem, desde logo, na previsão de várias etapas até ao alcançar daquele resultado.
Assim, o procedimento tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração.
A liberação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida, nem faria sentido que o fosse, logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial (art. 239/1).
Nessa fase, o que está em causa é, no dizer se Assunção Cristas, ob. cit., pp. 169-170, o “aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportuni­dade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável.”
No fundo, citando o Ac. do TC n.º 487/2008, de 7.10.2018, “o despacho inicial em questão só “promete” conceder a exoneração efetiva do passivo restante, se o devedor ao longo de cinco anos [agora três], observar certo comportamento que lhe é imposto no despacho liminar nos termos legais. A libera­ção definitiva do devedor quanto ao passivo restante apenas é concedida pelo despa­cho regulado no artigo 244.º, do CIRE, após ter decorrido o período de cinco anos [agora três] sobre o encerramento do processo de insolvência e se, entretanto, não tiver havido fundamento para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do artigo 243.º, do CIRE.”
Neste contexto, compreende-se que o CIRE tenha estabelecido fundamentos que justificam a não concessão da exoneração do passivo restante, os quais, grosso modo, se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram ou que redundam no incumprimento de deveres processuais. É que, como se sintetiza em RC 7.03.2017, 2891/16.4T8VIS.C1, “i) a exoneração do passivo restante corresponde a um instituto jurídico de exceção, pois que por via do mesmo se concede ao devedor o benefício de se libertar de algumas das suas dívidas e de por essa via se reabilitar economicamente, inteiramente à custa do património dos credores; ii) a excecionalidade desse instituto exige que o recurso ao mesmo só possa ser reconhecido ao devedor que tenha pautado a sua conduta por regras de transparência e de boa-fé, no tocante às suas concretas condições económicas e padrão de vida adotado, à ponderação e proteção dos interesses dos credores, e ao cumprimento dos deveres para ele emergentes do regime jurídico da insolvência, em contrapartida do que se lhe concede aquele benefício excecional.”
Os referidos fundamentos podem operar em vários momentos do procedimento de exoneração: no da apreciação liminar do pedido de exoneração (art. 238/1); no da cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243/1, b); no da recusa da exoneração (art. 244/2); no da revogação da exoneração (art. 246/1).
***
2).3.4. Os fundamentos de indeferimento liminar, expressão que é usada, no art. 238/1, com um significado diferente do que lhe é atribuído no direito processual comum (art. 590/1 do CPC), posto que quase todos os previstos implicam a produção de prova e obrigam a uma apreciação de mérito por parte do juiz (Assunção Cristas, loc. cit., p. 169), estão previstos, de forma taxativa (RG 3.12.2020, 1851/20.5T8VNF.G1), no n.º 1 do art. 238.
Assim, “[o] pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
“a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.”
***
2).3.5. Não havendo fundamento para o indeferimento liminar, o juiz profere despacho inicial, em que determina que o devedor fica obrigado à cessão do seu rendimento disponível ao fiduciário durante o período de cessão que corresponde aos três anos subsequentes ao encerramento do processo (art. 239/1 e 2 do CIRE, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11.04).
Com esse despacho nascem várias obrigações para o devedor, conforme resulta do n.º 4 do art. 239 do CIRE, mais concretamente: (i) a obrigação de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e de informar o tribunal e o fiduciário dos seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado (alínea a)); (ii) a obrigação de exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e de procurar diligentemente tal profissão, quando desempregado, não recusando razoavelmente algum emprego para que seja apto (alínea b)); (iii) a obrigação de entregar imediatamente ao fiduciário, quando recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão (alínea c)); (iv) a obrigação de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego no prazo de dez dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro do mesmo prazo, das diligências realizadas para a obtenção de emprego (alínea d)); e (v) a obrigação de não fazer pagamentos aos credores a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores (alínea e)).
O incumprimento, com dolo ou culpa grave, de uma destas obrigações, quando redunde num prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, é causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243/1, a)).
São também causas de cessação antecipada a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente (art. 243/1, b)), e a decisão do incidente de qualificação da insolvência no sentido da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência (art. 243/1, c)).
A cessação antecipada com um dos apontados fundamentos ocorre a requerimento de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor.
***
2).3.6. Não ocorrendo a cessação antecipada do procedimento, uma vez atingido o termo do período de cessão, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244/1). Deve recusá-la se concluir pela ocorrência de qualquer facto que poderia ter levado à cessação antecipada do procedimento (art. 244/2).
A concessão da exoneração implica a extinção de todos os créditos que tenham sido reclamados e verificados (art. 245/1), resultado da eficácia erga omnes do processo de insolvência.
A exoneração pode, no entanto, ser revogada quando se prove que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicou, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência. A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito (art. 246/1 e 2).
