Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
652/16.0T8GMR.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DANO PATRIMONIAL FUTURO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
O dano biológico, concebido como défice permanente da integridade físico-psíquica, assume feição patrimonial, ainda que não se reflicta no estatuto remuneratório do lesado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Francisco S. intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra a “Companhia de Seguros …”, pedindo que esta seja condenada, com base no instituto da responsabilidade civil extracontratual, a pagar-lhe a quantia global de €86.400,00, bem como uma indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes da perda da capacidade de ganho de que ficou a padecer e lucros cessantes e pelos danos futuros, decorrentes dos tratamentos a que ainda terá de ser submetido, ambas a liquidar ulteriormente.

Regularmente citada, a Ré contestou, reconhecendo a responsabilidade pela regularização do sinistro de que o A. foi vítima, mas impugnando os danos concretamente alegados por este e reputando exageradas as indemnização reclamadas a esse título.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, meramente tabelar, seguido de despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, que não mereceu qualquer reparo.

Instruída a causa e a realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao A. as seguintes quantias:

a) A quantia de €84.000,00 a título de dano patrimonial futuro, acrescida de €30.000,00 a título de dano não patrimonial;
b) A quantia de €6.953,75 a título de dano patrimonial;
c) Juros de mora, calculados à taxa legal, sobre todas as referidas quantias, contados desde a data da sentença sobre as quantias referidas em a) e desde a data da citação sobre a quantia referida em b).

Inconformado, o A. interpôs recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

QUANTO À PRESUNÇÃO DO REGISTO DOS AUTORES

1 - Tendo por certo, como teve o tribunal recorrido, que o autor, com cerca de quarenta anos de idade, para ter um futuro melhor e para isso proporcionar à sua família, emigrou para França, para ali exercer as funções de pedreiro para empresa francesa, auferindo em média e por força de trabalho suplementar, a quantia de EUR 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros por mês); tendo presente que o autor deixou de trabalhar para aquela empresa francesa; tendo presente que a testemunha Francisco R. – de 02m47s a 03m30s, de 03m30s a 09m50s e de 17m55s a 19m50s – referiu que contratou o autor para exercer as mesmas funções para a sua empresa em França, para auferir o mesmo, embora sem dependência da prestação de trabalho suplementar; mostrando-se tudo isto coerente com as regras da experiência pois que não é crível que o autor trocasse um emprego certo por um incerto; não havendo nenhuma prova ou indicio que aponte em sentido contrário; deve ser alterada a resposta à matéria de facto, considerando-se provados os factos alegados pelo autor nos artigos 143.º a 150.º e 169.º, da petição inicial, sendo os mesmos retirados da matéria de facto não provada – onde são as alíneas e), f) e g) –, e aditados à matéria provada, para o que seguimos a redacção do tribunal recorrido, assim: 18A. Em Setembro de 2013, o autor candidatou-se a um posto de trabalho noutra empresa francesa de construção civil, denominada “GLOBAL”, tendo sido admitido para exercer aquelas funções de trolha, ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, contra uma remuneração mensal de EUR 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) para início no dia 4 de Novembro de 2013; 18B. A proposta de trabalho referida em e) foi aceite pelo autor, tendo este denunciado o contrato de trabalho que tinha, vindo a Portugal gozar férias, quando aconteceu o acidente acima descrito, por força do que não pôde regressar a França para iniciar aquelas funções. 18C. O autor teve um prejuízo de EUR 2.400,00, mensais, durante, pelo menos o período de incapacidade total para o trabalho de 11 (onze) meses, período em que esteve impossibilitado de trabalhar.

QUANTO À AVALIAÇÃO DA PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO

2 - Tendo sido admitida a realização de uma perícia, fixado o seu objecto e admitidos os quesitos formulados, formou-se, quanto a essa decisão, caso julgado, motivo por que os peritos têm de responder aos quesitos formulados, excepto se a resposta não se mostrar possível.
3 - “No âmbito do Direito Civil a avaliação do dano corporal incide sobre a incapacidade permanente geral, isto é a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia a dia, enquanto no campo do Direito do Trabalho, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante do acidente ou doença que determina perda da capacidade de ganho;
4 - Invocando-se na acção uma incapacidade permanente parcial para o trabalho, os peritos, ainda que a perícia seja requisitada no âmbito de processo de natureza cível, não podem escudar-se a responder aos pertinentes quesitos e a socorrer-se da tabela respectivamente aplicável” – conclusões retiradas do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 6 de Novembro de 2012, acima citado;
5 - E isto particularmente nos casos em que, como no nosso, da resposta a outros quesitos resulta evidente que ocorre especifica incapacidade para o trabalho, distinta da incapacidade geral ou civil;
6 - É que, estando em causa saber se, em consequência de um acidente de viação, o lesado ficou com uma incapacidade para o trabalho e qual, afigura-se imprescindível averiguá-la, sob pena de ficar por averiguar uma possível (e adivinhada) relevante consequência do acidente, que não pode ficar por compensar e que não pode ser compensada pelo autor (com esforços acrescidos), nem pela sua possível empregadora (com menor rendimento);

O SALÁRIO RELEVANTE

7 - A indemnização a atribuir e que visa compensar o lesado pela perda da capacidade de ganho, “deve ter por base de cálculo o salário que, previsivelmente e com razoabilidade, viria a receber no exercício da actividade profissional” – retirado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Fevereiro de 2017, acima citado;
8 - Havendo notícia de que o autor emigrou para França para ter um melhor futuro e isso proporcionar à sua família; havendo notícia de que o autor ali exerceu as funções de pedreiro entre Março e Setembro de 2013, pelas quais auferiu, em média e levando em conta que prestava trabalho suplementar regularmente, a quantia de EUR 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) por mês; é de concluir, mesmo sem qualquer alteração da matéria de facto, que, apesar de aquele contrato de trabalho ter cessado, o autor haveria de procurar e obter outro emprego semelhante com remuneração semelhante, motivo por que é com base nessa retribuição mensal líquida que deve calcular-se a perda de ganho;
9 - É que a utilização do critério do vencimento médio surgiu precisamente para evitar que, nos casos em que os lesados ainda não começaram a vida activa (menores e estudantes), as indemnizações fossem calculas pelo ordenado mínimo, desprezando-se qualquer possibilidade de progressão nas carreiras e nos salários. Ou seja, o uso do critério do salário médio serve para dignificar o cálculo da indemnização, elevando-a, nos casos em que não existe referência nenhuma, e não deve ser utilizado para, nos casos em que existem referências, diminuir a indemnização;

