Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
175/12.6.GCVCT.G1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO
VALOR PROBATÓRIO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A participação do acidente não tem força probatória plena quanto aos factos nela constantes, uma vez que o participante não presenciou directamente o acidente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Vitor M. foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.148º, nº1 do CP, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6 euros, o que perfaz a quantia de € 480,00.

Foi, além disso, condenada a demandada civil “G…i - Companhia de Seguros, ….”, a pagar à demandante “U….” a quantia de € 6.016,48, acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a data da notificação do pedido.

Inconformada recorre a demandada - Companhia de Seguros, suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto (valor probatório da participação do acidente);

- inspecção ao local;

- enquadramento jurídico (violação do dever de vigilância).

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A demandante U… - Unidade L. respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em exclusivo sobre os pressupostos processuais do recurso confinado a matéria cível.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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II- Fundamentação

A) Factos provados

“1- No dia 26 de Fevereiro de 2012, cerca das 11.50h., o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-.., na Rua do Extremo da Ola, freguesia de Mazarefes, nesta comarca, sentido Mazarefes/Vila Fria;

2- Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o menor Simão D., nascido ..-8-2002, encontrava-se imobilizado na rampa que dá acesso à residência com o nº…, situada do lado direito da via, atento o sentido de marcha supra referido, a aguardar que a sua avó efectuasse a travessia da via;

3- Por razões que se prendem com o facto de o arguido ter olhado momentaneamente para o lado contrário àquele onde se encontrava o ofendido, o que provocou a sua distracção, acabou aquele por invadir, pelo menos parcialmente, a rampa onde se encontrava o menor e embater lateralmente – lado direito - com a viatura no corpo daquele, que, em consequência, caiu ao chão;

4- Como consequência directa e necessária do referido embate, o Simão D. sofreu as lesões descritas nas fichas clínicas e exames periciais juntos aos autos, designadamente de fls.133 a 135 - que aqui se dão por reproduzidos -, lesões essas que lhe determinaram, também de forma directa e necessária, 367 dias de doença, sendo 10 dias de afectação de capacidade para o trabalho geral e 60 dias de incapacidade para o trabalho profissional;

5- A largura da faixa de rodagem é de cerca de 5,50 m. e o local do embate situa-se numa curva acentuada para a direita, atento o sentido de marcha do arguido;

6- O arguido alheou-se, por momentos, da condução do veículo que fazia, descuidando-se desta;

7- Agiu com falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel e, ao conduzir o veículo do modo e nas condições descritas, não agiu com a diligência e cautela de que era capaz, sem prever as consequências da sua conduta, bem sabendo que esta era proibida por lei;

8- O arguido nas circunstâncias supra referidas apresentava uma TAS de 0,85 gr./l.;

9- Não tem antecedentes criminais;

10- É considerado pelas pessoas das suas relações como bom condutor, prudente, sem hábitos de consumo excessivo de álcool e bem comportado;

11- É casado e tem dois filhos, sendo um ainda menor e a seu cargo;

12- Vive com a família, em casa própria, adquirida com recurso ao crédito bancário, pagando por tal cerca de 252 euros mensais;

13- Exerce a actividade de padeiro, auferindo 621 euros mensais;

14- Tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade;

15- A via referida em 1. e 5. possui duas faixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito, sem delimitação, sendo o piso em asfalto e em razoável estado de conservação;

16- No local do embate a via é ladeada por muros e habitações;

17- O tempo estava bom e o piso seco;

18- O menor Simão D., em consequência do embate, sofreu uma fractura do membro inferior esquerdo, tendo dado entrada nos serviços de urgência da demandante no mesmo dia, pelas 13.46h.;

19- Apresentava a referida fractura e escoriações nas mãos, face e cotovelo;

20- Foi efectuada lavagem e desinfecção com betadine, imobilização com tala gessada e recebeu cuidados de neurologia e cirurgia geral, com parecer da primeira referida especialidade;

21- Foi submetido a cirurgia para tratamento da fractura, fez análises, exames e foi medicado;

22- Permaneceu internado até 5-3-12;

23- Nos dias 8-3-12, 15-3-12 e 5-7-12 voltou às instalações da demandante por dores no membro inferior esquerdo, efectuando mais exames;

24- No dia 19-1-13 voltou às instalações da demandante por dores no membro inferior direito, devido ao esforço, efectuando mais exames;

25- No dia 22-6-13 voltou às instalações da demandante por dores no calcâneo esquerdo, efectuando mais exames;

26- Foi acompanhado no serviço de consultas externas, na especialidade de ortopedia, nos dias 11-4-12, 8-8-12, 19-9-12, 21-9-12 e 3-4-13;

27- Foi acompanhado nos Serviços de Medicina Física e de Reabilitação do Centro de Saúde de D., onde recebeu tratamentos;

28- Os tratamentos e serviços prestados importaram num total de 6.016,48 euros, ainda não pagos – cfr. docs. de fls.185 a 259, que aqui se dão por reproduzidos;

29- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº.008410349428, em vigor à data do acidente, havia sido transferida para a demandada a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-..”.

