Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
11/10.8YRGMR
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO
Sumário: I- A circunstância de a pessoa procurada negar a prática dos factos que determinaram a emissão do Mandado de Detenção Europeu (MDE) e alegar nunca ter sido ouvida no âmbito do processo que corre termos no estado de emissão é irrelevante para o Estado português, enquanto estado de execução, por tal defesa não configurar fundamento de oposição ao mandado.
II- Os motivos humanitários decorrentes da situação pessoal da pessoa procurada, nomeadamente da sua situação familiar, profissional ou do seu estado de saúde, não constituem fundamento de recusa do cumprimento do mandado. Quer a Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho Europeu, de 13 de Junho de 2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu, quer a Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, que a implementou na ordem jurídica nacional, apenas conferem relevância àquelas razões humanitárias para suspender o procedimento de entrega.
Decisão Texto Integral: Proc.º n.º 11/10.8YRGMR
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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I- Relatório
1. O Exmo Sr. Procurador- Geral Adjunto junto deste Tribunal, promoveu o cumprimento do mandado de detenção europeu emitido em 4 de Outubro de 2010 pelo M.º Juiz (His Honour Judge) Jeremy …do Tribunal da Coroa de Maidstone (Maidstone Crown Court) do Reino Unido, contra a cidadã portuguesa A.A., nascido no dia 7 de Janeiro de 1975, residente que foi em Inglaterra em 22A Sorel Drive, Eastbourne, East Sussex BN 23 8BJ, com última residência conhecia em Portugal na Rua …, em Braga, para procedimento criminal por três infracções criminais: um “assalto a propriedade residencial” p. e p. pelo al. b) do n.º1 da secção 9 da Lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968) a que corresponde uma pena com a duração máxima de 14 anos de prisão, e dois furtos ambos previstos pela secção 1 da lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968) e puníveis com pena de prisão até 7 anos.

Por despacho de 29-11-2010 considerou -se que o mandado, devidamente traduzido, continha as informações suficientes tendo em consideração o disposto no artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto e, ao abrigo do preceituado no artigo 16.º daquele diploma legal, ordenou-se a sua entrega ao Ministério Público para que providenciasse pela detenção da pessoa procurada.

A pessoa procurada foi detida no dia 6 de Dezembro de 2010, tendo sido ouvida no mesmo dia, nos termos do artigo 18º da Lei n.º 63/03, de 23 de Agosto, tendo declarado não consentir na sua entrega e não renunciar ao benefício da regra da especialidade.

Foi proferido despacho de validação da detenção e determinado o cumprimento do disposto no artigo 21º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

Depois de ter pedido e de lhe ter sido concedido prazo para o efeito, a arguida apresentou, tempestivamente, oposição ao mandado, alegando em síntese que:
a) nega categoricamente todos os factos que lhe são imputados pelo estado membro-Reino Unido, melhor exarados no MDE”;
b) Sobre tais factos nunca foi ouvida seja no Reino Unido seja em Portugal;
c) Para alem disso, o crime que lhe é imputado não cabe no âmbito do n.º 2, do artigo 2.°, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, sendo causa de recusa facultativa de Execução do Mandado de Detenção Europeu, artigo 12° - da mencionada Lei;
d) Não tem qualquer ligação com o Reino Unido, seja de carácter profissional, seja de índole pessoal;
e) A arguida é portadora de doença do foro neurológico, padecendo de depressão e ansiedade crónica, estando a ser seguida pelo Centro de saúde de Braga;
A arguida é toxicodependente, encontrando-se presentemente integrada no programa de desintoxicação (Metadona) junto do CAT móvel da Cruz Vermelho Portuguesa, em Braga;
Está igualmente a frequentar o Curso de Educação para Adultos - junto da Direcção Regional de Educação do Norte;
Como vem de se dizer, a arguida está integrada e empenhada num sem número de actividades e tratamentos, em vista a recuperação da sua saúde físico-psicológica, tendo em conta a ressocialização em curso;
A interrupção de tais programas, poderá colocar irremediavelmente em crise a sua recuperação e ressocialização;
f) Para alem disso, a arguida só pode contar com familiares e amigos em território nacional, porquanto a sua extradição para um estado membro da União Europeia - Reino Unido, importará a perda de laços imprescindíveis na recuperação em marcha.
Termina pedindo que se conceda à arguida a faculdade de permanecer em território Nacional, em obediência ao princípio do ius soli, e sem prescindir de todas as garantias de defesa quanto à matéria sub judice constante do MDE.”

