Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
599/18.5T8GMR.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA CONTRATUAL
COMODATO
RELAÇÃO DE COMISSÃO
RISCOS PRÓPRIOS DO VEÍCULO
IMPUTABILIDADE DO ACIDENTE AO LESADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Provando-se apenas que o autor, menor de idade à data, tripulava um motociclo/moto 4, propriedade do réu, à vista, com sua autorização e seu consentimento, desacompanhado de outros elementos ou indícios, apresenta-se como insuficiente para caracterizar uma relação de comissão entre os dois, em que aquele seria o comitente e este o comissário.
II- O saber se no empréstimo/comodato do veículo a direcção efectiva deste e o interesse na sua utilização pertencem ao respectivo proprietário depende do que resulte das circunstâncias de cada situação concreta.
III- No entanto, no que concerne ao proprietário do veículo que o empresta, a direcção efectiva e a utilização no próprio interesse presumem-se naturalmente, incumbindo ao comodante, se assim não for, ilidir essa presunção.
IV- O regime decorrente do art. 503.º, n.º 1 do Cód.Civil não tem aplicação nas relações internas entre comodante e comodatário, mas apenas relativamente a terceiros lesados.
V- Contudo, para efeitos do art. 504º do CC, também o condutor do veículo acidentado (vítima) é de considerar terceiro lesado - aproveitando, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei -, contanto que sofra acidente relacionado com os perigos próprios daquele veículo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

R. S., em representação do seu filho (então menor) J. P., intentou contra P. S., a presente acção, sob a forma de processo comum, para efectivação de responsabilidade civil, peticionando a condenação do Réu a pagar àquele menor a quantia de € 237.575,00 (duzentos e trinta e sete mil, quinhentos e setenta e cinco euros), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento.

Para tanto alegou, em resumo, que
No dia 14 de janeiro de 2017, pelas 17 horas, na Rua ..., em ..., Póvoa de Lanhoso, o menor conduzia uma moto quatro, com a matrícula HJ, propriedade do Réu, sob autorização, fiscalização e ordens do Réu, quando, após se despistar (fruto da sua inexperiência), foi embater com a mesma numa árvore.
Em consequência desse embate e também por circular sem capacete, o menor, de apenas 15 anos, sofreu danos vários que lhe deixaram sequelas e uma incapacidade permanente global de 91% e um dano biológico, para cujo ressarcimento reclama a quantia de € 200.000,00, acrescido das quantias de € 3.200,00 (pelo quantum doloris) e de € 4.375,00 (pelo internamento em clínica de reabilitação). Mais reclama a quantia de € 30.000,00 anuais por força das necessidades futuras de apoio médico e medicamentoso e demais tratamentos que o acompanharão para toda a vida.
O Réu não detinha qualquer seguro para o referido veículo moto quatro, com a matrícula HJ.
Juntou declaração de consentimento do pai do menor para instauração da presente ação.
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Regularmente citado, o Réu deduziu contestação (cfr. fls. 23 a 27), pugnando pela total improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Em abono da sua defesa impugnou parte da factualidade alegada e negou que tenha autorizado ou consentido qualquer utilização da moto quatro, mais afirmando que foi o menor Autor que, de motu próprio, se apossou da condução desse veículo, utilizando-o no seu próprio interesse, do que concluiu ser ele o único responsável pela ocorrência do sinistro.
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Na sequência do despacho datado de 14/03/2018 (cfr. fls. 29 a 34), veio a Autora requerer a intervenção principal provocada do Fundo de Garantia Automóvel (FGA), o que foi deferido por despacho proferido a fls. 39 a 41.
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Citado, o Fundo de Garantia Automóvel apresentou-se a contestar (cfr. fls. 44 a 52), excecionando, no que apodou de ilegitimidade material, não ser responsável pelos danos causados ao lesado J. P., nos termos do disposto nos artigos 14º/1, 51º e 52º do Dec. Lei n.º 291/2007, dado que aquele era o condutor do veículo sem seguro e foi o responsável pelo acidente.
Mais impugnou toda a factualidade alegada na petição inicial, considerando exagerada a indemnização peticionada.
Por outro lado, alegou que o menor circulava sem capacete e que tal facto contribuiu para a produção ou agravamento dos danos em, pelo menos, 50%, em conformidade com o disposto no artigo 570º do C. Civil.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se afirmou a validade e regularidade da instância, de seguida foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova (cfr. fls. 54 a 57).
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Foi realizada a audiência de discussão e julgamento.
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Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença (cfr. fls. 408 a 423), nos termos da qual julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu o Réu e o Interveniente FGA do pedido.
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Inconformado, o autor interpôs recurso da sentença (cfr. fls. 425 a 435) e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.º A sentença recorrida julgou improcedente a acção em que alega, em síntese, que no dia 14 de Janeiro de 2017, pelas 17 horas, na Rua ..., em ..., Póvoa de Lanhoso, o menor conduzia uma moto quatro, com a matrícula HJ, propriedade do Réu, sob autorização, fiscalização e ordens do Réu, quando, após se despistar (fruto da sua inexperiência), foi embater com a mesma numa árvore. Em consequência o menor sofreu danos vários que lhe deixaram sequelas e uma incapacidade permanente global de 91% e um dano biológico, para cujo ressarcimento reclama a quantia de € 200.000,00, acrescido das quantias de € 3.200,00 (pelo quantum doloris) e de € 4.375,00 (pelo internamento em clínica de reabilitação). Mais reclama a quantia de € 30.000,00 anuais por força das necessidades futuras de apoio médico e medicamentoso e demais tratamentos que o acompanharão para toda a vida.
2.º Entendeu o tribunal a quo, ainda que dando por provada a quase totalidade da factualidade alegada pelo Autor, fazer improceder a sua pretensão socorrendo-se, fundamentalmente, de dois argumentos: a inexistência, por não provada, de relação de comissão, nos termos do artigo 500º, nº. 1, do Código Civil e a imputabilidade do autor nos termos do artº. 488º do C.Civil e, simultaneamente a não existência de um dever de vigilância por parte do Réu.
3.º - A decisão recorrida parece inaceitável por mal fundada, na medida em que é a fundamentação da própria sentença em crise que afirma que “o Réu manteve a direcção efectiva do veículo aquando da sua condução pelo Autor” “nem este “ alegou ou provou de concreto que sustente que o veículo não era utilizado no seu interesse” razões pelas quais não poderá excluir-se a presunção contida no n.º 1 do Art.º 503 do Código Civil de que o Recorrido, proprietário do veículo tem a sua direcção efectiva e responde pelos respectivos danos, nomeadamente os sofridos pelo Recorrente.
4.º-Desconsidera também o Tribunal que, a relação em causa, pela circunstância de ser o Autor menor (com 14 anos) e ter o Réu, maior, pleno conhecimento não só desse facto, mas também da sua inexperiência e inabilidade e mesmo assim ter consentido na condução do seu veiculo, deveria reconduzir-se à previsão do artigo 500º, nº. 1, do Código Civil, e colocar, salvo melhor opinião, o Recorrente na posição de terceiro na esteira da doutrina e jurisprudência citada no douto aresto pelo Mm. º Juiz do Tribunal a quo o que consequentemente, situará o Réu na obrigação de indemnizar na esteira da doutrina e jurisprudência citada pelo aresto em crise.
5.º No respeitante à pretensa imputabilidade do Autor, por maior de 7 anos, procedendo-se a uma analise mais aprofundada forçosamente se concluirá que resulta injusto e insuficiente afirmar, grosso modo, ser o Recorrente maior de 7 anos e o Réu não ser seu pai, excluindo-se toda a factualidade provada, para perentoriamente se afirmar que está o Recorrido totalmente eximido de toda e qualquer responsabilidade. Na verdade, atenta a factualidade provada de que era o autor menor, à data com 14 anos de idade, à vista, com consentimento e autorização do Réu, ligou e pôs em marcha o veiculo motorizado propriedade daquele sendo o Recorrido conhecedor da idade, da inexperiência e da inabilitação do Recorrente, do perigo, não só da condução do seu veículo por pessoa inexperiente e inabilitada, mas também, do potencial agravamento pela ausência do capacete de protecção tendo por obrigação prever as consequências de tal acto, autorizou, sem mais, e anuiu com a condução do seu veículo, será imperioso não isentar o Réu da sua culpa e necessárias consequências.
6.º Sobre a culpa, ainda que se considere havê-la por parte do Autor no acidente e consequentemente nos danos por si sofridos e que constam dos factos provados, haverá simultânea e comprovadamente culpa do Réu pelo que no caso em apreço não será de responsabilize apenas o Recorrente e afastar critério da repartição do dano, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art. 570º do CC, pois, para além do mais, não se pode perder de vista a própria condição da vítima, decorrente da sua idade, ao tempo da produção do dano, nem pode valorar-se a sua conduta causal por critério igual ao que seria aplicável a um adulto, assim, mesmo concebendo-se a concorrência e repartição de culpas, atento o particular circunstancialismo do caso concreto deveria a sua atribuição ter como critério a diligência de um bom pai de família pelo que, carreados para a decisão todos os factos provados, considerado todo o circunstancialismo e aplicando os critérios prescritos pelo direito, a não se atribuir a totalidade da culpa ao Réu, deverá ser o mesmo considerado culpado, pelo menos, na proporção de 80% e obriga-lo a indenizar o Autor nessa medida.
Termos em que na procedência do recurso, deve revogar-se o acórdão recorrido, julgando-se a acção inteiramente procedente para que se faça
JUSTIÇA».
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Contra-alegaram, separadamente, o réu e o Fundo de Garantia Automóvel, pugnando pela improcedência do recurso e conformação da sentença recorrida (cfr. fls. 438 a 452).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 453).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