OS DANOS NÃO PATRIMONIAIS

10 - Tendo em conta a matéria de facto provada, particularmente: que o lesado seguia de motociclo (facto I); que em consequência do embate e da queda sofreu fratura explosiva de L1, com múltiplos traços de fratura somáticos, colapso parcial do corpo vertebral, fratura do arco posterior, interessando a junção espino-lainar e apofise transversa direita, para além de rotura da cortical somática posterior e troplusão de fragmentos esquirolosos para o interior do canal central, com estenenose canalar central severa (facto IX); que o lesado foi internado no hospital e ali submetido a intervenção cirúrgica na região dorsolombar (facto X); que o lesado esteve acamado e imobilizado três dias (facto XI); que o lesado usou colete de correcção da coluna durante seis meses (facto 1); que o lesado foi submetido a segunda intervenção cirúrgica e prolongado tratamento de fisioterapia (facto XIII); que o lesado esteve totalmente incapacitado para o trabalho durante quase um ano (facto XIV); que o lesado padeceu dores de grau quatro numa escala de sete graus (facto 2); que o lesado ficou com um dano estético de grau 2 numa escala de sete graus (facto 3); que o lesado sofreu repercussões nas suas actividades físicas e de lazer de grau quatro numa escala de sete graus (facto 4); que o lesado sofreu repercussões na sua actividade sexual de grau dois numa escala de sete graus (facto 5); que o lesado sofreu e sofre de um défice funcional permanente de dez pontos (facto 6); que o lesado ficou padecendo de diminuição da força de preensão e em pegar em objetos pesados, formigueiro nos membros inferiores, alterações da sensibilidade dos membros inferiores, fraqueza e adormecimento dos membros inferiores, dores intensas na coluna, cicatriz com doze centímetros, paralisia de alguns nervos na zona lombar e cervical que lhe paralisam os membros inferiores, diminuição da força muscular dos membros superior e inferiores (facto 9); que o autor ficou sentindo dificuldades em subir e descer escadas, em equilibrar-se, tendo de fazer frequentes intervalos para descansar, não conseguindo estar de pé durante muito tempo (facto 15); que o autor ficou impedido de praticar desportos com impacto sobre a coluna (facto 12), quando o autor se dedicava aos desportos com cavalos; é de fixar a indemnização pelos danos não patrimoniais na quantia de EUR 60.000,00 (sessenta mil euros).

OS DANOS NÃO PATRIMONIAIS FUTUROS

11 - Tendo o lesado em acidente de viação pedido que a ré fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização, que relega para posterior liquidação, para reparação de danos futuros patrimoniais e não patrimoniais, e logrando demonstrar que necessita de medicação analgésica e anti-inflamatórios para alívio das dores e de tratamentos de medicina física e reabilitação (facto 21), que as lesões e sequelas resultantes do acidente, nomeadamente ao nível da mobilidade dos membros inferiores e superiores, perda de força física e correspondente limitação funcional dos seus movimentos são suscetíveis de agravamento (facto 22), para além de que o grau de incapacidade pode agravar-se com o decurso dos anos (facto 23), deve aquele pedido ser julgado totalmente procedente e não apenas procedente no que respeita a despesas que o lesado haja de suportar e improcedente no demais;
12 - Não pelo menos sem qualquer fundamentação, pois que, dessa forma, foi cometida a nulidade da falta de fundamentação, por aplicação do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil;
13 - É que, ainda que fosse fundamentada semelhante decisão, sempre dela resultaria que o lesado ficaria sem qualquer indemnização que o compensasse, mesmo que, por exemplo e sempre em consequência do acidente, viesse a ser internado por longo período, com longa incapacidade total, com dores fortíssimas;
14 - Semelhante solução sempre violaria o que dispõe o n.º 1, do artigo 483.º, do Código Civil, pois que, neste caso, ficariam por indemnizar danos futuros decorrentes do facto ilícito, o que a lei manda seja atendido para decisão ulterior nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 564.º, do mesmo Código;

POR FIM,
15 - A decisão recorrida violou ou não fez a melhor interpretação e aplicação do disposto no n.º 1, do artigo 483.º, n.º 2, do artigo 564.º, ambos do Código Civil, e n.º 4, do artigo 607.º, do Código de Processo Civil para lá de, no aspecto apontado, se achar nula por falta de fundamentação.

Nestes termos e nos melhores doutamente supridos por V.as Ex.as, deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência do que deve ser revogada a decisão recorrida, que deve ser substituída por deliberação que:

1. julgue provados os factos indicados na conclusão 1.ª;
2. determine que o processo baixe ao tribunal recorrido para ser completado o relatório pericial nos termos que constam das conclusões 2.ª a 6.ª (isto no caso de se entender que esta matéria deve ser analisada neste recurso e não no recurso em separado antes interposto) ou que determine que o processo baixe àquele tribunal para ser proferida sentença que tenha em conta o relatório pericial que venha a ser completado em obediência à esperada procedência do recurso em separado (caso se entenda que a matéria deve ser analisada naquele recurso);
3. fixe a indemnização devida ao autor pelo período de incapacidade total para o trabalho em EUR 26.400,00 tal como pedido na alínea a) da petição inicial, em lugar dos sentenciados EUR 16´500.00; 4. fixe a indemnização pelo dano futuro da perda da capacidade de ganho em EUR 134.400,00 em lugar dos sentenciados EUR 84.000,00, nesta parte sem prejuízo do que se disse acima a respeito da averiguação da incapacidade para a concreta profissão do autor, caso em que os cálculos devem ser feitos tendo por base a remuneração mensal de dois mil e quatrocentos euros e o grau de incapacidade para o trabalho que se apurar na perícia que se espera seja completada;
5. fixe em EUR 60.000,00 tal como pedido na alínea c), da petição inicial, em lugar dos sentenciados EUR 30.000,00 a indemnização devida ao autor por todos os danos não patrimoniais sofridos; 6. condene a ré no pagamento ao autor de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais futuros resultantes do acidente dos autos, a liquidar quando ocorridos, tal como se pediu na alínea f), da petição inicial.