O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência da oposição por a negação dos factos imputados à arguida não caber na previsão do artigo 21.º, n.º2 da Lei n.º 65/2003.

Foi inquirida a testemunha arrolada pela arguida após o que foram produzidas alegações orais.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo certo que o tribunal é o competente (artigo 15.º da citada lei n.º 65/2003) e não ocorrem nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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II- Fundamentação
1. A) Factos provados:
1) Em 4 de Outubro de 2010 o M.º Juiz (His Honour Judge) Jeremy … do Tribunal da Coroa de Maidstone (Maidstone Crown Court) do Reino Unido, emitiu um mandado de detenção europeu contra a cidadã portuguesa A.A., nascido no dia 7 de Janeiro de 1975, residente que foi em Inglaterra em 22A Sorel Drive, Eastbourne, East Sussex BN 23 8BJ, com última residência conhecia em Portugal na Rua …, em Braga, para procedimento criminal por três infracções criminais: um “assalto a propriedade residencial” p. e p. pelo al. b) do n.º1 da secção 9 da Lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968) a que corresponde uma pena com a duração máxima de 14 anos de prisão, e dois furtos ambos previstos pela secção 1 da lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968) e puníveis com pena de prisão até 7 anos – docs de fls. 4 a 19 e 20-28 (MDE e respectiva tradução), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2) A arguida declarou não consentir na sua entrega e não renunciar ao benefício da regra da especialidade.
3) A arguida é portadora de doença do foro neurológico, padecendo de depressão e ansiedade crónica, estando a ser seguida pelo Centro de Saúde de Braga;
4) A arguida é toxicodependente, encontrando-se presentemente integrada no programa de desintoxicação (Metadona) junto do CAT móvel da Cruz Vermelha Portuguesa, em Braga;
5) Está igualmente a frequentar o Curso de Educação para Adultos - junto da Direcção Regional de Educação do Norte;
6) A arguida encontra-se em Portugal desde Fevereiro de 2006. Vive com um companheiro, desempregado, também toxicodependente em tratamento de desintoxicação, em casa deste. Vivem ambos de subsídios da Segurança Social.
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B) Factos não provados:
- que “Sobre tais factos [os constantes do MDE] nunca foi ouvida seja no reino Unido seja em Portugal”;
- que “Não tem qualquer ligação com o Reino Unido, seja de carácter profissional, seja de índole pessoal”;
- que “a arguida só pode contar com familiares e amigos em território nacional”.
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C) Convicção do tribunal:
Quanto aos factos provados a convicção do tribunal fundou-se na apreciação da prova documental constante dos autos – docs. de fls. 4 a 19 e 20-28 (MDE e respectiva tradução), 52 (declaração do Centro de Saúde de Braga), 53 (declaração da Delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa), fls. 54 (declaração do Agrupamento de Escolas de Maximinos-Braga) - conjugada com as declarações da arguida no que respeita à sua situação pessoal.

Quanto aos factos não provados os mesmos ficaram a dever-se a uma de duas razões: a) ausência de prova e/ou; b) prova insuficiente.

Assim, quanto à alegada falta de audição da arguida nenhuma prova foi produzida. O teor do MDE parece até sugerir o contrário uma vez que dele consta expressamente que, no que se refere ao assalto à residência, a arguida foi detida tendo sido libertada sob fiança, não tendo posteriormente comparecido em audiência e, no que concerne aos demais furtos em questão, compareceu em procedimentos de identificação, foi identificada mas não voltou a comparecer.

Relativamente à alegada falta de ligação com o Reino Unido bem como à alegação de que só pode contar com familiares e amigos em território nacional, a única prova produzida neste sentido redundou no depoimento da testemunha B.B., o qual não mereceu credibilidade. Trata-se do companheiro da arguida, também ele toxicodependente, cujo depoimento foi absolutamente tendencioso. Para além disso, aquele depoimento não é sequer verosímil à luz das regras da experiência e é parcialmente contraditório. Na verdade, não é crível que quem viveu pelo menos durante três anos no Reino Unido, aí trabalhando, não tenha feito amizades. Por outro lado é contraditório com a circunstância relatada pela mesma testemunha de a arguida ter retirado os bens da residência que vem indicada como tendo sido assaltada, a pedido de um cidadão português de nome C.