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2).3.7. Como se constata, a previsão das causas de revogação é mais ampla que a previsão das causas de cessação antecipada do procedimento: ao contrário desta, opera uma remissão para as causas de indeferimento liminar enumeradas no n.º 1 do art. 238, com exceção, por razões óbvias, da extemporaneidade da apresentação do pedido (alínea a), o que é incompreensível. A harmonização entre as duas previsões deve fazer-se através de uma interpretação enunciativa, com arrimo no argumento a maiori ad minus, da qual resulte uma equiparação. Assim, o elenco das causas de cessação antecipada do procedimento deve ser, pelo menos, tão amplo quanto o das causas de revogação. Neste sentido, Assunção Cristas, “Exoneração do passivo restante” cit., p. 171.
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2).3.8. Isto dito, no despacho recorrido concluiu-se que o insolvente, durante o período de cessão, incumpriu a obrigação de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos por si auferidos e de informar o tribunal e o fiduciário dos seus rendimentos e património.
Os factos provados não são subsumíveis à previsão desta norma.
Com efeito, a norma trata do dever de clareza do insolvente, que tem como corolários, por um lado, o dever de não ocultar ou dissimular rendimentos, o que se reconduz a uma obrigação de non facere, e, por outro, o dever de informar acerca dos seus rendimentos, que é transversal a todo o processo de insolvência (arts. 4/2 e 83/1, a)). Como se pondera em RG 11.06.2015 (3546/11.1TBGMR-H.G1), “os deveres de informação e colaboração, no âmbito do incidente de exoneração do passivo, revestem uma importância particular, na medida em que o seu incumprimento constitui indício da retidão da conduta do devedor, retidão que não pode deixar de lhe ser exigida tendo em conta que pretende ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante permite.”
Ora, os factos provados não substanciam uma infração do referido dever de clareza em qualquer uma das suas dimensões; o que substanciam é antes a apropriação de parte do saldo de uma conta bancária que estava apreendido para a massa insolvente, sendo assim do conhecimento do fiduciário.
A isto acresce que não está em causa um rendimento auferido durante o período de cessão, mas um direito patrimonial do insolvente constituído antes dele e que, nessa medida, foi apreendido para a massa insolvente (art. 46/1).
Tendo isto presente, a conclusão B das alegações do Recorrente é correta.
Simplesmente, valendo aqui o princípio iura novit curia, consagrado, em termos gerais, no art. 5.º/3 do CPC, há que apurar se aquela apropriação constitui fundamento para a cessação antecipada do procedimento.
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2).3.9. Ao escrevermos o que antecede, demos como adquirido que houve uma apropriação de parte de um saldo em depósito bancário apreendido para a massa insolvente. Trata-se de uma questão que já foi apreciada e decidida pelo despacho de 18 de outubro de 2023 que, não tendo sido objeto de impugnação, transitou em julgado.
Não ignoramos que, previamente à prolação desse despacho, o insolvente veio argumentar que: (i) o montante de € 12 484,13 pertencia ao seu cônjuge, não integrando, por essa razão, a massa insolvente; (ii) os cheques que foram pagos através de desconto na conta bancária tinham sido emitidos em data anterior à declaração de insolvência; (iii) os levantamentos foram destinados à satisfação das necessidades fundamentais do seu agregado familiar. Afigura-se, no entanto, que toda essa argumentação ficou exaurida com o referido despacho, que implicitamente, ao determinar a restituição do indicado montante, a considerou improcedente. Constituindo a questão assim decidida um antecedente lógico da que foi apreciada no despacho recorrido, o caso julgado adrede formulado impõe-se aqui.[3]
Como se sabe, com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC, onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582...”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur.
Dito de outra forma, o caso julgado não tem apenas relevância negativa: como a doutrina[4] e a jurisprudência[5] reconhecem de forma unânime, o caso julgado material pode  funcionar como exceção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, ou como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
O mesmo autor acrescenta (O Objeto cit., pp. 171 – 172) que a diversidade entre os objetos de uma e outra ação torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção de caso julgado. Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
Deste modo, pode dizer-se que a questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
Ora, tendo havido uma apropriação de parte do referido saldo bancário, quantificada em € 12 484,13, ocorreu a correspondente diminuição da massa patrimonial destinada à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas (art. 46/1), o que redunda num agravamento da situação de insolvência. Por outro lado, o insolvente foi advertido para esse resultado por duas vezes, tendo sido instado a restituir o montante de que se apropriara. Isto permite afirmar que estava ciente dele e, nessa medida, que atuou dolosamente.
Assim, a situação deve ser enquadrada na alínea b) do n.º 1 do art. 243, permitindo a cessação antecipada do procedimento.
A decisão recorrida apresenta-se como correta, ainda que em consequência do enquadramento da situação numa causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração diversa da que nela foi considerada. As conclusões C a L da alegação dos Recorrente são, portanto, improcedentes.