Também irresignada, a Ré recorreu, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

1 - O Tribunal recorrido fez uma incorrecta valoração da prova produzida.
2 - Não resultou provado que, por causa da IPP de 10 pontos de que o Autor ficou afectado, tenha sofrido uma redução da capacidade de ganho e, consequentemente, da sua retribuição, pelo que o dano biológico daí decorrente deverá ser compensado em sede de dano não patrimonial, já que não importou, para o Recorrido, qualquer dano emergente ou lucro cessante;
3 - Não se tendo demonstrado que o Autor sofreu qualquer prejuízo de ordem patrimonial, seja a título de dano emergente ou de lucro cessante, na sequência da IPP de 10 pontos de que ficou a padecer, não deve ser utilizada, para cálculo da indemnização a arbitrar pelo dano biológico, a retribuição ou hipotética retribuição do Recorrido, à data do sinistro;
4 - Recorrendo-se à equidade e a uma análise comparativa de decisões proferidas pelos nossos Tribunais superiores, o montante indemnizatório de €25.000,00 reputa-se como justo e equilibrado, para ressarcir o dano biológico sofrido pelo Autor;
5 - Deve, assim, o valor indemnizatório de €84.000,00 ser reduzido para €25.000,00;
6 - Assim não se entendendo, e concluindo-se ser de ficcionar que o dano biológico sofrido pelo Autor foi na mesma medida da IPP de 10 pontos fixada, deve ser tido em consideração o limite da vida activa do Autor;
7 - Sendo o Autor um operário da construção civil emigrado em França não é expectável que trabalhe até aos 80 anos, mas sim, e no máximo, até aos 70;
8 - Por outro lado, e tendo ficado demonstrado que o Autor, à data do sinistro dos autos, encontrava-se desempregado, não existem motivos para que o salário mínimo nacional francês em vigor à data de €1.257,00 seja arredondado para € 1.500,00;
9 - Nestes termos, e subsidiariamente, para o caso de se entender que o Recorrido sofreu, efectivamente, danos patrimoniais na vertente de perda de capacidade de ganho decorrentes das sequelas resultantes do acidente dos autos, a indemnização arbitrada de €84.000,00 deverá ser reduzida para €50.000,00;
10 - Da mesma forma, o valor arbitrado a título de perda de rendimentos deve ter em consideração o SMN francês à data do sinistro e não um valor arredondado, pelo que se fixaria tal prejuízo em € 13.827,00 e não em €16.500,00, conforme decidido;
11 - No que diz respeito aos danos não patrimoniais sofridos, também a compensação dos mesmos se revela manifestamente exagerada e desproporcional, nomeada e principalmente fazendo uma análise comparativa com outras decisões proferidas pelos nossos Tribunais;
12 - Considerando a matéria de facto provada, que não merece qualquer reparo, entende a ora Recorrente que a indemnização a arbitrar ao Autor a título de danos não patrimoniais deve ser reduzida para €17.500,00;
13 - A Sentença recorrida fez uma incorrecta apreciação da prova produzida, assim como uma menos correcta aplicação da lei, devendo, como tal, ser revogada nos termos das presentes Conclusões.
O A. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso interposto pela Ré.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões dos recursos interpostos são as seguintes:

- Se deve ser ordenado que o Senhor Perito Médico-Legal responda a todos os quesitos propostos e admitidos pelo tribunal, nomeadamente o relativo à determinação da incapacidade parcial permanente para o trabalho de que o autor ficou a padecer em consequência das lesões sofridas e suas sequelas;
- Se a sentença recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea b), do NCPC;
- Se foi mal julgada a matéria vertida nas alíneas e), f) e g) do elenco dos factos não provados, devendo dar-se tal matéria como provada;
- Adequação dos montantes arbitrados a título de indemnização pelo rendimento perdido, danos não patrimoniais e pelo défice permanente da integridade físico-psiquica de que o Autor ficou a padecer.
*
III. FUNDAMENTOS:
Os factos
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1 - No dia 24 de Outubro de 2013, pelas 13h30m, o autor conduzia o veículo ciclomotor de matrícula …., na Rua 1º de Maio, na freguesia de Riba d’Ave, do concelho de Vila Nova de Famalicão, no sentido Rua 5 de Outubro – Rua Guerra Junqueiro, a uma velocidade de 50 kms/hora, dentro da metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha e atento aos demais utilizadores da via;
2 - Ao aproximar-se do número de polícia n.º 1093 da referida rua, onde se localiza a oficina de automóveis pertença da «A. & C. … Limitada», o autor foi surpreendido pelo súbito aparecimento na via do veículo automóvel …, marca opel, modelo astra, propriedade de Pedro B., conduzido por Adelino O., ao serviço da sociedade, em manobra de marcha-à-ré e a sair da oficina para passara circular na Rua 1.º de Maio, em sentido oposto ao do trânsito do autor;
3 - O opel astra pretendia tomar o sentido de marcha seguido pelo autor e efetuando manobra de marcha atras colocou-se na hemi-faixa do autor;
4 - O autor travou, tendo reduzido consideravelmente a velocidade do seu veículo, mas não conseguiu evitar o embate, com a frente do motociclo, na traseira do automóvel;
5 - O embate ocorreu na hemi faixa afeta ao sentido de trânsito seguido pelo autor e os veículos ficaram imobilizados no local do embate;
6 - O acidente ocorreu em pleno dia, chovia intensamente, o piso da estrada era betuminoso e encontrava-se molhado e escorregadio;
7 - No local do embate, a faixa de rodagem, sem inclinação, tem 6,40 metros de largura, com duas vias de trânsito, uma em casa sentido, é uma recta com boa visibilidade antecedida por uma curva marginada por habitações e inserida na localidade de Riba d’Ave;
8 - Após o acidente o autor foi transportado para o Centro Hospitalar, em Guimarães onde entrou no serviço de urgência, foi observado e realizou os exames auxiliares de diagnóstico;
9 - Em consequência direta, necessária e adequada do referido embate, o autor sofreu:
- Fratura explosiva de l1, com múltiplos traços de fratura somáticos, colapso parcial do corpo vertebral, fratura do arco posterior, interessando a junção espino-lainar e apofise transversa direita;
- Rotura da cortical somática posterior;
- Troplusão de fragmentos esquirolosos para o interior do canal central, com estenenose canalar central severa.”.
10 - O autor ficou internado no Hospital de Guimarães, onde foi submetido a intervenção cirúrgica na região dorso lombar, com “redução e instrumentação pedicular D12-L2 com material USS-II”;
11 - O autor esteve acamado e imobilizado entre os dias 25 e 27 de Outubro de 2013, movimentando-se, ocasionalmente, apenas a partir do dia 28 de Outubro de 2013;
12 - O autor teve alta hospitalar em 29 de Outubro de 2013, tendo ficado em repouso absoluto até ao dia 5 de Novembro de 2013, data em que lhe foram retirados os elementos de cicatrização da cirurgia (agrafes);
13 - Após a alta hospitalar, o autor foi sujeito a medicação e prolongado tratamento de fisioterapia para além de ter sido sujeito a uma segunda cirurgia, a cargo dos serviços médicos da ré e realizada no Hospital em Vila Nova de Gaia;
14 - Após a alta do Centro Hospitalar, o autor foi seguido pelos serviços clínicos da Ré, onde foi observado e examinado quase sempre em Vila Nova de Gaia, até ao dia 30 de Setembro de 2014, data da consolidação fixada pela ré;
15 - A «A. & C. … Lda.», celebrou com a ré um contrato de seguro de garagista, titulado pela apólice n.º 0002998910, para cobertura de todos os danos causados no exercício da sua atividade;
16 - A ré já indemnizou o autor dos prejuízos sofridos com as roupas que vestia e com a reparação do motociclo;
17 - A ré desde março de 2014 até 30 de setembro de 2014 entregou ao autor a título de indemnização pelas perdas salariais a quantia mensal EUR 363,75;
18 - O autor nasceu em 19 de Agosto de 1973;
19 - Por decisão transitada em julgado proferido no apenso cautelar de arbitramento de reparação provisória foi acordado o pagamento pela ré ao autor a título de antecipação de indemnização a fixar o montante mensal de 500 euros com início em 20.05.2016;
20 - Durante os seis meses que se seguiram ao acidente o autor usou um colete de correção e de apoio à postura da sua coluna vertebral;
21 - O quantum doloris do autor é fixável no grau 5/7;
22 - O Dano estético permanente é de 2/7;
23 - A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável em 4/7;
24 - A repercussão permanente na atividade sexual é fixável em 2/7;
25 - O Défice Funcional Permanente da Integridade Física é fixável em 10 pontos;
26 - O período do défice funcional temporário total é de 14 dias;
27 - O período do défice funcional temporário parcial é de 342 dias;
28 - O autor ficou a padecer das seguintes sequelas atuais, permanentes e irreversíveis:
- Diminuição da força de preensão e em pegar em objetos pesados;
- Formigueiro nos membros inferiores;
- Alterações da sensibilidade dos membros inferiores;
- Fraqueza e adormecimento dos membros inferiores;
- Dores intensas na coluna;
- Cicatriz com doze centímetros;
- Paralisia de alguns nervos na zona lombar e cervical que lhe paralisam os membros inferiores;
- Diminuição da força muscular dos membros superior e inferiores;
29 - O autor ficou com reação depressiva/adaptação ao problema que padece;
30 - O autor ficou com diminuição da força muscular nos membros inferiores em situações de agudização e ou maior esforço laboral;
31 - O autor ficou impossibilitado de praticar desportos com impacto sobre a coluna;
32 - O autor sente dores físicas, dores ao nível da coluna de severidade intermitente, formigueiros nos membros inferiores, incómodos, mal estar, perda de mobilidade e de capacidade física para realizar as tarefas quotidianas;
33 - As dores agravam-se com as mudanças de estação, designadamente com temperaturas frias, mas também com posições e esforços acrescidos;
34 - O autor sente dificuldade em subir e descer escadas, em equilibrar-se, tendo de fazer frequentes intervalos para descansar, não conseguindo estar de pé durante muito tempo;
35 - O autor necessita de esforços acrescidos para exercer a sua atividade profissional;
36 - A 1 de Março de 2013, o autor celebrou um contrato de trabalho por tempo indeterminado com a empresa francesa “CONSTRUCTION TRADITION PM”, obrigando-se a prestar o trabalho de trolha, contra uma remuneração mensal líquida de EUR 2.200,00 (dois mil e duzentos euros);
37 - Entre Março e Setembro de 2013, o autor foi trabalhar para França, na construção civil tendo recebido um vencimento de cerca de 2.400,00 euros mensais mercê do acréscimo de horas de trabalho suplementar e outros complementos;
38 - Em consequência do descrito acidente e dos tratamentos a que foi submetido, o autor ficou com cicatriz lombar de doze centímetros de comprimento;
39 - Antes do acidente o autor era uma pessoa saudável, robusta, dinâmica, trabalhadora, amante da vida, confiante, cheia de projetos para o futuro, atlética, desportiva, afável e generosa que lhe permitia bons relacionamentos com as outras pessoas;
40 - O autor necessita de medicação analgésica e anti-inflamatórios para alívio das dores e de tratamentos de medicina física e reabilitação;
41 - As lesões e sequelas resultantes do acidente, nomeadamente ao nível da mobilidade dos membros inferiores e superiores, perda de força física e correspondente limitação funcional dos seus movimentos são suscetíveis de agravamento;
42 - O grau de incapacidade pode agravar-se com o decurso dos anos;
43 - O autor poderá ter de se submeter a intervenções cirúrgicas e plásticas para tratamento e correção das lesões sofridas e sequelas a nível da coluna e a internamentos hospitalares, a vários tratamentos e de ajuda medicamentosa, de ajudas técnicas, e médico quer a nível físico quer psíquico para superar as sequelas sofridas, de efetuar exames médicos, consultas, sessões de fisioterapia e de efetuar deslocações a hospitais e clínicas;
44 - O autor treinava cavalos de forma remunerada, conduzia charretes e montava cavalos em desfiles e festas e mercê do acidente ficou incapaz de o fazer;
45 - O autor começou por trabalhar na agricultura, na construção civil tendo decidido emigrar para frança para obter melhores rendimentos;
46 - O autor revela modificações de humor, do carácter e vivência mais tristonha; síndrome depressivo prolongado, e ansiedade relativamente à sua situação clínica actual e futura sofre de abalo emocional, mercê das dores que se mantêm e tem pouca vontade de sair de casa.