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2. O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal, ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, suprimindo o recurso à extradição, executado com base no princípio do reconhecimento mútuo, do qual é, aliás, a primeira concretização (cfr. v.g., Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu” in RPCC, ano 14, n.º3, Julho-Setembro 2004, págs. 325-367).

A legislação portuguesa, Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, que implementou na ordem jurídica nacional a Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho Europeu, de 13 de Junho de 2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu e processos de entrega entre os estados membros, é aplicável a todos os pedidos recebidos após a sua entrada em vigor, 1 de Janeiro de 2004, com origem em Estados Membros da União Europeia que tenham implementado a referida Decisão Quadro [cfr. artigo 40º da citada Lei 65/2003; sobre os complexos problemas derivados da aplicação da lei no tempo da Decisão-Quadro, cfr. Luís Silva Pereira, “Alguns Aspectos da implementação do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu”, in Revista do Ministério Público, ano 24, Out./Dez. 2003, n.º96, págs. 52 a 56 e Jorge Costa, “O Mandado de Detenção Europeu. Emissão e Execução segundo a Lei Nacional”, in Polícia e Justiça, III série, Julho-Dezembro 2004, n.º4, págs.234-235 e nota 11], como é o caso do Reino Unido.
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3. No caso em apreço, não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do mandado que contem todos os elementos identificativos, descritivos e decisórios previstos no artigo 3º, da citada Lei 65/2003, foi recepcionado em boa e devida forma e está devidamente traduzido para português.
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4. Fundamentos de oposição.
§1. Em relação aos fundamentos de oposição a que alude o artigo 21º, n.º2, da citada Lei 65/2003, não se suscitam dúvidas quanto à identidade da opoente.

No que diz respeito à existência de causas de recusa do mandado de detenção europeu, não se verifica nenhum dos fundamentos de recusa obrigatória previstos no artigo 11º daquela Lei, os quais, de resto, nem sequer foram invocados.
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§2. Segundo a requerida “o crime que lhe é imputado não cabe no âmbito do n.º 2, do artigo 2.°, da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, sendo causa de recusa facultativa de Execução do Mandado de Detenção Europeu, artigo 12° - da mencionada Lei.”

Não lhe assiste, manifestamente, razão.
O mandado de detenção europeu em causa nestes autos foi emitido contra a requerida para procedimento criminal por três infracções criminais: um “assalto a propriedade residencial” p. e p. pelo al. b) do n.º1 da secção 9 da Lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968) a que corresponde uma pena com a duração máxima de 14 anos de prisão e dois furtos ambos previstos pela secção 1 da lei do Furto de 1968 (Theft Act de1968) e puníveis com pena de prisão até 7 anos.

É a seguinte a descrição das circunstâncias em que as infracções foram cometidas, constante do MDE:

«(1) Assalto contrário à al. b) do n.º1 da secção 9 da Lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968)
Entre o dia 25 de Janeiro de 2006 e o dia 28 de Janeiro de 2006, em Bourne Street, Eastbourne, East Sussex, Reino Unido, A.A. após entrar como intrusa num edifício que é uma propriedade residencial conhecida como Basement Flat, 8 Bourne Street, furtou 6000£ em dinheiro
(2) Furto, contrário à secção 1 da lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968)
No dia 8 de Fevereiro de 2006, A.A. furtou produtos de doçaria pertencentes a Tescos Express Stores, Stones Cross.
(3) Furto, contrário à secção 1 da lei do Furto de 1968 (Theft Act de 1968)
No dia 14 de Fevereiro de 2006, A.A. furtou alimentos pertencentes a Co-OP Stores, Framfield Way.
Ocorreu um assalto em Basement Flat, 8 Bourne Street, Eastbourne, entre as 22h30 de quinta-feira, 26 de Janeiro de 2006 e as 2h15 de sexta-feira, 27 de Janeiro de 2006. Foi furtada uma grande quantidade de aparelhos eléctricos num valor superior a 6000£, sendo que a reparação dos danos causados na porta de entrada e na janela saliente custou cerca de 250£. Foi encontrado sangue numa mesa de lounge de onde o computador portátil foi furtado também numa armário de quarto e no interruptor da cozinha. Crê-se que A.A. se tenha cortado ao entrar pela janela partida. Foi detida, após a correspondência do ADN, e posteriormente acusada pela infracção. Foi libertada sob fiança pelo tribunal mas não compareceu na audiência, razão pela qual foi emitido um mandado para a sua detenção.
Relativamente às infracções de furto, a arguida compareceu em procedimentos de identificação relativamente a cada infracção. Foi identificada positivamente em relação a cada infracção, mas não voltou a comparecer em resposta à libertação sob fiança.»