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B) Factos Não Provados

“- Não provado que a TAS de 0,85 g/l referida em 8 tenha também provocado distracção ao arguido;

- Não provado que a TAS apresentada pelo arguido tenha também contribuído para a sua desatenção e descuido, por os reflexos, atenção e capacidade de reacção do mesmo estarem consideravelmente diminuídos e que este bem o soubesse;

- Não provado que o arguido, quando passava em frente ao prédio com o nº…, tenha sido surpreendido pelo peão Simão D. e que este tenha saído inadvertidamente da sua residência, sita do lado direito da via, atento o sentido de marcha do arguido;

- Não provado que o embate tenha ocorrido a 0,10 m. do limite da berma direita”.

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C) Motivação de Facto

“O tribunal formou a sua convicção, relativamente aos factos provados e não provados, para além do correlacionamento de toda a prova produzida:

- no teor das declarações prestadas pelo arguido, que descreveu, em síntese, a forma como se apercebeu do acidente, referindo que vinha com a esposa, ao longe viu uma pessoa parada, do outro lado da estrada, em frente ao portão, fez a curva - que caracterizou como sendo um bocado fechada – “justinho”, mas referindo que não subiu a rampa de acesso ao dito portão, e, ao passar, não viu ninguém, ouvindo apenas um impacto de algo a bater no veículo, parando ele de seguida, a cerca de 5 metros; depois viu o menor no chão, descrevendo a sua posição; referiu ainda que o local se situa a cerca de 100 metros da sua casa e esclareceu sobre alguns aspectos da sua actual situação pessoal;

- nas declarações do assistente, o menor Simão D., que afirmou encontra-se então na rampa de acesso à sua residência, com o portão aberto - sendo este automático, estando ele a controlá-lo para que não se fechasse - e aguardando a avó, que estava do outro lado da estrada, tendo sido nesta posição, parado, que foi apanhado pelo veículo que passou, não tendo ele visto antecipadamente o mesmo;

- José D.., pai do menor assistente, presenciou o acidente, encontrando-se no interior do seu veículo, que acabara de estacionar, de marcha-atrás, no logradouro da mesma residência (estando pois de frente para o portão aberto, por onde acabara de entrar, e onde se encontrava o seu filho), que afirmou estar o menor parado, em cima da rampa, quando veio o veículo e embateu nele; descreveu o local, a largura da rampa - cerca de 60 cm. - e o estado em que ficou o menor;

- nos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que:

- Mª Manuela D., avó do menor, que presenciou o acidente, encontrando-se ela em frente ao dito portão, do outro lado da via, descreveu a percepção que teve daquele, como o menor estava parado na rampa, viu que o arguido, ao passar, olhou para ela (assim como o fez a esposa do mesmo), circulando “rente” à valeta (já que a estrada no local não tem bermas) e depois ouviu o barulho do embate; aludiu ainda às características do local e à posição em que ficou o neto e o veículo;

- João M., que se encontrava no interior do veículo estacionado na parte interior do portão da residência, juntamente com o pai do menor, que descreveu o que viu e a percepção que teve do acidente, em moldes coincidentes no essencial aos do pai do menor;

- Luís A., agente da GNR que elaborou a participação e croqui de fls.25 e s., confirmando as medidas que efectuou e referindo que o local de embate que naquele sinalizou foi o indicado pelo arguido, referindo que este seria 5/10 cms dentro da faixa de rodagem;

- Mª. Manuela S., esposa do arguido e que vinha com este no veículo - no lado do passageiro da frente -, confirmou que viu a avó do lado esquerdo, não viu ninguém do lado direito, depois ouviu um impacto e pararam a 4/5 m.; mencionou que ia a olhar para a frente, que do lado direito da via não se consegue ver, nem dá para circular uma pessoa a pé (sem bermas), tendo feito a curva normalmente, sem invadir a rampa, sendo a curva fechada e passando o arguido ali todos os dias, sempre fazendo a mesma trajectória; aludiu ainda à forma como ficou posicionado o menor e aos danos no veículo, bem como à preocupação que tiveram em saber do estado do menor;

- Paulo S., cunhado do arguido, referiu as características da via e atestou o habitual bom comportamento do arguido;