Inversamente, foi dada como não provada a seguinte factualidade:

a) Em consequência do embate, o autor foi projetado, caindo de costas em cima do veículo automóvel;
b) O autor ficou com cicatriz de 10 cm;
c) Em consequência do acidente, o autor revela atualmente sinais e sintomas compatíveis com a síndrome de stress pós-traumático, caracterizada por sintomatologia fóbica; insónias com o sono agitado; alteração da qualidade de sono com sonhos recorrentes acerca do acidente; alterações afetivas; sintomatologia depressiva e caracterial com irritabilidade fácil; perturbações de pânico;
d) O autor ficou impossibilitado de praticar desportos com ressalva do facto provado supra 12;
e) Em Setembro de 2013, o autor candidatou-se a um posto de trabalho noutra empresa francesa de construção civil, denominada “GLOBAL”, tendo sido admitido para exercer aquelas funções de trolha, ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado, contra uma remuneração mensal de EUR 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) para início no dia 4 de Novembro de 2013;
f) A proposta de trabalho referida em e) foi aceite pelo autor, tendo este denunciado o contrato de trabalho que tinha, vindo a Portugal gozar férias, quando aconteceu o acidente acima descrito, por força do que não pôde regressar a França para iniciar aquelas funções;
g) O autor teve um prejuízo de EUR 2.400,00, mensais, durante, pelo menos o período de incapacidade total para o trabalho de 11 (onze) meses, período em que esteve impossibilitado de trabalhar;
h) Após o acidente e nos três primeiros três meses, o autor necessitou da ajuda de terceira pessoa para comer e fazer a sua higiene pessoal;
i) Depois da queda, o autor ficou sem conseguir locomover-se, tendo pensado que iria ficar tetraplégico o que lhe causou profunda angústia e pânico;
j) As limitações, dificuldades e dores descritas e por ainda não terem terminado, tiram-lhe a motivação para acompanhar o crescimento e desenvolvimento das suas três filhas;
k) O autor pensou que a sua vida terminaria no momento do acidente;
l) O que lhe causou profunda angústia e pânico.
*
O direito

Sustenta o A. que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do Novo Código de Processo Civil (1), porquanto o tribunal, sem aduzir qualquer fundamentação, restringiu a reclamada indemnização por danos futuros às “despesas com tratamentos, consultas médicas, internamentos hospitalares e outras despesas médico-medicamentosas que se mostrem necessárias para tratamento das sequelas e lesões sofridas”.