É certo que nenhuma dos referidos ilícitos integra o elenco de infracções constantes do n.º 2 do citado artigo 2º.

Mas é inequívoco que à luz da ordem jurídica portuguesa os factos descritos no MDE integram um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204º, n.º2 alínea e) do Código Penal e dois crimes de furto p. e p. pelo artigo 203º do mesmo Código.

Uma vez que os factos são puníveis pela lei do estado membro de emissão com pena de duração máxima não inferior a 12 meses (artigo 2º, n.º1) e constituem “igualmente infracções puníveis pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação” (n.º3 do citado artigo 2º), nenhum obstáculo existe, a este nível, quanto à entrega da pessoa reclamada.

Improcede, pois, o invocado fundamento de recusa.

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5. A alegação de não ter praticado os factos que lhe são imputados e de nunca ter sido ouvida sobre tais factos.

Na sua oposição, a arguida “nega categoricamente todos os factos que lhe são imputados pelo estado membro-Reino Unido, melhor exarados no MDE.”

Mas, os tribunais portugueses, à semelhança dos seus congéneres europeus, têm sido frequentemente obrigados a delimitar negativamente os fundamentos de oposição, esclarecendo que:

- “A circunstância da pessoa procurada entender que não praticou factos que determinam responsabilidade criminal é irrelevante para o Estado português, que só tem de conhecer da conformidade legal do próprio mandado no sentido de o poder executar, pois a decisão judiciária é do Estado que o emitiu e é perante ele que aquela tem de exercer os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso”- Ac STJ. de 25.01.2007, Proc. n.º 271/07-5, Relator: Cons. Santos Carvalho, in www.dgsi.pt

- “Os direitos de defesa relativos ao processo que deu origem à emissão do mandado (como os relativos à existência ou não da infracção) são exercidos neste processo e não no âmbito do mandado de detenção europeu” - Ac STJ. de 6-6-2007, proc.º n.º 07P2182, rel. Rodrigues da Costa, in www.dgsi.pt

- VI - Por isso, face ao espírito de cooperação desejável entre os Estados da União Europeia, não pode o recorrente opor-se ao mandado demonstrando que não praticou os factos.
VII À não ser assim, a breve trecho transformar-se-ia o MDE num processo de investigação dos factos, retardando a entrega, e, a ser permitido o elenco de provas arrolado, lançar-se-ia sobre o STJ o ónus de apreciar a matéria de facto produzida na Relação, desvirtuando a sua função de tribunal de revista.
VIII - Essa defesa - que não configura fundamento de oposição ao mandado - há-de o procurado apresentá-la às autoridades judiciárias espanholas, perante a ordem jurídica de que é nacional, com pleno contraditório.- Ac. do STJ de 17-1-2007, proc.º n.º 06P4828, rel. Santos Monteiro, in www.dgsi.pt

- “A execução de um mandado de detenção europeu não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor, restando neste âmbito, ao Estado da execução, indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução, agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo em conformidade, nomeadamente com o disposto na Lei n.º 65/2003 e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho,- ar. 1º, n.º1, da Lei citada”- Ac do STJ de 16-2-2006, proc.º n.º 569/06-5ª, rel. Pereira Madeira in Col. de Jur.-Acs do STJ, ano XIV, tomo 1, pág. 193-195 (p.194).