- Vitor S., filho do arguido, igualmente atestou o habitual bom comportamento do pai; e,

- Manuel C. e Cristina C., médico e directora dos serviços financeiros da ULSAM, respectivamente, aludiram, o primeiro, aos cuidados que prestou ao menor, confirmando o que fez constar da documentação hospitalar junta, e, a segunda, confirmando o teor dos documentos juntos pela demandante e a circunstância dos respectivos valores estarem por pagar;

- Rui P., perito averiguador, que presta serviços também para a demandada, referiu a configuração do local e os danos havidos no veículo; e,

- no teor dos documentos, exames e fotografias juntos, designadamente, de fls.25 a 31, 48 a 51, 74 a 94, 100 e s., 113 a 115, 121 e s., 125 e s., 133 a 135, 185 a 259, 287, 300 a 303 e 334.

Conjugadas as declarações do arguido, do que foi possível extrair das mesmas como credível e lógico, com os depoimentos indicados e com o teor dos referidos documentos, mormente o que das fotografias juntas resulta a propósito da configuração do local, dos ferimentos sofridos pelo menor e dos danos verificados no veículo, analisados todos criticamente e em conformidade com as regras de experiência comum, levaram o tribunal a convencer-se quanto aos factos que apurou.

Na verdade, aliando a circunstância de que é o próprio arguido que refere que fez a curva “justinho”, ao afirmado pela avó do menor, Mª Manuela D., que diz ter visto que olhavam para si (o que é lógico, por se tratar de um peão, que se encontra em frente, antes de iniciar a curva, e que, consequentemente, desvia a atenção do condutor, focalizando-se este nela ao contornar a curva), ao referido pelo menor, que não sai de cima da rampa, confirmando o pai deste e a testemunha João

Mirando esta circunstância (a imobilização do menor na rampa) e ao ainda acrescentado pela esposa do arguido, Mª Manuela S., que menciona não ser possível ver, com a curva, quem esteja do lado direito da via - que nem tem bermas -, e ser sempre aquela a trajectória feita pelo marido (independentemente de ter, ou não, bebido anteriormente), ou seja, muito próximo do limite exterior da estrada, não obstante aquela ausência de visibilidade, ficou o tribunal convencido de que o arguido efectuava a curva de forma demasiado próxima ao limite da via e, ao desviar a sua atenção para o peão parado do outro lado da mesma via, inadvertidamente e pelo menos com um pouco do seu veículo, invadiu a rampa de acesso ao portão da residência do menor, onde este se encontrava parado, embatendo com o seu veículo no menor (numa zona do veículo que se situa até em local anterior ao do espelho retrovisor do mesmo, como se constata de fls.300 e 345 e ss.).

Quanto aos restantes factos, mormente os relativos ao habitual bom comportamento do arguido, à sua situação pessoal e aos tratamentos e serviços prestados pela demandante ao menor ferido, considerou-se essencialmente os depoimentos das testemunhas indicadas, Vitor S. e Paulo S. e ao teor dos documentos hospitalares juntos, que foram confirmados pelas testemunhas Cristina C. e Manuel C..

No que concerne aos factos não apurados teve o tribunal em consideração, para além do que já resulta do que supra se disse, a ausência de prova nesse sentido produzida em audiência (sendo certo que nem o arguido, nem a sua esposa referem ter sequer visto antes do embate o menor)”.

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Apreciando

1- Impugnação da matéria de facto (valor probatório da participação do acidente)

Invoca a recorrente seguradora que terá sido mal julgada a matéria de facto no tocante aos pontos 2, 3, 6 e 7 dos factos provados, aludindo também na conclusão 2 a diversos factos que, em seu entender, seriam relevantes mas que não foram considerados na peça recorrida.

Cumpre adiantar alguns tópicos sobre o tema em face da forma como são colocadas estas questões.

É sabido que o recurso nesta sede não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados.

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:

“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Em consonância com tal dispositivo e perante a filosofia inerente aos próprios recursos tem-se entendido que a proposta de um distinto julgamento com vista à comprovação de matéria de facto que não consta do elenco dos factos provados e não provados da peça recorrida não pode manifestamente ser objecto de apreciação pelo Tribunal ad quem em sede de impugnação da matéria de facto.

Ensina, a propósito, Paulo Pinto de Albuquerque Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, nota 7 ao art. 412º. CPP

que “A especificação dos "concretos pontos de facto" só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado”.