i) - Da verificação de uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o Autor/Recorrente e o 1º Réu/Recorrido.
ii) - Da direção efetiva do veículo do 1º Réu/Recorrido aquando da sua condução pelo Autor/Recorrente (art. 503º, n.º 1 do Cód. Civil).
iii) - Da imputabilidade do Autor/Recorrente, nos termos do art. 488.º do Cód. Civil e da culpa do 1º réu.
iv) - Da concorrência e repartição de culpas, ao abrigo do art. 570.º, n.º 1 do Cód. Civil.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. O Autor nasceu no dia - de Fevereiro de 2002.
2. O HJ era propriedade do Réu.
3. O Réu não tinha contratado qualquer apólice de seguro para o referido veículo.
4. No dia 14 de Janeiro de 2017, cerca das 17 horas, na Rua ..., da freguesia de ..., concelho da Povoa de Lanhoso, o motociclo/moto 4, com o número de matrícula HJ, conduzido pelo, à data menor de idade, J. P., embateu numa árvore.
5. O Autor insistiu com o Réu para que o deixasse conduzir o HJ.
6. O Autor, no lugar de condutor, e o N. B. (à data também menor), no lugar do passageiro, colocaram-se em cima do HJ.
7. O Autor ligou o HJ, acelerando e fazendo com que iniciasse a marcha.
8. O que fez à vista do Réu.
9. Com a autorização e o consentimento do Réu.
10. Passando a circular por caminhos de terra.
11. No exacto momento em que o Autor saiu dos ditos caminhos de terra e entrou no asfalto da Rua ..., da freguesia de ..., concelho da Povoa de Lanhoso, perdeu o controlo do veículo, despistou-se e embateu numa das árvores que ladeiam o arruamento.
12. O Autor e o N. B. ficaram feridos em consequência do embate.
13. O Autor seguia sem capacete.
14. A perda de controlo do HJ foi fruto da inexperiência do Autor.
15. O Réu era conhecedor da idade, da inexperiência e da inabilitação do Autor.
16. Era também o Réu sabedor do perigo, não só da condução do seu veículo por pessoa inexperiente e inabilitada, mas também, do potencial agravamento pela ausência do capacete de protecção.
17. Em consequência directa e imediata do embate, o Autor sofreu traumatismo cranioencefalico grave e traumatismo torácico /contusão pulmonar direito.
18. Tendo o mesmo sido induzido em coma no local.
19. Após o que foi transportado e assistido no Hospital de Braga e daí transferido, em estado grave, para o Hospital de S. João no Porto, onde foi intervencionado e permaneceu até ao dia 1 de Março de 2017.
20. Nessa data, foi transferido para o centro de reabilitação do Norte da Misericórdia do Porto, sito em Valadares, em Vila Nova de Gaia, onde permaneceu internado até 7 de Julho de 2017.
21. Como consequência necessária de tais lesões, foi atribuída ao Autor uma incapacidade permanente global de 93%, susceptível de reavaliação futura, conforme atestado médico de incapacidade multiusos, emitido aos 7 de Abril de 2017.
22. Como consequência necessária de tais lesões, o Autor ficou a padecer das seguintes sequelas: ligeira espasticidade com reflexos osteotendinosos ligeiramente aumentados à esquerda; peças dentárias 11 (restaurado), 412, 31 e 32 fracturadas; 3 cicatrizes lineares paralelas no abdómen, rosadas, com 3, 4 e 5 cm de comprimento, respectivamente; cicatriz linear esbranquiçada com 2,5 cm localizada no dorso da mão esquerda (3ª MCF); perturbação da personalidade e do comportamento; síndrome pós-concussional/pós-comocional; alterações cognitivas e síndrome piramidal de predomínio esquerdo (valorizado como tetraparésia).
23. As referidas sequelas são causa de um défice funcional permanente de 42 pontos.
24. Tais sequelas são compatíveis com o exercício da actividade escolar do Autor, mas implicam esforços suplementares.
25. Por força da violência do embate, subsequentes manobras de reanimação, intervenções, tratamentos e reabilitação, sofreu o Autor dores fixáveis em grau 6, numa escala crescente de 1 a 7.
26. E ficou a padecer de um dano estético permanente de grau 3, numa escala crescente de 1 a 7.
27. As referidas sequelas implicam a dependência permanente das seguintes ajudas: ajudas medicamentosas de Equazen Forte, Quetiapina 150 mg, Triticum 300mg; ajudas médicas na especialidade de pedopsiquiatria.
28. As sequelas de que o Autor ficou a padecer terão um significativo e negativo impacto por toda a sua vida.
29. O Autor jamais poderá ter uma vida normal.
30. A condição do Autor aumenta as suas constantes alterações de humor, ansiedade, e tristeza.
31. Ao tempo do embate o Autor era um adolescente, de 15 anos, com todo o vigor, e em plena força de vida, com a legítima expectativa de concluir os seus estudos e, posteriormente, iniciar a sua carreira profissional.
32. As lesões e sequelas supra descritas não teriam ocorrido com a mesma extensão e gravidade se o Autor circulasse com um capacete de protecção colocado na cabeça.
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E deu como não provados:
1. As sequelas sofridas traduzem-se na impossibilidade de o Autor se locomover sem auxílio de outrem ou meios de compensação, nomeadamente a cadeira de rodas.
2. As sequelas repercutir-se-ão numa futura carreira profissional uma vez que não se mostrará apto a desempenhar qualquer profissão mas apenas as que se coadunem com as suas limitações.
3. O Autor sofre de depressão.
4. A fúria observa-se amiúde e tem caracterizado o quotidiano do menor.
5. As necessidades medicamentosas e de apoio médico ascenderão sempre ao valor de € 500,00 anuais.
6. O Autor conduzia o HJ sob as ordens e fiscalização do Réu.
7. O Réu disse ao Autor que não o deixava conduzir a moto.
8. O Réu não autorizou e não consentiu qualquer condução do motociclo pelo Autor.
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V. Fundamentação de direito