- “conforme resulta da doutrina do artigo 21º, o motivo de oposição à execução do MDE “erro na identificação do detido” cinge-se à desconformidade da identificação do detido com a identificação constante do mandado. Saber se a pessoa detida ao abrigo do mandado foi ou não a pessoa que praticou o crime é questão que já releva da bondade substancial da sentença, que não pode ser apreciada” - Ac. do STJ de 29-7-2005, proc.º n.º3624/05-5ª, rel. Quinta Gomes, in www.pgdlisboa.pt/). Cfr., no mesmo sentido, os Acs do STJ de 13-1-2005, proc.º n.º 71/05-5ª [“Isto não quer significar que, obviamente, que os dados fornecidos pela entidade emitente não possam ou não devam ser objecto de controlo ou contradição pelo interessado. Sê-lo-ão, na lógica do sistema, no âmbito do processo penal respectivo, mas naturalmente, de execução inapropriada no âmbito de um processo ultra-célere e simplificado como este de execução do MDE”], de 17-1-2007, proc.º n.º 4828/06-3ª, in Col-Jur.-Acs do STJ 2007, tomo 1, pág. 168 [“O recorrente é havido pelas autoridades judiciárias espanholas como autor do ilícito, o que sucede é que, ante a nossa ordem judiciária nacional, este, através de vários meios que intenta lançar mão, pretende demonstrar que não praticou os factos, objectivo que se não amolda ao espírito de cooperação desejável entre os Estados da EU, a breve trecho transformando o mandado num processo de investigação dos factos, retardando a entrega (…)”] e de 29-5-2008, proc.º n.º 08P1891, rel. Rodrigues da Costa, in www.dgsi.pt

- “Salvo se forem liminarmente impeditivas do diferimento do mandado em face da Lei citada [Lei n.º 65/2003], não cabe, assim, no âmbito do processo de execução do mandado sindicar a bondade das decisões judiciais tomadas no pais emissor, as quais poderão/deverão ser contestadas no âmbito do processo, ele mesmo - Ac. do STJ de 13-1-2005, proc.º n.º71/05-5ª, rel. Pereira Madeira, in www.pgdlisboa.pt/, também citado no Ac. STJ 6-6-2007, proc.º n.º 07P2182, rel. Rodrigues da Costa, in www.dgsi.pt.

“(...) os Estados membros confiam que os sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a qualidade suficiente às decisões, tomadas por autoridades competentes, que dão lugar à execução nos seus territórios. A tarefa das autoridades judiciárias do Estado da execução incide sobre os requisitos do próprio mandado, sem espaço para sindicar a bondade das decisões proferidas pela autoridade competente do Estado membro emissor, dada a garantia de que estas poderão aí ser válida e eficazmente contestadas” - Ac. STJ de 5-4-2006, proc.º n.º 1197/06, apud Ac. do STJ de 18-4-2007, proc.º n.º 07P1432, rel. Soreto de Barros, in www.dgsi.pt.

“(…) face ao espírito de cooperação desejável entre os Estados da União Europeia, não pode o recorrente opor-se ao mandado demonstrando que não praticou os factos. A não ser assim, a breve trecho transformar-se-ia o MDE num processo de investigação dos factos, retardando a entrega, e, a ser permitido o elenco de provas arrolado, lançar-se-ia sobre o STJ o ónus de apreciar a matéria de facto produzida pela relação, desvirtuando a sua função de tribunal de revista. Esta defesa - que não configura fundamento de oposição ao mandado - há-de o procurado apresentá-la às autoridades judiciárias espanholas”-Ac STJ de 17-1-2007, proc.º n.º 4228/06, apud Ac. do STJ de 18-4-2007, proc.º n.º 07P1432, rel. Soreto de Barros, in www.dgsi.pt

- “III - Afastada a existência de motivo de recusa de execução, o MDE adquire plena exequibilidade, não sendo admissível que se recoloquem os fundamentos de facto que o informam. Tal como na transmissão de determinação judicial na ordem jurídica interna também aqui o pedido formulado é cumprido nos seus termos, adquirida que está a sua regularidade formal. IV - A invocação do princípio da presunção de inocência não tem aqui qualquer virtualidade para inquinar factos que foram adquiridos em processo com decisão transitada em julgado, ou suficientemente indiciados para permitir o julgamento na ordem jurídica emitente. O funcionamento do mesmo princípio tem o seu lugar adequado quando nos tribunais franceses se discutiam, ou se vão discutir, factos susceptíveis de tipificar a incriminação tipificada.”-Ac. do STJ de 28-10-2009, proc.º n.º325/09.0TRPRT-A.S1, rel. Santos Cabral, in www.dgsi.pt

Também nesta parte, em face da jurisprudência acabada de citar, se conclui pela improcedência da oposição do arguido, por a sua defesa não configurar fundamento de oposição ao mandado.
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6. A situação pessoal da requerida e os motivos humanitários
Finalmente, a defesa da arguida incide sobre a sua situação pessoal, nomeadamente sobre o seu estado de saúde - toxicodependente, em tratamento de desintoxicação, portadora de doença do foro neurológico, padecendo de depressão e ansiedade crónica, estando a ser seguida pelo Centro de Saúde de Braga.