Dispõe o referido normativo:
“1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)”
Como ensinava o Professor Alberto dos Reis (2), depois de sublinhar que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Explicitava ainda que “Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)”.
No caso vertente, o A. pedira a condenação da Ré a pagar-lhe uma quantia, a liquidar ulteriormente, “para reparação dos danos futuros, patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes do acidente, das intervenções cirúrgicas e plásticas (…)”.
Esse pedido, com o devido respeito, constituía em parte duplicação dos anteriores, na medida em que estes contemplavam o dano patrimonial futuro, actualmente chamado dano biológico, compreendendo o previsível agravamento da incapacidade do A., e o dano não patrimonial.
Foi esse, inequivocamente, o motivo pelo qual o tribunal, depois de apreciar os restantes tipos de dano e arbitrar as correspondentes indemnizações, restringiu a última parcela da indemnização às despesas médico-medicamentosas futuras.
Não se verifica, por conseguinte, qualquer falta de motivação, muito menos absoluta, sendo certo que esta é a única que a lei fulmina com a nulidade da sentença.
Prosseguindo.
Insurge-se ainda o A. contra o indeferimento da reclamação por si apresentada contra o relatório pericial, argumentando que o tribunal, vencido pelo cansaço, sancionou a recusa, ilegítima, do Senhor Perito em responder a um dos quesitos oportunamente admitidos.
É esta a sede própria para conhecer da impugnação desse despacho interlocutório (artigo 644º, n.º 3), como, aliás, se decidiu na apelação autónoma dele igualmente interposta, certificada a fls.
Pois bem.
Entendemos que não assiste razão ao recorrente.
É certo que este, apelando ao conceito de incapacidade permanente para o trabalho, formulou um pedido de indemnização pela inerente perda da capacidade de ganho.
Sucede, porém, que esse conceito, próprio do direito laboral, é hoje inaplicável no âmbito do direito civil.
Como se lê no preâmbulo do DL 352/2007, de 23 de Outubro, “No direito laboral, por exemplo, está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina perda da capacidade de ganho, enquanto que no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, se deve valorizar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinando”.
Mais. O próprio conceito de incapacidade permanente geral tem vindo a ser substituído pelo conceito de dano biológico, desenvolvido pela doutrina e jurisprudência italianas e que foi adoptado entre nós com a publicação da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio.
Independentemente da sua qualificação como dano patrimonial ou não patrimonial ou mesmo como um terceiro género, este chamado dano biológico ou corporal, alicerçado no direito à saúde, enquanto direito fundamental do indivíduo, constitucionalmente consagrado e contemplado na tutela geral da personalidade prevista no artigo 70º do Código Civil, tem a virtualidade de assegurar o direito a indemnização mesmo quando as lesões sofridas pelo lesado não se repercutem sobre a sua capacidade de ganho.
Como se escreveu no acórdão desta Relação de 10.4.2014 (relatora Ana Cristina Duarte) (3), “A afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios - como dano biológico - porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado e, especificamente, também, da sua atividade laboral”.
Ora, foi precisamente esse dano, concebido como défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, que foi avaliado pelo Senhor Perito Médico-Legal.
Acresce que, transcendendo a mera incapacidade para o trabalho, o dano biológico pode contemplar, como aconteceu no caso vertente, o eventual reflexo da situação incapacitante na actividade profissional específica do lesado.
Significa isto que todas as vertentes em que o dano se analisa foram contempladas no relatório pericial, pelo que nenhuma censura merece o despacho impugnado.
Debruçando-se sobre um caso similar, no acórdão desta Relação de 7.12.2016 (relatora Lina Castro Baptista) defendeu-se que “Em sede de ações de indemnização por acidente de viação, a Incapacidade Permanente do lesado terá que ser calculada por médicos especialistas em medicina legal (ou por especialistas noutras áreas com competência específica no âmbito da avaliação médico-legal do dano corporal no domínio do direito civil) por referência exclusivamente às diretrizes consagradas no Anexo II do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro”.
Nem se argumente que o despacho impugnado viola o caso julgado formal (artigo 620º do NCPC), formado quer pelo despacho que admitiu a perícia, quer pelo despacho que deferiu o primeiro pedido de esclarecimentos ao relatório pericial.
É que esses anteriores despachos, meramente tabelares, não se pronunciaram, em concreto, sobre a pertinência da matéria em causa, mormente à luz das novas regras de avaliação do dano corporal em direito civil.
Ora, “Para haver caso julgado formal é indispensável a existência de uma decisão, de um julgamento, não configurando tal situação o despacho proferido sobre inspecção superficial e ligeira do requerimento, com admissão tabelar” - acórdão desta Relação de 25.6.2009 (relator Antero Veiga).

Improcede, pois, também esta conclusão do recurso.

Adiante.
Sustenta o A. que está mal julgada, devendo dar-se como provada, a matéria vertida nas alíneas e), f) e g) do elenco dos factos não provados.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.

Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.

Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.

No caso vertente, o A. cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, fundamentando a sua discordância quanto à decisão dos pontos de facto impugnados no depoimento da testemunha Francisco R., conjugado com as regras da experiência comum.
A Senhora Juiz a quo fundamentou a sua decisão sobre os referidos pontos de facto nos seguintes termos:
“O tribunal formou a sua convicção com base na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento analisada no seu todo e com recursos às regras de experiencia comum.
Em concreto:
(…)
Francisco R., 54 anos gerente da empresa le global
Referiu que conheceu o autor há 8/9 anos tendo sido seu patrão em Portugal e quando soube que o autor estava na construção civil em frança fez-lhe uma proposta para ir trabalhar consigo, aceite pelo autor.
Ficou acordado que o autor iniciaria as suas funções em novembro de 2013 data em que chegando a frança assinaria o contrato de trabalho. Esclareceu ainda que o valor correspondente à remuneração constante no documento dos autos é liquido uma vez que na sua empresa as despesas com alojamento alimentação e deslocações são asseguradas pela entidade patronal.
O autor não foi para frança na data acordada tendo tomado conhecimento que o mesmo tinha tido um acidente de viação.
(…)
Fls. 141 verso carta de 27 de 9 de 2013- proposta de trabalho
Análise critica:
Quanto aos factos não provados os mesmos resultaram da falta de prova concludente ou prova de facto contrário ou ausência de prova.
(…)
Prova de facto diverso – alíneas b), c), d) e)
Quanto à alinea g) -Os documentos juntos a fls. 137 e seg não foram de molde a formar convicção no julgador sendo certo que o junto como sendo uma proposta de trabalho nem sequer esta assinado pelo autor.

Acresce que nem tao pouco se mostra junto aos autos o pacto social da empresa dita empregadora, não permitindo ao tribunal aquilatar da veracidade das declarações prestadas por Francisco R., alegadamente na qualidade de legal representante de resto, tal realidade, a ser verdade, não passaria de uma proposta de trabalho.
Daqui decorre necessariamente para a resposta negativa ao facto vertido na alínea e). o contrato de trabalho do autor terminou em setembro de 2013 – desconhecendo o tribunal a causa se por parte do autor ou do empregador, pois que no recibo de quitação de fls. 138-141) consta uma indemnização pelo termo do contrato e de acordo com a lei Portuguesa só acontece quando a rescisão parte do empregador”.
Pois bem.
Ouvido o depoimento da testemunha Francisco R. e examinados os documentos juntos aos autos, afigura-se-nos que inexiste o invocado erro de julgamento da matéria de facto, porquanto a nossa convicção sobre os pontos de facto impugnados coincide com a formada pela Senhora Juiz a quo.
É certo que se mostra junta aos autos, a fls. 141 verso, uma proposta de trabalho pretensamente apresentada ao A. por parte de uma empresa francesa, mediante uma retribuição mensal ilíquida de €2.400,00, e bem assim que a indicada testemunha, arrogando-se a qualidade de gerente dessa empresa, sustentou que o A. teria aceitado tal proposta.