1. - Da verificação de uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1 do Código Civil (CC), entre o Autor/Recorrente e o 1º Réu/Recorrido.

Sob a epígrafe «Responsabilidade do comitente», preceitua o art. 500º do CC:

«1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.
2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no nº 2 do artigo 497.º».
O normativo citado estabelece uma responsabilidade objetiva do comitente, porquanto, no plano das relações externas, o mesmo é responsável mesmo que não tenha culpa, mas só é responsável se a conduta do comissário o faça incorrer, a ele mesmo, na obrigação de indemnizar face a terceiro.
Ou seja, o comitente responde sempre, independentemente de culpa sua, perante terceiros lesados, pelos danos causados pelo comissário, no exercício da função que lhe foi confiada (n.º 2 do referido preceito), desde que este tenha obrigação de indemnizá-los, ficando, depois, no plano das relações internas, com o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte, caso em que será aplicável o n.º 2 do art 497º do CC (cf. n.º 3 do mesmo preceito).
Como afirma Menezes Leitão, “a responsabilidade do comitente é uma responsabilidade objectiva pelo que não depende de culpa sua na escolha do comissário, na sua vigilância ou nas instruções que lhe deu. No entanto, essa responsabilidade objectiva apenas funciona na relação com o lesado (relação externa), já que posteriormente o comitente terá na relação com o comissário (relação interna) o direito a exigir a restituição de tudo quanto pagou ao lesado, salvo se ele próprio tiver culpa, caso em que se aplicará o regime da pluralidade de responsáveis pelo dano (art. 500º, nº3)” (1).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (2), “o comitente poderá, no entanto, responder independentemente de culpa do comissário, se tiver procedido com culpa (culpa in eligendo, in instruendo, in vigilando, etc.). Nesse caso, já não haverá responsabilidade objetiva, mas responsabilidade por atos ilícitos, baseada na conduta culposa do comitente”.

O regime de responsabilidade objetiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário exige, pois, a verificação dos seguintes pressupostos:
i) Que exista uma relação de comissão;
ii) que sobre o comissário recaia também a obrigação de indemnizar (3); e
iii) que o facto danoso tenha sido praticado no exercício da função atribuída.

O termo “comissão" não tem aqui o sentido técnico, preciso, que reveste nos arts. 266º e seguintes do Código Comercial, mas o sentido amplo de «serviço ou actividade desempenhada por conta e sob a direção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se tanto num acto isolado como numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc» (4).
A comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos atos do segundo (5).
Essencial é que o comitente disponha de um poder de controlo sobre o comissário e que este, por sua vez, se encontre numa situação de subordinação ou dependência funcional em relação àquele. Esta subordinação, no entanto, não se confunde com a subordinação jurídica, característica da relação emergente do contrato de trabalho. A existência de uma relação laboral pode ser, por si, indicador da existência de uma relação de comissão, mas está longe de esgotar a possibilidade de criação de relações de comissão por via contratual (6). Na verdade, poderá abranger situações de contratos de prestação de serviços – como seja no âmbito do contrato de mandato (art. 1157º) ou de depósito ou até de comodato (7) –, situações ocorridas fora de um contexto negocial, como seja com base em relações familiares (8) ou até de cumprimento de contratos inválidos ou ineficazes. Decisiva é a verificação, em concreto, de um controlo e recíproca dependência entre comitente e comissário (9).
É igualmente essencial que o preposto/comissário aja por conta e no interesse do preponente/comitente aquando da prática do facto danoso (10).
A responsabilidade do comitente com o comissário é, funcionalmente, uma garantia do lesado ou, dito por outras palavras, uma atribuição a ele do risco de insolvência do comissário (11). Portanto, o comitente funciona aqui como um garante, perante terceiros lesados, da obrigação de indemnizar (12).
O sentido amplo do termo "comissão" justifica-se quando se tenha presente o fundamento da responsabilidade do comitente: “quem se aproveita dos serviços de outem, assim como recolhe e faz suas as respetivas vantagens, deve igualmente assumir e suportar os prejuízos ocasionados a terceiros na execução de tais serviços” (13). Ou, como diz Antunes Varela, "é mais justo que os efeitos da frequente insuficiência económica do património do comissário recaiam sobre o comitente, que o escolheu e o orientou na sua atuação, do que sobre o lesado, que apenas sofreu as consequências desta" (14).

Ora, no caso, embora a propriedade faça presumir a direção efetiva (art. 349º do CC), como poder real de facto sobre o motociclo/moto 4, com o número de matrícula HJ, tal não implica necessariamente que quem conduza ou manobre o referido veículo pertença do 1ª réu o faça por conta desse demandado (por conta de outrem), isto é, que seja seu comissário.
Isto porque a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1 do CC.
É que a relação de comissão não se presume, posto que não pode resultar da referida presunção de propriedade – direcção efectiva – uma segunda presunção (sob pena de haver uma segunda presunção ou presunção derivada) no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo (15).
Terão, por conseguinte, de ser alegados e provados factos que tipifiquem essa relação de comissão (16).
E, de acordo com o Assento do STJ de 30-04-96 (17) – que tem força obrigatória geral, no que respeita à uniformização de jurisprudência –, o "dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do art. 500º, n.º 1, do Código Civil entre o dono do veículo e o condutor do mesmo".
Essa alegação e prova competem a quem invoque o direito de indemnização pelos danos, isto é, no caso ao recorrente/lesado que pretende exercer o direito à reparação dos danos decorrentes do acidente de viação (art. 342º, n.º 1 do CC).
Particularizando o caso concreto, mostra-se apurado que o Autor, menor de idade à data, tripulava um motociclo/moto 4, matricula HJ, propriedade do 1º Réu, à vista, com sua autorização e seu consentimento, quando, fruto da sua inexperiência, perdeu o controlo do veículo, despistou-se e embateu numa das árvores que ladeiam o arruamento, vindo a sofrer lesões significativas que lhe causaram graves sequelas.
Ora, tais factos apurados, desacompanhados de outros elementos ou indícios, apresentam-se-nos como insuficientes para caracterizar uma relação de comissão entre o 1º Réu e o menor/autor, em que aquele seria o comitente e este o comissário.
De facto, não resulta que este último tenha desenvolvido qualquer tarefa por incumbência daquele e que no momento do acidente agisse por conta e no interesse do 1º Réu. Tão pouco resulta que o 1º réu estava numa posição funcional ou fáctica que lhe permitia ter o poder de dar ordens, de instruir ou de controlar a atividade do autor.
O menor recebeu, gratuitamente, do 1ª Réu uma coisa móvel (motociclo/moto 4) para a gozar ou usufruir, temporariamente, no seu interesse próprio (e não do comitente) - arts. 1129º, 1131º e 1135º, al. h), 1137º do CC. O menor não estava subordinado ou funcionalmente dependente do 1º réu, não existindo, entre eles, qualquer vínculo de subordinação, pois não foi incumbido de nada por parte do último, antes utilizou para si, com liberdade e autonomia, a coisa entregue. Não agiu por conta e sob a direção do comitente.
O art. 1129.º do CC define o comodato como “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Não faz parte de tal contrato a atribuição pelo comodante ao comodatário de qualquer incumbência, encargo ou tarefa nem, consequentemente, a possibilidade de o primeiro dar ao segundo instruções quanto ao exercício da função confiada (18).
No caso não se provou qualquer outro facto, para além do empréstimo gratuito, que aponte para a existência de uma relação de comissão.
Nesta conformidade, é de concluir que a eventual responsabilidade civil (pelo risco na produção do acidente) do 1º Réu não pode, portanto, encontrar alicerce na previsão do art. 500º do CC.
*
2 - Da presunção da direção efetiva e interesse na utilização do veículo por parte do 1º Réu aquando da sua condução pelo Autor/Recorrente.