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2).3.8. Uma nota final para dizer que toda a argumentação do Recorrente condensada nas conclusões M a O parte do pressuposto de que o referido montante de € 12 484,13 integrava o rendimento indisponível, não estando, por isso, sujeita à fidúcia, o que encerra uma verdadeira petição de princípio: o saldo da conta bancária integrava, como vimos, a massa insolvente, para a qual foi apreendido, estando, assim, colocado à margem do instituto da exoneração, no qual são apenas considerados os rendimentos do devedor obtidos subsequentemente ao despacho inicial (art. 239/2).
Na verdade, sendo inequívoco que, na pendência do período de cessão, existem duas massas patrimoniais distintas – a fidúcia e o rendimento indisponível –, também é inequívoco que com elas pode coexistir a massa insolvente. É, aliás, isto que justifica que, como sucedeu no caso, o despacho inicial de exoneração não tenha importado o encerramento total do processo de insolvência (cf. despacho de 30 de agosto de 2021), nos termos previstos no art. 233/7 do CIRE.
As referidas conclusões são, assim, manifestamente improcedentes.
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3). Vencido, o Recorrente deve suportar as custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo: art. 527/1 e 2 do CPC).
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IV.
Nestes termos, acordam os juízes que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar o presente recurso de apelação improcedente, confirmando, ainda que com fundamentação diversa, o despacho recorrido que declarou a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante do Recorrente.
Condenar o recorrente nas custas devidas pelo recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Notifique.
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Guimarães, 29 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
José Alberto Martins Moreira Dias (1.º Adjunto)
Maria Gorete Morais (2.ª Adjunta)


[1] No entender de Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade”, AAVV, Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 195, as obrigações continuam a existir, não como obrigações civis, suscetíveis de execução judicial, mas como obrigações naturais, cujo cumprimento, não sendo judicialmente exigível, corresponde a um dever de justiça.
[2] Para maiores desenvolvimentos, vide a exaustiva exposição feita em RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1), relatado pelo Desembargador José Alberto Moreira Dias, aqui 1.º Adjunto.
[3] Sem prejuízo, sempre se nota que a afirmação segundo a qual metade do saldo da conta bancária pertence ao cônjuge do insolvente, por via do regime de bens (comunhão de adquiridos) padece de um evidente equívoco. A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade coletiva. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de os direitos dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património coletivo não pertencem diretos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente, pelo que, na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha, o que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património. Até à respetiva divisão, sob a forma de partilha, os cônjuges são, pois, detentores de uma pars quota sobre uma universalidade em titularidade indivisa, uma quota ideal cujo conteúdo se concretiza em pars quanta depois da divisão. De facto, é apenas na partilha que os cônjuges recebem a meação no património comum. Como resultado disto, o n.º 1 do art. 46 do CIRE, segundo o qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, deve ser interpretado no sentido de que a esta massa pertencem aqueles bens que, por determinação substantiva, podem ser chamados a responder pelas suas dívidas (art. 601 do Código Civil). Se o insolvente for casado num dos regimes de comunhão, a par dos seus bens próprios existe uma massa de bens comuns afeta ao cumprimento de determinadas obrigações. E se no processo foi declarada unicamente a declaração de um dos cônjuges, tratando-se de um processo concursal, a declaração de insolvência chamará ao processo todos os seus credores – não só detentores de garantia real, mas também os credores comuns, e não só por créditos da exclusiva responsabilidade do insolvente, mas igualmente por créditos de responsabilidade comum do casal. A massa ativa deve, assim, incluir os bens comuns, uma vez que estes responderão sempre pelos créditos reclamados: na sua totalidade tratando-se de dívidas comuns, ou até ao valor da sua meação, no caso de dívidas da responsabilidade pessoal do insolvente. A insolvência de um dos cônjuges casado num dos regimes de comunhão (ou, sendo divorciado, não tenha sido ainda efetuada a partilha dos bens comuns do casal) envolve, assim, a apreensão de todos os bens do insolvente, neles se incluindo não só os bens próprios do cônjuge/insolvente, mas também os próprios bens comuns do casal. A este propósito, RC 9.05.2017 (965/16.0T8LRA-D.C1), RL 17.06.2021 (234/20.1T8VPV.L1-2).
[4] Sobre a questão, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/ [13.09.2023]; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722.
[5] Inter alia, os seguintes arestos do STJ: 30.04.2019 (4435/18.4T8MAI.S1), 14.09.2022 (24558/19.1T8LSB.L1.S1), 2.03.2023 (6055/18.4T8ALM.L1.S1), 12.04.2023 (979/21.9T8VFR.P1.S1), 30.05.2023 (3358/20.1T8BRG.G1.S1) e 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1).