No mesmo sentido se pronunciou, por exemplo, o Ac. STJ de 21-3-2012, pr. 130/10.0 JAFAR.F1.S1, rel. Armindo Monteiro, no qual se escreveu:

“I- O processo não é um palco onde, sem qualquer limite temporal, se podem praticar quaisquer actos, e a esmo, sem submissão a regras ou limites, sob pena de se afectar o encadeamento lógico em que se traduz, em ordem a atingir-se um objectivo final pré definido.

II- A função do recurso no quadro institucional que nos rege é a de remédio para correcção de erros in judicando ou in procedendo, em que tenha incorrido a instância recorrida, processo de reapreciação pelo tribunal superior de questões já decididas e não de resolução de questões novas.

VIII- Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida”, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjectiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.

IX- Por força da natureza do recurso da matéria de facto para a Relação, que não é um novo julgamento, um julgamento repetível in totum, mas um julgamento parcial assim estruturado de acordo com a vontade do legislador ordinário, dentro da órbita de poderes de configuração que o constitucional lhe confere.

X- A garantia de um duplo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto não é a repetição por inteiro das audiências, o que se harmoniza inteiramente com o princípio de que não está consagrado no nosso direito um direito ilimitado ao recurso”.

Ou o Ac. Rel. Guimarães de 4-3-2013, pr. 746/11.8 PBGMR.G1, rel. Ana T Silva, onde pode ler-se: “Simultaneamente, é facto que não consta do elenco dos Factos Provados e Não Provados da decisão recorrida; pelo que não pode ser objecto de apreciação por este Tribunal em sede de impugnação da matéria de facto”.

Aliás, também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre esta questão, não julgando “inconstitucionais as normas dos artigos 410º, nº1, 412º, nº3, e 428º, conjugados com os artigos 339º, nº4, 368º, nº2, e 374º, nº2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objecto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objecto de prova produzida na 1.ª instância, que o recorrente sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida”. (vd. Ac. TC nº. 312/2012, in DR, II série, de 7-1-2013).

Daí que não possam ser objecto de apreciação as matérias constantes da conclusão 2ª do recurso em análise.

Já, por seu turno, no tocante aos pontos questionados dos factos provados nada do invocado (extractos das declarações do arguido e de duas testemunhas e pretensa prova plena decorrente do conteúdo da participação do acidente enquanto documento autêntico) impõe distinta solução.

Desde logo porque tal qual se tem entendido a participação do acidente não tem força probatória plena quanto aos factos nela constantes, uma vez que o participante não presenciou directamente o acidente.

De facto, como bem refere a demandante, escreveu-se no Ac. STJ de 6-4-2006, pr. 05B3970, rel. Bettencourt de Faria:

“I- A participação de um acidente de viação, feita pela autoridade policial, constitui documento autêntico apenas em relação à mera notícia da ocorrência, ou seja, prova que o agente elaborou essa participação.

II- Mas não constitui documento autêntico em relação às circunstâncias do acidente, uma vez que não é da competência da autoridade policial fazer o seu registo, em termos de julgamento de facto

… O documento da entidade policial em que esta dá conta da ocorrência de um acidente de viação tem natureza autêntica em relação ao facto praticado pelo agente de segurança que consiste na própria participação, ou seja, atesta que determinado agente “tomou conta da ocorrência”. Tudo o mais, ainda que adquirido por percepção directa, nomeadamente as circunstâncias do acidente, são apenas indicações coadjuvantes ou indicativas, que não têm força probatória plena, pela simples razão de que não é da competência da entidade policial fazer um registo de carácter tabeliónico do acidente. Nem a ele foi deferido um poder de julgamento da matéria de facto…”.

No mesmo sentido vai, por exemplo, o Ac. Rel. Guimarães de 25-5-2013, pr. 2319/11.6TBFAF.G1, rel. Fernando Monterroso, no qual se escreve o seguinte acerca do auto de notícia:

“… Um auto de notícia pode ser valorado como meio de prova, mas as comprovações nele feitas valem exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela entidade que o elaborou.

… a possibilidade do auto de notícia ser valorado como meio de prova plena tem como limite “as percepções da entidade documentadora” (art. 371, nº1 do Cód. Civil). Ou, repetindo a frase acima sublinhada do TC 38/86, “estas comprovações valem exclusivamente em relação aos puros factos presenciados pela autoridade”.

Compreende-se bem a razão deste regime.

A entidade que elabora o auto de notícia não é o julgador.

Para se habilitar a elaborá-lo, o autuante pode fazer uma investigação que o leva a formular juízos sobre a existência ou inexistência de factos relevantes para a infracção. Esses factos não são fruto de “percepções da entidade documentadora” (art. 371 nº 1 do Cód. Civil). O termo “percepção” remete para um conhecimento directo e imediato do facto através de um dos sentidos do ser humano, mais vulgarmente a visão ou a audição.