O recorrente pugna igualmente pela verificação da hipótese legal prevista no art. 503º, n.º 1, do CC, porquanto, in casu, o proprietário do motociclo/moto 4, de matrícula HJ, não obstante o ter emprestado ao autor, no momento do acidente danoso tinha a direção efetiva do mesmo e este era utilizado no seu interesse.

Tendo por objeto os danos causados por veículos no âmbito da responsabilidade pelo risco, prescreve o art. 503.º do CC que:

«1 – Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do art. 489.º.
3 – Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1».

O preceituado no n.º 1 do citado art. 503.º do CC faz recair a responsabilidade objetiva pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação, sobre quem detenha a direção efetiva do mesmo e o utilize no seu interesse próprio, independentemente da respetiva titularidade ou domínio jurídico.
O aludido normativo define a responsabilidade civil do detentor do veículo (daquele que tem a direção efetiva do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, no momento em que o acidente ocorre), impondo-lhe uma responsabilidade marcadamente objetiva (ele «responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação») (19).
Por conseguinte, pressuposto da responsabilidade pelos danos próprios do veículo é a verificação simultânea ou cumulativa dos dois requisitos: i) direção efetiva do veículo e ii) a utilização do mesmo no próprio interesse.
Vimos já anteriormente que o comodante (1º Réu) e o comodatário (autor) do motociclo/moto 4 não podem ser considerados comitente/comissário para os efeitos do art. 500º do CC.
Todavia, no ponto aqui em questão, fundamental é determinar quem tinha na ocasião a «direção efetiva» do motociclo/moto 4 causador do acidente e no «interesse» de quem era o mesmo utilizado, para efeitos do preenchimento do disposto no n.º 1 do art. 503º do CC.
A expressão legal “ter a direção efetiva do veículo”, no ensinamento de Antunes Varela (20), destina-se a abranger todos aqueles casos (proprietário, usufrutuário, locatário, comodatário, adquirente com reserva de propriedade, autor do furto do veículo, que o utiliza abusivamente, etc.) em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva a quem usa o veículo ou dele dispõe. Trata-se das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências adequadas para que o veículo funcione sem causar danos a terceiros. (…). A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo, mas não equivale à ideia grosseira de ter o volante nas mãos na altura em que o acidente ocorre. (…) Tem a direção efetiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (vigiar os pneus, luzes do carro, afinar os travões, verificar os pneus, controlar a sua pressão, etc.)».
Por outras palavras, ter a direção efetiva do veículo significa dispor do poder de facto sobre o mesmo ou exercer controlo sobre o veículo. Trata-se de responsabilizar quem cria o risco especial do uso do veículo, quem pode tomar as providências para que ele funcione sem causar danos e retira o correspondente benefício, aquele que aproveita a sua utilização (21).
Por sua vez, o interesse da pessoa na utilização do veículo tanto pode revestir natureza patrimonial ou económica, material, como não patrimonial ou apenas moral ou espiritual (como no caso de alguém, querendo ser agradável a outrem, por cortesia, amizade, gratidão, altruisticamente, lhe empresta o carro), ser um interesse legítimo ou reprovável. Terá, isso sim, de se tratar de um interesse próprio, embora, porventura, não exclusivo (22).
O requisito da utilização no próprio interesse “visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem” (23).
Vulgarmente (não necessariamente), o detentor será o dono ou o proprietário do veículo (posto que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização, sendo que a jurisprudência do STJ vem decidindo no sentido de que cabe ao dono o ónus de demonstrar quaisquer circunstâncias de onde se possa inferir o contrário) (24).

Com efeito, é de admitir a existência de uma verdadeira presunção legal de direcção efectiva e interessada do veículo a favor do seu proprietário, pois o conceito de direcção efectiva e interessada cabe perfeita e legalmente dentro do conceito do direito de propriedade, que é dado pelo art. 1305º do CC (25).
O ónus da prova e de alegação de que o dono do veículo não tinha a direcção efectiva do mesmo e de que a utilização dele não era feita no seu próprio interesse, cabe ao proprietário, réu na ação, como factos impeditivos que são (26).
Em caso de comodato de veículo (e mesmo de locação), a doutrina divide-se quanto à questão de saber se tem a direção efetiva do veículo o comodante ou o comodatário:

Segundo refere Antunes Varela (27):
«Havendo comodato, a responsabilidade do comodante deve ainda manter-se, salvo se o empréstimo tiver sido feito em condições (máxime de tempo) de o comodatário tomar sobre si o encargo de cuidar da conservação e do funcionamento do veículo.
De contrário, continuando este dever a cargo do dono ou utente do veículo, como sucede quando o empréstimo se destina a uma viagem isolada ou a um passeio de curta duração, a responsabilidade objetiva recai simultaneamente sobre comodante e comodatário. Não faria sentido que a responsabilidade objetiva, em grande parte assente sobre as deficiências de conservação ou funcionamento do veículo, se transferisse por inteiro do comodante para o comodatário.
É certo que, responsabilizado deste modo, o comodante fica obrigado a indemnizar os danos que excedem essa origem, incluindo aqueles que procedem de culpa do condutor.
Mas não é menos certo que, quanto a estes, que o comodante goza do direito de regresso por tudo quanto haja pago, e que, em semelhantes hipóteses, não repugna aceitar a sua responsabilidade solidária, por ter cedido livremente o seu do veículo. Além disso, a solução aceita-se como forma indireta de obrigar o dono do veículo a ser prudente na sua cedência, não o emprestando a quem seja inexperiente ou inábil na condução, a quem não possua carta de habilitação, etc.
Poderá objectar-se que, no caso de comodato, o veículo não é utilizado no interesse do comodante; sabe-se, porém, que a finalidade essencial deste requisito é a de afastar a responsabilidade daqueles (comissários) que conduzem o veículo por conta de outrem, que o utilizam no interesse alheio, e que no caso do comodato há ainda um interesse do comodante (embora não material ou económico, como no aluguer) na utilização do veículo”.