Segundo a arguida a interrupção de tais programas, e bem assim do Curso de Educação para Adultos junto da Direcção Regional de Educação do Norte, que se encontra a frequentar, poderia colocar irremediavelmente em crise a sua recuperação e ressocialização.

Também nesta parte a defesa da arguida não configura fundamento de oposição ao mandado.

Na verdade, os motivos humanitários decorrentes da situação pessoal da pessoa procurada, nomeadamente da sua situação familiar, profissional ou de saúde, não constituem fundamento de recusa.

Efectivamente, quer a Decisão Quadro 2002/584/JAI do Conselho Europeu, de 13 de Junho de 2002, relativa ao Mandado de Detenção Europeu quer a Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, que a implementou na ordem jurídica nacional apenas conferem relevância àquelas razões humanitárias para suspender o procedimento de entrega e não para a recusa da entrega.
Conforme dispõe o n.º 4 do artigo 23.º da Decisão Quadro 2002/584/JAI, “A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, por exemplo, se existirem motivos válidos para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada. A execução do mandado de detenção europeu deve ser efectuada logo que tais motivos deixarem de existir. A autoridade judiciária de execução informa imediatamente do facto a autoridade judiciária de emissão e acorda com ela uma nova data de entrega. Nesse caso, a entrega deve ser realizada no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.”

Também o n.º4 do artigo 29.º da citada Lei n.º 65/2003 prevê que “A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.”
Este entendimento, também perfilhado, v.g., pelo Supremo Tribunal Holandês (cfr. Elies vam Sliedregt, “The European Arrest Warrant: Bettween Trust, Democracy and the Rule of Law”, in European Constitucional Law Review, vol. 3, n.º2, 2007) e pela Comissão Europeia (cfr. relatório de avaliação, na parte em que critica a legislação italiana por prever uma causa de recusa por motivos humanitários), tem sido igualmente seguido pelo nosso mais alto tribunal

Assim, num caso em que a pessoa procurada pelas autoridades francesas, de nacionalidade Suiça e com última residência conhecida neste país, alegou ser pessoa idosa e debilitada fisicamente e que pediu que fosse negada a entrega “quanto menos por razões humanitárias”, o Ac. STJ 16-2-2005, proc.º n.º 05P559, rel. Silva Flor, www.dgsi.pt teve oportunidade de esclarecer que:
“A idade e a alegada debilidade física da recorrente não são contempladas na Lei em causa como motivos de recusa do cumprimento do mandado.
E as razões humanitárias que invoca, se tivessem algum cabimento - e ainda assim teriam que ser tidas como «graves» - poderiam, quando muito levar a uma suspensão temporária da entrega nos termos previstos no artigo 29.° n.º 4, da mesma Lei, sendo certo, todavia, que só a prova inequívoca de que a viagem até França colocaria manifestamente em risco a sua vida ou saúde poderia ter esse efeito temporário, pois não é de temer que as condições humanitárias vigentes no sistema judiciário do País de liberté, égalité, fraternité, sejam inferiores às congéneres portuguesas.”

Também no Ac. do STJ de 9 de Janeiro de 2008, proc.º n.º 07P4856, rel. Santos Monteiro, in www.dgsi.pt se considerou que:
«a invocação do recorrente de que sofre de doença que o obriga a alongada convalescença e tratamentos, sendo imprescindível à sua recuperação o não afastamento do seu ambiente familiar, não configura motivo legal de recusa facultativa. Pode, sim, constituir, nos termos do art. 29.°, n.º 4, da Lei 65/03, de 23-08, motivo de suspensão temporária da entrega, comprovando-se que a entrega imediata colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada, o que não vem demonstrado no caso em apreço.»
Também nesta parte se conclui pela improcedência da oposição da arguida, por a sua defesa não configurar fundamento de oposição ao mandado.
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7. Garantias
O art. 13.º da Lei 65/2003 trata das garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em determinados casos especiais e esclarece no seu corpo que a execução do MDE “só terá lugar” se o Estado membro de emissão prestar uma das garantias a que se referem as suas alíneas.