Todavia, entendemos que essa prova é manifestamente insuficiente.

Desde logo, porque, na ausência de um contrato formal ou de uma aceitação por escrito da aludida proposta de trabalho, acompanhamos a julgadora da 1ª instância quando, duvidando, legitimamente, da qualidade invocada pela testemunha (salientando-se que esta é de nacionalidade portuguesa e a sua suposta representada é uma sociedade de direito francês e cuja designação social não denuncia qualquer ligação com o nosso país), argumenta que não lhe foi possível escrutinar o seu depoimento por não ter sido junto o pacto social da proponente.
Depois, porque a versão veiculada na petição inicial, de acordo com a qual o A. teria denunciado o contrato de trabalho com a empresa anterior depois de aceitar a proposta de trabalho da “GLOBAL”, é infirmada pelo teor dos documentos apresentados.
Com efeito, resulta do anexo ao recibo de quitação inserto a fls. 142 que o contrato de trabalho com a “Construction Tradition PM” cessou no dia 27 de Setembro de 2013.
Ora, a missiva que corporiza a proposta de trabalho da “GLOBAL” foi emitida precisamente nesse dia e, evidentemente, terá sido recebida pelo A. em data posterior.

Logo, a denúncia do anterior contrato, a ter existido denúncia, não sucedeu, antes precedeu, a suposta aceitação daquela proposta.
Finalmente, porque, abstraindo dessa incongruência de datas, o A. não avança qualquer justificação plausível para a mudança de emprego num tão curto espaço de tempo, sendo certo que na nova empresa iria auferir um vencimento idêntico ou mesmo ligeiramente inferior ao que auferia na anterior.
Face ao exposto, recaindo sobre o A. o ónus da prova da ajuizada matéria e subsistindo a dúvida sobre a sua realidade, bem andou a Senhora Juiz a quo em considerá-la como não provada, atenta a regra inscrita no artigo 414º.
Indefere-se, por conseguinte, a alteração dos pontos de facto impugnados.
Mantendo-se inalterada a matéria de facto, é evidente que o salário relevante para efeitos de cálculo da indemnização pelo rendimento perdido durante o período de doença e pelo dano biológico não podia ser o de €2.400,00, pelo que o recurso do A. terá de improceder nessa parte.
Mas, ao invés do valor considerado na sentença (€1.500,00), deverá ser atendido para esse efeito, como propugna a Ré, apenas o valor de €1.257,00, equivalente ao salário mínimo nacional francês?
E deverá mesmo abstrair-se do valor do hipotético salário mensal para efeitos de cálculo da indemnização pelo dano biológico concretamente sofrido pelo A., tendo em conta que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica deste não interfere na sua capacidade de ganho?
Esta última questão prende-se, como a própria Ré reconhece, com a subsunção do dano biológico aos conceitos de dano patrimonial ou não patrimonial.
Ora bem.
É nosso entendimento, ancorado na boa doutrina, que esse dano é indemnizável de per si, independentemente do seu reflexo no estatuto remuneratório do lesado.
Acresce que, tendo embora afinidades com os danos de natureza não patrimonial, nomeadamente quando, não obstante o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que o lesado ficou a padecer, este não sofre perda efectiva de rendimentos, não se confunde com eles, assumindo uma feição patrimonial.
É essa a orientação claramente dominante na jurisprudência, transcrevendo-se, a título meramente exemplificativo, sumários de alguns acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que a acolheram:

Acórdão de 4.10.2005:
“O dano biológico traduz-se na diminuição somático-psíquico do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre”.

Acórdão de 4.10.2007:
“O dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial”.

Acórdão de 19.5.2009:
“O dano biológico repercute-se na qualidade de vida da vítima afectando a sua actividade vital, é um dano patrimonial já que as lesões afectam o seu padrão de vida”.

Acórdão de 6.12.2011:
“A perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira “capitis deminutio” num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional (…)”.

Acórdão de 21.3.2013:
I - O dano biológico, dano corporal lesivo da saúde, está na origem de outros danos (danos-consequência) designadamente aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.
II - Constitui dano patrimonial a perda de capacidade de trabalho permanente geral de 15 pontos que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão a justificar, nos termos do art. 564.º, n.º 2 do CC, indemnização correspondente ao acrescido custo do trabalho que o lesado doravante tem de suportar para desempenhar as suas funções laborais.
III - Este dano é distinto do dano não patrimonial (art. 496.º do CC) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida”.
Já na doutrina, a distinção entre “dano biológico” e “dano moral” é defendida por Sinde Monteiro, em Estudos sobre a Responsabilidade Civil, página 248.
Em suma, perfilhamos o entendimento de que o dano biológico deve ser indemnizado como um dano patrimonial futuro, pelo que na fixação do quantum indemnizatório devido a esse título deve ter-se em conta o rendimento auferido pelo lesado, ainda que temperado com recurso à equidade.
Como se concluiu no acórdão desta Relação de 3.7.2014 (relator Manuel Bargado), depois de desenvolvida análise sobre as várias teses que a esse propósito se debateram, “Deste modo, chegamos ao velho cálculo em que a indemnização a arbitrar por danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional activa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma).
Na verdade, as necessidades básicas do lesado não cessam obviamente no dia em que deixar de trabalhar por virtude da reforma, sendo manifesto que será nesse período temporal da sua vida que as suas limitações e situações de dependência, ligadas às sequelas permanentes das lesões sofridas, com toda a probabilidade mais se acentuarão (…)
No entanto, para evitar um total subjectivismo, o qual, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade, o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos, através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas, com vista a calcular o referido capital produtor de um rendimento vitalício para o lesado.
Todavia, «e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de tal tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um «minus» indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade – que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas e à justiça do caso concreto, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo: evolução provável na situação profissional do lesado, aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível e melhoria expectável das condições de vida, inflação provável ao longo do extensíssimo período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização (e que, ao menos em parte, poderão ser mitigadas ou compensadas pelo «benefício da antecipação», decorrente do imediato recebimento e disponibilidade de valores pecuniários que normalmente apenas seriam recebidos faseadamente ao longo de muitos anos, com a consequente possibilidade de rentabilização imediata em termos financeiros)”.
No que concerne à primeira questão enunciada, atinente ao salário relevante para efeitos de cálculo do rendimento perdido e do dano biológico, diremos apenas que não se justifica a redução propugnada pela Ré.
Muito embora não se tenha dado como provado que o A. estivesse empregado aquando do sinistro, provou-se que trabalhara até escassos dias antes em França, mediante uma retribuição muito superior ao salário mínimo praticado nesse país.
Sendo assim, não há motivo para inferir que, regressando a França, onde estava emigrado, apenas conseguisse um posto de trabalho retribuído com o salário mínimo.
Partindo dum salário médio, cujo concreto quantitativo não é questionado, ainda assim inferior ao salário que o A. comprovadamente auferira, a decisão recorrida merece a nossa concordância.
Daí que se mostre devidamente calculada a indemnização pelo rendimento perdido durante o período de doença.
Já quanto ao dano biológico há a considerar:

- À data da consolidação médico-legal das lesões sofridas (30.9.2014) o A. tinha 41 anos de idade, pelo que tinha uma esperança média de vida de cerca de 39 anos (4);
- Foi-lhe atribuído um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos, susceptível de agravamento com o decurso do tempo;
- Era operário da construção civil, embora estivesse transitoriamente inactivo;
- Necessita de fazer esforços acrescidos para exercer essa profissão;
- Ficou impossibilitado de, como até então fazia de forma remunerada, treinar cavalos, conduzir charretes e montar cavalos em desfiles e festas.
Na decisão recorrida, depois de se afirmar que a indemnização do dano em apreço “deve ser fixada segundo juízos de equidade”, recorreu-se, contraditoriamente, a uma mera fórmula matemática, que, aliás, não tem em conta o rendimento gerado pelo próprio capital imediatamente disponibilizado ao A. (5).
Acresce que se tomou por base de cálculo, até ao final da vida do A., o salário presumidamente auferido por este.
Ora, em nosso entender não é de presumir que o A. continue a exercer a sua profissão, muito exigente do ponto de vista físico, depois dos 65 anos, pelo que a partir de então a incapacidade já não se reflectirá no desempenho de tal profissão, mas apenas nos actos e gestos correntes do dia-a-dia.
Por outro lado, não pode olvidar-se que a incapacidade é susceptível de agravamento futuro.
Sopesando todos os apontados elementos e bem ainda os valores comummente atribuídos na jurisprudência para casos similares, julgamos que se mostra excessivo o montante indemnizatório fixado na sentença recorrida, sendo de reduzi-lo para €60.000,00.
Discordam ainda o A. e a Ré da quantia arbitrada a título de compensação por danos não patrimoniais (€30.000,00), pugnando o primeiro pela sua elevação para €60.000,00 e a segunda pela sua redução para €17.500,00.
Tratando-se, por definição, de danos insusceptíveis de avaliação pecuniária, o que se visa é proporcionar ao lesado uma quantia que lhe permita obter um prazer alternativo que, de algum modo, atenue, minore ou compense o desgosto ou a dor sofrido.
Segundo estabelece o artigo 496º do Código Civil, no seu n.º 1, só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, acrescentando o respectivo n.º 3 que o montante da indemnização será fixado equitativamente.
Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela (6), “O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação da realidade da vida”.
A mesma ideia tem sido repetidamente sublinhada na jurisprudência, de que é exemplo o acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Dezembro de 2013, onde se escreveu que “Na determinação do quantum da indemnização do dano não patrimonial, a lei aponta nitidamente para uma valoração casuística, orientada por critérios de equidade”.
No caso que nos ocupa, entendemos que o montante arbitrado a esse título se mostra ajustado, atentas as lesões sofridas pelo A. e suas sequelas, incluindo o dano estético, a intervenção cirúrgica e os tratamentos a que o mesmo foi submetido, o prolongado período de doença (quase um ano), as intensas dores que padeceu e continuará a padecer, aquelas situadas no grau 5 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente, e, finalmente, as alterações de humor, ansiedade e depressão decorrentes das limitações funcionais que apresenta.
Procede, pois, parcialmente, a apelação da Ré e improcede a do Autor.

Sumário: O dano biológico, concebido como défice permanente da integridade físico-psíquica, assume feição patrimonial, ainda que não se reflicta no estatuto remuneratório do lesado.
*
IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Autor e parcialmente procedente o interposto pela Ré, revogando-se a sentença recorrida no segmento relativo à indemnização pelo dano patrimonial futuro, que se reduz para €60.000,00 (sessenta mil euros).
No mais, confirma-se o decidido.
O A. suportará as custas da sua apelação.
As custas da apelação da Ré serão suportadas por esta e pelo A. na proporção do respectivo decaimento.

Guimarães, 15 de Fevereiro de 2018

João Peres Coelho
Pedro Damião e Cunha
Maria João Matos


1. Diploma a que pertencerão os restantes preceitos citados sem indicação de origem.
2. Código de Processo Civil Anotado, volume V, página 139.
3. Disponível, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt.
4. Tomando por referência, no cálculo da indemnização pelo dano em apreço, a data do acidente e não a data da consolidação médico-legal das lesões sofridas, a sentença recorrida não teve em conta que o lesado foi ressarcido do rendimento perdido nesse intervalo de tempo, que, como tal, não pode ser considerado para aquele efeito, sob pena de duplicação da indemnização.
5. O que pressuporia o recurso às tabelas financeiras usadas para a determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente a 10% do rendimento anual, à taxa de juro reputada adequada, de tal forma que no final do período considerado o próprio capital se esgote.
6. Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, página 501.