Porém, no comentário ao art. 503.º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes Varela observam que (28):

«Embora a responsabilidade recaia, assim, normalmente sobre o proprietário, este não é responsável se (…) perdeu, por qualquer circunstância, essa direção, como no caso de furto ou de entrega ao promitente-comprador, ao locatário ou, em certas circunstâncias, ao comodatário».

Em sentido convergente, Almeida Costa, a propósito das pessoas responsáveis pelos danos ocasionados por veículos de circulação terrestre nos casos de responsabilidade pelo risco (art. 503.º, n.º 1 do CC), escreve que (29):
«As mais das vezes, o detentor será o proprietário de veículo, ou, inclusive, um usufrutuário ou adquirente com reserva de propriedade. Todavia, pela conjugação dos referidos elementos, a responsabilidade objectiva também pode caber a um locatário ou comodatário, ou a outrem que o haja furtado ou apenas utilizado abusivamente».
A respeito da hipótese de comodato (e também de locação), equacionando se a responsabilidade objetiva recai apenas sobre o comodatário ou solidariamente sobre o comodante e comodatário ou, ainda, apenas sobre o comodante, o mencionado Autor salienta que a solução do problema dependerá de «(…) saber quem cria o risco e aproveita dele», isto é, «a direção efetiva do veículo e o interesse na sua utilização», acrescentado que deverá, «portanto, atender-se ao que resulte das circunstâncias de cada situação concreta» (30).
No mesmo sentido, a propósito da locação e de empréstimo da viatura por curto período, Rui Alarcão (31) refere que, “tanto num caso como no noutro, o poder de facto do locatário e do comodatário, aliados ao seu interesse próprio, justificam que sejam havidos como tendo a direção efectiva do veículo. Mas o locador e o comitente conservarão também esta posição, respondendo objetivamente (e solidariamente) (…), quer haja ou não culpa do condutor”. E no caso do comodato nem se poderá falar na falta do segundo requisito – interesse próprio –, desde que se entenda – como deve entender-se – que, para a sua verificação, basta um mero interesse altruísta: cedência do veículo por razões familiares, de amizade ou de mera cortesia.
Vaz Serra (32) conclui que, nas situações de locação ou comodato, a responsabilidade objetiva impende sobre o locatário ou comodatário, e não, em princípio, sobre o locador ou comodante. Adverte, por exemplo, a respeito do comodato, que o interesse próprio do comodante «não pode ter uma extensão tão larga que abranja o simples desejo de ser agradável a outrem», mas não se exclui a cedência do veículo «a um parente, amigo ou vizinho como meio de obter alguma vantagem pessoal».
O comodante só será responsável se houver cedência de condutor, se beneficiar com a utilização do veículo ou se o acidente se ficar a dever a uma negligente conservação ou manutenção (hipótese esta última em que haverá culpa).
Normalmente, como salienta Dário Martins de Almeida (33), quem empresta a viatura a um amigo, fá-lo no seu próprio e, porque não deixa de manter a direcção efectiva responde solidariamente com aquele por danos causados nessa viagem.
Américo Marcelino defende que é o comodatário que passa a deter a direção efetiva do veículo, enquanto o contrato durar (34).
Mais sustenta o citado autor a irrelevância do tempo da cedência do veículo e do espaço percorrido pelo seu detentor, referindo (35): “Ora, se numa viagem longa, se perde a direcção efectiva (…), não é menos verdade que o proprietário que cedeu o carro por cinco ou dez minutos para o comodatário levar um doente ao hospital mais próximo, também a perdeu. Naqueles cinco minutos o comodatário pode fazer do carro o que muito bem entender, sem que o dono tenha a mais leve possibilidade de o impedir. Desde que o carro se afastou de si, seja por cinco minutos, seja por cinco dias, seja por 50 metros, seja por 50 quilómetros, o proprietário fica fisicamente impossibilitado de dispor do carro. Em suma: — em qualquer dos casos perde a sua direcção efectiva, sendo que num caso a perde por cinco ou dez minutos, e no outro por cinco dias ou semanas. A diferença é, pois, e apenas, quantitativa, não qualitativa”.
Segundo José Alberto González (36), diferentemente do comissário, o locatário ou o comodatário não estão sujeitos a ordens ou a instruções do locador ou do comodante, motivo por que afigura descabido responsabilizá-los pelos riscos envolvidos na utilização de um veículo que não se encontra sob o respetivo controlo.
Por sua vez, expressando dúvidas sobre o entendimento que propugna pela ampliação da categoria dos responsáveis e que defende que, em caso de comodato ou locação, são corresponsáveis o comodante ou o locador, por terem também um interesse na utilização do veículo, Ana Prata contesta esse ponto de vista, referindo não se vislumbrar em que é que o comodante – podendo ter um interesse não patrimonial no empréstimo – beneficie, mesmo que apenas espiritualmente, da utilização do veículo; admitindo que tenha prazer em comodatá-lo, conclui a citada autora, já parece excessivamente forçado que o tenha em que o veículo seja usado (37).
De todas estas considerações doutrinárias ressalta a ideia de que, no caso do contrato de comodato, em vez de se enveredar por uma qualificação genérica em termos das obrigações típicas dele decorrentes, fundamental será saber, no contexto de cada situação concreta, em que esfera de direção efetiva do veículo, nomeadamente quando ela se encontrar repartida entre o proprietário/comodante e o comodatário, se gera o risco especial que justifica a responsabilidade objetiva (38).
Efetivamente, o saber se no empréstimo do veículo a direcção efectiva deste e o interesse na sua utilização pertencem ao respectivo proprietário depende do que tiver concretamente ocorrido em cada caso (39).
O empréstimo ou comodato – cuja noção legal atrás enunciámos – é um contrato cuja regulamentação consta dos arts. 1129º e seguintes do Cód. Civil
Trata-se de um contrato bilateral imperfeito e gratuito, não sendo sinalagmático, já que à obrigação de disponibilização da coisa pelo comodante não corresponde qualquer contrapartida pelo comodatário.

Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (40), o “contrato envolve obrigações, não só para o comodatário, mas também para o comodante. Não há, porém, entre umas e outras, a relação de interdependência e reciprocidade que, através do sinalagma, define os contratos bilaterais ou sinalagmáticos (perfeitos)”.
O comodato será, tipicamente, celebrado no interesse exclusivo (ou, pelo menos, predominante) do comodatário, na medida em que será este a retirar o benefício da utilização da coisa.
Revertendo à situação dos autos, e seguindo de perto a fundamentação explicitada na sentença recorrida, dir-se-á que o caso em apreço consubstancia uma verdadeira situação de comodato, em que o 1º Réu, proprietário do veículo, cedeu a sua utilização ao Autor, temporária e sem qualquer contrapartida económica.
Não foi feita prova de que o 1º Réu tivesse dado qualquer ordem ao Autor e que fiscalizasse a condução deste. Contudo, tal não basta para ilidir aquela presunção de que o proprietário detém a direcção efectiva do seu veículo, tanto mais que, como no caso em apreço, está demonstrado apenas que foi autorizada a condução do motociclo/moto 4, desconhecendo-se concretamente com que finalidade.
Acresce que, sendo de presumir que tal condução seria significativamente limitada no tempo (dada a idade do Autor e o facto de o mesmo não ter habilitação legal para o efeito, o que era do conhecimento do 1º Réu), tem necessariamente de se concluir que o 1º Réu manteve a direcção efectiva do veículo aquando da sua condução pelo Autor.
Em contraponto, o 1º Réu nada alegou ou provou de concreto que sustente que o veículo não era utilizado no seu próprio interesse, sendo certo que o mero intuito recreativo, altruísta ou de gentileza configura um interesse revelante para efeitos deste normativo.
Subscrevem-se na íntegra tais considerações, sendo certo que sobre as mesmas inexiste qualquer dissenso.
Com efeito, sendo o 1º réu o dono do motociclo/moto 4, é de presumir que o mesmo tinha a direcção efectiva do referido veículo e de que este estava a ser utilizado no seu interesse, já que tal presunção não foi ilidida por prova em contrário.
Não obstante a demonstração dessa facticidade – deter o 1º réu a direcção efectiva do veículo e ser este conduzido no seu interesse –, ao contrário do propugnado pelo recorrente, julgamos não se verificar o preenchimento da hipótese legal prevista no art. 503º, n.º 1, do CC, no sentido do 1º réu responder pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, nos termos do art. 503º, n.º 1, do CC.
Para tanto cabe salientar que as normas da responsabilidade pelo risco reguladas no art. 499º e segs. do Código Civil visam salvaguardar a proteção de terceiros que sofram danos em acidente de viação cuja culpa não seja possível provar, mas que caiam no âmbito de protecção de alguma dessas normas.
O que se discute é se, no caso de existir um contrato de comodato entre o dono do veículo e o comodatário, qual dos dois responde perante terceiros (art. 504º do CC) pelos danos decorrentes de acidente de viação que caibam na previsão normativa do n.º 1 do art. 503º do CC: se o proprietário/comodante, o comodatário, ou ambos, solidariamente.
Mas sempre perante terceiros lesados (que não sejam o comodante, nem o comodatário).
Tal reconduz-nos (também nesta parte) a subscrever o entendimento sufragado na sentença recorrida no sentido de que o 1º Réu «não responde pelos danos sofridos pelo Autor com a utilização consentida daquele seu veículo, pois que o referido regime decorrente do artigo 503º/1 do C. Civil não tem aplicação nas relações internas entre comodante e comodatário, mas apenas relativamente a terceiros».
De facto, o regime do art. 503.º, n.º 1 do CC não é aplicável nas relações internas entre comodante/comodatário, mas apenas nas destes com terceiros (41).
A propósito dos beneficiários da responsabilidade com fundamento no n.º 1 do art. 503º do CC, estabelece o n.º 1 do art.º 504º do mesmo Código que a responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas.
Ora, no presente caso e como bem observa a sentença recorrida, não existem terceiros lesados, sendo o A. da presente ação, condutor/comodatário, simultaneamente lesante e lesado (o pedido indemnizatório incide sobre danos corporais sofridos na sua esfera jurídica, que sozinho se despistou).
Não se desconhece, porém, que há quem defenda que, para efeitos do citado art. 504º do CC, também o condutor do veículo acidentado (vítima) é de considerar um terceiro - o motorista de um veículo aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei, desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios daquele veículo (42).
Assim, as pessoas que, ao tempo do acidente, se ocupavam (ou também se ocupavam) na actividade do veículo (por ex., os motoristas) não são excluídas do benefício da responsabilidade pelo risco do art. 504º, n.º 1 (este fala, genericamente, em "terceiros"), nem parece razoável que o fossem, pois, embora se trate de pessoas em regra ligadas por um contrato de trabalho com o comitente, tendo, portanto, direito a indemnização contra este no caso de acidente no trabalho, isso não exclui que se trate também de pessoas lesadas em acidente de viação e que o regime da responsabilidade por estes acidentes lhes seja, no caso concreto, mais favorável (43).
Nessa categoria de terceiros, enquanto beneficiários da responsabilidade, devem ser incluídas ainda as pessoas que se ocupam na actividade funcional do veículo, designadamente o condutor ou motorista, o maquinista, o guarda-freios, o cobrador ou o fiscal dos transportes colectivos, desde que o acidente se relacione com os riscos próprios daquele (44).
Acrescenta-se que as razões que justificam a existência de uma responsabilidade objectiva são igualmente válidas em relação às pessoas que na ocasião do acidente se ocupavam (ou também se ocupavam) na actividade do veículo como é o caso do respectivo motorista já que não deixou de ser o dono quem criou, com o veículo, e com uma finalidade de proveito próprio, especiais riscos. Nesta perspectiva o condutor por conta de outrem deve ser considerado um terceiro, visto que, não tendo a direcção efectiva do veículo, nem o utilizando no seu próprio interesse (ou, podendo ter simultaneamente algum interesse pessoal, é sempre um simples comissário às ordens de outra pessoa ou entidade), ele é estranho à criação do risco, não usufruindo das particulares vantagens que decorrem de um poder real sobre o veículo (45).
Acontece que, no caso em apreço, os factos provados não são subsumíveis à referida hipótese, visto por um lado, não estar demonstrada uma relação de comissão entre o comodante (proprietário da moto 4) e o comodatário (condutor), ou seja, que o A. conduzisse o mesmo motociclo por conta ou na dependência (funcional) do seu proprietário.
Por outro lado, vistos os factos provados nos pontos 4, 5, 6, 7, 10 e 14, na origem da ocorrência do acidente não está uma eventualidade inerente ao funcionamento do veículo (como seja, por ex., o rebentamento de um pneu que acarretou a perda do domínio do veículo, a falha súbita do travão, o motor que explodiu ou a coluna da direcção que se partiu), e, como tal, compreendida no próprio risco do veículo, mas sim uma atuação imputável ao próprio lesado, dado que o mesmo, por inexperiência, perdeu o controlo do veículo, despistou-se e embateu numa das árvores que ladeiam o arruamento.
Ora, para que seja excluída a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º do CC, é necessário que o acidente deva considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou que resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo (art. 505º, do CC), sendo que, neste normativo não se coloca um problema de culpa, mas apenas de causalidade, pois “trata-se de saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro” (46).
Sendo assim, e ao contrário do propugnado pelo autor/recorrente, tem-se por afastada a previsão do art. 503º, n.º 1 do CC, posto que na origem do sinistro está um facto praticado pelo próprio recorrente, condutor do motociclo/moto 4, e não um facto praticado por terceiro ou relativo ao risco de circulação próprio do veículo em causa.
E nem o facto de o Autor ser então menor (com 14 anos à data da prática do facto) e de o 1º Réu ser conhecedor da idade, da inexperiência e da inabilitação do Autor, bem como sabedor do perigo, não só da condução do seu veículo por pessoa inexperiente e inabilitada, mas também do potencial agravamento pela ausência do capacete de proteção, interfere com o preenchimento da previsão do art. 500º, nº. 1, do CC, visto este normativo pressupor uma relação de comissão, sendo que nessa parte foi já supra concluído pela sua não demonstração.
Suscita, porém, o recorrente a questão do possível concurso da responsabilidade pelo risco emergente da circulação do veículo com a culpa do lesado.
Como é sabido, às posições jurisprudências e doutrinais tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, que advogam que, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade, pois a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado – denominada tese tradicional –, surgiu um entendimento alternativo nos termos do qual o regime normativo decorrente das disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC “deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente” (47), pelo que “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” (48).
Porém, e salvo o devido respeito por opinião contrária, mesmo em face desta tese, não se modificaria o resultado da presente ação.
Na verdade, constituindo pressuposto da mesma a existência de uma contribuição do risco do veículo para a ocorrência do sinistro, verifica-se que esta não existiu no caso concreto, uma vez que o acidente objeto dos autos ficou a dever-se a um facto praticado pelo recorrente, condutor do motociclo/moto 4, e não a um ato de terceiro ou a uma eventualidade inerente ao seu funcionamento e, como tal, compreendida no risco próprio do veículo. Deve, por conseguinte, ter-se por afastada a responsabilidade objectiva, decorrente do risco de circulação da viatura.
Como se disse, na origem do acidente está um facto praticado pelo próprio autor, consubstanciado num despiste, visto o mesmo ter perdido o controlo daquele veículo, por inexperiência.
Foi este acto praticado pelo próprio lesado, vindo de um sujeito imputável (art. 488º do CC), a causa única das lesões que sofreu, sem qualquer contribuição relevante dos riscos próprios do veículo.
O mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente.
E no tocante ao juízo de culpabilidade que o recorrente pretende imputar ao 1º réu – por o Autor à data da prática dos factos ter 14 anos idade e de, à vista, com consentimento e autorização do 1º Réu, ter ligado e colocado em marcha o veiculo motorizado propriedade daquele, sendo o Recorrido conhecedor da idade, da inexperiência e da inabilitação do Recorrente, do perigo, não só da condução do seu veículo por pessoa inexperiente e inabilitada, mas também, do potencial agravamento pela ausência do capacete de protecção tendo por obrigação prever as consequências de tal acto, tendo autorizado e anuído com a condução do seu veículo –, remete-se para a fundamentação aduzida na sentença recorrida, no sentido de, “em termos de causalidade e considerando que o Autor é maior de 7 anos (cfr. artº. 488º do C. Civil), só ao Autor é de imputar o evento danoso, sendo certo que sobre o Réu, ao contrário dos pais do Autor, não impende qualquer dever de protecção ou, de vigilância, do Réu” (sendo certo que nunca seria aplicável o disposto no art. 491º do CC, questão esta que não foi erigida como fundamento de apelação, pelo que se tem a mesma como definitivamente decidida).