De acordo com este preceito legal, a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:
«a) (…)
b) (…)
c) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no estado membro de emissão.»

Após alguma indefinição jurisprudencial sobre a natureza das garantias, isto é sobre o seu carácter facultativo ou obrigatório, o STJ teve oportunidade de dissecar o preceito em questão, esclarecendo que nas garantias a que se referem as suas alíneas “retratam-se procedimentos comuns para as duas primeiras e diverso para a última”

Conforme se assinalou no Ac. do STJ de 4-12-2008, proc.º n.º 08P3861, rel. Simas Santos, in www.dgsi.pt
« 6. No que se refere às alíneas a) e b), não só a execução do MDE só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das garantias (corpo do artigo) a que se referem as suas alíneas, como a própria decisão de entrega só poderá ser proferida depois de prestada a garantia, sendo essas alíneas explícitas quanto à prestação de tais garantias, de natureza e proveniência diferentes.
7. Mas o regime aplicável ao caso da al. c) é diverso: a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado membro de execução (para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado membro de emissão), se for nacional ou residente no Estado membro de execução.
8. Ou seja, não só não é interditada a prolação da decisão de entrega, por falta da respectiva garantia, como é mesmo admitida a sua prolação, sob condição de devolução da pessoa requerida. E não é imposta tal condição como obrigatória, mas como eventual: a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição. Só é aplicável a limitação do corpo do artigo: a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar a garantia devida.
9. Uma vez que a al. c) não explicita qual é essa garantia, terá a mesma de ser deduzida de tal alínea e estar em consonância com a condição, se ele vier a ser determinada: a garantia de que o Estado membro de emissão aceitará devolver a pessoa requerida ao Estado membro de execução para nele cumprir a pena ou a medida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada naquele Estado membro, se essa for também a vontade da pessoa requerida.
10. Interpretação que se ajusta ao pensamento do STJ sobre o MDE e se revê na Decisão­-Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-6-2002, em cujo cumprimento foi aprovado o regime jurídico do mandado de detenção europeu e que permite no seu art. 5.º que cada Estado-Membro de execução possa sujeitar a execução do mandado de detenção europeu pela autoridade judiciária a condições previstas nos seus números, como a do n.º 3, que se refere à sujeição da entrega para efeitos de procedimento penal de nacional ou residente do Estado-Membro de execução, à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado-Membro de emissão» (negritos e itálicos no original)

No mesmo sentido se pronunciou igualmente o importante Ac. do STJ de 18-6-2009, proc.º n.º 428709.0YFLSB, rel. Pires da Graça, in www.dgsi.pt

No caso em apreço, a requerida não só é cidadã nacional como reside em território nacional

Entende-se, por conseguinte, que a condição de devolução não deve deixar de ser estabelecida, na medida em que será mais favorável à reinserção social da requerida que a pena ou medida de segurança privativas da liberdade a que poderá ser condenada no Reino Unido seja cumprida em Portugal, onde poderá beneficiar do apoio de amigos e familiares, se for essa a sua vontade.

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III- Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em deferir a execução do mandado de detenção europeu emitido em 4 de Outubro de 2010 pelo M.º Juiz (His Honour Judge) Jeremy … do Tribunal da Coroa de Maidstone (Maidstone Crown Court) do Reino Unido, contra a cidadã portuguesa A.A., para efeitos de ser sujeita ao processo penal a que se refere o presente mandado e pelos factos nele mencionados.

A entrega à autoridade de emissão será efectuada tendo em atenção que a requerida não renunciou ao benefício da regra da especialidade.

A entrega é subordinada à condição de o Reino Unido aceitar devolver a requerida para cumprimento da pena ou medida de segurança privativa da liberdade em que a vier a ser condenar, se tal for a vontade da condenada, não sendo executada a entrega antes de prestada a competente garantia.
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Sem tributação.
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Notifique e comunique à Polícia Judiciária, à PGR, bem como à autoridade judiciária de emissão, solicitando a esta última a prestação da garantia a que alude o artigo 5º, n.º3 da Decisão Quadro, no prazo de 10 dias.
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Notifique e deposite.
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Guimarães, 21 de Dezembro de 2010