O conteúdo do auto não pode valer como meio de prova plena relativamente aos factos que não tenham sido presenciados pela entidade que o elaborou…”.

Ou seja, todos os factos não directamente percepcionados pelo agente estarão antes sujeitos ao princípio da livre apreciação, tal qual decorre de forma clara do disposto no art. 371º, nº1 in fine do Cód. Civil.

Depois e mais importante, porque, ao fim e ao cabo, se limita a colocar em causa nesta sede a convicção do Tribunal a quo no tocante à credibilidade das declarações do arguido e das duas referidas testemunhas, cujas declarações e depoimentos prestados no tocante a esta matéria o Tribunal a quo desvalorizou por razões que adequadamente justificou na peça recorrida.

Importa relembrar, então, que o recurso da matéria de facto tão pouco se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127º. do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, ed.1974, pág. 204.

Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” CPC anotado, vol. IV, págs. 566 e segs.

De facto, como múltiplas vezes se tem escrito, as declarações dos arguidos e a prova testemunhal são apreciadas segundo a regra da livre convicção do julgador.

E o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não pode servir para subverter o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade de declarantes e testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento - como parece entender o recorrente - mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade dos intervenientes no julgamento. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.

Ora, o recorrente não alega qualquer destes erros (nem estes se detectam da análise dos autos).

Como está bom de ver, na decorrência do supra-exposto, esta é uma questão que, de forma exemplar, escapa ao juízo do tribunal da segunda instância, por estar estreitamente dependente da imediação.

Não está aqui em causa qualquer erro de julgamento (no sentido acima indicado), mas tão só a contestação da decisão do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade das declarações em causa, a que acresce que tão pouco foram indicadas quaisquer provas que imponham manifestamente distinta decisão no tocante aos pontos em causa.

Ademais no presente caso o Tribunal a quo objectivou adequadamente a sua convicção, ao esclarecer com detalhe de forma racional, lógica e correctamente articulada a respectiva ponderação efectuada, tal qual se colhe da motivação transcrita acima, sendo certo que nada do que vem invocado no recurso permite colocar em crise tal julgamento.

Daí que não se vislumbre qualquer razão para afastar o juízo de valoração da prova levado a cabo pelo Tribunal a quo, resultante de uma apreciação “livre” mas devidamente fundamentada, em obediência à lei.

Improcede, assim, esta parcela do recurso.

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2- Inspecção ao local

Pugna a recorrente pela realização de uma inspecção ao local para aferir, nomeadamente, quantos centímetros tinha a rampa ou a que distância fica o sensor do portão da garagem da faixa de rodagem.

Tratando-se de questões pretensamente decorrentes da discussão da causa deveria então a recorrente que esteve devidamente representada na audiência tê-las suscitado no decurso da mesma, agindo com a diligência devida, requerendo então a realização da dita inspecção e recorrendo posteriormente do despacho que sobre tal requerimento recaísse acaso com o mesmo não concordasse.

É que, como é sabido, a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade constitui nulidade dependente de arguição, só podendo ser arguida até ao encerramento da audiência, como aliás decorre do disposto no art. 120º, nºs 2, al. d) e 3, al. a) do CPP, não podendo agora esta Relação conhecer de matéria que extravasa o objecto do recurso e que tão pouco se justifica suscitar oficiosamente dado inexistirem quaisquer elementos concretos e sólidos que tal demandem.

Concluindo, diremos ainda que o tribunal de recurso só pode conhecer, para além das de conhecimento oficioso, as questões que hajam sido examinadas na decisão recorrida, desde que, obviamente, lhe sejam colocadas no recurso, estando-lhe vedado pronunciar-se sobre questões que não tenham sido objecto de conhecimento na decisão impugnada, sob pena de, ao fazê-lo, incorrer em nulidade por excesso de pronúncia - artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

Aquilo que a recorrente pretende com o ora requerido é a alteração da decisão sobre a matéria de facto com recurso a novos elementos não acessíveis no momento da prolação da decisão, o que, como vimos a lei não contempla.

Consequentemente improcede, igualmente, esta parcela do recurso.

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3- Do Direito

Nesta sede propugna a recorrente pela verificação de uma violação do dever de vigilância do pai e da avó do menor.

Tal invocação pressupunha a alteração da matéria de facto. Não tendo a mesma sofrido qualquer alteração e sendo certo que não se provaram quaisquer factos potencialmente subsumíveis a tal pretensa violação, improcede, igualmente, esta parcela do recurso.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso.

Custas cíveis a cargo da recorrente.

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Guimarães, 8/6/2015