Em suma, pelas razões supra explicitadas, no circunstancialismo apurado alinham-se as seguintes conclusões:

- torna-se deslocada a invocação do art. 503º, n.º 1 do CC.
- é de excluir a pretensão de colocar o recorrente na posição de terceiro lesado (art. 504º, n.º 1 do CC).
- é de excluir a responsabilização do 1º Réu em consequência dos riscos próprios do veículo, face ao disposto no art. 505º do CC.
*
3 – Da (pretensa) imputabilidade do Autor/Recorrente, nos termos do art. 488.º do Cód. Civil e da culpa do 1º réu.

Insurge-se ainda o recorrente pelo facto de na sentença recorrida se ter ponderado a imputabilidade do autor e de o 1º réu não ser seu pai para, menosprezando toda a factualidade apurada, se afirmar que o recorrido está totalmente eximido de qualquer responsabilidade.
Como é sabido, a imputabilidade é um dos pressupostos da responsabilidade civil (art. 488º CC).
Diz-se imputável, como afirma Antunes Varela (49), «a pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos actos que pratica e para se determinar de harmonia com o juízo que faça acerca deles».
À imputabilidade é imprescindível a existência de discernimento para entender o alcance do acto praticado (elemento intelectual) e de certa liberdade de determinar a sua vontade de acordo com esse entendimento (elemento volitiva).
Estipula o n.º 1 do art. 488º do CC que “[n]ão responde pelas consequências do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de entender ou querer, salvo se o agente se colocou culposamente nesse estado, sendo este transitório”.
Relativamente aos menores de sete anos presume-se a falta de imputabilidade (n.º 2 do art. 488º do CC).
Trata-se, contudo, de uma presunção relativa, que pode ser ilidida por prova em contrário (art. 350º, n.º 2 do CC).
Pode assim a presunção ser afastada se o lesado demonstrar que, na situação concreta, o menor de sete anos tinha a capacidade de entender ou querer. “A contrario”, o lesante, presumido imputável, poderá provar que, no caso concreto, a lesão foi praticada sem a capacidade de entender ou querer, assim afastando a presunção de imputabilidade que sobre si recai.
No caso vertente, apenas se sabe que o recorrente, à data com catorze anos, conduzia o motociclo/moto 4 sem estar legalmente habilitado com a respectiva licença de condução.
Dos factos apurados não é possível concluir que o recorrente não tinha aptidão para saber que não podia conduzir aquele veículo sem possuir a competente licença e tão pouco que não agiu livremente nessa determinação.
Sendo assim, aquela factualidade apurada não permite afastar a presuntiva imputabilidade do recorrente/autor, quando é certo que a ele incumbia alegar e provar esses factos.
Não tendo ilidido a presunção de imputabilidade, não pode o mesmo deixar de ser responsabilizado pelas consequências decorrentes do facto ilícito que praticou e do qual lhe advieram as lesões graves.
Por fim, quanto à alegada culpa do demandado, como se explicitou na sentença recorrida, “não obstante, nos termos do artigo 135º/7 e) do Código da Estrada, o [1º] Réu poder ser responsável pela infracções contra-ordenacionais eventualmente praticadas pelo Autor, certo é que o âmbito de protecção de qualquer normativo eventualmente violado pelo Réu nunca abarcaria o Autor enquanto condutor não detentor de licença para conduzir, não podendo, por conseguinte, obter, daquele, qualquer indemnização.
Com efeito, as normas estradais e as que regem a necessidade de habilitação legal para a condução visam, na sua essência, proteger os demais utentes da via e o interesse público da circulação em segurança, que não proteger os próprios infractores.
Ou seja, o Autor não tem ius a qualquer indemnização dado que os seus interesses particulares não estão inseridos nas finalidades dessas normas contra-ordenacionais e criminais eventualmente infringidas, nem os danos se produziram no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar”.
Daí que, “não se vislumbrando que o [1º] Réu tenha praticado qualquer ilícito civil, nem que tivesse violado qualquer dever de cariz jurídico perante o Autor” – estando, por conseguinte, afastada a possibilidade de invocar a concorrência e repartição de culpas – “não pode concluir-se pela sua responsabilização civil pelos danos sofridos pelo Autor”.
*
4 - Da concorrência e repartição de culpas, ao abrigo do art. 570.º, n.º 1 do CC.
Na ausência de culpa atribuível ao 1º réu e inexistindo fundamento da sua responsabilização, fica prejudicada a aferição da pretendida concorrência e repartição de culpas.
*
Deste modo, a sentença recorrida merece inteira confirmação, improcedendo a apelação.
*
Por força do decaimento total das pretensões recursórias do recorrente, as custas do recurso são da sua responsabilidade (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I - Provando-se apenas que o Autor, menor de idade à data, tripulava um motociclo/moto 4, propriedade do Réu, à vista, com sua autorização e seu consentimento, desacompanhado de outros elementos ou indícios, apresenta-se como insuficiente para caracterizar uma relação de comissão entre os dois, em que aquele seria o comitente e este o comissário.
II - O saber se no empréstimo/comodato do veículo a direcção efectiva deste e o interesse na sua utilização pertencem ao respectivo proprietário depende do que resulte das circunstâncias de cada situação concreta.
III – No entanto, no que concerne ao proprietário do veículo que o empresta, a direcção efectiva e a utilização no próprio interesse presumem-se naturalmente, incumbindo ao comodante, se assim não for, ilidir essa presunção.
IV - O regime decorrente do art. 503.º, n.º 1 do Cód.Civil não tem aplicação nas relações internas entre comodante e comodatário, mas apenas relativamente a terceiros lesados.
V - Contudo, para efeitos do art. 504º do CC, também o condutor do veículo acidentado (vítima) é de considerar terceiro lesado - aproveitando, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei -, contanto que sofra acidente relacionado com os perigos próprios daquele veículo.
*
VI. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo do apelante (art. 527º do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
*
Guimarães, 14 de janeiro de 2021

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)



1. Cfr. Direito das Obrigações, vol. I, 2ª ed., 2002, Almedina, p. 322.
2. Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., 1987, Coimbra Editora, Volume I, p. 507.
3. Respondendo o comitente apenas se, em concreto, se apurar a responsabilidade do comissário pelo facto danoso que praticou, discute-se se a responsabilidade do comissário tem de ser subjetiva, por facto ilícito, ainda que por culpa presumida (Antunes Varela, obra citada, pp. 644/645 e Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Texto elaborado pelos Drs. J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno de Sá e J. C. Proença, com base nas lições do Prof. Doutor Rui de Alarcão ao 3.º Ano Jurídico, 1983, p. 255) ou se também estão aqui abrangidas a imputação pelo risco e a imputação por facto lícito (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed, Almedina, pp. 518/519 e Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações/Das Obrigações em Geral, Universidade Católica, p. 387).
4. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., Almedina, 2018, p. 640.
5. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 640.
6. Cfr. Nuno Morais, A responsabilidade objectiva do comitente por facto do comissário (A análise do art. 500.º do Código Civil – seus pressupostos e regime), Revista Julgar, p. n.º 6, Set/dez 2008, p.53.
7. O próprio comodato pode, efetivamente, consubstanciar uma relação de comissão, desde que o comodatário não tenha plena liberdade de utilização da coisa dada em comodato, sendo antes limitado por concretas limitações, instruções ou vigilância por parte do comodante - cfr. Nuno Morais, estudo citado, p. 53 (nota 43).
8. Cfr. Almeida Costa, obra citada, p. 518.
9. Cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, (…), p. 386.
10. Cfr. Nuno Morais, estudo citado, p.54, Menezes Leitão, obra citada, p. 345.
11. Cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, Almedina, p. 656.
12. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 646.
13. Cfr. Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, 1987, Almedina, p. 137.
14. Cfr. obra citada, p. 646.
15. Cfr. Ac. do STJ de 3/03/2009 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. 16. Cfr. Acs. do STJ de 07/07/2010 (relator Oliveira Vasconcelos), de 03/03/2009 (relator Sebastião Póvoas), de 18/11/2008 (relator Pires da Rosa), de 19/06/2008 (relator Custódio Montes) e de 31/10/2006 (relator Azevedo Ramos), todos in www.dgsi.pt.
17. Cfr. DR-II Série, de 24/06/1996 e BMJ n.º 456, p. 19.
18. Cfr. Ac. da RC de 11/09/2012 (relator Artur Dias), in www.dgis.pt.
19. Cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 121, 1988/1989, pp. 45/46.
20. Cfr. Das Obrigações em Geral (…), pp. 656/657.
21. Cfr. Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, (…), p. 406.
22. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral (…), pp. 658 e Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, (…), p. 407.
23. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, (…), p. 514.
24. Cfr. Acs. do STJ de 27/10/1988 (relator Almeida Ribeiro), de 20/02/2001 (relator Pinto Monteiro), de 6/12/2001 (relator Ribeiro Coelho), in www.dgsi.pt. e Maria da Graça Trigo/Rodrigo Moreira, Comentário ao Código Civil, (…), p. 407/408.
25. Cfr. Acs. do STJ de 27/10/88, BMJ, nº 469, de 20/02/2001, CJSTJ, T. I, p. 125; de 6/11/2001, CJSTJ, T. III, p. 141, de 31/10/2006 (relator Azevedo Ramos) e de 29/01/2014 (relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt.
26. Cfr. Ac. do STJ de 6/11/2001, CJSTJ, T. III, p. 141.
27. Cfr. Das Obrigações em Geral (…), pp. 664/666.
28. Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, (…), p. 513.
29. Cfr. obra citada, p. 528.
30. Cfr. obra citada, pp. 528/529 (nota 2).
31. Cfr. obra citada, pp. 311/312.
32. Cfr. RLJ, ano 109, p. 154 e segs.
33. Cfr. Manual dos Acidentes de Viação, 3ª ed., p.317.
34. Cfr. Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, Livraria Petrony, 3ª ed., 1995, p. 95.
35. Cfr. obra citada, p. 96.
36. Cfr. Direito da Responsabilidade Civil, Quid Iuris, p. 434.
37. Cfr. obra citada, p. 662.
38. Cfr., nesse sentido, versando sobre um caso de locação mas aplicável com as devidas adaptações ao contrato de comodato, o Ac. do STJ de 26/11/2015 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), in www.dgsi.pt.
39. Cfr. Vaz Serra, in RLJ, Ano 111, p.286.
40. Cfr., Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. 1986, Coimbra Editora, Vol. II, p. 661.
41. Cfr. Ac. da RL de 6/11/2013 (relatora Maria Amélia Ameixoeira), in www.dgis.pt.
42. Cfr., neste sentido, Vaz Serra, RLJ, 102º, p. 28, Ac. do STJ de 09/01/1997 (relator Metello de Nápoles) e Ac. da RC de 12/11/2013 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt.
43. Cfr., Vaz Serra, RLJ, 102º, p. 28.
44. Cfr., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral (…), p. 670, nota (1) e Raul Guichard, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações/Das Obrigações em Geral, Universidade Católica, p. 412.
45. Cfr. Ac. do STJ de 27/06/1989, in BMJ, 388º, p. 517 e o Ac. do STJ de 09/01/1997 (relator Metello de Nápoles), in www.dgsi.pt.
46. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, (…), p. 518.
47. Cfr. Ac. do STJ de 1/06/2017 (relator Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., no qual se faz referência ao «risco acrescido de circulação».
48. Cfr. Acs. do STJ de 4/10/2007 (relator Santos Bernardino) e de 3/12/09 (relator Bettencourt Faria), in www.dgsi.pt. Naquele aresto, perante a colisão entre um automóvel e um velocípede conduzido por uma menor com 10 anos, o STJ concluiu pela admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e a culpa do lesado e, incitando por uma interpretação atualista do art. 505.º do CC, acabou por concluir que a inexperiência da condutora do veículo automóvel constitui um risco acrescido do veículo.
49. Cfr. Antunes Varela, obra citada, p. 563.